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Fragments dem mua oul pitied cura aos do Bras “civilizar" principalmente os “mais favorecidos”, pois so eles que asse~ gurariam o ideal de “civilizago" apregoado, j4 que os “desfavorecidos” no compunham esse ideal. De qualquer forma, aos jornais caberia de- nunciar ¢ alertar, para nio deixar "propagar-se o mal”, Essa visiio repressora ¢ moralizadora representa um dos problemas das fontes a que temos acesso sobre as préticas populares de tratamento ¢ de cura, H4 um forte contetido pejorativo em tude que a elas se refere Possivelmente, as dificuldades que a historiografia sobre a medicina teve em desvendar significados ¢ relativizar seu impacto no Brasil, © ndo s6 aqui, foi repetir © discurso da documentago, entendendo-0 como expres- so da propria realidade. Daf a idéia generalizada de que a sociedade tena se ‘medicalizado’ no século XIX: era disso, afinal, que as verses médicas ¢ Ietradas pretendiam convencer scus leitores. Porém, na pratica dos cu- randeiros ¢ na vida dos que usavam seus servigos, nfio houve uma répida Uransformagdo. Até o final da ida de 1920, apesar das novidades pasteurianas € das tentativas de condenagao das “superstigBes’ pelos mé- 4icos diplomades, ainda havia uma forte procura por curandeiros, espiti= tas e préticos de medicina. As praticas populares de cura permaneceram vivas e intensas, compartilhando o prestigio do espago terapéutico e ‘medicalizado das clinieas ¢ hospitais de médicos-doutores. Mulheres e Parteiras A existéncia de espagos ¢ préticas de cura ‘alternatives’ manifesta se com maior intensidade no atendimento as ‘moléstias de senhoras’. As mulheres eram atendidas em casa ou nas casas das parteiras e, mesmo quando atendidas por médicos, ainda nao havia conhecimento sufic! sobre téenicas obstétricas como cesariana ou 0 funcionamento do corpo feminino, $6 eram convocados médicos formados por parturientes de pos- ses ou para os partos complicados, ndo resolvides pelas parteiras e coma~ res (Santos Filho, 1991). Um exemplo, entre muitos, € 0 de uma parturi- ente atendida por trés médicos ¢ um farmactutico na cidade de Nao-me- nte ‘Toque, no interior do Rio Grande do Sul, em 1910, Os que a atendiam ni conseguiram tirar a crianga nem com férceps, resolvendo opers-la com um formdo e uma serra de agougueiro, serrando-The 0 sso da bacia2? A pessoa que enviou a notfeia para o jornal O Exemplo, pelo qual ficamos sabendo da cirurgia, comentava ” ular, Controtay, Cwvar Havera operago mais cruel? Quantas dores sofreu a pobre parturi- ente, agiientando tamanha barbaridade¢ tanta desumanidade do parto de seus algozes? Depois de serrarem o osso da bacia, abyiram a forga para dar passagem livre ao feto que nasceu com vida; porém a infeliz senhora, 24 horas apés a barbara eperagao, exalava seu dtimo alent, no meio das mais cruciantes dores e hemorragias, que eles no conse- fguiram aplacar quanto mais estancar. Foi nessas condigdes que morreu ‘uma distinta senhiora na flor da idade, acabando seus dias nas maos de homens que ndo era ignorantes, nem precisaram se acobertar com a lei da lberdade profissional (O Exemplo, 10 abr. 1910:1) Como o trecho indiea, os médicos ainda utilizavam amplamente pro- cedimentos dolorasos e violentos, em 1910: havia desconhecimento sobre onde e como cortar, sobre a questo da dor, problemas com hemorragias € como suturar, infecgdes etc. Essas dificuldades justificaram que os médi- cos tentassem no se envelver com a ‘arte obstétrica’ por um longo perfo- do. Durante o sécule XIX, 0 'progresso’ médica era a realizagio da cesari- ana com extirpagio total do titero, ¢ a regra era a morte em caso de partos Aiffceis (Thorwald, s.d.)2* Entre o pudor e a imperfeia, as mulheres ¢ seus problemas de satide foram relegados a um espago préprio, no qual os médicos custaram a se envolver. As parteiras aprendiam pela prética, provavelmente no contato com outras parteiras mais velhas, que guardavam conhecimentos do fun- cionamento do corpo feminino que ndo eram comuns. As parteiras com- partilhavam das vidas das mulheres que tratavam, resolvendo seus “incd- mods’, guardando seus segredos ¢ mantendo suas amizades. Eram mu- Iheres que exerciam os mesmos paptis cotidianos que as demais, mas tam- bém podiam dar © socorro no caso de alguma doenga e, prineipalmente ajudavam mulheres a ‘dar 2 Tu2’. Tisham uma profunda insergo no quo tidiano do espago domiéstico, incluindo as criangas, os vizinhos, os paren- tes, num universo governado pelos valores femininos. Nesse universo, as parteiras concentrariam uma maior autoridade, devido ao seu saber” Como sugeriu Michelle Perrot, antes de serem as auxiliares reverentes, ansiosas ¢ sempre culpabilizadas dos médicos, as mulheres do povo foram suas prin- cipais rivais e continuadoras de uma medicina popular, empregando os recursos de uma farmacopéia multissecular (Perrot, 1988). As parteiras cumpriram exatamente esse papel, resguardando um espago s6 ha pouco tempo ocupado pela medicina hospitalar. Os “incdmodos no itero" tratados pelas parteiras podiam significa as mais diversas doengas venéreas, inflamagSes sem diagnéstico precisa v8 Fragments dem mua oul pitied cura aos do Bras (do Gtero, do ovério ete), tratadas com lavagens de gua fervida e Itquidos “perfumosos", tampdes de tecido introduzidos no dtero (curatives), "su- limadas corrosives" etc. Mas o maior “incémodo" era gravidez ndo dese- jada, Vérias parteiras faziam esse “servigo", assim como alguns “médi- cos” especialistas que “evita(m) a gravidez sem operagdo ¢ sem dor nos casos indicados". Podiam ser mulheres casadas que jf tinham filhos ¢ no desejavam outros, pelo menos naquele memento, eu mogas solteiras que precisavam esconder ‘sua vergonha’. Esse universe, envolvendo a moral © © pudor feminino, exigia uma abordagem que 56 as préprias mulheres pareciam poder fazer. As parteiras compartilhavam uma intimidade com 1s dificuldades femininas, sendo companheiras ¢ confidentes, mais acei- tas que os médicos no atendimento de seus problemas, A historia de Emma Martha Putz Kristmann oferece algumas nuangas sobre os significados das ‘doengas de mulheres’. Emma queixava-se de ‘incémodo no titero’ desde o nascimento do seu primeiro filho, apresen- tando um corrimento, Apesar de ter condigSes financeiras para tanto, nlio quis tratar-se com um médico por sentir-se acanhada. Sua sogra, entdo, pediu que a parteira Carolina Bruckhoff, de nacionalidade alema como a familia de Emma, se encarregasse do atendimento, A parteira comegou a taté.la de metrite ou flores-brancas com lavagens de égua fervida ¢ cura- tivos, Apés seis semanas, cla afirmou que Emma estava gravida, A conse~ Iho de uma vizinha, sua sogra chamou Carlos de Lester, conhecido porque anunciava nos jornais ¢ em panfletos que tratava de ‘moléstias de senho- ras‘, Ele se dizia diplomado pela Universidade de Montpellier, mas no 0 comprovou durante © processo. As ve parentes da famflia de Emma ndo confirmam o aborto, alegando que ela estava com problemas no sitero e precisava de uma raspagem para evitar visco de sua vida. Lester tratou Emma no quarto de sua casa, pela manha, tendo sido acertado © tratamento antes, mediante parte do pagamento antecipado, Apés uma ‘lavagem vaginal’, Emma faleceu. Lester procurou acusar a parteira que a atendia antes, dizendo que retirou "bolas de trapos pretos, malcheirosos, presos por uma linha”, que safam pela sua vagina, Lester teve pristio preventiva, sendo condenado em primeira instancia por pratica de aborto, Tendo ide a jttri, foi absolvide.** © processo evidencia as préticas a que as mulheres estavam entre- ‘gues € as diversas redes de solidariedade e convivéncia com vizinhos parentes nas tentativas de tratamento, confirmando um amplo quadro de relagdes daquele grupo, que, inclusive, resolvia questdes ‘intimas’ como 0 Ses das testemunhas, vizinhos € v9 ular, Controtay, Cwvar tratamento de uma doenga venérea ou a realizago de um aborto. © que transparece, pelo depoimento das testemunhas que participavam da vida familiar de Emma, € que o aborto no era algo incomum. Todos parecem depor afirmando a necessidade de uma intervengo para salvar a vida da paciente ¢ inocentando o envolvimente dos familiares. £ pouco clara a causa mortis de Emma no exame de necropsia (“reflexo inibitério por exci- taco do Gtero"), mas este afirma claramente que houve tentativa de abor- to, apesar de os médicos terem sido consultados diversas vezes para escla- recer seu parecer. © jornal Ultima Hora acusou Carlos de Lester de charlatanismo, alegando que ele no teria ultrapassado 0 54 ano de medi- cina, ¢ da tentativa de varias falcatruas em Porto Alegre e Uruguaiana, dedicando-se a pegar jéias em casas especializadas ¢ a no pagar. Sua ‘itima trapaca teria sido passar-se por médico em Montenegro, Santa Maria ¢ Tjul, mudando-se apés cada escndalo.” Nesse aso, @ aborto parece no ter sido responsabilidad da parteira, mas de uma pessoa estranha & famt- lia que realizava essa atividade. Pelos dados apresentados pelo jornal, Carlos de Lester dedicava-se ao exercicio de varias profissdes para viver, sendo tuma delas a medicina ginecoldgica. Provavelmente, hoje o chamariamos e um ‘curioso’ que faz abortos. Dificuldades maiores de mulheres solteiras podem ser exemplificadas pelo caso de Marta Hangel, que tinha 26 anos ¢ trabalhava como servigal Marta foi ‘deflorada’ por Adalberto Silva, empregado da Hidréulica Guaibense, em 1917, ¢ ficou gravida, Fez um aborto, a conselho de uma amiga ¢ com o consentimento de Adalberto, com a parteira ¢ ‘doutora’ ‘Thomazia Gallanti, espanhola, em 1918, com uma ‘inje#o no tero', O feto tinha uns trés meses e foi enterrado num vaso de flores. Em janeiro e em novembro de 1920, fez novos abortos, nas mesmas condigdes. No {ltimo, houve complicagSes, ¢ a expulsio do feto 56 ocorreu dia 8 de janei- ro de 1921, j com quatro meses, tendo sido encontrado no pogo da resi- déncia onde trabalhava. Sob suspeita, Marta confessou na delegacia. A parteira relatou tratamento para flores-brancas, procurando eximir-se da responsabilidade, Adalberto disse que Marta © procurava insistentemente € que ele a recusava, julgando ser este motivo de t@-lo envolvide no caso, principalmente apés ele ter casado com outra, A parteira foi absolvida por insuficigneia de provas, pois Marta fugiu e nem seu patr3o compareceu 205 depoimentos @ que foi requisitado.** Tudo indica que Marta recebeu alguma ajuda de seus empregadores para o ‘sumigo’, deixando © proceso 180

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