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Noticia 18

Os liberais e o Papa Francisco


(...) Tive o privilégio de, em 1964, ter assistido no Instituto Universitário dos Altos Estudos
Internacionais de Genebra a algumas aulas do professor Wilhem Röpke. É considerado uma
das figuras mais destacadas da corrente das Ciências Económicas apelidada por "Soziale
Marktwirtschaft" ou Corrente Neoliberal. Nos seus 40 anos de atividade, publicou mais de 800
trabalhos. Como conselheiro político, colaborou com o ministro alemão Ludwig Erhard (1949-
1963), contribuindo desse modo para o chamado "milagre alemão" da década de 50. Erhard
refere-se a Röpke: "era, no melhor sentido, um lutador pelos valores mais altos da
Humanidade".

A sua obra está cheia dessa preocupação: a economia para o homem, não o homem para a
economia.

No seu livro, traduzido para francês como "La crise de notre temps" (1.ª edição em alemão de
1948) analisa a situação económica e social do séc. XX. Confrontavam-se nessa altura dois
sistemas sociais, políticos e económicos: democracia e totalitarismo; economia de mercado e
economia do estado ou planificada.

Para Röpke, o sistema económico liberal que defende alicerça-se na liberdade individual, no
direito à propriedade, na divisão do trabalho, nas leis de mercado, na concorrência.

Não deixa porém de apontar todas as deformações, falsificações e aberrações que o modelo
liberal sofreu ao longo do seu percurso histórico e que eram já evidentes em 1948.

Deformações, falsificações e aberrações que influenciam ainda nos dias de hoje o


funcionamento das regras de mercado: a oferta e a procura exigem transparência e igualdade
de oportunidades e informação.

A herança do "laissez-faire" ressuscitada e implementada nos EUA (escola de Chicago) com o


professor Milton Friedmann tornou-se dominante nas economias ocidentais.

Os resultados estão à vista, com as crises sucessivas e com a tendência para o


desaparecimento da classe média e com políticas e legislação defendendo interesses privados
em detrimento do bem comum. Marchamos para um clima de confrontação.

Poder-se-á conceber uma economia liberal com outras formas jurídicas? Sem sociedades
anónimas, sem sociedades de responsabilidade limitada, sem sociedades de holdings, sem
monopólios protegidos pela lei, sem "brevet" que prejudiquem a concorrências, sem
"offshore", etc.? (...)

O paraíso não tem portas, nem janelas, não precisa nem de opas, nem de água benta. Está
aberto a todos os que "têm fome e sede de justiça porque é deles o reino dos céus". Nele há
lugar para todos aqueles que "deram de comer a quem tinha fome, de beber a quem tinha
sede e que vestiram os nus e remuneram justamente quem trabalhou.

Rezam as Escrituras ainda que um rico, chamado Zaqueu (não era seguramente liberal porque
confessou não ter ganho a sua fortuna honradamente), ao receber Jesus na sua casa prometeu
dar metade da sua fortuna aos pobres e que deixaria de explorar os seus semelhantes. Ficou
escrito nos livros sagrados que, nesse dia, entrou a salvação naquela casa.
Bastaria a coragem do Papa Francisco, por ter expulsado os "vendilhões" do templo do Banco
do Vaticano, para merecer o respeito de qualquer liberal honesto.

Foi um passo na defesa da legalidade e da concorrência, eliminando um dos alçapões do


branqueamento de capitais e transações duvidosas. Os antecessores de Francisco não
pactuaram, mas não conseguiram eliminar essa chaga. Defendeu as leis do mercado!

Ao denunciar as consequências do capitalismo atual, ele não condena os ricos ao defender os


pobres. Chama atenção para o facto de mais de 50 % da riqueza mundial estar concentrada
apenas em 10 % da população do planeta. A distribuição da riqueza, nos países democráticos
só poderá acontecer por uma política tributária equitativa e por um sistema social solidário.

Não é monopólio ou privilégio da esquerda defender um sistema eficiente que permita um


desenvolvimento do bem-estar com uma distribuição equitativa da riqueza. O Papa pede mais
justiça no mundo e mais coerência com o Evangelho, na Igreja Católica. Não merece ser
tratado como ignorante. (...) Termino citando mais uma vez Röpke: "A forma atrofiada da
economia de mercado, isto é, do capitalismo desmedido, a indústria e a finança com as suas
enormes concentrações de capitais e de poder, o seu proletariado de massa, a sua
concentração, as suas metrópoles e os seus quartéis generais supra populados - não
representa de forma alguma o desenvolvimento inevitável de tal sistema económico, se ela
tivesse seguido as suas próprias leis". Isto era em 1948, hoje está pior!

Não vale a pena ensinar a pescar, se nós retiramos o acesso aos anzóis, às redes, ou ao isco! O
Diabo mora em todo o lado onde o "laissez-faire" se transforma na lei do mais forte, pondo em
risco os valores mais altos da humanidade e abrindo a porta à corrupção e à exploração do
homem pelo homem.

Para estar de acordo com o Papa Francisco, no campo social, não é preciso ser católico, nem
de esquerda! A sua intervenção no passado dia 25, no Parlamento Europeu, mereceu uma
ovação de pé de todos os quadrantes.

por Manuel Alexandre, DN Opinião, 05 dezembro 2014

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