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33.

CONTEMPORANEIDADE E PRESENTISMO NA CIENCIA DA LÓGICA

https://doi.org/10.36592/9786587424064-33
Valentin Wey1

Propomos estudar o lugar e a função da contemporaneidade na Ciência Lógica


de Hegel. Essa idéia teve origem em uma hesitação sobre a ambiguidade latente do
título do congresso. "Hegel e a contemporaneidade" pode implicar em falar da
contemporaneidade de Hegel ou da „contemporaneidade“ em Hegel, ou mesmo de
uma leitura hegeliana de nossa contemporaneidade. Agora nos parecia que essa era
uma ambiguidade profundamente hegeliana, considerando que, pensar o conceito de
contemporaneidade dentro da obra de um autor implicaria ao mesmo tempo em
pensar na própria contemporaneidade atual do autor, considerando essa afirmação do
próprio Hegel segundo a qual a verdade filosófica é sempre a mesma, na medida que
ela exprime o que sempre ja esteve presente e que não existe, na filosofia, nem antes
nem depois, mas sim uma contemporaneidade eterna do espírito a sim mesmo2.
Primeiro, é importante notar que o termo latino da contemporaneidade é
problemático. De fato, não é fácil encontrar um equivalente alemão ao cum tempus, ao
que „está no mesmo tempo“. O francesismo Kontemporär não existia na época ou é
muito pouco usado. Quanto à tradução literal da contemporaneidade, a
Gleichzeitigkeit, nos parece inadequada ao expressar o que, na contemporaneidade,
vai além da mera simultaneidade ou igualdade temporal. Vamos propor como
equivalente à contemporaneidade latina o termo alemão Gegenwärtigkeit. Como o
que se tem e se mantem frente a frente (gegen), a Gegenwärtigkeit acrescenta à
espacialidade do Gegenstand a temporalidade ou permanência de um waren
conservador. Além da simples semelhança temporal, o contemporâneo implica, de
fato, uma anterioridade, uma certa co-presença que assume o sentido de uma

1École Normale Supérieure de Lyon. E-mail: valentin.wey@ens-lyon.fr


2cf. HEGEL, G. W. F.; La raison dans l’histoire : Introduction aux Leçons sur la philosophie de l’histoire
du monde, Tradução de Laurent Gallois, Paris: Points, 2011. Vide também MARMASSE, Gilles,
L’histoire hégélienne entre malheur et réconciliation, Paris: Vrin, 2015, „Comment on écrit l’histoire“:
„L’objet de la philosophie de l’histoire est ainsi l’éternel présent : non pas parce que la philosophie
nierait le devenir, mais parce que l’Idée en devenir, préserve toujours son intégrité et son identité la plus
fondamentale et que la philosophie n’est rien d’autre qu’un moment de cette Idée elle-même.“
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precedência, precedendo a particularidade que afirma explicá-la.


Desse modo, por que se interessar pelo sentido lógico da contemporaneidade? Por que
introduzir o que parece ser uma noção temporal no que é atemporal por excelência, a
saber, o espírito absoluto e a "ciência dos pensamentos puros"? Identificar o
condicionamento lógico do contemporâneo nos permitirá não apenas pensa-la
independentemente de sua redução temporal, mas ainda mais fundamentalmente,
libertar a própria Ciência da lógica das leituras temporais, progressivas ou
retrospectivas, que são habituais. De fato, veremos que as leituras do devir conceitual
como teleologia, teodicéia ou presentismo têm um entendimento redutivo da dialética
no seu fundamento, devido a uma compreensão estritamente temporal da
contemporaneidade.
O que chamaremos na primeira parte de contemporaneidade centrífuga, é de
fato aquela que aspira à sua própria superação em uma totalidade que, desde o início,
ja estrutura seu devir teleológico. Permanecendo na mesma incompreensão, a
contemporaneidade que identificaremos, em um segundo momento como
essencialmente centrípeta, seria entendida como um instante absoluto de um devir
que a precede e que ela percebe, em uma teodicéia retrospectiva, como seu próprio
advir. Se a leitura presentista concorda com a auto-referencialidade essencial do devir
conceitual, veremos em uma terceira parte que, no entanto, o presentismo reifica o
pressuposto das leituras lineares da dialética. Apenas um certo contemporanismo
lógico torna possível pensar o movimento lógico da verdade a partir de sua própria
negatividade e do retorno consciente do conceito em si.

