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archives-ouvertes A diferenga entre os sexos na teorizacao psicanalitica: aporias e desconstrugdes Thamy Ayouch > To cite this version: ‘Thamy Ayouch. A diferenca entre os sexos na teorizagao psicanalitica: aporias e desconstrucoes, Revista Brasileira de F icandlise , 2014, 48, pp.58 - 70. HAL Id: hal-01511348 https: //hal.archives-ouvertes.fr/hal-01511348 Submitted on 20 Apr 2017 HAL is a multidisciplinary open access archive for the deposit. and dissemination of sci- entific research documents, whether they are pub- lished or not. The documents may come from. teaching and research institutions in France or abroad, or from public or private research centers. 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Trata- sede interragaro teajeto do corporal ao sexuado edo sexuado 20 sexual, para examinar sea anatomia 6 verdadeiramente um destino. Ap6sapontar o enquadre politico, sociale histico no qual seinscreve esta questi da diferenca dos sexos, pretendemos consicerar as miitiplas camadas da sua abordagem pela teoria freudiana, ea proximidade, nesta categoria, entre a psicandlise e os estudos de género. Palavras-chaver psianalise;diferenga entre os sexos; corpo; género, Problematizacio Considerada como um operador psiquico irredutivel, a diferenga entre os sexos fundamenta-se, em muitas teorias psicanaliticas, sobre uma suposta evidéncia anatémica, uum testemunho do corpo, Etimologicamente, testemunhar parece vinculado ao corpo e a0 _género, através da homonimia entre a testemunha, tests-is, ea pequena testemunha, testicu- us, que evidencia 0 sexo masculino. Nesta etimologia, a anatomia esta inscrita numa rede simbélica juridica: podem testemunhar apenas os homens, provavelmente jurando sobre a parte anatémica, a mais preciosa, Ris um estranho testemunho etimolgico do corpo para a masculinidade, através, dos testiculos. No entanto, uma lingua semitica, o hebraico, remete o testemunho ao outro sexo, Em hebraico, a testemunha é 7y (ed), ¢ 0 testemunho, nrty (edot). © segundo sentido dey, no dicionério Even Shoshan, remete ao pano utilizado pela mulher menstruada para absorver o sangue.* O testemunho atesta a nao gravide7, inscrevendo a feminilidade como maternidade potencial, da qual se diferencia ao mesmo tempo. Aqui, 0 corpo é0 testemunho 1 Pricanalista, psicdlogo clinic, malie de conférence (profesor titular) na Université Lille, professor vis. tant estrangeiro no Instituto de Psicologia da Universidade de Sio Paulo (usr), 2 Agratecoa Keren Gita porter me confirmado esta etimotogia. RPE PREI WRONG 68 enone 1446 A diferenca entre os sexos na teorizaco psa “Thamy Ayouch = de uma diferenga anatémica que atribui a um sexo uma potencialidade (a maternidade) ea certera de uma transmissio: 0 judaismo. Nesta etimologia, testemunhar levanta a questao da visibilidade e da invisibilidade A primeira letra em 1,» (ain), designa o olho, o olhar e fonte: ela acrescenta, aos sentidos originérios de ver e consular, o sentido de aparecer e desaparecer, na transicao entre a visi- bilidade da fonte na superficie ea profundidade da terra. A segunda letra, 1 (dalet), designa a porta, a abertura triangular e, portanto, o sexo e o seio da mulher. A testemunha é assim um olho que fica no limiar, na superficie do sexo, e atesta uma passagem do interior ao exterior. Além da abertura do corpo, trata-se aqui também do olhar: a testemunha & aquele/a que, abrindo os olhos, pode conhecer. Efetivamente, por 3113 (tserouf), permutagao das letras, ay (ed) se aproxima de x7 (yediaa), conhecimento, € 7 (yedaa), conhecer.’ Conhecer biblicamente equivale aqui a atravessar o limiar, agir sobre esta divisao entre visivel e invisi- vel, interior e exterior, numa relagio carnal. Neste percurso de testis a Ty (ed), através desta diferenca anatémica observada pelo olhar, parece pertinente perguntar-se se o corpo é testemunha tio diretamente de uma atri- buigdo de sexo e como isso acontece. Cabe ressaltar que esta dimensio do olhar remete a ‘um imagindrio irredutivel. Como ¢ salientado pela psicandlise, as redes do ver, do tocar ou de qualquer atestacao sensivel nao correspondem ao imediatismo natural da percepeao, mas & maltiplicidade das inscrigSes imaginérias e simbélicas pelas quais 0 corpo & psiquizado e simbolizado. O sujeito s6 percebe 0 corpo proprio ¢ 0 corpo do outro por meio de uma certa simbolizagao do seu desejo: 0 corpo ¢ sempre abordado a partir da estruturagao da fantasia Por conseguinte, levantar a questio da diferenca entre os sexos, enquanto diferenga anatémica observada através do testemunho do corpo, equivale ase perguntar o que 0 corpo atesta aqui. [sso ndo deixa de interrogar algumas concepces analiticas da sexuagio e da sexualidade, De que articulacio da visibilidade dos corpos procede a diferenca entre 0s sexos, que inscrigao da ordem simbélica ela permite, e como ela & designada e estabelecida pela teoria? Trata-se de interrogar o trajeto do corporal ao sexuado e do sexuado ao sexual, para examinar se a anatomia é verdadeiramente um destino. A dimensio politica da questo Essa questio da diferenga entre os sexos nao deixa de se inscrever num enquadre ultural e politico no sentido lato, Surge o problema das teorizagoes, ao longo da historia, do masculino e do feminino nas diversas teorias psicanaliticas, e da fungao destas categorias na organizagao do pensamento psicanalitico enquanto: soc a. _pensamento da singularidade e da diversidade psiquica, subvertendo as evidéncias ¢ denunciando a intrassubjetivagao das teorias (Ayouch, 2013); a abordagem e aescuta analitica almejam abrir um espago para a desconstrugio das certezas teéricas, clini- cas e naturais; b, pensamento que, como toda teoria, se inscreve na historicidade do surgimento de suas concepedes ¢ teorizacdes. 