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LUNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Rertox: Clio Campolina Diniz ‘Vice-Rerrona: Rocksane de Carvalho Norton EDITORA UFMG Direron: Wander Melo Miranda Vice-Dinrvox: Roberto Alexandre do Carmo Said CONSELHO EDITORIAL Wander Melo Miranda (onesipente) Flavio de Lemos Carsalade Helos Maria Murgel Starling Marcio Gomes Soares Maria das Gragas Santa Barbara ‘Maria Helena Damasceno Silva Megale Paulo Sérgio Lacerda Beitio Roberto Alexandce do Carmo Said ENEIDA Maria DE Souza JANELAS INDISCRETAS Ensaios de critica biogrdfica Belo Horizonte Editora UFMG 2011 NOTAS } DEBORD. A sociedade do espeticulo, p. 14. 2 ARFUCH. O espaco biogrifico~dilemas da subjetvidade contemporinea, p96. > CAUQUELIN, L'exposition de soi~ du journal intime aux webcams, p. 88. + DOUBROVSKY. Fis 5 LIPOVETSKY. Les temps hypermodernes. AUGE, Mare. Pour quoi vivons-nous?, p. 144, BUCI-GLUCKSMANN. Esthétique de Péphémére, p. 84, BIBLIOGRAFIA ARFUCH, Leonor. O espaco biogrifico ~ dilemas da subjetividade con- temporanea. Rio de Janeiro: Eduerj, 2010. AUGE, Mare. Nao lugares ~introdugio a uma antropologia da supermo- demnidade. Tradugao de Maria Licia Pereira. Campinas: Papirus, 1992. AUGE, Mare. Pour quoi vivons-nous? Paris: Fayard, 2003 BUCI-GLUCKSMANN, Christine. Esthétique de lépbémére. Paris: Galilée, 2003. CAUQUELIN, Anne. exposition de soi ~ du journal intime aux webcams. Paris: Editions Eshel, 2008, DEBORD, Guy. A sociedade do espeticulo. Tradugao de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. DOUBROVSKY, Serge. Fils. Paris: Galilée, 1980, LIPOVETSKY, Gilles. Les temps bypermodernes. Paris: Grasset, 2004, 38 A BIOGRAFIA Um bem de arquivo ‘A pesquisa em arquivos é uma atividade que nao atrai a maior parte dos estudiosos do texto literdrio, por se confundir, muitas vezes, com uma atitude conservadora ¢ retr6grada frente a literatura. Teorias criticas dos tiltimos anos contribuiram para © gradativo apagamento do interesse pelo exame das fontes primarias, ao ser valorizado o texto na sua integridade estética, sem 0 interesse pelos bastidores da criagao. A recusa em se deter no proceso construtivo como resultado do trabalho do autor se justifica por ele ter sido entidade incémoda para a critica, que pouca importancia conferia ao contexto histérico das obras. significativa esta retomada eritica da figura do autor, seu retorno por meio de tragos e residuos, da assinatura, abolindo-se 0 pro- cedimento de recalque como produto do pacto ficcional com a escrita, inscrita de modo asséptico e distanciado. Na histéria da critica ocidental, a atitude mais comum da critica se concentrava nna censura da presenga do escritor na cena literéria, impondo-se a linguagem como absoluta e eliminando-se a assinatura segundo padrdes de objetividade. ‘Com a doago de seus manuscritos & Biblioteca Nacional da Franca, em 1971, Miguel Angel Asturias preparou o espirito de seus futuros pesquisadores, incentivando-os a preservar no apenas as obras publicadas, mas também os rascunhos ¢ va- riantes que acompanham o material de trabalho dos escritores. Esse gesto motivou a criacao da Colegio Archivos, cujo objetivo eo maior € a preservacio do acervo dos escritores para que sirva de fonte documental para o aprimoramento das edges comentadas € criticas. © destino material e analitico desse acervo literatio passou a ser uma das maiores metas da critica filolégica e gené- tica, no sentido de se considerar a obra ndo mais como objeto fechado e acabado, mas sujeita a modificagées ¢ transformagées interpretativas. Se o trabalho de recuperagao do texto original exige do pesquisador exame exaustivo das diferentes edigies e mudangas processadas pelo autor ou causadas pelos erros de