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A O LEITOR DE ORELHAS

Allison Duarte Barbosa

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Prólogo
Apoiei meus restos mortais no balcão e repousei no tédio. O boteco onde estou,
mais fiel ao juramento de Hipócrates do que os postos de saúde, tem seu velho portão rolante
recolhido qual cortina de um espetáculo interminável. De atração principal temos a rua esguia,
as casas comprimidas, as acrobacias das pernas sobre calçadas irregulares ora muito baixas ora
quase muros a saltar, e os passantes rasgando a nado a atmosfera viscosa do bairro. É setembro,
o mês mais seco do ano, mas não é preciso um pau d’água espancar esses asfaltos
superfaturados para que aflorem crateras e os bueiros regurgitem os dejetos das casas nas ruas.
Golpeado e adoecido por um telefonema imprevisto, remediava-me com goles de cerveja barata
e umedecia a areia da noite de sexta-feira que eu teria de comer sozinho.
Acima do portão rolante tem um letreiro desbotado com o nome do estabelecimento
que ninguém pronuncia; todos o chamam simplesmente de “Bar do Seu Benício” ou ainda, por
conta da dicção peculiar do dono, “O Gago”. Quatro da tarde Seu Benício arriba o ruidoso
portão com um só braço e deixa entrar a fauna e a flora que o forçavam telepaticamente.
Sequiosos senhores aguardavam na calçada; entram, sentam ao balcão, pedem cachaça e
recheiam o lugar de miasma, vapor advindo do chão e dos quatro ventos. Que vapor é esse? O
“demônio do lugar, fantasmas não apaziguados dos índios mortos que operam no fundo do
inconsciente do homem branco”, disse D. H. Lawrence dos peles vermelhas da América do
Norte, tão massacrados quanto os de Nuestra America. A peste branca e seus aldeamentos
chegaram aqui no século XVII, apoderaram-se das lagoas,“águas onde bebem as Maracanãs”,
e fizeram delas o berçário dos bairros envilecidos que deram Maracanaú. Aqui como na “Terra
da Liberdade”, o sangue dos nativos clama por vingança e seus fantasmas exalando da terra
empesteiam o ar, e o perigo desses miasmas inflarem pulmões de quem tem poros abertos
demais é iminente. A vontade é de levantar para ir tomar ar fresco lá fora, nas mesas, mas estou
esgotado.
Nem sempre Seu Benício dispunha as mesas na calçada e na beiçada do asfalto. “O-
o-obedeço à ma-maré”, dizia sem esclarecer se era a maré dos humores do bairro ou dos dele,
fluxos em disputa: quem era rio, quem era mar. “Seu Benício, não vai pôr as mesas não?” O
velho resmungava franzindo os olhos empapuçados, “Não que a ma-maré não tá boa”. Os pelos
alourados dos braços gordos e os bigodes ruivos como antenas de formigas conectadas às
nervuras da noite nascente. Não é saudável duvidar das premonições de um dono de bar cujas
intuições, embiradas nas tramoias do clima e da sina, o ungem profeta da chuva dos bêbados.
Um carro bamboleou, riscou a rabeta na calçada e arrastou o bêbado que insistiu em instalar a
mesa ao luar. Correm para socorrê-lo. Não foi nada, afasta, afasta! O estatelado arregala os
olhos e pede mais um cigarro. Chamam a ambulância. Uma hora e meia depois o queixo
costurado volta do Hospital Municipal, sorte que não estava superlotado, e senta-se ao balcão
dessa vez. Eu estava lá e presenciei tudo.