3 Agradego a Esther e Laurent Picard a sua preciosa ajuda nesta pesquisa etimokogica, REPS PREI LWOLNGD 60 enone 1446 oo Revista Brasileira de Psicanalise- Volume 48, 4-2014 Cabe perguntar, portanto, se a clinica da singularidade subj lise de uma reflexao sobre as implicagdes sociais dos seus dispositivos tedricos e priticos. 0 debate sobre. diferenca entre os sexos é muito atual: surgiu na Franca, por exemplo, quando correntes da psicanilise pretenderam falar de assuntos sociais e definir o caminho certo da subjetivacio. Varios psicanalistas¢ gratficaram a comunidade com as suas preferéncias sub- jetivas pouco analisadas e reproduziram esteredtipos revestidos com uma metapsicologia eterna, Vale questionar, porém, se a diferenga entre os sexos revela o funcionamento eterno einaltervel do aparelho psicossexual humano, Em nome de uma identidade de género fixa, vvirios analistas denunciam as transformagies sociais que conduzem a um declinio do poder social do pai eas consideram como faltas em relagao & Lei simbélica. Por conseguinte, a cate- goria de diferenca de sexos, nesta funcdo de operador imutavel da subjetivacdo, nao pode ser considerada unicamente numa logica intrapsiquica. Fla € reivindicada e articulada em discursos apresentados como psicanali boragies das possibilidades de vinculos entre sujeitos - quando surgem tentativas de repen- sar os lagos de alianca e filiaglo. Assim, esta questdo implica a dimensio irredutivelmente politica e social da psicanslise. No entanto, como recorda Patricia Porchat (2010) em sua ‘entrevista com Judith Butler, ndo hé nenhum antagonismo entre a perspectiva psicanalitica ‘eas mudangas sociaise politicas que aparecem numa sociedade, porque, em ver de favorecer ‘uma imutabilidade reacionaria,a psicanslise pode fornecer uma critica da normalizagao, da regulagdo social e da forma como o poder social se inscreve na psique. tao, para tentar ver de onde procedem os discursos que, em nome da psicanilise, reivindicam a centralidade da diferenca entre os sexos na formacio da subjetividade, convém ‘examinar esta nogio na psicanilise freudiana. 's quando, numa sociedade, aparecem novas ela~ Aanatomia: um destino? Comecemos por notar que a nogio freudiana de sexualidade infantil, perversa poli- ‘morfa, introduz uma desbiologizacao inédita da sexualidade, e portanto da sexuacio, jf na primeira edigdo dos Trés ensaios (Freud, 1905/1996g). O primeiro dos ensaios, “As aberragdes sexuais, trata da sexualidade num registro contrario & opiniio popular, que a relaciona com a reprodugio: Freud desvincula a pulsio de qualquer aspecto do objeto* (uma posicio con- firmada pelo texto “Pulsbes e destinos da pulsio” [Freud, 1915/2004]). Esta desnaturalizagio da sexualidade, 20 dissocié-la da reproducao, introduz uma desbiologizagio da sexuacio. Quando o alvo da pritica sexual nao é o destino bioldgico da reprodugao, a complementa- ridade de dois sexos da espécie se revela totalmente relativa 44 Aquivamos circunscrever as exemplos 20 debate vigente na Franga nos iltimos quinze anes, no qual psica- nalistas tomam posiges publics. Portanto, as referencias psicanaliticas serio majortariamente francesa. Veja-s, por exemplo, os artigos de wirospsicanalistasfranceses contra o racs (unto iil de parceros do sicsmo sexo, uma lel votada em 1999 na Franca) e mals recentemente contra 0 casamentoigualitrl: Ana- ‘alla (1998, 1995), Balmary (2013), Flavigny (1999), Kort Sausse (1999), Legendre (1997), Lesourd (1999), “Magouai (1997), Schneider (2002) e Winter (2000) 5. “E provivel que polsio sea primeiro independente do seu objeto e que nio seja a atrasio dle que deter. ‘mina aaparigo da pulsio” (Freud, 1905/1996), RAPES PREY LOVIN &0 enone 1446 A diferenca entre os sexos na teorizaco psa “Thamy Ayouch o Alm disso, prépria definigio dos sexos parece problemstica: Freud sublinha muitas veres que, emboraas nogdes de masculino e feminino tenham um significado que parece “tio inequivoco as pessoas comuns’, elas sio totalmente “confusas” (1905/19%6g). A psicanalise “no pode elucidar” a esséncia destas nodes - “ela simplesmente toma os dois conceitos e faz deles a base do seu trabalho” (Freud, 1920/1996e). A diferenca entre os sexos é totalmente fraca, afirma Freud; ela procede da oposiglo, insuficiente, entre atividade e passividade.* E nestes termos que Freud conclui o texto “Algumas consequéncias psiquicas da dis- ting2o anatomica entre os sexos": todos 0s individuos humanos, em resultado de sua disposigao bissexual e da heranga cruzada, ccombinam em si caracteristcas tanto masculinas quanto femininas, de mancira que a mascu- linidade e a feminilidade puras permanecem sendo construgies tebricas de contetdo incerto (Freud, 1925719960). No entanto, a teoria freudiana ndo é unfvoca no que diz respeito a este assunto. Num, outro texto, Freud recusa a “exigéncia feminista de direitos iguais para os sexos’, porque esta esquece que “a distingae morfoldgica esté fadada a encontrar expressio em diferengas de desenvolvimento psiquico” Parafraseando Napoleao, Freud conchii que “a anatomia & 0 destina” (1924/1996¢). Esta tendéncia parece radicalizada em 1937, quando, em “Anélise termindvel einter- minavel’ Freud afirma que a fonte mais potente da resisténcia na andlise é, para os homens, alta contra a sua atitude passiva ou feminina para com outro homem e, para as mulheres, a inveja do pénis, aspiracao a possuir o érgio genital masculino. O determinismo biolégico que foi contestado anteriormente é introduzido de novo aqui: “para o campo psiquico, 0 campo biolégico desempenha realmente o papel de fundo subjacente. O repidio da femini- lidade pode ser nada mais do que um fato biol6gico, uma parte