edigdo, a critica genética revela o lado inconcluso e incompleto da criagdo, permitindo que a abordagem dos documentos nio mais se restrinja ao texto publicado e ao seu estatuto de objeto intocavel e inerte. A obra submetida a edigao critica recebe tratamento editorial capaz de lhe conceder dignidade, ao introduzir metodologias de trabalho centradas nas fontes primérias, procedimento analitico em estagio de desenvolvimento e amadurecimento entre pesqui- sadores do manuscrito literario. Trata-se de uma das aspiracées, p6s-modernas de recuperagao da meméria literaria, pelo aban- dono do projeto totalizante e unificador da modernidade para se fixar nas diferencas que delineiam o fragmentado e vigoroso arquivo cultural da atualidade. A pratica analitica voltada para as fontes primrias no ird revelar um olhar conservador sobre a escrita literdria, mas a sua revitalizagdo: 0 “manuscrito sera 0 futuro do texto”, assim se expressa Jean-Louis Lebrave, um dos notaveis representantes da critica textual e genética francesas. Enquanto os manusctitos esti- vyerem sendo guardados com vistas a um procedimento analitico, reinstaura-se ainda um pouco da génese literria. Segundo Louis Hay, autor de uma das mais claras reflexes sobre a questo, «© manuscrito é de uma extraordinria diversidade,e pertence a todas as etapas € a todos os estados do trabalho, dossiés, esbocos, planos, rascunhos. Mas, desde que o pensamento ou a imaginagio os tocaram, todos, do documento inerte ~ até a pagina inspirada -, encontram-se dotados de vida e convocados a desempenhar seu papel num projeto de escritura.! 40 F forgoso lembrar que esta prética de lidar com os manuscritos comeca a perder sua utilidade e prestigio nos tempos atuais, pela agio dos novos instramentos da escrita como 0 computador, substituro da maquina de escrever, mas dotado de potencialidades muito mais destrutivas frente ao arquivo pessoal do escritor. Os rascunhos desaparecem ao serem apagados pela eficiéncia de uma tecla que deleta 0 que se apresenta como excessivo ou descartavel para a finalizagio da obra. No entanto, outros procedimentos comegam a surgir, com vistas a recuperar o rascunho — ainda que digitado — das obras, o que esta, curiosamente, provocando 0 excesso de arquivos desta natureza, além de outros relacionados A memoria digital? E digno de nota o rico material existente nos acervos dos escritores, como a correspondéncia entre colegas, depoimentos, iconografias, entrevistas, documentos de natureza privada, assim como a sua biblioteca, cultivada durante anos. Um esbogo de biografia intelectual emana desses papéis ao serem incorporados, a0 texto em proceso, a cronologia dos autores, o encarte de fotos, a reprodugio de documentos relativos a sua experiéncia literdria, assim como a revisto da bibliografia sobre os titulares das colegdes. As pesquisas respondem por sua originalidade, uma vez que 0 objeto de estudo é construido no decorrer do arranjo dos arquivos, da surpresa vivenciada a cada passo do trabalho. ‘A claboragao de perfis biograficos deve contemplar nao sé 0 {que se refere & obra publicada do autor, mas também os objetos pessoais, imprescindiveis para a recomposigao de ambientes de trabalho, de habitos cotidianos e processos particulares de escrita. Objetos muitas vezes triviais, mas pertencentes ao cotidiano de todo escritor, adquirem vida prépria ao serem incorporados & sua biografia: mesa de trabalho, maquina de escrever, canetas, agendas, porta-retratos, objetos decorativos, cadernos de ano- tages, papéis soltos, recibos de compra, didrios de viagem € assim por diante. As condecoracGes e diplomas servem ainda de registro quanto a participacao do titular na vida pablica. Nao devem, portanto, ser negligenciados como objetos