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A REPUBLICA [ou Sobre a justiga, didlogo politico] Platao oso ANNA LIA AMARAL DE ALMEIDA PRADO Revisto tenia ¢ introduc ROBERTO BOLZANI FLO. Martins Fontes 0 Poo. 2006 ————————————— | XL na cidade, nao é, para ele, um prego alto a pagar, como se- ria para n6s — nos, que sabemos que nao ha, de fato, demo- cracia sem variedade € até conflito, mas que, ao contratio de Platio e alertados por algumas terriveis experiéncias dle totalitarismo, aprendemos a ver seu valor e a secusar sua supressao. Instruidos pelo exemplo paradigmatico de filosofia politica que nos da A Republica, nés preferim ‘guntar: € possivel ser democrata e, ao mesmo tempo, detec: tar € denunciar toda “aparéncia de justica"? {Nota bibliogrdfica: Além da enorme quantidade cle estudos sobte © pensamento plat6nico que enfocam A Repiiblica, a bibliografia specifica sobre esse dilogo € bastante numerosa. Limitemo-nos a algumas indicagdes baisicas, sobretudo de textos introdutérios ‘© comentirios ao dialogo que possam servir de ponto de parti dda a sua analise. Em Portugués, além das duas introduces men. ionadas, um resumo dos dez livros da Reptiblica se encontra em Paviani, J: Platdo ea Republica, Rio de Janeiro, Jorge Zahar 2003. Dos comentirios mais recentes, temos, traduzido em no: so idioma: Pappas, N. A Repablica de Platdo, Lishoa, Edigoes 70 Gem data), De intencio mais geral: Koys6, leitura de Platdo. Noutras linguas: Annas, J: An Introduction 10 Plato's Republic, Oxford, 1981. White, N.P.: A Companion to Plato's Republic, Indianapolis-Cambridge, Hackett, 1979. Cross, RC, Woorley, A. D. Plato's Republic: A Philosophical Commen tary, Londres, 1964. Veggeti, M: Guida alla lettura della Repu ati, Laterza, 1999. A. Dies: Introduc- tion, La République, trad. B. Chambry, Paris, Belles-Letwes, 18 ed, 1932. G, Leroux: La République, Intwoduction, traduction et blica dt Platone, Rom: notes, Paris, 2002, RowERT BOIZant FILHO ‘Au: Introdugdo a A REPUBLICA LIVRO I Personagens do dialogo: Sécrates, Glaucon, Polemarco, rasimaco, Adimanto, Géfalo I. Desci ontem ao Pireu com Glaucon', filho de Aris ton, para fazer minhas preces a deusa e, 10 mesmo tempo, ver como fariam a festa’, porque entdo a celebravam pela primeira vez. Achel bela a procissto do povo do lugar; no ‘menos suntuosa, porém, a que os tricios prepararam. Fize- mos nossas preces, assistimos a ceriménia e famos voltando para a cidade. Entio, de longe, vendo-nos tomar o rumo da cidade, Polemarco, filho de Céfalo, mandou que seu escra Vo comresse € pedisse que 0 esperdssemos. E 0 escravo, pe- gando-me pelo manto por detris, disse: = Polemarco pede que 0 espereis. Voltei-me e perguntei onde ele estava. = Olha la disse. Vem vindo atras. Esperail ~ Esperaremos sim! disse Glaucon, Um pouco depois chegaram Polemarco’, Adimanto, ir- mao de Gléucon, Nicérato’,filho de Nicias, e mais outros. Pelo jeito, estavam vindo da procissao. Entao Polemarco disse: = Socrates, parece-me que vais indo embora para a cidade = Nao erraste, disse eu. — E ests vendo, disse ele, quantos nés somos? — Como nao?! =Pois bem! disse. De duas, uma... Ou mostrareis que sois mais fortes que n6s ou nao ireis embora x74 4 A REPUBLICA — Nao haverd ainda outra opeao? Uma que seja? per- ‘guntei. E se vos persuadirmos de que deveis deixar-nos it? — Poderieis persuadir a quem nao vos desse ouvidos? = De forma algumal disse Glaucon — Pois bem! Nao vamos ouvir, ¢ € isso que deveis ter em mente. E Adimanto disse ra que nao sabeis que hoje, ao entardecer, haverd uma corrida com tochas, dedicada a deusa? Elas serio leva- das por cavaleitos, = Por cavaleiros? disse eu, Isso € novidade! Disputa- r20 a cavalo, com as tochas nas mios, passando-as uns 08 outros? £ isso que dizes? = Isso mesmo, disse Polemarco. Além disso, fartio uma vigilia a que valerd a pena assistir. Sairemos aps 0 jantar ¢ assistiremos & vigilia. La encontraremos muitos jo- vens ¢ ficaremos conversando, Vamos! Ficai conosco e de- sisti de ir emborat E Gléucon disse: ~ Ao que vejo, temos de ficar: = Mas, se assim pensas, disse eu, assim temos de fa- ver. IL, Fomos entdo a casa de Polemarco e [4 encontramos Lisias € Eutideme’, irmaos de Polemarco, ¢ também Trasi- ‘maco da Calced6nia‘, Carmintides do demo de Peinia ¢ Clitofonte,filho de Aristénimo. Dentro de casa estava Céfa- Io, pai de Polemarco, ¢ eu o achei bem envelhecido, pois fazia tempo que nao o via. Estava sentado numa cadcira, com uma coroa na cabega e apoiado numa almotada. E que acabara de oferecer um sacrificio no patio, Entao senta- ‘mo-nos a seu lado, ja que Ia algumas cadeiras estavam dis- postas em circulo. Logo que me viu, Céfalo saudou-me e disse: — Socrates, ndo vens muitas vezes ao Pireu para visi- tar;nos, Mas devias... Se eu ainda tivesse forcas para ir até LIVROI 5 a cidade, nao precisarias vir até aqui... Seriamos nés que irfamos a tua casa. Mas nao! fs tu, entio, que deves vir aqui 4 com mais freqiiéncia. Fica sabendo que, que os outros prazeres, os do corpo, vo fenecendo, cresce-me a ‘vontade €'0 prazer de conversar, Nem penses em ir embo- ra... Fica em companhia destes jovens. Freqilenta nossa casa, vendo-a como a de um amigo bem proximo. ~ De Fato, Céfalo, eu fico content, disse eu, quando converso com pessoas bem idosas. Como percorreram um © caminho por onde talvez nés também tenhamos de pas- sar, acho que € preciso fazer-lhes uma pergunta: sera esse caminho Aspero e penoso ou suave e facil? Também me cki prazer, jé que estés naquela idade que os poetas chamam de limiar da velhice, ouvir-te dizer como vés esse momen to da vida. £ um momento dificil? Que dizes