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Dizem que os cães vêem coisas

Moreira Campos

Ela chegou diáfana, transparente, no vestido branco que lhe Uns óculos escuros sofisticados no sutiã mínimo:
descia até os pés calçados pelas ricas sandálias de pluma. - Por favor.
Ninguém lhe ouviu os passos. Sentou-se à beira da grande O garçom atendia, solicito, perdendo os olhos ávidos
piscina, cruzando as pernas longas. Chegou antiqüíssima, atual e nos seios mal contidos, oferecidos e inatingíveis.
eterna, com a sua cara de máscara. Moldada em gesso? Apenas - Obrigada.
uma presença, porque pousou como uma sombra. Mas por um O garçom mantinha a dignidade, ereto. A menina
fragmento de tempo, um quase nada, reinou entre todos um chegou e segurou a mãe pelo queixo:
silêncio largo, que se estendeu pelo vasto terreno murado da - Mãe-ê, quero uma coca-cola.
mansão ensombrada pelas árvores, dominou a enorme piscina e A mãe não lhe dava atenção em flerte com o recente
emudeceu as próprias crianças pajeadas pelas babás de aventais campeão de vôlei, uma estrutura de tórax (a mãe da menina
bordados, e vejam que as crianças são indóceis. contrariava-se apenas com o tufo de pêlos que ele tinha no peito,
Um presságio. quase imoral). A menina impacientava-se:
Fragmento de tempo apenas, porque o homem gordo, - Mãe-ê, uma coca-cola.
de ventre imenso, saltou dentro da piscina com o copo de uísque - Deixa de ser chata!
na mão. Espadanou água por todos os lados, a piscina O campeão levantou-se para apanhar o refrigerante.
transbordou. Muitos se molharam, outros saltaram da cadeira de Em roda mais distante conversavam os homens graves: a última
lona. medida do governo, a crise econômica.
- Bruto! – disse alguém íntimo, sem que ele se - O país vai à bancarrota.
aborrecesse, bêbado. - Vai o quê?
A onda de água despejou-se sobre Ela, que não se - A bancarrota.
moveu: era trespassável e transparente. Floco de névoa pronto a - Fazia tempo que eu não ouvia essa palavra.
esvoaçar. Permaneceu parada, a cara imóvel, nenhum ricto. - Mas vai.
Apenas parecia consultar no pulso um relógio invisível, para Aceitava-se a bancarrota sem muita convicção. Na
marcar o tempo. O homem de ventre enorme já estava à beira grande varanda, as senhoras grisalhas e indesnudáveis, pulseiras
da piscina, gotejante e trôpego, para uma nova dose de uísque, tilintantes na flacidez dos braços, discutiam os novos valores
os dedos graúdos catando no balde os cubos de gelo. Mulheres morais e comentavam o recente desquite.
seminuas, o cordão do biquíni, as nádegas reluzentes de sol e - A menina dela não tem um ano de casada.
gotas dágua. As rodas, as conversas, os garçons que circulavam, - É a segunda que se separa.
as bandejas de salgadinhos. - Como?
- A segunda. de cigarros vazia. Mas a moça que se aproximava parecia divisar
Aniversário da dona da mansão, que se acompanhava um corpo no fundo, preso à escada. Voltaram a afastar Lenita, o
ao violão com graça, aplaudida pelos que estavam em volta. O marido a envolveu nos braços possantes, talvez procurando
garçom (ou maitre, porque era solene) curvou-se ao seu ouvido. refúgio também. O campeão de vôlei atirou-se à piscina e veio à
Ela se livrou do violão, levantou-se e bateu palmas chamando tona sacudindo com a cabeça os cabelos longos: trazia sob o
todos para o almoço à americana, as mesas sob as árvores. Cada braço um corpo inerme, flácido, de apenas quatro anos e de
um apanhou o seu prato, formaram-se as filas, o homem gentil cabelos louros e gotejantes.
cedeu lugar a umas nádegas rijas, cortadas sempre pelo cordão O médico novo, de calção, tentou a respiração artificial,
do biquíni: e boca-a-boca (os lábios de Netinho estavam arroxeados), e
- Faz favor. levantou-se sem palavras e sem olhar para ninguém. Lenita
- Obrigada. soltou-se e agarrou-se ao filho:
Os cães de raça latiam e uivavam desesperadamente - Acorde, acorde! Pelo amor de Deus, acorde?
nos canis (e dizem que os cães vêem coisas). Foi preciso que o Conseguiram afastá-la mais de uma vez, quase
tratador viesse acalmá-los, embora eles rodassem sobre si desmaiou. A amiga limpava-lhe com os dedos a sobra de farofa
mesmos e rosnassem. A distância, a piscina quase olímpica, que se grudava ao seu rosto. Os cães de raça voltavam a a latir
agora deserta: toalhas esquecidas. O vidro de bronzeador, o desesperadamente, e dizem que os cães vêem coisas.
cinzeiro sobre a mesinha cheio de pontas de cigarro marcadas de Lenita ficou para sempre com a sensação do corpo
batom. inerte e mole entre os braços. Uma marca, uma presença, que
As filas. Alguém tangeu o gato que lutava com um procurava desfazer com as mãos. Cabelos louros e gotejantes. Às
pedaço de osso. Lenita fez o prato do marido, preparou também vezes, ela despertava na noite:
o seu. Mordia a fatia de peru com farofa, quando se lembrou do - Acorde, acorde!
filho: A presença também daquele instante de silencio que
- Cadê o Netinho? pesara sobre a piscina. Um pressentimento apenas?
Certa angústia na voz. Chamou o marido, gritou pela Precisamente o momento em que Ela chegara, transparente e
babá, que se distraía com as outras na varanda. Olhos invisível, e se a senhora à beira da piscina, cruzando as pernas
espantados e repentino silêncio talvez maior de qualquer outro. longas, antiqüíssima, atual e eterna.
Refeições suspensas, uma senhora mantinha no ar o garfo cheio.
Tentavam segurar Lenita. oEla se desvencilhava: _____
- Cadê o Netinho? Cadê? Fonte: CAMPOS, José Maria Moreira. Dizem que os cães vêem
As águas da grande piscina eram tranqüilas, apenas coisas. Fortaleza: Edições UFC, 1987.
levemente franjadas pelo vento. Boiava sobre elas uma carteira

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