desprovidos al de valor. Compéem, com as obras de arte ou as edigdes de luxo, espago de trabalho ¢ de intimidade do escritor. Os bastidores da criagao, as experiéncias vividas pelos autores, —ligadas a producao litersria e existencial - constituem lugares pouco conhecidos pela critica. A intengio de reunir critica bio- grdfica e critica genética permite expandir o registro documental dos autores como tentativa de recuperar estagios pré-textuais ¢ estagios previvenciais. A pagina de rascunho, metaforicamente considerada o jardim intimo do escritor, revela 0 que 0 texto definitivo nao consegue transmitir: a imaginagao sem limites, os recuos da escrita, os borrdes, 0 espago no qual a face escondida da criagao deixa transparecer 0 fulgor e a paixio da obra em processo. Pagina branca, marcada de signos negros, torna-se a imagem do espelho que refletiria as relagdes pessoais do escritor com 0 texto, onde se supe ser tudo permitido, Pela liberdade de rasurar, de escrever entre as linhas, de acrescentar aos origin: margens desordenadas e rebeldes, este laboratério experimental desempenha papel importante na hist6ria da literatura moderna. O entusiasmo pelo proceso da escrita eo interesse pela génese dos textos ultrapassam a curiosidade do critico em penetrar nos bastidores da criagao e atingem dimensdes préprias ao exercicio iterario e biografico. Seguindo parmetros referentes a critica biografica,* € neces- sério distinguir e condensar os polos da arte e da vida, attavés da utilizacao de um raciocinio substitutivo e metaférico, com vistas a ndo naturalizar e a reduzir os acontecimentos vivenciados pelo escritor. A preservacdo da liberdade poética da obra na reconstru- Gio de perfis biograficos consiste no procedimento de mao dupla, ou seja, reunir 0 material poético ao biogratico, transformando a linguagem do cotidiano em ato literério. Ainda que determinada ‘cena recriada na ficgo remeta a um fato vivenciado pelo autor, € preciso distinguir entre a busca de provas e a confirmagio de verdades atribuidas 20 acontecimento, do modo comoa situacao foi metaforizada e deslocada pela fico. O nome proprio de uma personagem, mesmo que se refira a pessoas conhecidas do 2 escritor, nada impede que sua encenagao embaralhe as referéncias € coloque a verdade biografica em suspenso. ‘A critica genética, responsdvel pelo trabalho em torno da génese da escrita, contribui ainda para seu aparato biogrifico, consi- derando a importancia de se processar 0 cotejo entre manuscrito € texto, assim como entre a trajet6ria literdria do eseritor e a relagio com o lugar escolhido para exercer seu oficio, seja no proprio escrit6rio, nos deslocamentos ¢ viagens, seja no am- biente boémio dos bares e dos cafés. Nesse particular, é possivel reconstituir 0 espaco de eserita dos autores, pela transformacao de sua casa ou de seu acervo em museu ou fundagao. Essa solu- do museogréfica confere ao titular a oportunidade de se tornar conhecido no seu cotidiano de escritor e de homem comum pelos leitores do futuro, ao lado da sua obra. Alguns escritores se preocupam em legar posteridade um pouco do que ficou desse ambiente, ainda que sob a forma textual, como é 0 caso de Pedro Nava, ao descrever seu apartamento no bairro da Gléria, no Rio, em Galo-das-trevas. O interior burgués ¢ ornamentado de pecas reveladoras da “adesao dos mortos aos objetos”, a Jembranga dos amigos que se foram, personificada nos retratos, numa cadeira, num encosto de poltrona, numa carta. Os objetos so dotados de meméria e de forte marca do pasado. O musew imagindrio contém, em miniatura, a lembranca dos parentes, pequenos objetos magicos que se configuram como rufnas do passado.' Em outros escritores, 0 recurso metalinguistico de descrigio do ambiente de trabalho