dele? IIL — Por Zeus, S6cr Muitas vezes nos reunimos, eu e alguns outros homens da mesma idade, ¢ confirmamos 0 antigo provérbio*. Nesses encontros, quase todos entre nés se lamentam, sentindo: falta dos prazeres da juventude e, lembrando-se dos amo- res, das bebidas, dos banquetes e de coisas ligadias a isso, e itritam-se, porque, segundo eles, bere ences bens © somente naquele tempo a vida valia a pena, agora no mais. Alguns se queixam também de que os familiares tra-» tam mal os velhos e, por isso, a cantilena deles é sempre esta; “Que sofrimentos nos causa a velhice!” Na minha opi- nido, Sécrates, eles nao acusam a verdadeira causa, Se essa fosse a causa, na minha velhice eu também passaria pelo mesmo, ¢ também todos 0s outros que atingizam a minha jidade. Na realidade, porém, j4 encontrei outros, entre eles 0 poeta Séfocles, cuja atitude nao é essa. Estava a seu lado quando Ihe perguntaram: “S6focles, como estis em rel ¢40 aos prazeres do amor? Ainda és capaz de estar com uma mulher?” “Siléncio, homem!”, disse. “Estou muito con- tente de estar a salvo disso... Como alguém que esti a sal- tes, disse, cu te direi como 0 vejo. 3294 6 A REPUBLICA vo de um senhor furioso e selvagem’... Naquela ocasido achei boa a resposta e, neste momento, no a acho menos boa. £ que de maneira geral, na velhice, em relagao a as- suntos como esses, comeca a haver muita paz ¢ liberdade, Quando as paixdes percem sua tensio e se acalmam, acon- tece 0 que disse S6focles e podemos ficar longe de senho- res que so muitos e desvairacios. Mas, também a respeito dessas queixas e das que eles tém dos familiares, a causa € uma 86, Nao € a velhice, Scrates, mas 0 carater dos ho- mens. Se siio moderados ¢ de bom temperamento, também a velhice € para eles moderadamente penosa. Se nao sao, acontece que no s6 a velhice, Socrates, mas também a ju- ventude € penosa IV. Fiquei encantado com essa resposta e, querendo que continuasse 2 falar, provoque-o dizendo, ~ Céfalo, penso que, quando dizes isso, as pessoas em sua maioria nao concordam contigo; acreditam que levas a velhice com facilidade mio gracas ao teu carter, mas gra- a8 a grande fortuna que possuis. Os ricos, cizem elas, tm muitas consolacdes. —F verdade 0 que dizes, respondeu, Nao concordam comigo e tém certa razio, mas nao tanta razd0 quanto pen- sam. Vale € a resposta de Temistocles ao cidadao de Sérifo" que 0 injuriava dizendo que devia sua reputacdo nio a si mesmo, mas a sua cidade: “Sendo de Sérifo, eu nao seria célebre, nem tu, se fosses ateniense.” Para os que no sto ticos e tem dificuldade em levar a velhice, vale 0 mesmo dito, Nem 0 homem sensato suportaria facilmente uma ve- Ihice que tivesse a pobreza como companheira, nem, tendo enriquecido, 0 nao-sensato ficaria bem consigo mesmo. — Céfalo, disse eu, a maior parte do que tens hoje tu herdaste ou fizeste outras aquisigoes? = Que bens acrescentei aos que herdei, Socrates? Quan- to a0 dinheito, estou mais ou menos no meio, entre meu av e meu pai, Meu avd, o que tinha 0 mesmo nome que veo 7 ev, herdou quase tanto quanto possuo hoje € multiplicou sa heranca. Lisfnias, meu pai, porém, tornou-a menor do que ela é hoje. Eu me contento em nao deési-la menor para estes aqui, mas maior do que a recebi, nem que seja por pouco. ~ Fiz essa pergunta, disse eu, porque, na minha opi- ido, nao gostas demais da riqueza, ¢ i880, na maiotia das vyezes, ocorre com os que nao a ganharam por si mesmos. (Os que ganharam apegam-se a ela duas vezes mais que os ‘outros; €, como os poetas amam seus poemas € 0s pais ‘05 seus fils, os negociantes zelam por seu dinheiro por- ‘que o consideram obra sua e também, como os outros, por que véem a utilidade que ele tem. Até a convivéncia com eles é dificil, j& que s6 querem louvar sua riqueza. E verdade o que dizes Y. - Sem chivida, disse eu. Responde-me ainda a isto: qual bem de que usuftuiste pela posse de gran- eu dissesse qual foi, provavelmente niio conven- ceria muitas pessoas... Sabes muito bem, Socrates, disse ele, que, quando alguém acha que esti proximo da more, medo e preocupacio invadem a respeito de coisas em que antes no pensava. Os “mitos sobre 0 contam que, se aqui alguém comete ee ee. castiga- do embora até entio fossem alvo de riso, naquele momen- to, torturamlhe a alma com a diivida de que possam ser verdadeiros. E ele, ou por fraqueza propria da velhice ou por julgar-se mais perto de i, dé-lhes atenga0 maior. Fica entlo cheio dle desconfianga e temor, refaz suas contas € procura ver se cometeu injustica contra alguém. Freqiien- temente, quem descobre muitas injusticas em sua vida, como as criangas, desperta de seu sono, sente medo ¢ vive esperando o pior; mas quem tem consciéncia dle que nao cometeu nenhuma injustica tem a seu lado a doce espe- ranga, a boa nutriz da velbice, como diz Pindaro. Foi ele ———————————— 8 A REPUBLICA quem disse, Socrates, e com muita graga, que, se alguém vive sua vida com justiga e santidade, com dogura, o coragao acalentando-the, nutriz da velbice, acompanba-o a esperanca, que mais a mente volivel dos mortats dao rumo, = Quao admiravel é 0 que ele diz! continua Socrates, Que palavras maravilhosas! Em relagao a isso, tenho como digna de apreco a posse de riqueza; nao, porém, pata todo qualquer homem, mas apenas para o sensato. Nao en- ganar ou mentir mesmo involuntariamente, nao dever crificios a um deus, ou dinheiro a um homem, e assim ir para ld sem nada temer. Para isso contribui muito a pos- se das riquezas, Ela traz muitas outras vantagens, mas, pe- sando-as bem, penso que para o homem sensato nfo ser essa a menor ~ Belas pala afimaremos que outrem? Ou que Elite) Ac aati