No regresso das fábricas do Distrito Industrial, os peões suarentos ancoram no Bar
antes de escoarem ao Lar. Com suas motocicletas compradas a mil prestações, driblam o
coágulo que se forma entre Fortaleza e Maracanaú por volta das seis da noite. Os que vêm de
ônibus chegam depois das oito com a inevitável a saudade do trem que, sucateado e barulhento,
tinha hora de sair e de chegar. Indústria, comércio, serviços, pintores de paredes, pedreiros,
artesãos e malabaristas de rua, auxiliares de produção das fábricas têxtil, das fábricas de biscoito
e das fábricas de veneno, todos se irmanam no Bar do Seu Benício. Todos silenciam, pedem

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música, praguejam, gargalham e sacam dos bolsos aventuras eróticas ou retóricas recentes.
Alguns, por teima ou vaidade excessiva, se aventuram a adulterar a receita já bem consolidada;
dar só um pulinho em casa, forrar a pança, tomar banho e perfumar-se, etiqueta indispensável.
Puxar papo com aquela morena suado, amarrotado e com as mãos engraxadas é que não dá. Ó,
amigos, o romântico sempre há de se estrepar! – mais ainda se lhe falta dinheiro! Ao passar em
casa, esbarram nas reclamações da esposa e na balbúrdia dos filhos, e ganham mais travo na
língua, gota que faltava para transbordar a fadiga e engatilhar a reação em cadeia que pode
culminar no arriar prematuro das cortinas. Sentença aplicada com pesar, mas “Du-du-dura lex
se-se-sed l-l-lex!”, Latim que Seu Benício aprendera quando coroinha em Mulungu. As mãos
justas desciam o portão rolante e puniam os arranca-rabos que tinham muito de Teologia cristã;
brincadeira de Desconta Lá; inocente que paga pelo criminoso, cordeiro golpeado pela
delinquência dos lobos, no caso o patrão, a esposa e os filhos. “O justo vai pagar pelo pecador,
Seu Benício?”. Na fúria a gagueira sumia: “Todos pagam, todos aprendem!”. Irmãos, ungir a
cabeça com álcool antes de chegar ao lar, e assim azeitar suas engrenagens, não parece ser a
regra de ouro do cotidiano?… Noite abafada. Uns dez anos atrás Maracanaú tinha um clima
ameno quase serrano. Ergueram prédios, estiraram asfaltos, derrubaram matagais, construíram
hotéis e condomínios de luxo, acrescentaram fábricas ao complexo industrial e urbanizaram
miseravelmente a maior cidade-dormitório do Ceará, colossal favela de abrigar peões de
fábrica. Assim fizeram as noites mais calorentas do que calorosas.
“Não poderei ir ao encontro, fica pra outra vez, desculpe, imprevisto…” Desliguei
resignado, fazer o quê. Ora, beijar bocas de garrafas! A lua inchava condoída, o coração uivava.
A areia dessa noite de sexta-feira, cuscuz que eu comeria sozinho mas não a seco. Apoiei no
verniz da madeira a aspereza dos cotovelos, a garra num copo de cerveja. Ah, eu tinha até
aromado a casa com incenso e vinho, lavado o banheiro decentemente! Restava fingir-me de
morto e ter as omoplatas massageadas com força por Nélson Gonçalves, mascar o ópio das
feridas quando lambê-las se torna a última delícia, compilar a efervescência em torno da sinuca
ao lado… Mas, beneplácito da sina, até mesmo essa contemplação quase mística que
acolchoava o tédio me foi tirada...
A seriedade dos jogadores com seus tacos amolados, o mapa invisível das
probabilidades, o praguejar dos erros e as exultações dos acertos, se dissolveram de chofre: uma
cascata de gente sobreveio pela calçada arrebatando as mesas como se um caminhão carregado
tivesse esbarrado num poste adiante. Gritaria e algazarra. Somente o gato – ignoro seu nome,
mas tinha uma cara achatada de coruja – não eriçou o cochilo no balcão junto ao meu cotovelo
esquerdo; verdadeiro monumento a Bastet. Seu Benício dosava a cachaça do bêbado a minha
direita de cara fixa no teto forrado de PVC onde uma réplica da criação do homem de
Michelangelo figurava num adesivo elíptico. Espécie de anjo amalgamado ao seu principado é
o dono de bar! Seus sentidos se atiçaram, chispou lá para fora no rabo do cometa do
pressentimento... Despido de dotes e de coragem, aprendendo do gato-coruja estátua de Bastet
e do Nélson, conservei minha preciosa conquista da imobilidade.