funciona também como ex- posigio de uma postica particular. Destinado ao futuro, ao devir de uma leitura, ow a desmitificagao do lugar sagrado conferido a esta atividade, o livro de Georges Perec, Penser/elasser, ilustra diferente perspectiva estética. De forma distinta da poética de ‘Nava, 0 escritor francés, por meio de uma narrativa/descrigao distanciada e minimalista do ambiente de trabalho, desconstréi qualquer tipo de ligagio com a tradigao e o pasado. Enume- rando os instrumentos de escrita, os empilhando sobre a mesa ce misturando objetos com diferente fungao, Perec desconfia da 4B ie hermenéutica critica, representada pelo leitor évido em descobrir © sentido oculto dos textos ou em decifrar enigmas literdrios: Antes, eu nio tinha mesa de trabalho, quero dizer, nfo havia uma mesa expressamente para isso. Hoje, me ocorre, ainda com bastante frequéncia, de trabalhar num café; mas, na minha casa, é rarissimo ‘que trabalhe (escreva) em outro lugar que nio seja minha mesa de trabalho (por exemplo, nao escrevo por assim dizer jamais na cama) € minha mesa de trabalho serve apenas para meu trabalho (ainda uma vez, escrevendo essas palavras revela-se precisamente que isso no é totalmente exato: duas ou trés vezes por ano, quando faco festas, mi- nha mesa de trabalho, inteiramente desocupada, recoberta de toalhas de mesa de papel ~ como a prancha sobre a qual se empilham meus dicionarios -, torna-se buffet). COLECIONAR/PENSAR O livro exige vizinhanga e complemento, necessita do contexto de outros livros, aqueles aos quais remete. A biblioteca facilta a teanstex- tualidade concreta, fisica, o descobrimento e a produgio de referénci entre as pegas individuais da colecio. Ja que se repete © processo de formar parte de um todo dentro das capas de em si uma biblioteca em miniatura.” m sé livro, este contém O comportamento do critico que se interessa pelos manus- ctitos e bibliotecas autorais se pauta ainda pela licio de Walter Benjamin, auténtico e apaixonado colecionador de livros, Rodea- do de mil tomos, de variada literatura, afirmava que o biblisfilo, a0 adquirir um livro velho, assumia 0 poder de the dar nova vida, Na sua obra, Benjamin repete 0 processo revitalizador do bibli6filo, transformando-se em colecionador de citagdes, arran- cando os fragmentos de sen contexto ¢ 0s organizando numa forma nova, sempre arbitréria e nunca definitiva. Lé¢ coleciona, desloca a tradiga0, por um processo simultneo de conservagio € destruigo. Amplia este raciocinio para o ambiente privado “4 s, 0 qual se afasta do espaco pablico e transforma sua -spago privado e afetivo — em santudrio, lugar propicio A criagio da privacidade. A biblioteca atua como materializagio dessa privacidade, por se erigir como lugar de encontro do cole- cionador com seu universo de lembrancas ¢ de objetos auraticos, sejam eles de qual natureza foi Nao ha nenhuma biblioteca viva que nfo abrigue, em forma de livro, um nimero de criaturas das regides fronteirigas. Nao precisam ser albuns de colar ou de familia, nem cadernos de autégrafos ou textos religiosos: muitas pessoas se afeigoam a folhetos € prospectos, outras a fac-s impossiveis de achar; e, com certeza, revistas podem compor as orlas prismaticas de uma biblioteca.’ imiles de manuscritos ou c6pias datilografadas de livros, No Arquivo Henriqueta Lisboa, entre documentos de ou- tros escritores, encontra-se uma cépia do Didrio de guerra, de Guimaraes Rosa, perfodo em que serviu como c6nsul-adjunto no Consulado Brasileiro em Hamburgo, de 1938 a 1942” 0 documento é de rara importéncia para o esclarecimento das, relagées politicas existentes entre o Brasil e a Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, além de revelar uma escrita em pro- cosso do escritor, entre siléncios e rasuras referentes ao periodo conturbado pela perseguic¢do nazista aos judeus. Sem mengio direta 4 ajuda prestada por Rosa e sua companheira de trabalho ¢ futura mulher, Aracy Moebius de Carvalho, 3 causa judaica, 0 Diério denuncia a ascensio do regime totalitério e excludente representado pelo nazismo. Otexto registra a passagem por Hamburgo do entio aspirante a escritor, anotando, desenhando, colando e copiando noticias sobre a situagao de uma cidade as vésperas da guerra, assim como outros informes de seu cotidiano: alarmes constantes de bombas; impressdes pessoais sobre leituras; registro de saidas ¢ visitas aos amigos; recortes, em alemao, de fatos sobre a guerra; anotages para futuros textos literdrios; desenhos de lugares © de pessoas; anedotas, listas em alemao de nomes da flora e de . espécies de temperos; referencias sobre a revisdo dos contos de Sagarana, ainda inédito. O Diario se assemelha, portanto,a uma caderneta de notas, pelo seu carter hibrido, entre o documento eo exercicio da escrita subjetiva, pritica que acompanhara Rosa nas viagens ao exterior e nas andangas pelo sertio, sempre & cata de material para a narrativa fabulosa que estava compondo. Em 1934, Guimaraes Rosa ingressa na carreira diplomati- ca, deixa a medicina e torna-se, nas décadas seguintes, um dos maiores escritores da literatura brasileira, Publica, em 1946, 0 primeiro livro de contos, Sagarana, e, em 1956, Grande sertio: veredas ¢ Noites do sertao. Em plena fase de uma modernidade reciclada pelo projeto industrial de modernizacao do Brasil, o escritor mineiro volta-se para a tradigio, apropriando-se da matéria regional como pano de fundo a experimentagio de Jinguagem. Retine procedimentos revolucionérios na literatura, com temas considerados arcaicos, ¢ rompe com a tendéncia he- geménica reinante nas manifestagdes modernas, voltada para 0 nacionalismo, ao se abrir para a proposta universalista. (© arquivista Guimaraes Rosa, na pratica cotidiana da escrita, € assim descrito por Walnice Nogueira Galvao: Um olhar sobre a natureza de operar do nosso escritor é facultado pela frequentacio do Arquivo Guimaraes Rosa, sob a guarda do Ins- tituto de Estudos Brasileiros da Universidade de Sao Paulo. (..) Ha ali abundiincia de materias, tais como correspondéncia ativa e passiva, ainda inédita, recortes, cardépios, fotos e postais, diplomas e certifi- cados, documentos, papéis relativos & carreira profissional, mementos de todo tipo. Mas sobressai uma notavel colecdo de 7 cadernetas e 25 cadernos, que serviram a diferentes prop tos. Podem conter impres- s0es de boiadeiro, da ocasido em que o escritor tangeu boiadas pelo sertio minciro, em configuracdo que se tornou legendsria; necessitando dlas mis livres para subjugar a montaria, levava o caderno atado a0 pescogo por um barbante."” Na esctita do Didrio de guerra, o leitor se depara com os bas- tidores da criagio, com as experiéncias do escritor frente a sua produgio literdria ¢ existenci I, lugares pouco explorados pela 46 critica, Na intengio de reunir critica biogréfica e critica genética, expande-se 0 registro documental dos arquivos ¢ recuperam-se os estagios pré-textuais como meio eficaz de criagao de biografias. ‘A experiéncia de Rosa durante sua estada em Hamburgo rendeu, além do Didrio, quatro contos-crénicas, publicados em periédicos e, mais tarde, reunidos em Ave, palavra,em 1970:*O mau humor de Wotan” (Correio da Manha, Rio de Janeiro, 29 fev. 1948); “A senhora dos segredos” (Correio da Manha, 6 der. 1952); “Homem, intentada viagem” (O Globo, 18 fev. 1961); “A velha” (O Globo, 3 jun. 1961). Esses textos completam a experiéncia do escritor vivida no exterior e durante a perseguicéo judaica pelo nazismo, produzem o efeito biogrifico por