I Contemporaneidade centrífuga

Antes de mais nada, a Gegenwärtigkeit parece ser caracterizada principalmente


pela sua parcialidade. Sendo momento de um movimento, sendo etapa de
desenvolvimento, é inerentemente limitada. Na verdade, é apenas em sua própria
limitação que a contemporaneidade realmente se conhece como tal3. Mas conhecer
não é somente conhecer como limitado. Esse conhecimento do limite já implica estar

3„Erkennen heißt nun nichts anderes, als einen Gegenstand nach seinem bestimmten Inhalte zu
wissen“, HEGEL, G. W. F., Wissenschaft der Logik, in: Enzyklopädie der philosophischen
Wissenschaften, Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1986, v. 1, § 46, p. 123.
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acima e além dele, como Hegel afirma no § 60 da „Cienca da Logica“ da Encyclopedia4.


O contemporâneo pertence ao limitado, finito e, portanto, necessariamente temporal,
porque implica e aspira à sua própria superação em uma negação negando sua
abstração primeira. Sendo essa marca da finitude, a contradição inerente à
contemporaneidade é, ao mesmo tempo, a força motriz do seu desenvolvimento, e,
como afirma R. Garaudy, a „fonte do seu devir futuro“5, entendido como sua necessária
Aufhebung num caminho predeterminado e orientado pelo conceito6.
Para melhor entender essa concepção, pode-se pensar em um vaso de
profundidade limitada, enchendo-se gradualmente com gotas de água. Se cada nova
gota acrescenta algo ao passado das gotas que a precedem, sua contemporaneidade
pode ser entendida apenas em relação a essa totalidade do vaso que tende a encher. O
acúmulo sucessivo de gotas e o enchimento progressivo do vaso estruturam o
momento atual de cada nova gota em um antes e um depois, em função da sua
totalização potencial. Assim, a Gegenwärtigkeit de cada gota só pode ser entendida
em função do enchimento total do vaso, totalização que aparece desde o início como
fim imanente do enchimento progressivo.
Nessa perspectiva, a contemporaneidade, conhecendo-se como tal na sua
determinação, já implica sua elevação e superação em um movimento indo no sentido
da totalidade que sempre ja a estrutura e a dirige de maneira subjacente.
Reconhecemos ali sem grande dificuldade os pressupostos que uma leitura teleológica
projeta no devir, qualquer passo dialético aparecendo apenas como um momento de
um caminho totalizante que irremediavelmente levaria a um fim predeterminado7.
Orientada rumo um futuro que a chama de longe, a contemporaneidade não seria outra

4 „Als Schranke, Mangel wird etwas nur gewußt, ja empfunden, indem man zugleich darüber hinaus ist.
(…) Es ist daher nur Bewußtlosigkeit, nicht einzusehen, dass eben die Bezeichnung von etwas als einem
Endlichen oder Beschränkten den Beweis von der wirklichen Gegenwart des Unendlichen,
Unbeschränkten, enthält.“ Ibid., § 60, comentário, p. 144.
5 A contradição é „la totalité en marche, la totalité en quelque sorte militante et non encore triomphante“,

GARAUDY, Roger, Contradiction et totalité dans la Logique de Hegel, Revue Philosophique de la France
et de l’Étranger, v. 154, 1964, p. 67–78.
6 „C’est donc, en fait, et à deux titres, pour éviter la contradiction logique que le processus dialectique

s'ébranle et se poursuit jusqu'au terme“, GRÉGOIRE, Franz, « Hegel et l’universelle contradiction »,


Revue Philosophique de Louvain, vol. 44, no 1, 1946, p. 36-73. Vide também GARAUDY, Roger, para o
qual a contradição seria „la présence immanente du tout en chaque être, cette présence immanente qui
est la source de son devenir, de sa mort, de son dépassement, se manifeste comme contradiction“, op.
cit.
7 „L’universel l'emporte sur le particulier parce qu'il consiste, par définition, à gouverner le particulier

tandis que ce dernier ne peut être que dépendant“, MARMASSE, Gilles, En quel sens la philosophie
hégélienne de l’histoire est-elle une théodicée ?, Revue de métaphysique et de morale, v. N° 85, n. 1,
p. 77–95, 2015.
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coisa senão essa tendência de superar a si mesma depois que sua limitação intrínseca
for reconhecida como tal. Sempre escapando de si mesma nessa projeção necessária
rumo ao que não é ela e ao que resta tornar-se, a Gegenwärtigkeit deve ser entendida
como essencialmente centrífuga. De fato, sua anterioridade cronológica, aberta a um
futuro que ainda está por vir, parece originar-se apenas de sua posterioridade lógica e
dependência da totalidade.