Grito medonho da moléstia! Que me fisgou e me vi socado entre ombros inquietos,
puxado pelo cabo do arpão. Vi, deuses, eu vi! Ao centro do mortífero presépio, a fonte que
borbulhava o horrendo grito: uma Pietá máscula de mandíbula escancarada com a abóbada
celeste por concha acústica. Gigante que no lugar do rosto tinha um cancro úmido ramificado
de cipós arroxeados sobre o pescoço. A hemorragia de urros esguichava da goela escangalhada

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do gigante que chacoalhava o frangalho em seus braços apertando-o contra o peito, beijando-o
sofregamente na cabeça amarelecida onde um olho d’água chorava sangue por entre os dedos
que teimava em estancá-lo. No asfalto e nas roupas, o borro vermelho inchava com os ombros
a me comprimir. Tudo um balaço no cérebro!
De visão periférica eu conhecia as personagens. Sentavam nus e banais naquela
mesa acolá. Como quem sabe de deuses sem tê-los visto eu conhecia. Resplandeciam agora e
me cegavam banhados de sangue, vestidos de figurino trágico. Sou uma testemunha e não um
escritor; um raio me abriu a cabeça enquanto eu tentava me livrar dela. Talvez eu seja o único
do bairro ocioso o suficiente para se ocupar dessa tragédia suburbana. Mas foi como se a voz
do sangue, desde o princípio, cobiçosa de se fazer verbo, tivesse me elegido para manjedoura.
Eu tinha as virtudes necessárias, ócio e tédio de sobra. Não é nas cabeças ocas que o demônio
instala sua fábrica? Mas olhem bem, engana-se quem acha que a fábrica do demônio produz ex
nihilo como Deus cria batatas. Engana-se e não discerne bem os espíritos nem os provérbios.
Depois de instalada a fábrica no vazio do cérebro, tome chicote nos lombos! Tome peia nas
costas encurvadas sobre a escrivaninha! Tome chicote e tome ferroada! Inspiração? Inspiração
é coisa do departamento lá de cima! E estamos é no subúrbio, na periferia, no submundo, na
cozinha, entre as caldeiras e as máquinas das fábricas. Montado o maquinário do diabo, falta
ainda a matéria-prima, a mão-de-obra, a extração de mais-valia, a gentalha se fazendo em mil,
febril, fabril. Os demônios exigem resultados, resultados! Mixagem de escravo e proletário,
sina do trabalhador latino-americano, o “inspirado” sacrifica os músculos que a alma além de
inútil é interesse do departamento lá de cima. E tome chicote! Resultado, resultados!
Aquela sexta-feira me condenou a comer do suor do rosto, constrangeu-me a
desenlear os embrulhos das circunstâncias, a coletar e suturar fragmentos, rechear vazios com
hipóteses, parir métodos, apagar, reescrever, encontrar o ritmo, apagar, reescrever, pegar e
soltar, pagar e saltar, cortar, delirar com um estilo e usar do estilete. Chicote de questões
molestava: como se chegou a isso? O que se passou? Como se erigiu tal desgraça?… O sangue
fresco no asfalto inseminava o bairro com perguntas. Nos bares e quiosques do Calçadão, nas
fofocas da vizinhança sentada nas calçadas das redondezas, nas pregações das igrejas
pentecostais em cada esquina, esse era o libreto. Mas a chuva e o Sol rápido lavaram o asfalto.
Restei eu a arder sob as questões: como se chegou a isso? O que se passou?… O arpão, o
destino, a voz do sangue atazanando. Dou a César: só aplaquei o incêndio com a não pequena
ajuda de meu amigo.