gl tone otto ie vere icy la? Por exemplo, quando alguém, de um amigo que estives- se em seu juizo perfeito, recebesse armas, se, estando fora de si, ele as pedisse de volta, todo mundo diria que nao deve devolver tais armas e que nao agisia com justiga quem as devolvesse, nem se quisesse dizer toda a verdade a al- ‘guém nesse estado, — Estas certo, disse. =A definicao da justica, portanto, nao é dizer a verda. de € devolver o que se recebeu, — Sem dvida é, Sécrates, disse Polemarco tomando a palayra, se € que devemos acreditar em Simnides" = Bem! disse Céfalo, agora deixo convosco a nossa discussio, pois preciso ir cuiclar do sacrificio. —E Polemarco, disse cu, nao é herdeiro do que € teu? LVROI 9 = B sim, disse ele com um sortiso, jé indo para 0 sa- crificio. VIL — Fala entio, disse eu, jé que és quem vai herdar nossa discussio... Quanto ao que Siménides disse sobre a justiga, em que achas que ele esta certo? —Fm dizer que é justo devolver a cada um © que Ihe € devido, disse ele. Quando diz isso, parece-me, ele tem razao. — Mas sem diividal disse eu. Nao é facil discorciar de Simdnides, homem sibio e divino que € Tu, Polemarco, talvez.saibas o que ele quer dizer, mas eu ignoro, Claro ue no ¢ sobre o que falavatnos fi pouco, ito &, sxea Mas nao se deve, de forma alguma, fazer a devolugao a lamar, fora de seu juizo perfeito. ~ Ef verdade, disse ele. ~ Coisa diferente disso, parece, € o que Simdnides quer dizer quando afirma que é justo devolver 0 que se deve. — Diferente sim, por Zeus! disse. Ele pensa que aos amigos os amigos devem fazer 0 bem e nenhum mal ~Entendo, disse eu. Nao est devolvendo o que deve quem devolve a alguém o dinheiro que estava em suas » maos, se a devolucao ou a retomada traz prejuizo e se so amigos quem devolve € quem recebe de volta. Nao € isso que, segundo afirmas, Siménides esti dizendo? Sem diivida. =O qué? Aos inimigos deve-se devolver o que Ihes & devido, seja isso 0 que for? — Absolutamente tudo, disse ele, que Ihes ¢ devido. E 0 inimigo, da parte de um inimigo, € devido justamente 0 que the cabe, isto é, um mal, ——_ #; ~~ 10 A REPUBLICA a ‘enigmatica que Siménides, poeta que €, usou ao definir o hats fille ter peau ee que cen fae cada um o que lhe convém, mas usou a express’io 0. que thee devide ~ Bea ft acho dow ~ Por Zeus! disse eu. Entio, se alguém Ihe pergun- tasse: “SimOnides, a quem ¢ 0 que a arte chamada medici- na da o devido e o conveniente?,” 0 que, pensas, ele nos responderia? ~ Evidentemente que aos corpos da remédios, alimen- tos e bebidas. ~ Se a arte, por dar o devido e 0 conveniente, é chama- da culinatia, a quem os di eo que da? Per cr a ESD ~ Bem! Por dar a quem e © qué, a arte seria chamada juni —Se devemos, Sécrates, disse cle, continuar na linha do que foi dito antes, a arte que aos amigos da ajuda € aos inimigos, prejuizo. Ent, ele diz que a justca 6 watar bem os amigos € tratar malo inimigo®? = £0 que penso. li, quer € ts pes de tratas ben ve casi, quando doentes,e de tatar mal os inimigos em rlageo & doenga e a satide? ~ E os navegantes, em relagao aos perigos do mar? =6 pilowo — Eo homem justo? Em que atividade ¢ em que fungao € cle o mais capaz de ajudar os amigos e prejudicar os ini- miges? — Na guerra, lutando contra ou como a — Bem! Para os que nao e: co, 0 médico de nada serve. ~ & verdade. lado, penso eu. doentes, caro Polemar- LVR u — Nem 0 piloto para os que nao esto navegando. = Nem 0 piloto. = Ser que também para os que ndo estao em guerra ‘© homem justo de nada serve? — De modo algum é isso que penso! — Ah! na paz tambem a justiga é stile til, sim, Ea agricultura também, Ou nao? ~ Sim, Para obtengio de frutos? = Sim. — Também a arte do sapateiro? = Sim. = Dirias, creio, que ela ttil para a aquisig2o de sa- patos? 4 ias dizer para que uso e para que aqui il na paz? ~ Para os contratos. — Chamas de contratos as associagoes ou outra coisa? — As associagoes, —O homem justo seria um sécio bom itil para dispor as pecas de um jogo, ou seria o jogador? = 0 jogador. — Mas, para dispor tijolos ¢ pedras, 0 homem justo um parceiro melhor que © pedreiro? — De maneia alguma — Mas para quais parcerias o homem justo € melhor parceiro que o citarista, como o citarista é melhor que 0 hhomem justo para tanger as cordas? — Em questbes de dinheiro, parece-me. —Talvez, Polemarco, exceto em relagao ao uso do nheiro, quando numa parceria se tem de comprar ou ven- der um cavalo a dinheiro. Ai o melhor, penso, é o tratacor de cavalos, Nao €? ~Parece. aa 2 A REPUBLICA = B, quando se trata de um barco, € 0 construtor de barcos ou o piloto. ~Parece. nto, quando se tem de usar dinheiro ou ouro em sociedade com outra pessoa, em que © homem justo € ‘mais itil que 0s outros? = Quando algo deve ficar depositado e a salvo, SScrates, ~Entdo, dizes que € quando nao se precisa usi-lo para nada, bastando apenas que esej em depositor ~Ah! Quando o dinheito é indti, nesse momento ¢ em # razio disso, a justiga é til? — Pode bem ser. —E, quando se tem de manter guardada uma foice, a justica € dtl tanto comunitéria quanto individualmente; mas, quando se tem de fazer uso dela, til € a arte do vinhateito? —Parece. ~ Afirmaris que também, quanto ao escudo ¢ a lita, quando se tem de manté-los guardados e sem uso, a just ga € Gtil; mas, quando se tem de usé-los, itil € a arte do hoplita ou do miisico? —Forcosamente = A respeito de todas as outras coisas, no uso de cada uma em particular, a justica € intl, mas, na auséncia de D, @ ail? — Pode bem ser © VIIL— Entdo, de forma alguma, meu amigo, a justica é séria, se € til justamente para o que esta fora de uso. Examinemos o seguinte... Numa luta, seja no