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Hegel segundo Ferrater Mora

HEGEL (GEORG WILHELM FRIEDRICH) (1770-1831) nasceu em Stuttgart e depois


de estudar teologia em Tubinga com Schelling e Hölderlin foi preceptor privado em
Berna (1794-1797) e em Francfort (1797-1800). Em 1801 se transferiu para Jena, na
cuja Universidade trabalhou como docente privado. Durante este período esteve sob a
influência de Schelling e dos românticos, conservando também as marcas do neo-
humanismo e da educação teológica recebida em Tubinga, a qual, por outro lado,
persistiu durante toda sua vida. Logo, no entanto, separou-se do sistema da
identidade, publicando em 1807 sua primeira obra original. Redator de um jornal de
Bamberg de 1807 a 1809, foi nomeado neste último ano reitor do Ginásio de
Nuremberg, cargo que exerceu até 1816. Nomeado depois professor na Universidade
de Heidelberg, transferiu-se dois anos depois para Berlim, onde explicou todas as
partes de seu sistema com grande sucesso e com o apoio oficial (veja
HEGELIANISMO).
Embora situado na confluência das correntes do idealismo transcendental e do
romantismo, o sistema de Hegel oferece profundas diferenças a respeito dos de Fichte
e Schelling. Em primeiro lugar, rejeita decididamente partir do Absoluto como mera
indiferença de sujeito e objeto; esse Absoluto é para Hegel como a noite onde todos os
gatos são pardos, "é a ingenuidade do vazio no conhecimento", pois não permite
explicar de nenhuma maneira a produção das diferenças nem sua realidade. Em
segundo lugar, caracteriza Hegel uma forte tendência ao "concreto" e uma decidida
afirmação do poder do pensamento e da razão frente à vaga nebulosa do sentimento e
da intuição intelectual. A filosofia trata do saber absoluto — melhor dito, é o saber
absoluto. Mas este saber não é dado de uma vez em sua origem; é o final de um
desenvolvimento que desde as formas inferiores se eleva até as superiores. Mostrar a
sucessão das diferentes formas ou fenômenos da consciência até chegar ao saber
absoluto é o tema da Fenomenologia do Espírito como introdução ao sistema total da
ciência.
Segundo Hegel, a ciência (Wissenschaft) é essencialmente sistemática; a ciência
consiste em noções que se derivam umas das outras de um modo necessário. A única
forma em que pode existir a verdade é, diz Hegel, "o sistema científico desta verdade".
Na verdadeira natureza do conhecimento radica a necessidade de que seja ciência —
e, por tanto, sistema. Este sistema não é, no entanto, um simples conjunto de
proposições em forma deductiva; o verdadeiro sistema é o que resume, unifica e
supera as doutrinas anteriores. Só na maturidade da história e da ciência pode existir,
pois, uma verdadeira ciência sistemática. O método desta ciência é o método dialético
(veja DIALÉTICA), ou método da evolução interna dos conceitos segundo o modelo da
tese-antítese-síntese. O método dialético não é nem um puro método conceptual nem
um método intuitivo; não é nem um método dedutivo nem um método empírico.
Nesses métodos a verdade se opõe ao erro e vice-versa. No método dialético o erro
aparece como um momento evolutivo da verdade: a verdade conserva, e supera, o
erro.
Característico de Hegel é a ideia de que o conhecimento não é representação por um
sujeito de algo "externo"; a representação por um sujeito de um objeto é ao mesmo
tempo parte integrante do objeto. A consciência é não só consciência do objeto, mas
também consciência de si. O objeto não é, pois, nem algo "exterior" nem simples
conteúdo de consciência. Em outros termos, o conhecimento como caminhada em
direção ao Absoluto requer uma dialética do sujeito e do objeto e nunca a redução de
um ao outro. (como teria feito Fichte, reduzindo o não eu ao eu).
A Fenomenologia do Espírito é, assim, a caminhada do pensamento em direção ao
seu próprio objeto, que resulta, ao final, ser ele mesmo enquanto absorveu
completamente o pensado. Nessa caminhada há diversas fases ou, melhor dito,
"momentos". Cada um desses "momentos" tem sua própria justificação, mas é
insuficiente: imediatamente é negado e superado por outro "momento". O primeiro
momento do saber é aquele em que a consciência acredita achar o conhecimento
verdadeiro na certeza sensível. Parece, de fato, que o objeto desta certeza seja não
só o mais imediato, mas também o mais rico. No entanto, trata-se de uma pura ilusão.
Tudo que o conhecimento sensível pode enunciar de um objeto é dizer que é.