do grande enigma do sexo” (Breud, 1937/1996). ‘Tera realmente o campo biolégico a tiltima palavra na diferenga dos sexos, ow inter- a este campo metafisico-biolgico apenas como o indice do enigma irredutivel da sexualidade? Resolvemos nos limitar a falar aqui de sexo anatémico, definido, em Freud, pela alter- nativa de ter/nao ter o pénis, uma diferenga anatomica que desencadeia grandes consequén- ias imagindrias. Contudo, caberia retomar a interrogacio deste “campo biolégico” a partir do conceito lacaniano de falo, Fica dificil, porém, desenvolver plenamente um estudo desta perspectiva num texto dedicado a diferenga de sexos na obra freudiana, Apontemos apenas que a teoria lacaniana do falo visa a desfazer a concepeao biolégica da diferenca entre os sexos, sendo o falo o significante de um desejo que nao é estruturado pela diferenga anaté ‘ica entre os sexos. O alo é deduzido por Lacan da doutrina freudiana de uma libido tinica, de esséncia masculina e propria a ambos os sexos (Lacan, 1966, p. 695). Nos 10s li ‘mos aqui, por razdes evidentes de espaco, a indicar que, no texto de 1958 dedicado ao falo, “A significagao do falo’, Lacan coloca na base da relago entre os sexos o “semblante’, isto tare {6 “Quando tentamos rduzi-ls mais ainda, descobrimos a masculnidade desvanecendo-se em atividade ea feminildace em pasividade,e iso nao nos dir o bastante” (Freud, 1920/1996). RAPE PREY (LWRONndD 61 enone 1446 a Revista Brasileira de Psicanalise- Volume 48, 4-2014 6, uma comédia atuada por todo ser humano que busca as “manifestagées ideais ou tipicas dos comportamentos de cada um dos sexos” (p. 694). Entretanto, as posturas de sexuagio definidas por este semblante (feminilidade mascarada, impoténcia masculina menos supor- tada do que frigidez feminina ou homossexualidade feminina provindo de uma decepcio) remetem a uma série de posturas historicas e historicizadas particulares. Sem entrarmos em detalhes, observemos também que, no Seminario xx (Lacan, 1998), as formulas da sexua- ‘¢20 definem uma postura feminina e masculina na relagio com o falo e © gozo, mas, se elas abandonam a referéncia a um sexo definido “naturalmente’ elas invocam os grupos univer- sais dos “homens” e das “mulheres” distinguidos de forma bindria pela convocagao do pai «da horda primitiva. Porém, tanto estes grupos “universais” quanto o pai da horda primitiva io constituidos e reconhecidos de forma irredutivelmente historicizada, inserita no postu- lado de um dualismo de género apresentado como inquestionavel ea-historico — lé onde se poderia pensar, além do dualismo, numa diversidade miltipla Cabe entdo remeter estas concepgées psicanaliticas dos sexos e dos seus atributos a uma evolugio hist6rica na qual Freud e Lacan nao deixavam de se inscrever. A diferenga: produto da historia ‘Thomas Laqueur, na sua obra Inventado o sexo: corpo e género dos gregos a Freud (2001), historiciza as diferencas de sexo baseadas na anatomia, Contestando a ideia de que a verdade dos corpos reside num “dimorfismo sexual’, Laqueur desconstréi a oposigao “por natureza” de dois corpos, corpo-homem e corpo-mulher, radicalmente contratios, diferen- ciados pelo aparelho biolégico. A “natureza’ dos corpos sexuados se inscreve sempre numa interpretagio definida por uma estratégia politica, historicamente localizada, por trés do entendimento das sexualidades e das sexuagoe O dimorfismo passou a ser a marca da diferenca entre os sexos s6 muito recente- ‘mente. Da Antiguidade Classica até o século xvii, prevalecia um “modelo do sexo tinico’, antes de qualquer oposigao entre o corpo-homem e 0 corpo-mulher. Com Galeno, a medi- ina comegou a considerar as mulheres como homens “virados para dentro”: 0 érgao sexual feminino era visto como um pénis interno, eo padrao principal era o masculino, sendo 0 feminino meramente uma outra versio dele. A separagio entre masculino e feminino era uma diferenga de grau, e nao de natureza: eles variavam essencialmente pela quantidade de “calor vital” - seres masculinos tinham mais calor, eram mais potentes e ficavam assim mais préximos da “perfeigao” Na época antiga, homens e mulheres eram separados mais quanto & divisio de tare- fas e & atribuicdo especifica de poder e de caracteres conseguintes do que quanto ao apare- Iho genital. Considerava-se que as atividades fora de casa, dos homens, os tornavam ativos, enquanto as mulheres, que permaneciam em casa, eram passvas. Os corpos se distinguiam por consequéncia da adaptacio a estes pay icos, e nao por uma especifici- dade ontolégica prévia a estes papéis. Foi s6 no século xvitt que comecou a aparecer 0 modelo do dimorfismo, dando énfase as diferencas anatomicas. No século x1x, prevaleceu a concepgio da origem da sexualidade € das sexuagdes na biologia dos corpos: 0 modelo reprodutivo cientifico permitiu opor radicalmente 03 corpos masculino e feminino a partir de uma diferenga que passou a ser RPE PREY LWRONNGD 2 enone 1446 A diferenca entre os sexos na teorizaco psa “Thamy Ayouch 6 considerada como origindria e determinada pela natureza. Na base da divisio binéria dos sgéneros e das suas atribuigdes respectivas, havia corpos sexuados incomensurdvels, com 6rgios sexuais distintos, pela primeira vez nomeados nas mulheres. Foi o contexto ideolé- gico de redefinigdo das relacdes de poder entre géneros, agora justificadas pela biologia, que colocou em relevo constatacdes que eram até entdo desconsideradas. Assim como o modelo do isomorfismo, 0 modelo do dimorfismo aparece entao como um produto cultural, dando relevo a diferencas biol6gicas pertinentes pela hierarquizagao daqueles géneros que elas permitem manter. Foi dentro deste contexto histérico e episté- mico que a abordagem freudiana se inscreveu, perpetuando um