pugilato ou em outra luta qualquer, quem € mais habil em golpear nao € também o mais habil em guardar-se dos golpes? — Assim € que é. Ento, quem € habil em guarcar-se de uma doenca ‘mio é também muito habil em causé-la sem que o percebam? =A mim, pelo menos, parece. irvR 8 — Mas, num acampamento, © mesmo indi bom guarda nao é bom também para roubar os planos dos inimigos ¢ para outras ages? assim que €. — Ah! Quem € um habil guarda é também um habil la- minha opiniio. — Ah! justo é habil no guardar 0 dinheiro, (nota ~ Pelo menos, disse ele, é isso que nosso raciocinio esti indicando.. — Ah! Como um ladrao, a0 que se vé, mostra-se 0 bio, e pode bem ser que tenhas aprendido isso de Homero. Fle mostra aprego por Aut6lico, av materno de Odisseu, ¢ diz que ele a todos os homens suplantava em roubo e per- {jiirio”. Provavelmente, portanto, a justica, segundo © que tu, Homero ¢ SimOnides dizeis, ¢ uma espécie de arte de roubar que, contudo, tem em vista trazer ajuda aos amigos causar prejuizo para os inimigos. Nao era isso que que- vias dizer? — Nao, por Zeus! disse, Mas nem sei mais o que eu queria dizer... Minha opinido, porém, continua sendo que justica é ajudar os amigos prejudicar os inimigos. = Dizes que so amigos 03 que parecem honestos a cada pessoa ou 0s que sao realmente honestos, embora nao paregam? Quanto aos inimigos, minha pergunta € a — £ de esperar, disse ele, que alguém ame aqueles ‘que considera honestos e odeie aqueles a quem conside- ra maus = Serd que, em relagdo a isso, os homens nao come- tem um engano tendo a muitos como honestos, embora ndo © sejam, € a muitos avaliando de maneira contratia? — Cometem um engano. — Ah! Para eles, os bons sao inimigos ¢ os maus, amigos? —Certamente. A REPUBLICA ~ Mas, apesar disso, nessa situa , para eles & justo 4 ajudar os maus e prejudicar os bons? 8a Parece. Mas 0s justossio bons ¢ incapazes de cometer in- justia ~ £ verdade. ~ Segundo 0 que dizes, ¢ justo fazer mal aqueles que hada cometem de injusto, ~ De forma alguma, Sécrates! disse ele. Acho perversa essa afirmacio! — Ah! Aos injustos, disse eu, & justo prejudicar, ¢ aos justos, ajudar? ~ Essa afirmagtio parece mais bela que a anterior. ~ Ah! A muitos homens, Polemarco, a todos quantos esto enganados ocorrera que o justo seja prejudicar seus amigos, jf que sto maus, e ajudar seus inimigos, j4 que so bons, Sendo assim, estaremos dizendo justamente 0 contr rio da afirmagdo que atribuiamos a SimOnides. ~ £ bem isso que acontece, disse. Mas vamos melho- rar nossa definigao, pois pode muito bem ser que ndo te- nhamos definido corretamente 0 amigo € o inimigo. = Ao defini-los como, Polemarco? ‘Amigo € quem parece bom, ~E, agora, disse eu, como melhoraremos essa defi- nigac? — Amigo € quem parece bom, disse ele, e realmente bom; quem parece bom mas nao € parece ser amigo mas no €. A respeito do inimigo, nossa definigao sera a mesma. — Amigo, pelo que se vé, de acordo com essa defini. ‘so, seré 0 homem bom ¢ inimigo o mau, = sim, — Ordenas que a idéia do justo acrescentemos algo além do que diziamos a principio, quando afirmavamos que € justo tratar bem o amigo e mal o inimigo e, agora, que a isso acrescentemos que € justo fazer 0 bem ao ami- g0, que € bom, e prejudicar 0 inimigo, que é mau? —E bem isso, disse, Assim, parece-me, esta bem. uvROI 5 TX. — Ah! Ser4, disse eu, que € proprio de um homem justo prejudicar um homem, seja ele quem for? —F, sim! disse. Aos maus e aos inimigos deve-se preju- dic Quando maltratadlos, os cavalos se tornam melhores ‘ou piores? Em relagio a virtude dos cies ou dos cavalos? — A dos cavalos, —Entao, seré que, quando maltratados, também os ces se tomam piores em relaclo a virtude dos aes, mas nao em relagao 4 dos cavalos? = Necessariamente, — E quanto aos homens, companheiro? Nao diremos ‘naliratados, tornam-se piores em relacao omens? ‘Sem ditvidal — Mas a justica nao é uma virtude dos homens? —Necessariamente também. = Ah! E os homens, meu amigo, quando sao maltrata- los, necessariamente tornam-se mais injustos. —Bo que se ve —Entdo, seré que com a miisica os miisicos podem tor- nar 05 outros ineptos para a miisica? — Impossivel — Mas, com a equitac2o, os cavaleiros sio capazes de tornar os outros ineptos para a equitagao? — Nio sio, ~ Mas, com a justiga, os homens justos sto capazes de tomar os outros injustos? Ou, falando de maneira mais geral, « coma virtude os bons sio capazes dle tornar maus os outros? — Mas € impossivel! Wa 6, eel bowl dea clo. inci, seu contratio, = Sim. —Nem é proprio da secura o umedeces, mas a do seu contrario A REPOBLICA ~#, sim. Nem é préprio do homem bom causar prejuizo, mas do seu contrario. —Parece. =E 0 homem justo é bom? = Sem diivida. ~ Ah! Nao é tarefa do homem justo, Polemarco, preju- dicar nem © amigo nem a nenhum outro, mas a do seu contririo, o homem injusto, ~Parece-me, Sécrates, verdade 0 que dizes * Ab! Se alguém afirma que é justo devolver a cada um ‘© que Ihe é devido, e se para ele isso significa que aos ini- migos, da parte do homem justo, o devido é causar-lhes pre- juizo, mas aos amigos prestar ajuda, nao seria sabio quem © diz, pois sua afitmacao nao é verdadeira. Em momento algum, ficou evidente que seja justo prejudicar alguém, = Concord, disse ele, ~ Ah! Lutaremos, disse eu, lado a lado, tu e eu, se al- guém afirmar que isso € o que disse ou Sim6nides ou Bias ‘0u Pitaco" ou outro dos nossos sibios e veneriiveis vardes ~ Quanto a mim, eu estou disposto a ser teu compa. heiro nessa luta. 33a — Mas sabes, disse eu, de quem me parece ser e: discurso segundo 0 qual € justo ajudar os amigos e preju- dicar 0s inimigos? = De quent? disse. ~ De