II Contemporaneidade centrípeta

E, no entanto, essa afirmação parece contradizer várias passagens hegelianas,


incluindo o famoso prefácio dos Princípios da Filosofia do Direito, declarando a
posterioridade irremediável e eterna da filosofia8. De fato, o conhecimento de uma
época nunca é contemporâneo de si mesmo, mas deve ser apreendido em uma escala
meta-contemporânea de maneira posterior ou retrospectiva. O espírito de uma época
se concebe apenas quando o fim que sempre foi imanente a ele emergiu, e é nesse
sentido que Hegel afirma, no § 242 da „Ciência da Lógica“ da Enciclopédia, que o fim
é nada mais do que "o desaparecimento da aparência segundo a qual o começo seria
imediato e o fim resultado" ou, em outras palavras, o fim e a dissolução da ilusão de
que ainda não estava presente de forma subjacente.
Para retomar o nosso exemplo do vaso enchendo-se com água, as gotas não são
mais definidas em relação à totalidade que tendem a atingir, e que fazia-as aparecer
como estágios sucessivos de uma progressão totalizante. Em vez disso, cada gota não
passa de um constituinte limitado, porém necessário, do relativo nível de enchimento
do vaso. É apenas em função do que contemporaneamente é alcançado que os
momentos que precedem o agora devem ser entendidos como estágios do próprio
devir. A contemporaneidade não é mais o que tende a se superar assim que ela se
conhece como tal, mas o que é conhecido apenas como a transcendência de tudo o que
a precede. A distância do contemporâneo de si mesmo não é mais uma distância par
défaut, tendendo à realização do que ainda não é ele, mas de alguma forma uma
distancia por excesso, em uma autoconsciência que confisca o que a precede como seu
próprio advir.

8„Quand la philosophie peint son gris sur gris, c’est qu’une figure de la vie est devenue vieille, et on ne
peut la rajeunir avec du gris sur gris, mais on peut seulement la connaître ; la chouette de Minerve ne
prend son vol qu’à la tombée du crépuscule“. HEGEL, G. W. F., Principes de la philosophie du droit,
Tradução Jean-François Kervégan, Paris: Presse Universitaire de France, 2013, prefácio.
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Em tal leitura, reconhecemos a compreensão do devir dialético como teodicéia.


A dependência da particularidade contemporânea da totalidade da qual ela participa,
não deve mais ser entendida como a origem de uma ultrapassagem futura, mas como
uma condição de uma intelecção retrospectiva. É nesse sentido que Hegel propõe o
jogo de palavras com a noção de Nachdenken, que ele entende no sentido literal de
Nach-denken de pensamento posterior ou pós-operatório9.
O movimento lógico do contemporâneo parece, em tal leitura, ser comparável à
função sintática do verbo conjugado ao presente na frase alemã. Localizado no final da
frase, o verbo é o que a frase procura desesperadamente desde seu inicio,
permanecendo em suspenso até poder se recapitular e totalizar no seu final. De fato, é
somente em sua realização concreta que o conceito conhece o que o precede como
momentos de seu próprio desenvolvimento, assim como seu desenvolvimento só se
recapitula como uma totalidade estruturada ao chegar no seu último momento.
Se, na leitura teleológica, a anterioridade cronológica do contemporâneo
implicava em sua secundariedade lógica, a leitura como teodicéia inverte essa relação.
A posterioridade cronológica do pensamento contemporâneo, sempre voltado para o
que ja não é mais, deve agora ser entendida como correlativa da sua anterioridade
lógica. Não é mais a finitude do contemporâneo, o fato de ele sempre tender a superar
a si mesmo, o que lhe dá seu significado, mas sim seu caráter absoluto, o fato de que
não se pode pensar fora dele10. Sendo essencialmente resultado, a contemporaneidade
pode ser conhecida como tal apenas ao regredir de sua própria totalização em um
movimento essencialmente centrípeto, e sua presença lógica nesse sentido é
justamente o que sempre ja tivemos que alcançar11. Mas como escapar do que parece
ser uma justificação injustificável do fato estabelecido, e como explicar essa aparente
dualidade do contemporâneo, preso entre um fim a ser alcançado e um passado a ser
engolido?