dimorfismo consagrado pela psiquiatria do século x1x. Porém, este dimorfismo é longe de ser bindrio em Freud. A perspectiva de Monique Schneider (Schneider, 2000, 2004b) mostra com mimicia e erudigao as nuances do texto freudiano. Além do binario: diversidade dos sexos e nos sexos Segundo Monique Schneider, a diferenca dos sexos nao pode ser abordada s6 de forma bindria na teoria freudiana, Esta autora dé relevo as miiltiplas passagens do texto freu- diano em que homem e mulher, pénis e vagina, masculino e feminino ficam misturados. A autora enfatiza, em Freud, a constante feminilizagao dos érgios masculinos e a masculini- zagao dos érgios femininos. Por exemplo, evocando a eregéo em “Sobre o narcisismo: uma introdugao’, Freud escreve: (Ora, o protstipo familiar de um drgio que é dolorosamente delicado, que de alguma forma é alterado e que, contudo, nao esti doente no sentido comum do termo, é 0 drgio genital em seus estados de excitaglo, Nessa condigao, ele fica congestionado de sangue, intumescido e umectado, sendo a sede de uma multiplicidade de sensagbes. (Freud, 1914/1996) Este drgio congestionado, blutdurchstrémt, atravessado por um rio de sangue, revela ‘uma estranha proximidade com 0 érgao feminino (Schneider, 2000). Por conse quando a diferenga entre os sexos excede a binariedade da comparagao pelo olhar, ela é a0 ‘mesmo tempo semelhanga e dessemelhanga Em muitas outras passagens da obra freudiana, aparece de novo essa feminilizagio, do masculino. Monique Schneider aponta, por exemplo, 0 modo como os test sempre suprimidos da descrigao de Freud do érgao, de forma similar & pouca atengao que a crianga presta a esta parte, segundo Freud. O escroto, pequena bolsa, procederia de uma feminilidade,’ ligada a fecundidade, tanto nas teorias sexuais infantis quanto na separa- io, em sociedades antigas, da paternidade e da fecundidade. A autora lembra que o plural patres se opée aos proletarit, definidos por Alain Rey como “aqueles que do & luz criangas” (Schneider, 2010), e assevera que nao € 0 sexo, mas a fecundidade, que faz a diferenca entre masculino e feminino. Observemos que a diferenca surge aqui dentro do mesmo sexo e opie o poder a fecun- didade. Se Freud retoma uma “ldgica da espada’” e uma concep¢ao socializada da diferenca 7 Em virios dalets do arabe meio-oriental o sexo feminino € designado pela palara kis Cols). REPRE PREI LOND 68 enone 1446 of Revista Brasileira de Psicanalise- Volume 48, 4-2014 de sexos, cle, porém, questiona todo pensamento bindrio e introduz uma proximidade entre (0 sexos. Por exemplo, 0 sonho da “grande realizagio”, comentado em A interpretagio dos sonhos, vincula a eregao com um parto do proprio sexo: Usa “GRANDE REALIZAGKO" NUM sono, Um homem sonhou que era uma mulher grivida deitada na cama. Achow a situacio muito desagradivel [Por trés da cama pendia um mapa cia extremlade inferior era mantida esticada por uma barra de madeira. Ele arrancou a barr segurando-the as das extremidades. Ela se quebrou no sentido transversal, mas divkliu-se em dluas metades no sentido do comprimento, Esta 3530 oalvioue, a0 mesmo tempo, ajudou no pparto, (Freud, 1900/1996d) A gravider.¢ 0 parto apresentam aqui uma “sobreposigao entre os marcadores do masculino e do feminino” (Schneider, 2006, p. 34), uma hibridez retomada por Ferenczi na sua concepcio da erecio como parto do proprio sexo. Monique Schneider remete este sonho 2 fecundidade do masculino e recorda o costume da subincisdo praticada pelos homens de certos povos: feminizando-se com esse corte (rachadura) realizado no penis, os homens ficam mais fecundos. AAs fungées do masculino, conclui Monique Schneider, nao tém valor universal: 0s, diversos periodos histéricos indicam uma alternancia entre o masculino como ordem ecomo fecundidade. Na obra freudiana, as repartigdes entre masculino e feminino nao se deixam reduzir a uma diferenga de sexos bindria, mas remetem muitas vezes a uma sobreposicio, tum entrelasamento dentro do mesmo sexo, “uma vacilagio nas operagdes destinadas a se pronunciar sobre a diferensa” (Schneider, 2006, p. 34). No seu segundo livro sobre esse assunto (Schneider, 2004b), Monique Schneider com- para a imprecisio freudiana na nominagao do sexo feminino, sobretudo designado como “regio genital’ & prescricao cultural de um dever de ignorincia do feminino origindrio. Se Freud desenvolve em muitos textos a imagem de uma rachadura/fenda, esta caracteriza tanto a anatomia quanto o lugar da psique. A fenda é a propriedade do espago psiquico que per- mite a admissio (Aufnahme) do recalcado num ritmo de abertura-fechamento, sim-nao: A topografia feminina, que apresenta esta ‘rachadura estreita’ que dé acesso a uma habitacdo interna, serve portanto de paradigma para figurar 0 espaco psiquico, que pode expulsar e acolher diversas manifestagdes imprevisiveis” (p. 99). corpo feminino nao se reduz a uma identidade fixa de genero: ele constitui o para- digma do psiquismo, Porém, para designar o feminino, Freud nao usa este paradigma do cespago interno; ele se limita & auséncia externa de visibilidade, e a sexualidade feminina & pensada s6 no que diz respeito is regides liminares: clitéris e vagina. Monique Schneider identifica aqui um movimento de nojo e o aproxima do recalque que leva Freud a dessim- bolizar o feminino ¢ vincular o matricial o interno, aquilo que é retirado do olhar, com o cloacal (Schneider, 2004a). Ora, 0 que se poderia dizer da diferenca de sexos binaria? Observemos que esta dife- renga definida com respeito ao ter/nao ter pénis provém de uma visibilidade, quer dizer, de um primeiro momento de captagao imagindria. Além da dimensdo cultural epistémica ‘que confere formas definidas a esta diferenca, a dimensio subjetiva da percepgio é sempre