Certo dia de ressaca despertei com batidas à porta.
— Bom tarde, tome aqui.
— Hum. O que é?
— Uma caixa de papelão abarrotada de folhas, cadernetas velhas, desenhos,
diagramas e outras doidices. Não vê?
— Hum. Sim, e este cubículo aqui já está um lixão. Não vê?
— São as notas de Anselmo.
Alforria do ventre! Rolei sobre os papéis apagando o incêndio na carne, felizardo.
Os encostos que me agoniavam também perturbavam meu amigo salvador, que me via
industrioso a inquirir pistas e parir esboços pelejando por transmutar essa tragédia de periferia
em empreendimento literário, um que concedesse dignidade ao nosso território; “falta do que
fazer ou frivião no fundo”, segundo Romeu. E por onde começar se fui arrastado por um jorro

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cuja origem se perdia da vista? Começar pelo fim é um privilégio, um privilégio trabalhoso.
Romeu, deus ex machina encarnado, costurou sua mão à minha nesse parto, e conseguiu, não
se sabe como – buraco de informações indispensável –, o Baú que entesourava as respostas.
O Baú, Arca da Aliança, guardava duas entidades preciosas que os olhos nus e
ofuscados pelo sangue ignoravam: 1. Maria. 2. Uma estranha faculdade de ler orelhas. A
alegria de encontrá-las não durou pouco, mas amancebou-se com a agonia em união estável.
Anos entre a preguiça e o chicote, entre os afazeres do ganha-pão e os do circo, auscultando as
vísceras do Baú batendo a cabeça e suturando fendas para fazer delas um retrato coeso que,
embora artificioso, aplacasse o incêndio das questões. O resultado final não chega a conferir
dignidade ao nosso território, motivo ufanista de iniciante. Longe disso, o leitor tem em mãos
mais uma mercadoria produzida no complexo industrial de Maracanaú. Mais um enlatado da
oficina de Satanás prontinho para o consumo.

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Pendurado
“Hamlet: [...] Sim, das páginas de minha memória
Apagarei todos os registros tolos e triviais,
Todos os provérbios livrescos, todas as ideias e impressões passadas
Que a juventude e as experiências ali gravaram.
Apenas o teu mandamento ficará gravado, sozinho,
Nas páginas do livro de meu cérebro,
Sem se imiscuir com assuntos vis”.
Shakespeare.

O crepúsculo desponta no quintal e as galinhas sobem nos poleiros do galinheiro,


entortam seus pescoços e selam os bicos com uma das asas. Por detrás da parede, a ausência
dos alto-falantes, dos bumbos, dos taróis e das marchas tornava-se suculenta. Vai com Deus,
Sete de Setembro, diabos te carreguem! Antecipando os bicos das galinhas, as venezianas da
janela fechada empurravam para o lado fora a barulheira do desfile, que jeitosamente se
infiltrava pelas frestas e em tortura chinesa gotejava sobre a cama. As venezianas de madeira
finalmente repousam, alaranjadas, vazando apenas a polpa turva de jerimum aceso do horizonte.
Sobre a cama, com duas moedas enferrujadas nos olhos, o rosto em tabula rasa,
Anselmo é um espantalho na horizontal. Nem tanto, tem sulcos, traços e pelos em seu rosto.
Pelos? Sim, embora há alguns anos o depile com cera por “não suportar mais as ervas daninhas”,
essas “antenas de insetos”, “pulgas e carrapatos que brotavam dos poros”. Na cozinha, com
açúcar, suco de limão e o ponto certo; e no banheiro empastar a cara com uma escova de dente
velha, depois aplicar celofane para churrasco e arrancar o asco junto com as raízes dos pelos
diante do espelho. A primeira vez doeu, mas o resultado foi tão alegre que repetiu tudo no mês
seguinte.
— Por mais de vinte anos faço a barba todos os dias e nunca uma ideia de bicha
como essa me ocorreu!