Pode-se enriquecer esta noção e tentar apreender o objeto por meio de determinações
espaciais e temporais, tais como "aqui" e "agora". Mas o "aqui" e o "agora" não têm
sentido a não ser que sejam universalizados. Somente pela universalidade do
significado de termos com os quais pretendemos descrever os dados supostamente
imediatos sensíveis podemos alcançar certeza a respeito de tais dados. Deve, pois,
ser avançado além da certeza sensível e encontrar o que pode fundamentá-la. Mas os
"momentos" que seguem ao da certeza sensível não são tampouco suficientes. As
primeiras fases na evolução do espírito mostram a irremediável oposição entre o
sujeito e o objeto, as contradições existentes entre o saber do objeto e o objeto
mesmo.
Superior à certeza sensível, mas sem que fique suprimida a oposição e a contradição,
é a percepção, à qual segue o entendimento, que consiste já no pensamento do
objeto. Este estado, por assim dizer, de perda da consciência na diversidade do objeto
e em suas contradições desaparece quando sobrevém no caminho que conduz ao
saber absoluto o reconhecimento pleno de si mesma e de sua essencial identidade
consigo mesma. Toda diversidade e toda oposição da consciência com o objeto ficam
então desvanecidas ante a unidade revelada no conceito e só então pode-se dizer
propriamente que a consciência é razão. Mas a razão não pode ficar detida na fase de
sua diversificação nas consciências individuais; através de uma série de fenômenos
cuja sucessão liga Hegel não já com a evolução de uma consciência individual, mas
com a história, a consciência individual se faz espírito e engloba em suas fases,
conduzidas dialeticamente, a existência histórica, desde o estado de dependência até
a paulatina descoberta da vida interior pelo cristianismo, que alcança no curso de suas
próprias internas negações a superação de sua contradição e seu triunfo final. Este
triunfo não é mais que a completa entrada do espírito em si mesmo pela religião.
Perdido na selva de si mesmo, o espírito volta a se encontrar em seu verdadeiro ser
quando os graus de seu desenvolvimento o conduziram ao ponto onde a revelação do
dogma cristão coincide com a verdade filosófica, pois o saber absoluto é a filosofia, o
espírito que chegou já a si mesmo depois de ter-se manifestado em toda sua verdade.
Na Fenomenologia Hegel diz que só o Espírito (ou, melhor, o espiritual) é real. Isso
parece dar a entender que Hegel mantém uma filosofia "espiritualista" segundo a qual
ou somente há realidade espiritual ou bem toda realidade se reduz em último termo a
realidade espiritual. No entanto, Hegel usa 'Espírito' em um sentido muito distinto do
que tem o mesmo termo em qualquer sistema mais ou menos "espiritualista". Antes de
tudo, o Espírito não é para Hegel uma entidade especial, ou uma espécie de supra-
entidade superior a todas as demais.
"O espiritual — escreveu Hegel — é a essência, o que existe em si mesmo." Isso
significa que para Hegel o espiritual não é propriamente entidade, mas forma (ou
formas) de ser das entidades. Esta forma (ou formas) de ser não se acham
estabelecidas de uma vez para sempre, mas estão submetidas a um interno processo
dialético. É no curso deste processo que a realidade se constitui "espiritualmente".
Não se trata de que a realidade, que "não era Espírito", se vá "espiritualizando". Trata-
se mais bem de que a realidade se faz a si mesma convertendo-se em sua própria
"verdade". O que Hegel chama "Espírito" é, pois, a realidade como Espírito. Em um
certo sentido pode-se dizer que a realidade "não era Espírito" e que se "converteu" em
Espírito. Mas sempre que por isso não se entenda a passagem de um modo de ser
aparente a um modo de ser real, ou de um modo de ser real a outro modo de ser real.
Ao "converter-se" em Espírito a realidade chega a ser o que já era. Ocorre somente
que o era "sem saber".
Por isso a realidade tem que conquistar-se a si mesma em sua verdade, o que não
pode fazer-se, segundo indicamos antes, sem absorver o erro. As condições
necessárias para a auto-realização do Espírito pertencem a esta mesma auto-
realização. Por isso o Espírito evolui na série de suas "formas", "fases", "momentos"
ou "fenômenos" de um modo interno. Não pode ser de outro modo, pois não há nada
que seja externo à realidade; o que se chama "externo a", ou "fora de" a realidade é
um momento interno — que se desenvolve como externo — desta mesma realidade.
A fenomenologia do espírito não parte do saber absoluto, mas conduz
necessariamente a ele. Desde então pode o pensamento situar-se na imediaticidade
do Absoluto mesmo, ser ciência da Ideia absoluta. Esta ciência procede por sua vez
dialeticamente; o processo de sucessivas afirmações e negações que conduziu da
certeza sensível ao saber absoluto é o mesmo processo que serve à filosofia para
manifestar a Ideia. A dialética surge já na primeira divisão do sistema total da ciência.