9 „Car le fait de la philosophie est la connaissance déjà élaborée, et en cela l’appréhension serait

seulement une réflexion au sens d’une pensée subséquente; c’est seulement le jugement d’appréciation
qui exigerait une réflexion au sens habituel.“ HEGEL, G. W. F., La science de la logique, in: Encyclopédie
des sciences philosophiques, Tradução Bernard Bourgeois, Paris: Vrin, 2018, p. 124.
10 „Von den über die Philosophie überhaupt vorausgeschickten Begriffen gilt, dass sie aus und nach der

Übersicht des Ganzen geschöpfte Bestimmungen sind.“ HEGEL, G. W. F., Wissenschaft der Logik, in:
Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften, Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1986, v. 1, §
19, p. 67.
11 É por isso que G. Lebrun afirma, contra G. Marmasse, que a progressão do texto não é genética, mas

pedagógica e que a gênese é realizada de maneira não progressiva, mas retrospectiva. LEBRUN, Gérard,
L’envers de la dialectique: Hegel à la lumière de Nietzsche, Paris: Éd. du Seuil, 2004, I.
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III Presentísmo

A essas duas leituras que acabamos de citar, adicionaremos uma terceira, a


saber, a apresentada por Emmanuel Renault em seu livro Connaitre ce qui est12.
Emmanuel Renault opõe o que chama de leituras finalistas da dialectica, as leituras
passadistas, e propõe de compreender a posição hegeliana, em contraste com essas
duas opções, como essencialmente presentista.13 Esse presentismo hegeliano possui,
seguindo E. Renault, um senso primeiramente ontológico, concebindo o real como „a
rede de condições processuais da Existência em ato.“14 Em contraste com o que
chamamos de movimentos centrífugos e centrípetos da contemporaneidade, o
presentismo parece fazer jus à auto-referencialidade fundamental do movimento
conceitual, que é auto-explicativo antes de ser auto-projeção. No entanto, parece-nos
que esse presentismo ainda é entendido de maneira tacitamente temporal. Por
exemplo, E. Renault explica que "a era atual traz consigo os meios de superar suas
próprias insuficiências" e que "o presente eterno" deve levar a uma pergunta sobre o
que „merece ser preservado do passado“, reiterando o vocabulário da potencialidade e
da antecipação temporal, próprio do raciocínio puramente histórico. Nessas
circunstancias, parece que o presentismo não é diferenciado por natureza, mas apenas
por graus da teleologia e da teodicéia, pois reifica o pressuposto comum a elas de uma
dialética construtiva ou positiva, procedendo do negativo para plenitude em um
caminho considerado de um ponto de vista externo e neutro15.
A contradição inerente à determinação do contemporâneo é, mais uma vez,
entendida como ausência em relação à abundância e, portanto, como uma contradição
cuja solução encontra-se possibilitada no tempo16. É com base nesse pressuposto do

12 RENAULT, Emmanuel, Connaître ce qui est : enquête sur le présentisme hégélien, Paris: Vrin, 2015.
13 „Embora se possa dizer que as concepções do presente como mero resultado de um processo passado
sejam passadistas, as concepções que explicam o curso da história através da busca por um mundo
melhor podem ser consideradas, por simetria, futuristas. (...) Em contraste com essas duas opções,
deve-se dizer que a posição hegeliana é presentista.“ Ibid., p. 15.
14 Id.
15 Nesse sentido, é igualmente contraditório falar de um "projeto especulativo", sendo o especulativo ou

efetivo ou potencial em uma perspectiva posterior ao seu efetivo devir, mas não o objeto de um projeto
voltado para um futuro indeterminado, cf. RENAULT Emmanuel, Ibid., p. 54.
16 „Wenn dieser Widerspruch dadurch verdeckt zu werden scheint, dass die Realisierung der Idee in die