imaginéria: a percep¢ao do corpo proprio ou alheio nao se reduz a uma soma de inervagdes REPE-SPREI LWROLNdD OF enone 1446 A diferenca entre os sexos na teorizaco psa “Thamy Ayouch 6 brutas, mas se inscreve sempre sobre uma estruturagio da fantasia, uma simbolizagio do desejo. A diferenga entre os sexos definida de forma bindria (ter/ndo ter) procede entao desta captagao imaginaria da percepcio do corpo: ela provém da “teoria sexual infantil” do menino que, comparando pelo olhar a “regio genital” da menina, introduz a alternativa de ter/n3o ter. Aparece aqui o fascinio deste olhar que fica no limiar do corpo: é a captacio imagin’- ria do menino reparando a dessemelhanca sexual. Quando a teoria retoma a proibicao de conhecimento propria a0 fascinio horrorizado frente ao sexo feminino, acontece um duplo movimento. A teoria reproduz, na sua conformagao, uma teoria sexual infantil que apreende a diferenga dos sexos apenas pelo olhar, numa dupla captagao imaginéria. Assim como 6 pelo olhar sobre esta “regio genital” da menina que o menino, comparativamente, deduz a diferenga sexual, é pelo olhar que a teoria reduz esta diferenga & binariedade de ter/nao ter. Mas € também pelo olhar queo menino atribui a menina uma identidade de género e € pelo ‘mesmo olhar que a teoria reproduz esta atribuicio de identidade sexuada. A prescrigdo de género Como se efetua esta atribuigao de uma sexuagao pelo olhar da crianga e da teoria? Retomo aqui a palavra “atribuigao" nos seus trés sentidos para nomear esta operagao. A atti- buigdo & 1. um ato ou afeito de atribuirs 2. a prerrogativa, o direito ea competéncias 3. no plural, ajurisdigao e os poderes de uma autoridade. A sexuacio do outro é sempre uma atribuicdo nesses trés sentidos: atribui uma iden- tidade sexuada, prerrogativa e direitos sociais,e se inscreve em jurisdigdes e jogos de poder particulares. A perspectiva de Judith Butler em Gender troubles (1990/2005) da conta desta atribuigio, revisita profundamente as relagdes entre sexo e género, e define outros sentidos da diferenca entre os sexos. Fica evidente que a palavra “génera” surgiu, na psicandlise, antes dos estudos de Judith Butler, ja na obra de Robert Stoller (1968). Se esse autor teve o mérito de introduzir a categoria de género na psicanilise, ele, porém, a reduziu a uma mera construgio social que se sobrepoe & camada primeira, bioldgica e ontoldgica, do sexo. A “identidade de ‘genero” se fundamentaria, segundo Stoller, sobre a convicgdo de ser masculino ou feminino, cuja congruéncia com a anatomia estabelece uma diferenca entre o normal e patolégico. Esta perspectiva resulta na patologizacao de qualquer transidentidade (“transexualismo’, segundo o termo instituido por Stoller), que desvincula sexo e género, indissociavelmente ligados nos individuos “normais’ No entanto, a prescrigdo de género ha de ser abordada para além destas patologiza- bes. Para Judith Butler, a oposigao entre sexo e género nao ¢ pensada conforme o modelo simplista de um divércio entre natureza (sexo) e cultura (papel de género). Este modelo nao deixa de fndar a construgio social do género sobre um substrato de identidade biologi e, embora historicize a diferenca entre os géneros, mantém uma diferenca naturalizada entre os sexos, Como o género, o sexo é também uma construgio cultural e histérica: a anatomia nao é um destino, mas uma fabricagao histérica. RPE PREY WRONG 6 enone 1446 66 Revista Brasileira de Psicanalise- Volume 48, 4-2014 Para Judith Butler, néo existe nenhuma natureza ontolégica, nao ha nenhuma dife- renga anat6mica entre os sexos que jé nao esteja sempre incluida numa instituigao cultural do ‘género, construida socialmente e definida historicamente. Ou seja, 0 género é que precede, fabrica e define o sexo. O género designa o aparelho de produgao ¢ instituicao dos sexos: &a série de modos discursivos e culturais pelos quais “uma ‘natureza sexuada’ ou um ‘sexo natural’ é produzido e estabelecido num dominio ‘pré-discursivo’ que precederia a cultura, tal qual uma superficie politicamente neutra na qual a cultura interviria s6 posteriormente” (Butler, 1990/2005, p. 69). Assim, a identidade do género & que constr6i os sexos e a inter- pretacao bindria da diferenga entre eles, por praticas reguladoras que determinam as relagdes centre sexo, género, sexualidade e desejo, Aqui, 0 corpo nao indica nenhum substrato natural da diferenga sexual, mas aparece 86 como uma construgao cultural enformada, erigida e modelada por atribuicoes de género {que produzem 0 sexo. Nao se trata, porém, como indica Butler (1993/2009), de negar a mate- rialidade do corpo, mas de abordé-lo sempre, em ver de como uma realidade prévia, como © efeito real das regulagies sociais e das atribuigdes normativas. Falar de um corpo que pre- cederia a linguagem, de uma natureza essencializada que precederia a instituigao cultural, uma contradicao que funciona num modo performative (cria o que nomeia) e produz as alternativas do masculino e do feminino. género, o sexo produzido pelo género ea diferenca entre 0s sexos séo, portanto, performativos, no sentido de Austin (1965): 0s discursos, atos, gestos e desejos considerados ‘como conformes a um sexo ou a outro criam a ilusdo de um nticleo interno (do sexo), ¢ esta ilusio é mantida pela repetico constante da norma. Ser mulher ou ser homem consiste aqui em retomar gestos, atos, discursos, desejos, atitudes, e repeti-los. Mas é a imitagao reiterada (que cria a ideia de um modelo original ~ que nao existe fora desta repeti¢do, mas resulta da performatividade. Esta performatividade do género e a produgao do sexo que ela determina nao é, porém, uma escolha deliberada: é uma interpelagio social. Nao ¢ um ato subjetivo isolado, mas uma reiteracao