Periandro™, creio, ou de Perdicas ou de Xerxes ou de Isménias de Tebas ou de outro homem rico que se considere muito poderoso. ~E bem verdade o que afirmas, disse. ~ Bem! disse eu. Ja que ficou evidente que nem a jus- tica nem 0 justo € i880, que outra coisa diriamos que ela 6? » XE Trasimaco, muitas vezes, mesmo durante nosso dlidlogo, tentava intervir na discussdo, sendo impedido pe- los que estavam sentados a seu lado ¢ queriam continuar a LIVROI a ‘ouvir a discussao, Quando fizemos uma pausa, depois que falei, no mais ficou quieto e, retesando-se como um ani- mal feroz, veio para cima de nés como se fosse agarrar-nos. Polemarco ¢ eu levamos um susto €, dirigindo-se aos presentes, ele disse: "= Que conversa flada € essa, Socrates? Ja hd tanto tem- « po estais nisso... Por que esse bom-mocismo, sempre fazen- do mesuras um 20 outro? Vamos! Se é que, de verdade, queres saber 0 que € 0 justo, nem te esforces em refutar quando alguém te di uma res- jd que sabes muito bem que é ‘que responder. Vamos! responde tw ta € dize-nos “como defines o justo. E nao me vas dizer que € 0 dever, 4 nem que € 0 proveitoso, nem 0 conveniente nem o lucra- tivo, nem que é 0 vantajoso, mas enuncia com clareza e gor o que quer que digs, porque nao aceitarei blablablés como esses. ‘Ao ouvilo falar, fiquei assustado e, olhando para ele, senti medo... Acho que, se nao o tivesse visto antes que ele a mim, eu teria perdido a vor..." Aconteceu, porém, que, quando ele estava comecando a ficar irritado com nossa discussao, fui o primeiro a encard-lo e assim consegui dar- « Ihe resposta, dizendo um pouco trémulo: — Nao te zangues conosco, Trasimaco! Se ele € eu er- ramos no exame dos conceitos, fica sabendo que, se erra- mos, foi sem querer... Nao penses que, se estivéssemos buscando ouro, de bom grado durante a busca ficarfamos fazendo mesuras um ao outro, perdendo a ocasiio de des- cobriclo. Mas quando estamos em busca da justica, objeti- vo mais valioso que um monte de ouro, seria hora de fa- zet concessdes tdo tolas um ao outro, sem esforgar-nos o mais possivel para que a tenhamos evidente diante de nossos olhos? Convence-te disso, amigo! Mas estou achan: do que nao somos capazes... Mais cabivel, portanto, € que 3374 ‘v6s, habeis que sois, mais vos apiedeis de nés que vos encolerizeis. 18 A REPUBLICA XI. Ao ouvir essas palavras, comegou a rir bem sar- casticamente e disse: = 6 Héracles! Af esti a habitual ironia de Socrates. Eu sabia disso € aos presentes j havia prevenido que w ‘do quererias responder, que fingirias nada saber ¢ tudo fa- Fias, menos responder, se alguém te fizesse uma pergunta, =F que tu és sibio, Trasimaco... disse eu. Sabias bem ‘que se perguntasses a alguém quanto vale o ntimero doze © o advertisses, antes de receber a resposta: “Nao digas, homem, que vale duas vezes seis, nem tr8s vezes quatro, nem seis vezes dois, nem quatro vezes trés, porque nao ad- mitirei que digas essas tolices", evidentemente, creio, ni guém responderia a essa tua pergunta. Mas, se ele te disses- Se: “Trasimaco, 0 que me estis dizendo...? Que ndo dé uma das respostas que mencionaste...? 6 espantoso homem, seré que mesmo sendo uma delas justamente a resposta a dar, apesar disso, quetes que eu diga algo diferente da verdade? Ou, entéo, 0 que queres dizer?", que resposta arias a ele? ~ Bem! disse, Como s¢ isso ou aquilo fosse o mesmo... Nada impede que seja... disse eu. Entao, mesmo que rio seja 0 mesmo, se assim parece aquele que esta sendo interrogado, crés que ele deixaria de responder aquilo que Ihe parece, quer 0 proibamos, quer no? = Entdo € assim que também vais fazer? Darés uma das respostas que eu vete? — Para mim, disse eu, nada haveria de estranho, se de- ois de refletir essa fosse a minha decisio. Bento, disse, se eu mostrar, além das jf presenta- as sobre a justica, uma outra resposta, a melhor de todas? Saberias avaliar que penalidade te caberia? = Que outra coisa, disse eu, sendo sofrer a penalidade que cabe ao ignorante... Aprender com quem sabe... Tam- bem eu acho que é isso que merego. = Fstés sendo bonzinho... disse ele. Mas, além de aprender, terés de pagar em dinheito. uno! » els div — Mas tens! disse Glaucon. Vamos, Trasimaco, se € por 1 Todos ns daremos nossa cont. aS ~E bem isso que eu penso... disse ele. Para que Sécra- tes faga como sempre... Para que ele proprio nao dé respos- 5, quando 0 outro responder, tome ele a palavra e — Como, 6 excelentissimo, disse eu, esse alguém res- ponderia, se, em primeiro lugar, é ignorante e afirma que nao sabe e, além disso, mesmo que tivesse uma idéia a res- peito, um homem, que nao é um qualquer, proibe-o de di- zet 0 que pensa? £ mais natural que sejas tu quem inter- rogue. Tu dizes que sabes ¢ tens o que dizer... N4o te es- quives e dli-me o prazer de tuas respostas! Nao te facas de rogado ¢ ensina Gléucon e os outros! XIL. Depois que disse isso, Gléucon e os outros pedi- ram que ele nao se esquivasse 20 que Ihe era pedido, Era evidente que Trasimaco estava ansioso por falar para set clogiado € pensava ter uma resposta excelente, mas fingia, insistindo que eu respondesse, Por fim, concordou ¢ disse: — Eis, disse, a sabedoria de Socrates... Ele proprio nao quer ensinar, mas, fazer sua ronda e aprender com os ou- tros, sem ser-Ihes grato pelo favor. — Afirmando, disse eu, que aprendo com os outr falas a verdade, Trasimaco, mas, dizendo que mio pago o favor, mentes, £ que pago quanto posso e eu s6 posso elogiar, pois no tenho dinheiro. Rago isso de todo cor Ao, se me parece que alguém fala bem. Logo, logo, ficariis sabendo disso, depois que me responderes, pois acredito ‘que vais falar