Esse é o pai, Antão, um subtenente do Exército que comungava com o filho o fastio
pelas comemorações do Dia da Independência, embora fosse o militar mais fervoroso de sua
unidade. Ignorem-no por ora, não é difícil já que dor e escárnio não se comparam à sensação
horrenda de insetos nascendo dos poros da cara. Os sulcos e traços em seu rosto seriam deslizes
de um barbeador enferrujado? Depois de tanto tempo depilando a cara com cera, não suportando
mais, foi se barbear. A mão destreinada resgatou o barbeador de um copo com escovas de dente
velhas no armário do banheiro, passou as lâminas enferrujadas na cara, e os fios de sangue
deslizaram pelo pescoço. Essa cena sou eu imaginando por não enxergar direito. De fato tem
um banheiro no quarto, e tem um barbeador com dentes marrons recheados com grama de axilas
e púbis no copo dentro do armário acima da pia do banheiro. O resto sou eu imaginando por
não enxergar direito. E se não tivesse o banheiro no quarto? E se, quando a vida começou a
melhorar, o pai e a tia com seus salários, não o tivessem construído? A necessidade o obrigaria
a abrir a porta do quarto, atravessar a sala entre o sofá e a televisão, encarar alguma possível
visita – que perigo! – para ir ao banheiro. Pularia a janela e mijaria no quintal.
Quando a família se mudou para o Conjunto Habitacional Carlos Jereissati,
décadas atrás, a casa torneada por cercas de varas entrançadas tinha três compartimentos
estreitos, conforme o padrão da Companhia de Habitação do Ceará. Teto e paredes o suficiente

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para proteger do sol e da chuva; uma pele de cimento curta para conter o gás das fábricas do
Distrito Industrial, alma das máquinas, a inconsciente gentalha produtora de mercadorias que o
salário não pode comprar. Com os primeiros salários da Tia e de Antão a casa foi pouco a pouco
desdobrada para cima e para os lados. A cerca de varas entrançadas foi substituída por um muro
com portão de alumínio. Ficou mais curto o quintal, lugar de canteiros, galinheiro e chiqueiro,
tabas de vegetais e de animais, réplica do que tinha na casa anterior, obra de tempos imemoriais.
Ainda bem que fizeram esse banheiro!
Os fiapos concentrados na ponta do queixo era uma rarefação de pelos talvez
herança indígena. E o couro simiesco da cintura ao tornozelo, e as pernas volumosas em
desproporção com o tronco fino, seria herança genética de sátiros? A cara descorada de vampiro,
um mês sem ver o sol! Ele que, ao acordar, abria a janela com as pálpebras, apoiava-se no
parapeito, de olhos fechados, cabeça erguida, e maquiava a cara com a luz, e mamava no sol:
desjejum mais urgente do que café, sua oração matinal. Depois, girava a cabeça para a esquerda
onde ficava o galinheiro junto à parede, o alambrado e o sistema de poleiros.
Cai bem nele dito de Lutero, “se eu deixar de empregar duas horas em oração todas
as manhãs, o diabo terá vitória o dia inteiro”. O diabo, velha serpente, tem deitado com Anselmo
e se enroscado na cama nas últimas semanas. Nesta noite ele será pisoteado, mas enquanto a
hora não chega, leio o corpo estirado, sua palidez de folha em branco e as marcas em seu rosto
– donde vieram? Sim, do bolor resultado da displicência com a devoção matinal, do não abrir
a janela para contemplar o sol, dentre outras coisas.
As persianas se apagam, o sol se põe e o visgo da noite ocupa o quarto. Todavia,
enxergo mais nitidamente o corpo estirado, privilégio de quem funde o olhar ao olhado. Até
então eu tinha por mortos, moedas enferrujadas, esses olhos vítreos. Cegueira minha, estão é
fixos numa teia de aranha no vértice esquerdo do teto!