coletiva, uma atribuicdo normativa. Fundara diferenga entre os sexos sobre uma essencializagao da natureza ou uma “rocha biologica” procede entao da captagio imaginéria do olhar do menino e dofa teorizador/a que se mantém s6 no limiar do sexo feminino. Mas esta perspectiva se inscreve também numa repeticdo das normas de género, que cria originarios masculino e feminino ilusérios. Um ser identificado pelo outro Esta desconstrugio do género e do sexo nao é ausente de certas abordagens psicana- Iiticas que procuram destrancar a diferenca entre os sexos na teoria. Varios psicanalistas de origens diversas trabalharam a construgio da nogao de género na subjetivagao: tal & 0 caso de Monique David-Menard (2009), Sabine Prokhoris (2000) ou Laurie Laufer (2014) na Franga, Nancy Chodorow (1994), Ken Corbett (2011) e Jessica Benjamin (1995) nos Estados Unidos, Silvia Bleichmar (2006) na Argentina, Marcia Aran (2006) ou Patricia Porchat (2010, 2014) no Brasil. Para a maioria desses autores, é uma diferenga de géneros intersubjetiva e total- mente social que opera na atribui¢o da sexuacio. Como assevera Jean Laplanche (1980), previamente diferenca de sexos, hd uma diferenga de géneros, do masculino e do feminino, admitida pela psicanélise sem ser teorizada. Do mesmo jeito que a crianga, submersa num REPE-SPREI LWROLndD enone 1446 A diferenca entre os sexos na teorizaco psa “Thamy Ayouch o universo adulto, recebe sem interrogar a oposigdo social entre masculino e feminino, a psi- canilise retoma ds vezes esta oposigdo sem questions ela a essencializa situando-a como ‘uma distingao terminal & qual se chega (Laplanche, 1980, p. 170), mas que, no entanto, é pres- crita anteriormente pelo social. Na sequéncia cronoligica, o género ¢ primeiro; 0 outro social precede e constitui a fantasia de um sexo biol6gico pela atribuicio de género que efetua. “E uma menina!’, “. um menino!’, dizem os pais, a prefeitura, a familia, a escola, a sinagoga, 0 nome, as cores da roupa ¢ até a forma de levar a crianga no colo. Laplanche coloca em perspectiva trés termos-chave: génervé plural. Pode ser duplo, como masculino-feminino, mas nao 0 é por natureza. Muitas vyezes € plural, como na hist6ria da linguas ena evolugio social (© sexo ual. Tanto pela reproduo sexuada como por sta simbolizagdo humana, que fixa esta dualidade de maneira estereotipada em: presenga/auséncia, flico/eastrado, (© sexual é miitiplo, polimorfo. Descoberta fundamental de Freud que encontra seu funda- _mento no recalcamento, no inconsciente, no fantasma. fo objeto da psicandlis. Proposigdo:O sexual €0 residuo inconsciente do recalcamento-simbolizagio do género pelo sexo, (2007, p. 153) (3s trés sio associados com a seducio originaria, indugdo do sexual infantil na crianga pelo adulto encarregado de Ihe propiciar cuidados, marcados pelos afetos conscientes e incons- cientes dofa cuidador/a, Os conteiidos de género provém deste tempo originrio de sedugao e tém a forma de um enigma. O adulto atribui um género & crianca, nomeando a sua pertenga de género (*Vocé é uma menina/um meninc”) e “bombardeando-a" de mensagens prescriti- vas, Estas mensagens, todavia, slo ambiguas: carregam tudo aquilo que o adulto pensa acerca das mulheres e dos homens, mas também todas as suas diividas, ambivaléncias, incertezas e conflitos inconscientes. O infante precisa simbolizar esses enigmas ¢ encontrar um recurso para traduzir essas mensagens plurais do género em termos de sexo anatomico e binatio. Esta simbolizagao, na maioria dos casos, visa a recalcar toda subjetivagdo plural e diversificada do nero, mas produ. assim um resto da tradugao, o “sexual”, que é constitutivo do inconsciente. E esta prevaléncia do género, determinando a sexuagio, que apareceu numa situagao clinica com uma paciente. fé no primeiro encontro, Jeanne, uma moga de 25 anos, afirmou detestar a palavra “mulher’, considerada indecente quando se lhe aplica. Ela aceitava apenas, em liltima instancia, a palavra “moga’, recusando, porém, uma série de atividades associadas a ela Estudante brilhante de Medicina, ela justifica a sua escolha da especialidade de trau- matologia por uma vontade de nao corresponder ao que se esperaria dela, Uma mulher é ‘mais suscetivel, afirma Jeanne, de escolher a especialidade da pediatria, pelo seu “instinto ‘maternaf’, ¢cla, ao contritio, busca “uma atividade de rapaz” na traumatologia. Os trauma- tologistas sdo descritos como “antimais fortes, que nao hesitam em “cortar em carne viva” [trancher dans fe vif]. Eles sao livres de sentimentos, porque, acrescenta Jeanne, “€ sempre ‘mais facil cortar em carne adormecida do que falar com alguém’ Associando, ela chega a uma série de oposicies:a primeira, menina/menino, se apoi nesta pritica dos traumatologistas, sobre gentil/cruel,fraca/forte, gorda/magra (uma opo- sigio central nos seus comportamentos alimentares). Ela lembra ai a acusagao de ser fraca, que Ihe dirigia seu irmao, por consideré-la gentil demais, Evoca entao 0 nascimento deste REPS PREI LWOLNdD 67 enone 1446 cy Revista Brasileira de Psicanalise- Volume 48, 4-2014 primeiro irmio, quando ela tinha 3 anos. Jeanne detestava esse bebé, que ela chama de “pedaco de carne barulhento’, ¢ ela afirma ter querido maté-lo. Quando ele estava adorme- cendo, ela jogava objetos no seu berco para acordé-lo, Intervenho dizendo: “Assim, vocé Jficava ‘cortando em carne viva”. Jeanne fica perplexa, antes de soltar novas associages, con- siderando esta proximidade entre o seu desejo de ser traumatologista e 0 complexo de intru- so que ela sentia com este irmao. Cabe ressaltar aqui que a diferenca entre os sexos ¢ uma distingao que funciona den- tro de uma série de outras diferengas (gorda/magra, gentil/cruel, fraca/forte), igualmente Instituidas