meio do registro de fatos reais, embora estejam construidos segundo parametros ficcionais, A meio caminho da crénica e do conto, as, historias revestem-se tanto do aparato documental quanto ficti- cio, o que permite reconhecer a ambiguidade de sua concepgio e de seu resultado textual. Sem descartar dados de ordem politica que atenuem a imagem de conservador e apolitico imputada a Guimaries Rosa - nas anotagées do Didrio de guerra refere-se constantemente a dis- criminagio judaica -, a criagio do perfil biogrifico do escritor relativo a essa época remete obrigatoriamente a relagdo entre a escrita diplomatica, o exercicio autobiografico do Didrio de guerra e suas recriagées literdrias. Lidar coma hist6ria pessoal ou categoria de um texto que ultrapassa e coletiva significa ale metaforiza os acontecimentos, sem recalcar 0 valor documental eo estatuto da experiéncia que aise inscrevem. O procedimento criativo se sustenta por meio do ritmo ambivalente produzido pela proximidade e pela distancia em relagao ao fato. O esctitor procede, por exemplo, a colagem de aniincios fiinebres publica- dos em jornal de alemiies mortos em sacrificio pela patria 20 lado de informagao pessoal sobre a venda de seu carro. No mesmo espaco da pagina, © arquivista toma o estranho familiar ~ 0 amtincio finebre - e contrasta seu sentimento de propriedade —a venda do carro - com o sacrificio dos alemaes pela causa pattistica. O processo de montagem resulta na simultaneidade dos discursos heterogéneos e sua consequente uniformidade ¢ contraste. O sentimento de propriedade do regime capitalista ¢ burgués se expe de forma individualista diante da iminéncia de mortes coletivas causadas pela guerra: 21.X1.1940 ~ Vendi o automével hoje. La se foi o meu HH 727, por 2.535 Reichsmark, Que venham outros, mais tarde! 20.X1.1940 Foi vitima de um ataque de avides britinicos a wm bairro residencial de Hamburgo a companbeira Elfriede Festersen [17 anos] Ela também morreu pela Alemanbat NSDAP Distrito Hamburgo 1 Riimer, plchefe de distrito! Por se tratar de um texto fragmentado e lacunar, como € a estrutura do diario, cresce, contudo, sua importiincia como docu- mento do escritor/diplomata que vivenciou um perfodo marcado por grandes conflitos internacionais. A pritica do arquivista se ‘manifesta no contato real com a cultura europeia, ameacada pela barbaric da guerra e da distoredo dos principios de cidadania e liberdade. © avango tecnol6gico resultante da modernizagio se desviava para o aprimoramento dos instrumentos bélicos, para a exclusio étnica e para 0 exterminio das cidades. Como reagitia 0 Guimaraes Rosa poliglota, recém-chegado ao continente para cumprir missio diplomatica, com os originais de Sagarana na ‘mala e ainda interessado em aprimorar seu espitito cosmopolita? Como conciliar os alarmes de bomba, as noticias transmitidas pelo rédio sobre ataques aéreos e mortes, com 0 trabalho no Consulado, com a reviso dos contos, com a curiosidade do escritor por tudo que se referia 4 lingua e & cultura alema, e por extensdo, 4 europeia? 48 © pacto de Rosa com a linguagem se pontua nesse intervalo, nna pausa entre textos e vivencias construfdas em contraponto, em que 0 diplomata divide com o escritor a missio de desconfiar do apelo da racionalidade moderna, contaminada pela destruigao e rina dos valores. Silenciar este texto e censurar 0 didlogo futuro com 05 leitores concede ao Didrio de guerra o destino de textos, relegados ao esquecimento e convertidos em falsa mitologia. (Artigo publicado na Revista Alea ~ Estudos Neolatinos, ¥-10, p. 121-129, 2008.) NOTAS ' HAY, A literatura dos escritores. Questdes de critica genética, p. 17. 