Zeit, in eine Zukunft, wo die Idee auch sei, verlegt wird, so ist solche sinnliche Bedingung wie die Zeit
das Gegenteil vilement von einer Auflösung des Widerspruchs, und die entsprechende
Verstandesvorstellung, der unendliche Progress, ist unmittelbar nichts als der perennierend gesetzte
Widerspruch selbst.“ HEGEL, G. W. F., Wissenschaft der Logik, in: Enzyklopädie der philosophischen
Wissenschaften, Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1986, v. 1, § 60, p. 143.
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positivo, nessa ilusão de uma dialética que vai do vazio à plenitude, que resulta
imediatamente a temporalização do devir. Esse reflexo do pensamento representativo
resta sobre uma compreensão abstrata ou unilateral da negatividade, considerando
sua superação como uma simple adição positiva e não como uma segunda negação
resultando em uma positividade especulativa17. Desse modo, um pensamento da
contemporaneidade como presente limitado e chamando sua superação no devir
concreto do conceito, permanece de fato dependente da negatividade abstrata própria
à esfera da história18. Ignorando a natureza negativa essencial de toda determinação e,
portanto, de todo saber, o raciocino do entendimento tende a tomar como positivo o
que é apenas determinação negativa, e assim absolutizar as estruturas do espírito
objetivo19.
Como mostra G. Lebrun, a vigorosa crítica de tal pensamento representativo
anda de mãos dadas o projeto hegeliano de construir um „novo presente“20. Nesta
perspectiva, Hegel opõe à projeção e à construção, o aprofundamento, sendo o
movimento do espírito não progresso o regresso, mas penetração de si mesmo21. Se o
gesto do espírito é um gesto de aprofundamento, é porque para ele, trata-se de afundar
no que já é ele em um processo de auto-reconhecimento em tudo. Ao movimento
centrífugo na auto-superação ou centrípeto na auto-absolutização, o movimento lógico
da Aufhebung deve, portanto, ser entendido como a verdadeira contemporaneidade
lógica, na medida em que a Aufhebung mantém em uma unidade conservadora a dupla
negação que opera. O movimento de Aufhebung é de fato um effondrement fondateur,

17 apenas o conceito sendo negatividade absoluta e identidade própria de si mesmo, cf. HEGEL, G. W.
F., Wissenschaft der Logik, in: Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften, Frankfurt am Main:
Suhrkamp Verlag, 1986, v. 1, § 258.
18 Devemos lembrar, com G. Marmasse, a diferença de movimentos que caracterizam as esferas do

Espírito objetivo e do Espírito absoluto: „Des objets différents se succèdent certes, mais la philosophie
ne se divise pas, car c'est en elle-même qu'elle change. En revanche, dans l'histoire, on observe une
pluralité de peuples en conflit réciproque. Bref : l'esprit philosophant travaille subjectivement sur lui-
même, tandis que l'esprit du monde se divise en une multiplicité d'étants distincts.“, MARMASSE,
Gilles, En quel sens la philosophie hégélienne de l’histoire est-elle une théodicée ?, Revue de
métaphysique et de morale, v. N° 85, n. 1, p. 77–95, 2015.
19 „Die Beziehung des Ausgangspunktes auf den Endpunkt, zu welchem fortgegangen wird, wird so als

nur affirmativ vorgestellt als ein Schließen von einem, das sei und bleibe, auf ein anderes, das ebenso
auch sei. Allein es ist der große Irrtum, die Natur des Denkens nur in dieser Verstandesforms erkennen
zu wollen.“ HEGEL, G. W. F, op. cit., § 50, p. 132.
20 LEBRUN, Gérard, La patience du concept : essai sur le Discours hégélien, Paris: Gallimard, 1972, I.
21 Poderíamos nos referir ao § 140 da Ciênca da Lógica, no qual Hegel tematiza o erro comum do