pelo outro social. A base desta diferenga nao é tanto a binariedade anatomica quanto o nascimento do irmao, que destrona Jeanne da centralidade da atengio parental. Nao € qualquer Penisneid ou fantasia de ter sido privada de penis que determina a sexuagdo de Jeanne, mas uma atribuigao, por outros, de uma identificagao de género, contestada aqui por ser vinculada & oposigio ao seu irméo. Jeanne nao recusa de forma univoca uma identificagao feminina, pois ela retoma, nna Sua roupa, na sua maquiagem, nos brincos e colares chamativos que usa e na sua inscri- ‘20 explicita “do lado das mulheres’, alguns esterestipos culturais considerados femininos. Porém, ela dé a ver a multiplicidade das identificagoes que uma posigio de género pode convocar: “mulher” é0 destino rejeitado pela menina cuja primazia é roubada por um novo bebé menino, ¢ que, através de um comportamento alimentar anoréxico-bulimico, quer se livrar de uma feminilizagio exacerbada do seu corpo. Mas “mulher” é também a imagem ‘que ela reflete quando brinca com atributos clissicos da feminilidade no seu vestuério, ou ‘quando se diferencia da crueldade dos irmaos por uma gentileza incansavelmente renovada, E“mulher’ pior se for “maternal’, é também o destino profissional que ela recusa na sua escolha da traumatologia. Cada uma destas posturas identificatdrias de género no é definida de uma forma solipsista, mas sempre na troca com os outros: éo nascimento de um irmao ‘menino que completa a sua prescricio de género, tanto pelos pais quanto por comparagio 20 irmao, Diante daquilo que vivencia como perda da exclusividade dos pais, cla define a feminilidade como uma inferioridade que ela recusa. A rejeigio, ainda que jamais direta, da figura de sua mae, que renunciow A sua carreira para cuidar das criangase se dedicar a obras sociais, a“boa educagio” compulséria de menina que Ihe fot imposta, a necessidade de se diferenciar da crueldade “masculina’ dos seus irmaos, 0 papel de pediatra mulher-mle sio ‘outras prescrigées de género pelos outros com as quais ela lida de varias formas. Aqui, no ‘h4 nada originario, nem ontol6gico, nem biologicamente definido nas suas escolhas identifi- catorias, mas consta, pelo contritio, o recurso a0 mesmo mecanismo defensive de formago reativa que ela usa muito frequentemente. E por formagao reativa que ela elogia 0 mérito dda sua mie, afirma a prioridade do amor fraternal ¢ justifica as suas crises de bulimia como desabato necessario para continuar a ser amavel com os outros na universidade ou na casa familiar. E assim, do mesmo modo, & por formagio reativa que ela substituiu 0 ddio pelo primeiro irmao por uma exceléncia universitiria, e a crueldade fantasmatica na troca com aqueles que Ihe atribuem uma posicio de “mulher” por uma gentileza constante. As suas identificagdes de género nao sio nem primérias nem separadas de outras identificacaes, ‘mas participam de todas as suas trocas com os outros, e retomam a multiplicidade incons- ciente do género propria ao seu inconsciente e As mensagens enigmticas dos outros. A sim- bolizagao de todas estas mensagens enigméticas por Jeanne visa, como salienta Laplanche, REPE-SPREI LWROLNdD 68 enone 1446 A diferenca entre os sexos na teorizaco psa “Thamy Ayouch ° a recalcar a pluralidade e a diversidade do género e ofuscé-las por uma simples recusa da palavra “mulher”; no entanto, o resto das tradugdes destas mensagens enigméticas produz a multiplicidade do “sexual” nas identificagées de Jeanne. Sobre a identificagio de género atribuida pelo outro, Laplanche escreve: Para definiro género, o termo capital [| 0 de atribuigao [assignation]. Atribuigdo designa a primazia do outro no proceso. [.] A atribuigio é uma série complexa de ates que se prolonga, na linguagem e nos comportamentos significativos do entorno, Poderiamos falar de uma atri- buigio continua ou de uma verdadeira prescricao. Esta ideia de atriuigao ou de “identificacao como” muda completamente 0 modelo da identifcagio. Fisaquia meu ver, uma forma de sai da aporia daquela formula tao linda de Freud que provocou tantos pensamentos ¢ comentitios: “a ‘dentiticagao primitiva a0 pai da pré-histia pessoa’. Nao seria, antes do que “identificacdo af, uma “identificagio por"? Em outros termos, seria um “sr identiticado primitive pelo soctus dla pré-historia pessoal” (Laplanche, 2007, p. 167) ‘Muitos teorizadores da psicanslise esquecem, infelizmente, esta identificagao primé- ria, e reduzem a multiplicidade de géneros atribuida pelo socius primitivo a uma diferenga bindria de sexos, definida pela légica identitaria de ter/nao ter. A diferenga entre os sexos age como principio de um pensamento identitario, subordinando a sexualidade a uma sexuagdo imutavel. Porém, na sua teorizagio tanto como na sua pritica, a psicandlise pretende des- construir esta l6gica identitaria, dando énfase a uma logica da psique exatamente oposta. A identidade, categoria da metafisica clissica, remete ao carter do que permanece: designa aquilo que fica idéntico a si mesmo no tempo. Os efeitos do inconsciente quebram esta ideia de uma ipseidade oriunda da continuidade da consciéncia no tempo. Contra a identidade, a plasticidade psiquica, numa abordagem psicanalitica, se inscreve em movimentos identifica- torios. A identificagao & sempre temporaria e mutivel: & definida por uma situagao no tempo, uma historia, uma finitude e uma atribuigao vinda do outro. As identificagoes de género de Jeanne nao sio nem unitirias, nem definitivas, nem ontologicamente primias: elas emer- gem das suas relagdes com os outros. O sujeito se forma e se transforma sendo identificado pelo outro: apropriando-se, em momentos da sta evolucao, de elementos, atributos, ras- gos distintivos dos seres do seu entorno e