bem, = Ouve-me, disse ele. ‘nao € sendo © vantajoso para o mais Forte. Mas por que nao me fazes um elogio? Ora, sei que isso tu no vais querer. = $6 se antes eu entender o que estis dizendo... Nes te momento, eu ainda nao sei. O justo, afirmas, € o vanta- sa80 x94 20 A REPUBLICA joso para o mais forte. E com isso, Trasimaco, 0 que pre- tendes dizer? O que estas dizendo nao deve ser algo como isso... Se Polidamas', o lutador de pancriicio, € mais forte que nés ¢ a came bovina traz vantagens para 0 corpo dele, esse alimento também para nés, que somos mais fracos que ele, € vantajoso €, a0 mesmo tempo, ju = Sberates, mes un nent disse ee Pega gue Ga disse por onde podes interpreti-lo da pior manera De maneira alguma, excelentissimo, disse eu. Viamos! Expée com mais clareza que dizes! ~ Entio nao sabes que 0 de algu- saad ris, iene de ou- tras a ia? = Como nao? ~E nao € 0 governo que, em cada uma delas, tem 0 poder? —f, sim, —E, em cada cidade, 0 governo estabelece as leis ten- oe Sabvlece leis democriicas, otrnice les trite oar inet as ea attend cs cine ta tases eres Estabelecidas as leis, declaram que o vantajoso para eles & 9 justo para os subordinados e quem infringe essa norma, como, ae da lel e culpado de infustiga, Eis, portanto, excelentissimo, o que eu digo ser justo sempre, € 0 vantajoso para ie. Essa questo, porém, examinaremos ainda outra vez”, Bem mais importante é, penso eu, 0 que Trasi- ‘maco esta dizendo agora, quando afirma que a vida do ho- ‘mem injusto € melhor que a do justo, Entao, Glaucon, dis- se eu, qual das duas afirmagoes tu preferes? Qual delas, na tua opiniio, é mais verdadeira? — Para mim, disse, a vida do homem justo é a que traz melhores resultados. — Ouviste, disse eu, quantas coisas boas da vida do 348 homem injusto Trasimaco enumerou ha pouco? — Ouvi, disse, mas nao estou convencido. — Entio, queres que, se pudermos descobrir como, tentemos convencé-lo de que ndo esti dizendo a verdade? ~ Como nao! disse ele, — Pois bem! disse eu. Se, em revide, desferindo um discurso de abrangencia igual a co discurso dele, dissermos quantas coisas boas tem 0 ser justo e se, de novo, ele falar € nds respondermos, seri preciso contar quantas delas cada um de nés enumerou em cada discurso € medi-las, € logo precisaremos de alguns juizes para dar uma decisao, formos, -guindo: SaaS juizes © a ~ Sem diivida — Entao, disse eu, que tipo de exame preferes? = Esse tiltimo, XX. — Vamos, Trasimaco! disse eu. Responde-nos a par- tir do comego! Afirmas que a injustica perfeita traz melho- res resultados que uma justica perfeita? — Sem diivida. Afirmo, disse eu, e jé est dito por qué. Ea A REPOBLICA — Vamos ld! O que de semelhante dizes sobre elas? A uma delas chamas virtude, ¢ 4 outra vicio? = Como nao? —Entdo a justica tu a chamas virtude, a injustiga vicio? = fio que se espera se estou dizendo que a injustiga traz bons resultados € a justica, nao = Entiio as chamas como? —Pelo nome contritrio, disse ele. —Serd que a vittude chamas vicio? — Nao! Nobre ingenuidade. ~ Ah! A injustica chamas malicia? Nao! Discernimento, disse ele. -Ni io, Trasimaco, sao também sensatos € bons os . — Sao, sim! disse, Pelo menos os que ppp de never Go perfeita que seus pés. Crés, talvez, que eu esteja falando dos que cortam e roubam carteiras... Tais atos, disse ele, do bons resultados se os outtos nao chegam a percebé-los, nao vale a pena, porém, mencioné-los, mas apenas aque- les de que ha pouco estava falando. = Ora , ‘que estés querendo dizer, iceeoee injustica como ome a doria e a justi¢a como seus contritios, — Mas € bem assim que as tomo. — Essa, porém, disse cu, é uma tese muito dura e no serd facil ter 0 que dizer! £ que injus- 05 ‘como alguns ou- tros, estivesses de acordo que € um vieio ou algo vergo- nhoso, poderfamos dar-te uma resposta expressando a opinido geral. Na realidad, porém, é evidente que afirma- ris que ela é bela ¢ forte e que Ihe daras todos os atributos que atribufamos 2 justiga, f que ousaste tomi-la como vir- tude e sabedoria E bem verdadeira a tua conjectura, disse. = Todavia, disse eu, mesmo assim nao devemos desistir de prosseguir nossa discussiio, até eu sentir que estas di- LIVROL 35 ensas. Parece-me que neste momento, Tra- simaco, de modo algum estas cagoando de mim, mas ex- pressando tuas opinides sobre a verdade opiniao ou nao? 2 Nada importa, disse, Vamos! Tenta responder ainda a esta pergunta: O homem justo, na tua opiniao, quer ser superior a um homem justo? De forma alguina, disse, pois, nesse caso, nao seria um homem polido, como realmente é, e de boa indole. = E superior a uma acao justa? Nem a uma ago justa, disse — Ble pretenderia ser superior a0 homem injusto e jul- ‘aria que isso seria justo ou nao julgaria justo? — Julgaria, disse ele, e pretenderia, mas nao seria capaz. = Oral Nao € isso, disse eu, que estou perguntando, Se © homem justo nao pretende ser superior ao homem jus- to nem o quer, ser superior ao injusto ele querer? = Bassim que 6, disse. — E quanto ao homem injusto? Sera que ele pretende set superior ao homem justo € a ago justa? = Como nao iria pretender? Ele, que pretende estar cima de tudo! = Entao 0 homem injusto querer ser superior ao ho- ‘mem injusto e porfiara para obter 0 méximo de tudo. — E isso, XXL. ~ Digamos, entdo, 0 seguinte.... © homem justo nao quer ser superior a um seu igual, mas a quem nao € seu igual, o injusto, porém, é superior a quem é seu igual © a quem nao € seu igual. ~ Otimas as tuas palavras! disse. —Entao, disse eu, € sensato e bom © homem justo, mas © injusto nem uma coisa nem outta? — Também isso esta bem, disse. 