2 Jacques Derrida, em entrevista concedida em 1995 sobre o tema do arquivo, jd estava sensivel 3 mudanga de suporte dos manuseritos: “Ainda no século 19, hhavia escrtores que recopiavam os manuscrtos para vendé-los. Agora, pode-se imaginar que por razdes de autoridade, de legtimidade, os escrtores vio mult plicar os rascunhos nos disquctes para confi-los as insttuigbes de legitimagio, porque ter seu "trogo” no IMEC valoriza algagny; hd cada vez mais pessoas que Tem vontade de depositar seu trabalho, E see aceito no IMEC, & como j ser pu- blicado na Gallimard. Entao, permanecem luas cerrveis,¢ lutas que acontecem também no interior da universidade, (Tradugio da autora) DERRIDA. Archive et brouillon, Table conde du 17 juin 1995, p. 207-208. A bibliogeafia sobre este tema évasta. Tomo a liberdade de citar alguns ttulos de ‘minha predilegio. Entre os autores escolhidos, esto: a) para a critica biogrfica Nathalie Heinich, Etre éervain, Création et idenités ¢ La gloire de Van Gogh, Essais de Panthropologie de Vadmiration; Michel Schneider, Mortes imagindriasy ‘e Marilyn, dtinas sessbes, Roland Barthes, Roland Barthes por Roland Barthes; Georges Perce, Penserilasser; Les choses; e Espéces d'espaces; Mavia Helena Werneek, O homent encadernado, Machado de Assis na escrita das biografias. b) para a ertica textual © genética: Encida Maria de Souza e Wander Melo Miranda (Org). Arquivos terdrios; Michel Contat e Daniel Ferrer, Pourquoi la critique genctique?, Almuth Grésillon, Elementos de evtica genética; Louis Hay, A literatura dos escrtores. Questoes de eritica genética. + Ch. artigo de minha autoria, “Notas sobre a critica hiogeafiea”, p. 105-113. © CE SOUZA. Pedro Nava ~o isco da meméria, p. 113. © PEREC. Pensenelasser, p. 22-23. (Tradugdo da. autora), » SANCHEZ. Coleccioniomo y literatura, p. 18. (Tradugio da autora) + BENJAMIN. Desempacotando minha biblioteca, p. 234 49 ee 7 Os originais foram transcritos, anotados e editados por Reinaldo Marques, Georg Ott € por mim, na condigao de pesquisadores do Acervo de Escritores ‘Mineiros do Centro de Estudos Literirios da UFMG. ™ GALVAO. Rapsodo do sertio: da lexicogenése & mitopoese, p. 148. ' Tratacse de recortes de anincios de jornal, em alemo, recortados e colados; as datas foram manuseritas nas margens. Tradugao de Georg Orte BIBLIOGRAFIA BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes, Sao Paulo: Editora Estagio Liberdade, 2003, BENJAMIN, Walter. Desempacotando minha biblioteca. In: BENJAMIN, ‘Walter. Rua de mao sénica. Sao Paulo: Brasiliense, 1987. p. 227-235, (Obras escolhidas 11). ‘CONTAT, Michel; FERRER, Daniel. Pourquoi la critique génétique? Paris: CNRS, 1998. DERRIDA, Jacques. Archive et brouillon. Table conde du 17 juin 1995. In: CONTAT, Michel ; FERRER, Daniel (Dir). Pourquoi la critique génétique? Méthodes, théories. Paris: CNRS Editions, 1998, p, 198-209. GALVAO, Walnice Nogucira, Rapsodo do sertio: da lexicogenése & mi- topoese. Cadernos de Literatura Brasileira. Guimaraes Rosa, Sao Paulo, Instituto Moreira Salles, 2006. GRESILLON, Almuth. Elementos de critica genética, Porto Alegre: Editora UUFRGS, 2008, HAY, Louis. A literatura dos escritores. Questdes de critica genética. Tra dugao de Cleonice Paes Barreto Mourdo. Belo Horizonte: Editora UEMG, 2007. HEINICH, Nathalie, La gloire de Van Gi admiration. Paris: Critique, 1991. igh. Essais de Panthropologie de HEINICH, Nathalie. Fére écrivain. Création et identité, Paris: Editions La Découverte, 2000. PEREC, Georges. Les choses. Paris: Editions Julliard, 1997. PEREG, Georges. Especes d’espaces. Paris: salle, 2000. PEREG, Georges. Penser/elassen Pars: Seuil, 2003, SANCHEZ, Yvette. Coleccionismo y literatura, Madrid: Ediciones Catedra, 1999, 50 SCHNEIDER, Michel. Mortes imagindrias. Sa0 Paulo: A Gitafa Editora, 2006. 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