Em seu ser em si, a Ideia absoluta é o tema da Lógica. Em seu ser fora de si, a Ideia
absoluta é o tema da Filosofia da Natureza. Em seu ser em e para si mesmo, a Ideia
absoluta é o tema da Filosofia do Espírito. Tese, antítese e síntese são os distintos
momentos em que cada um dos aspectos da Ideia e a Ideia mesma são
sucessivamente afirmados, negados e superados. A superação é ao mesmo tempo
abolição e conservação (Aufhebung) do afirmado, contém o afirmado, porque contém
a negação da negação. A dialética não é, conseqüentemente, um simples método do
pensar; é a forma em que se manifesta a própria realidade, é a própria realidade que
alcança sua verdade em seu completo autodesenvolvimento.
Como ciência da Ideia em seu ser em si, a Lógica começa com a teoria do ser (VEJA).
O ser é a noção mais universal, mas ao mesmo tempo a mais indeterminada. Ao ser
negado todo conteúdo nesta suma abstração, o ser se converte no nada. Mas esta
negação do ser é superada por sua própria negação, pelo devir (v.). O resultado desta
síntese é a Existência (Dasein) enquanto "Ser determinado". Este ser determinado
está determinado por uma qualidade, por meio da qual se converte em um "algo". Este
"algo" é negação da negação enquanto é pela exclusão de outras entidades que não
são ele. Como o caráter determinado do algo é equivalente a um limite, o "algo" de
que se trata tem que ser limitado. Esta limitação é a quantidade. A quantidade é por
sua vez limite, mas sem estabelecer em que proporção o é. É, pois, mister que o algo
determinado ou qualidade limitado pela quantidade seja determinado pela medida.
Qualidade, quantidade e medida são momentos da primeira parte da lógica, que é por
sua vez o primeiro momento do sistema completo do ser, ou seja, do ser enquanto ser
em si. Como segundo momento aparece o ser em sua manifestação ou verdade: a
essência, que é por sua vez afirmada, negada e superada em seu ser em si ou
essência como tal, em sua manifestação ou fenômeno e em sua união com o
fenômeno, isto é, em sua realidade. Por isso a teoria da essência é ao mesmo tempo
uma doutrina das categorias da realidade, considerada como substância enquanto
conjunto de seus acidentes; como causalidade, enquanto passagem do possível ao
real, e como ação recíproca enquanto relação mútua. Em seu ser em e para si
mesmo, como resultado de seu completo autodesenvolvimento, o ser é o conceito. O
conceito é a síntese dos dois momentos principais do ser, é união do ser e da
essência, liberação da necessidade da essência, ser da substância em sua liberdade.
O conceito não é uma mera noção da lógica formal; como conceito subjetivo é
universalidade, negação desta ou particularidade, e superação dos dois momentos ou
individualidade. No conceito são pensados seu ser em si e o juízo como momentos
opostos unidos no raciocínio ou conclusão, que permite expressar em uma síntese a
universalidade do individual. Como conceito objetivo, revela o conceito seu ser fora de
si em seus momentos do mecanicismo, do processo químico e da teleologia ou
finalidade orgânica, onde o conceito se converte na ideia diretora de uma totalidade
que tinha permanecido como disgregada nos dois momentos precedentes. E,
finalmente, como Ideia, o conceito é a síntese dos conceitos subjetivo e objetivo, a
verdadeira e plena união do ser com a essência depois de ter-se manifestado em sua
totalidade, a Ideia absoluta que volta a si mesma depois da dialética que no ser, na
essência e no conceito encontrou suas negações e superações, pois na Ideia
manifesta-se de um modo radical a síntese das contradições do conceito, que é por
sua vez a síntese das contradições do ser.
A Ideia converte-se deste modo em uma das noções capitais do sistema hegeliano —
que aspira a ser, não se esqueça, o sistema da verdade como um todo e, portanto, o
sistema da realidade no processo de pensar-se a si mesma. Mas a Ideia não é uma
causa da evolução, nem o princípio que possibilita o processo dialético, nem a
realidade como um todo: a Ideia explica o processo da realidade só enquanto
representa o termo para o qual se encaminha dito processo. Este termo não é, no
entanto, um termo exterior: é um termo interior ao processo mesmo. Por isso a Ideia
não é tampouco uma entidade lógica ou o aspecto lógico da realidade. A Ideia é aquilo
em que alcança pleno desenvolvimento o processo do ser como ser em si.
Agora bem, a Ideia, que a lógica estuda em seu ser em si, é estudada pela filosofia da
Natureza em sua alteridade. Também nela desenvolvem-se suas manifestações
dialeticamente: em seu estado de alteridade, a Natureza tende continuamente a voltar
à Ideia em seu ser em e para si mesma, pois a Natureza é como o estado de máxima
tensão da Ideia,

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