3500 36 A REPUBLICA — Entio, disse eu, 0 homem injusto se assemelha ao sensato € bom, mas 0 justo, nao? Como nac? disse. Tendo tais qualicades, assemelha-se 408 que sio como ele, 40 paso que 0 outto nao. = Muito bem! Ento cada um dos dois é tal qual aque- le a quem se assemetha? = Mas poderia ser diferente? disse Bem, Trasimaco! A um chamas misico, a outro cha- ‘mas ndo-mésico? Bu chamo, — Qual deles é sensato qual € insensato? — Ao miisico, claro, chamo sensato, a0 ndo-mtsico, in- sensato, B ele nao € bom naquelas coisas em que € sensato? Mau, porém, nas em que insensato? “sim, quanto 20 médico? Também no é assim? -E —Na tua opinio, portanto, excelentissimo, alguém que € miisico, 20 afinar sua lira, quer ser superior a um miisico na tensio e relaxamento das cordas € pretende estar em. vantagem sobre ele? iu no. = Ea alguém que € ignorante em mAsica? — Forgosamente querer, disse (© médico? Ao prescrever a alimentacdo € a bebida, quereria ser superior a um médico e & sua pritica médica? = Nao, claro! —E se nfo se tratar de um médico? = Vé se, a respeito de todo conhecimento ¢ ignoran- cia, pensas que um conhecedor, qualquer que seja, quere- ria ser superior a outro conhecedor, em tudo quanto faz ou diz, € nao quer 0 mesmo em relacao a um seu igual em relagao mesma pratica Ora, disse, talvez seja assim necessariamente LvROI 7 —E 0 ignorante? Nao queretia ser superior tanto 20 co- nhecedor quanto ao ignorante? ~ Talvez. 0 conhecedor € sibio? -E =O sibio € bom? = Ah! © homem bom e sébio nao querer ser superior ao que € seu igual, mas a ndo-igual e contratio. ~ Provavelmente, = Ora, 0 homem mau ¢ ignorante querer ser superior 0 seu igual e contratio. — Parece. = Entio, Trasimaco, disse eu, para nds, o homem in. justo quer ser superior a quem € igual e a quem nao é igual a ele? Ou nao ¢ isso que dizias? —E isso, disse. — £0 homem justo igual, mas a quem nao 0 = Sim. — Ah! O homem justo se parece com o sabio e bom, € © injusto com o mau e ignorante. —Pode bem ser. = Mas nisso estamos de acordo... Cada um é tal qual aquele com quem se parece. — De fato, estamos de acordo. — Ah! Para nds est evidente que o homem justo é bom € sibio, mas 0 injusto, ignorante e mau. querer ser superior ao seu XXIL ‘Trasimaco concordou com tudo isso, nao facil mente como estou relatando agora, mas, depois de forcado a custo, suando —€ quanto! ~ ja que era verao. Foi nesse momento que, pela primeira vez, vi o que nunca tinha vis to antes, um rubor na face de Trasimaco... Entao, depois que entramos em acordo de que a justiga é virtude e sabe. dora, eu disse: 5510 8 A REPORLICA = Bem! Que isso para nés fique assentado assim, Ti- nhamos, porém, afirmado que também a injustica & algo que tem forga... Ou nao estas lembrado, Trasimaco? = Fstou lembrado, dlsse. Mas nao me agracta 0 que es- tis dizendo agora e tenho ainda o que dizer a respeito dessas coisas. Entretanto, se eu falasse, sei bem que afir- marias que eu estaria agindo como um orador falando ao povo, na praca, Portanto, ou deixa-me falar quanto quero ‘ou, se queres interrogar, interroga. E eu, como para as ve- thas que contam suas historias, itei falando: “Hein?” e, com um sinal de cabega, responderei que sim ou nao, De forma alguma, disse eu, sem que seja tua opiniao! — .. para agradar-te, ja que ndo me deixas falar. Ora, que mais queres? Nada, por Zeus! disse eu. Mas, se € isso que vais fa- zer, faze-o. Vou interrogar-te. ~ Interroga entao! = Pois bem! Bis o que te pergunto, o mesmo, alids, que hé pouco, para fazermos um exame completo e se- guido de nossa discussao: Qual é a relacao da justica com 2 injustica? F que se disse, em certo momento, que a injus- tiga era algo mais potente € mais forte que a justica, Mas, agora, se a justica é sabedoria e virtude, facilmente, creio, ela se evidenciaré como mais forte também que a injustica, visto que a injustica € ignordncia, Ninguém poderia deixar de perceber isso. Nao €, porém, algo tao simples, Trasima- co, 0 que desejo, mas um exame por um caminho mais ou menos como esse, Afirmarias que ha cidade injusta que tente escravizar outras cidades e as tena escravizado € ‘mantenha muitas como escravas, sob seu jugo? = Como nao? disse. E isso a melhor cidade, sendo in- justa, Faré mais vezes € mais perfeitamente. ~Entendo, disse, que esse 0 teu discurso, Mas, a res- peito dessa cidade, 0 alvo de meu exame € se a cidade que se tornou mais poderosa ter essa capacidlade ser a jus- tiga ou sera necessério que cla o faca recorrendo a justica LvRo1 39 = Se, como falavas hé pouco, disse, a justiga € sabe- doria, recorrendo a justica; se € como eu falava, recorendo 2 injuistica —Estou muito contente, Trasimaco, disse eu, porque nao estis dizendo “sim” e “nao” com sinal de cabega, mas respondes muito bern, = Sou eu que te agradego, disse. XXIII. — Tu ests sendo —E se ndo fossem? Nao teriam mais éxito? ~ Teriam, sim. — F que, de certa forma, iponhamos que sim... disse ele, Nao quero criar di- vergéncias contigo. Mas tu, excelentissimo, estis sendo muito gentil.. Di ze-me o seguinte... Se da injustiga € proprio suscitar 6dio onde quer que exista, sera que, vindo a existir entre ho- mens livres € escravos, nao 0s fara odiarem-se uns aos Ou- tros, rebelarem-se € serem incapazes de agir em comum? — Fara, sim, — Ese ela vier a existr entre duas pessoas? Nao have- 14 discérdia e édio? Nao serio hostis uns em relacdo 205, outros e aos homens justos? ~ Serio. ~ Se, no fntimo de uma Ginica pessoa, homem maravi Ihoso, vier a existir injustica, sera que ela perder sua capa cidade ou nao a teré em nada menor? Em nada menor, suponhamos, disse. ~ Entao, parece que ela tem uma capacidade tal que, se vem a existir, seja