entendimento de tomar a essência por o interior: „Es ist der gewöhnliche Irrtum der Reflexion, das
Wesen als das bloß Innere zu nehmen. Wenn es bloß so genommen wird, so ist aux diese Betrachtung
eine ganz äußerliche und jenes Wesen die leere äußerliche Abstraktion. (…) Es hätte vielmehr heißen
müssen, eben dann, wenn ihm das Wesen der Natur als Inneres bestimmt ist, weiß er nur die äußere
Schale.“, HEGEL, G. W. F, op. cit., § 140, p. 274-275.
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um afundamento fundador das particularidades que ele supera. Esse zu Grunde gehen
não é mera superação em uma projeção, nem mera conservação por justificação. Muito
mais, é uma fundação de si por si mesmo, em um aparecer do Espírito a si mesmo;
implicando o reconhecimento atual de uma totalidade efetiva.
O sentido lógico e, portanto, o primeiro, da Gegenwärtigkeit, parece-nos residir
nesse aprofundamento de si com o qual o conceito procede em seu devir efetivo. Não
é progressivamente que o conceito se faz, nem regressivamente que se entende, e nem
é atualmente que ele se atinge. A entrada em si do conceito não deve ser entendida de
maneira positiva e progressiva, nem retroativa e retrospectiva, mas justamente como
uma construção sistemática da positividade do negativo, ou, em termos hegelianos,
como especulativo.
Finalmente, não é em relação ao vaso que enchem, nem em relação ao
enchimento relativo do vaso que as gotas devem ser entendidas. E sim, é em sua
sucessão que elas fazem o vaso parecer um vaso, fazendo dessa aparência de um
recipiente potencialmente preenchível a condição e o fim da sua própria sucessão. Se
a contemporaneidade não é imediatamente o que é, mas mantém essa distância
mínima a si mesma que o conhecimento da sua própria fronteira implica, é porque,
como o Conceito, deve ser apenas entendida como efetiva na superação conservadora
da suas limitações primeiras, superação que faz da sua realização um proprio devir. Se
a contemporaneidade é precisamente nunca realizada, nunca imóvel e deve ser
entendida como em movimento permanente, é porque o sistema especulativo não pode
ser entendido como imediatamente sucedido. Mais do que um sistema, o movimento
conceitual é sistematização, mais do que bem-sucedido, está sempre tendo sucesso. A
contemporaneidade lógica, como devir sistemático, é assim qualificada como lógica do
desespero e como o que Hegel chama esse „pensamento desesperando por poder
resolver, por si só, também a contradição em que se colocou“22. A contemporaneidade,
nesse sentido, não passa de co-presença implícita do espírito para si mesmo em seu
devir sistemático e efetivo, e entende-se em seu devir como essa permanência do que
desaparece23, como presente eterno que se desespera da sua própria efemeridade.

22HEGEL, G. W. F., op. cit., § 11.


23„le mouvement est le concept de la véritable âme du monde; nous sommes habitués à le concevoir
comme un prédicat, comme un état; mais, en fait, il est le Soi, le Sujet comme Sujet, la permanence,
justement, de ce qui disparait (das Bleiben eben des Verschwindens)“, HEGEL, G. W. F., Encyclopédie
des sciences philosophiques, Tradução Bernard Bourgeois, Paris: Vrin, 1994, § 261, Adenda.
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Conclusão

A contemporaneidade aparece frequentemente como o tempo ou momento ao


qual, inevitavelmente, já pertencemos e que, portanto, precede o nosso pensamento,
sempre o estruturando. No entanto nada parece mais difícil do que pensar exatamente
aquilo a que sempre ja pertencemos e, ao mesmo tempo em que condiciona seu
entendimento, a contemporaneidade não deixa de impedi-lo. Essa ambiguidade da
contemporaneidade pode ser entendida como aquela a que atende o imperativo da
cientificidade que Hegel herda diretamente de Fichte. So pode-se entender o
pensamento libertando-o de tudo o que ele carrega de estranho e reconhecendo que
essa estranheza não passava de sua própria ignorância de si. Superar essa ignorância
envolve desfazer-se uma vez por todas dos remanescentes do entendimento e da
redução do devir dialético a um monumento linear prospectivo o retrospectivo. Em vez
de tentar entender o contemporâneo a partir do que não é, e redobrar suas tendências
representativas originais adicionando as nossas, seria necessário de distinguir, dentro
do movimento lógico do contemporâneo, entre o que o D. Henrich chama de processos
lógicos e a própria ciência de tais processos24. Agora, se o contemporâneo tende a
buscar-se além de seus próprios limites, e sua tentativa de auto-conhecimento
imediato não deixa de mergulha-lo em um processo de auto-desolação, seria
necessário construí, en vez de uma ciência da lógica como meta-lógica, uma
verdadeira intra-lógica immanente ao proprio movimento dialético, fazendo justiça
ao retorno conciliatório e, assim, libertador, do conceito em si.

Referências

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Kervégan. 3e Revue et augmentée. Paris: PUF, 2013.
24 HENRICH, Dieter, Hegel im Kontext, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2010, p. 93.
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