prescritos por eles. Em termos metapsicol6gicos, quando se coloca a énfase sobre a multiplicidade psiquica e as camadas de conflitos, sobre a pulsio e a dindmica psiquica, nao faz nenhum sentido falar em termos de categorias uni- ficadas e enrijecidas de masculinidade e feminilidade e de diferenga bindria entre os sexos. Conclusao Freud sempre questionow a motivagao do ato de conhecer. Subentendido por um prin- pio de prazer,ligado a curiosidade sexual ou condenado a ser apenas uma construgio par- cial a posteriori, o conhecimento, segundo Freud, depende do afeto. Desta critica da motivacao pulsional e do ganho narcisico que a psicanslise dirige 4s outras teorias, cla ndo est Em outros termos, a teorizacdo analitica esta ligada ao conjunto de afetos doa ana- lista-teorizador/a e provém da sua fantasmatizagao. Ela contém, portanto, um niicleo pulsio- nal, passional, procedendo do infantil do/a teorizador/a. Este eixo narcisico da teoria pode ta, REPEL PREI LOND 60 enone 1446 7” Revista Brasileira de Psicanalise- Volume 48, 4-2014 ser evitado somente através de uma intersubjetividade, garantida pela transferéncia na sessio clinica e pelo contato com as mudangas da Histéria e com outras teorias. pensamento, tal como almejado por uma abordagem psicanalitica, nao é um enges- samento de identidades, mas um movimento além da coincidéncia consigo mesmo. O pensa- mento é vinculo, nao agarramento; ele excede o simplismo ou a binariedade e abre um espaco além da identidade, na mudanga perpétua das identificagdes. Grande parte da dimensio politica da psicanilise consiste em lutar contra o simplismo do pensamento, o que implica ‘que o discurso psicanalitico nao se deixe engessar em proposigdes simples. Nao caberia entao assumir a multiplicidade dos niveis da teoria? Sobre a divisio da diferenga sexual ea sua naturalizagio, Freud, como muitos pés-freudianos, manifesta uma verdadeira ambivaléncia. Se o feminino e 0 masculino sio relativizados, polissémicos ¢ des- naturalizados, eles procedem, porém, da atribuigao de identidades historicizadas de homem ‘e mulher, apresentadas como “rocha biolégica’. Os significantes da sexuacao nao exprimem uma realidade ontolégica; eles traduzem ‘Angulo de percepio de semelhancas e diferencas entre os sexos. Se concebemos que 0 sexo & produzido pelo género, a diferenga entre os sexos revela resultar de uma perspectiva de relacionamento dos corpos, de uma abordagem particular, de uma operagao interpretativa. ‘Nao se trata aqui, obviamente, de negar uma diferenga anatomica e institufda socialmente ‘em genero-sexo: ha mulheres, homens, transexuais e transgéneros. Trata-se, porém, de ver que esta diferenca ndo opera psiquicamente de forma isolada, nao é o Alfa eo Omega da alte- ridade e do pensamento, mas € sempre inscrita num sistema de oposigdes simbolicamente, ¢ portanto socialmente, instituidas. Ela nao é a primeira, a principal ou a tinica diferenca ‘que estrutura a psique: se significa numa série de outras diferencas pelas quais é produz A tarefa da psicanélise é entdo permitir uma plasticidade na construgao psiquica das des- semelhangas e das semelhangas, uma atividade psiquica em constante movimento, além de ‘qualquer teoria bindria engessada La diferencia entre los sexos er la teorizacién psicoanalitica: aporias y deconstrucciones Resumen: El tema de la diferncia entre ls sexos se basa, en muchas teorias psicoanaliticas, en wna -supuestaevidencia anatémica. En este articulo, se pretende saber sel cuerpo testimonia tan directamente una atribucién de sexo, masculine ofemenino, interrogande algunas concepeiones analiticas de la sexua~ cin y de la sexualidad. De qué artculacign de la vsibilidad de los cuerpos proced la diferencia de los -sexos, ue inscripcion del orden simblien ella permite y imo es establecida y desigmada por la eoria. Se trata de cuestionar el trayecto de lo corporal lo scxuadoy de lo sexu a lo sexual, para examina si a anatomsia es veraderamente un destin, Tras haber destacado ol marco politica, socal chstérica en el cual se inscribe esta cuestion de a diferencia de los sexes, pretendemos considera os miplsestratos de su tcorizacién por Freud ya proximidad, en esa categoria, entre el psicoanilissy los estudios de génera. Palabras-slave: picoanslisis, diferencia de sexos, cuerpo género Gender difference in psychoanalytical theory: aporiac and deconstructions Abstract: The issue of gender diference is based, in many psychoanalytical theories, on supposed anatoms- cal evidence. this article, we wish fo find out ifthe body actualy gives testimony of gender asignment, P-£PROI LOVIN 70 enone 1446 A diferenca entre os sexos na teorizacio psican cas aporias edesconstrucies: Tham Ayouch m whether masculine or feminine. The psychoanalytical concepts of sesuation and sexuality will be tackled, questioning how gender diference may stem from the visibility of bodies, what inscription ofthe symbolic order it allows and how it is designated and established by peychoanalytical theory. The aim is t9 ponder ‘over the rajectory from the bodily to the sexuated dimension, and then to the sexual dimension, in onder {to examine whether anatomy really isa destiny. Afier exposing the political, socal and historical comet within which gonder difference ie alway conceived, we shall browse through the multi-layered Freudian theory on the subject, and consider the proximity, as fr as this category is concerned, between psycho analysis and gender studies, Keywords: psychoanalysis; gender difference; body; gender Referén Anatrlla, T (1998, 16 de junho). Ne pas brouilr ls repéressymboligues. Le Figaro Anatrlla, T (1999, 26 de uno). A propos dune fle. Le Monde Aven, M. (2006). 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