numa cidade, seja numa estirpe, seja sa 40 A REPOBLICA ‘num exército, seja em outro grupo social qualquer, em pri- meiro lugar, faz que ela seja incapaz de agir de acordo con- sigo mesmo, por causa das discdrdias ¢ divergéncias e, ain- da, ser hostil a si mesmo ¢ a todo adversario, e também a0 homem justo. Nao é assim? ~£, sim. — E, existindo no intimo de uma tinica pessoa, creio, produzird tuclo que, por sua natureza, produz. Fara, em primeiro lugar, que ela seja incapaz de agis, por estar em, tebeliao ¢ discordancia consigo mesma, e depois hostil a si mesma e aos homens justos. Verdade? = Sim. — Os deuses também sdo justos, meu caro, = Suponhamos que sejam... disse. = Ah! E © homem injusto, Trasimaco, sera inimigo dos deuses € 0 justo, amigo? = Regala-te sem medo com 0 teu discurso que cu nao te farei frente. Nao quero que estes aqui me odeiem. — Vai, pois! disse eu. Acaba de servir-me o resto do banquete, respondendo como até agora. £ que dissemos, Sim, gue 6 uss se mest mais abis, melhores ¢ mals capazes de agir, € aan por po dissemos que, um dia, realizaram em comum, uns com os uttos, uma ago Vigorosa, isso tenhiam feito por serem i justos, dizemos que de modo algum isso é verdade. £ que no se pouparlam mutuamente, se fossem inteiramente in- justos. E evidente qui 0 deles, hi am. Realizaram empresas injustas, sendo maus pela metade, visto que os inteira e integralmente maus si0 também incapazes de agir com perfeicao. Entendo, portanto, que assim € nao como ex- Puseste no inicio. Agora devemos examinar se 0s justos Vi ‘ver melhor ¢ si0 mais felizes que os injustos, questo que UVROI a haviamos deixado para mais tarde, Ora, ao que me pare- ce, a partir do que jé foi dito por nbs, esté evidente que s20, Em todo caso, devemos examinar melhor, pois nao discutimos um assunto qualquer, mas qual deve ser nos- so modo de vida. — Fxamina, disse. ___ = Vou examinar, disse eu, Pala-me... Pensas que hé 1 propria do cavalo? ~ Penso que sim. — Sera, entao, que darias como tarefa de um cavalo ou de outro animal qualquer aquela que s6 se faz com ele ‘ou, pelo menos, s6 com ele de modo perfeito? — Nao estou entendendo, disse — Mas, se cu perguntar assim? Enxergarias com outra coisa que nao os olhos? = Nao, claro, — Entio? Ouvirias com outra coisa que nao os ouvidos? — De forma alguma ~ Entao, com justica afirmariamos que ai esto as ta- refas deles? — Certamente! instrumentos? — Como nao? nada o farias tao bem, creio, que com uma isso. —E verdade. — Nao teremos isso como uma tarefa dela? ~ Teremos, sem divida. XXIV, - Agora, creio, entenderias melhor minha per- gunta de hd pouco, quando procurava saber se ndo era a tarefa de cada coisa 0 que s6 ela faz ou s6 ela faz com perfeicao, — Ora, entendo, disse, ¢ na minha opinido essa é a ta- refa de cada coisa, ste a A REPUBLICA — Bem! disse eu, F nao te parece que cada um a quem se impe determinada tafe tern usta virtue? ‘Voltemos | ao mesmo assunto... Os olhos tém uma tarefa? = Tem, — Entio tém também uma virtude? ~ Tém também uma virtude. ~ Dissemos que ha uma tarefa dos ouvidos? — sim — Entao, também uma — Também uma virtude. Ea respeito de tudo 0 mais? Nao = assim, — Atengo! Sera que os olhos cumpririam bem sua tare- fa sem ter sua virtude propria, mas, em vez dela, um vicio? - E como poderia? disse. Deves estar falando da ce- gueira em vex da visio! ~ Qualquer que seja a virtude deles... disse cu. Nao € isso que estou perguntando, mas se € pela virtude que Ihe é propria que realiza bem uma tarefa quem dela esta incumbido, e se é pelo vicio que a realiza mal. ~ Isso é verdade, disse. — Ento, quando sio privados de sua virtude especifi- ca, os ouvidos também realizam mal sua tarefa especifica? ~£ bem assim, = Incluiremos todas as outras coisas no mesmo racio- cinio? Na minha opinifo, sim. — Vamos! Depois disso, examina o seguinte... Hid uma tude? sim? Fy, gu te eset For exenplo,atinorte governar, deliberar e todas atividades como essas. Com jus liga atribuiriamos essas tarefas a um outro qualquer que nao a alma? Dirfamos que elas sio proprias da alma? = De mais ninguém, agora, quanto ao viver? Afirmaremos que é tarefa da alma, 8 — Afirmamos, entio, que hé uma virtude da alma? ~ Afirmamos, —Entio, Trasimaco, a alnta realizard sua tarefa propria, «© se for privada de sua virtude especifica, ou isso € impossivel? — Impossivel. — Ah! Uma alma, se € ma, necessariamente governa e administra mal, mas, se € boa, tem éxito em tudo. = Necessariamente. — Entio, chegamos a acordo de que a justica é vietude da alma e a injustica, um vicio? — Chegamos, de fato. — Ah! A alma justa e © homem justo viverio bem e 0 injusto, mal? —£ 0 que patece, segundo tua argumentacao. 0 feliz, €nd00 set ‘sera —E poderia nao ser assim? Ah!LO - 0 injusto infeliz? disse. ~Mas ser infeliz ndo traz vantagem, ser feliz traz —E poderia nao ser assim? ~ Ah! Jamais, venturoso Trasimaco, a injustica traz mais Maatagem que a justica. — Banqueteiate das Bendidias! disse. ~ Mas as recebi de tuas maos, Trasimaco, disse eu, jf que te fizeste amavel comigo ¢ deixaste de ser rude. Se ‘nao me regalei, foi por minha causa, nao por tua, Ao con- 6 trario, acho que fiz: como os gulosos que pegam e provam aquilo que vai sendo oferecido, antes de saborear suficien. temente o prato anterior. Patece que, antes de chegar ao que @ principio examinavamos ~ 0 que € a justica? -, dei- xxei escapar esse tema ¢ dei um salto, passando a examinar se ela € ou vicio e ignorancia, ou sabedoria ¢ virtude; €, de novo, mais tarde, ao ocorrer a afirmagao de que a injustica m essas iguarias, Socrates, na festa

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