Ninguém mais bate nessa porta? Todos os dias, àquela hora, a Tia e a Avó traziam
na bandeja uma caneca de chá, frutas e uma tigela de sopa de chuchu, cenoura, alho, cheiro-
verde, ovos e pitadas de orégano que o fazia gemer ao levar a primeira colherada à boca.
Recostavam as orelhas no rude madeiro da porta, e choramingavam.
— Menino, vai esfriar!
O espantalho crucificado sussurrava, deixassem a bandeja no chão e evaporassem
dali ou não abriria a porta. Onde estavam agora? Ah, sim, missa das seis. Rezavam por ele?
Onde estavam agora? Dura-máter e Pia-máter, virgens loucas da parábola do Cristo fadigadas
de musicar soluços num tambor de porta fechada. Bem-feito!
— Menino, vai esfriar!
Faz tempo que não sente fome, mas ah se viessem as batidas na porta! Se não o
levantassem da cama, serviriam ao menos de cócegas nos ouvidos órfãos dos cacarejos!
Na ausência das duas mulheres, Aracnoide o socorre do vértice esquerdo do teto.
Em sua fragilidade e espírito de finura, a teia de aranha envolve o cérebro febril e refreia o
rigor mortis no corpo. E brilha suscitando delírios de metempsicose: ah uma conversão da carne
em complexo de fios, em figura geométrica atravessada pelo sol! As pupilas trepam nos fios da
teia e roçam neles feito uma vagina se esfregando em outra. Um toque estraga prazer interrompe
o coito; tacada forte nos globos oculares que os derrubou na caçapa aberta no telhado, como se
fossem bolas de sinuca. O ressoar de uma respiração funda esburaca o silêncio. O peito
esquálido infla e murcha.

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Quem diria, essas mãos mortas aí, elas mesmas, instalaram a telha de vidro no teto!
O telhado se vestia com o monótono forro de alvenaria em todos os cômodos da casa, menos
no quarto dos fundos de janela para o quintal. A pele vermelha feita de escamas de barro se
insinuava nua e bela. Quem diria, esse cadáver aí escutou o clamor do telhado, foi no depósito
e comprou a telha transparente e, sem escadas ainda mais, escalou pela janela e instalou-a no
teto! O telhado suplicava por essa circuncisão, aliança com o universo, desejando o sol e a lua
dentro do quarto quando a janela estivesse fechada como agora. Estrangulados pela inércia do
espantalho, os toques cessam.
Como contar a história de um corpo inerte? Lendo-o! Tarefa maçante feito um
velório? Paciência! Um desfecho esbagaçará a monotonia sepulcral, verão. Lázaro, vem para
fora! Verão. A ressurreição do morto gira a manivela da história. Paciência! Enquanto não dá a
hora e a história parece que não roda, escavo, decifro, dou-me à arqueologia, faço uma lente de
aumento dessa telha de vidro. Podem me enxergar essas pupilas eretas? Sem óculos, no escuro,
podem enxergar uma teia de aranha no teto? Nesta tarefa maçante, também teço uma teia de
prender olhos, grudentas invencionices.
Vai mais uma sexta-feira passando. Mais uma semana de acédia, sem labor, sem
fruto, sem talhar a monografia de conclusão de curso. Pecado! Vai mais uma sexta-feira, manada
marchando sobre a cama. Mais uma semana ruma ao matadouro das sextas-feiras passadas. Lá
morriam! Lá passavam as malditas sextas-feiras! Passavam como água de chuveiro e de
descarga! Têm razão alguns ecologistas, uma hora retorna a matéria danada e os esgotos
engolfam problemas ainda maiores. É mais eficaz o eterno retorno como modelo para o
saneamento, ao menos nesse caso uma ideia metafísica é bem-sucedida se aplicada à técnica.
Ciclo, regresso perpétuo, reciclagem dos fluxos. Não essa linha reta, progressiva, essa ordem
unida do tempo! Águas passadas não movem moinhos. Muito bem, por acaso somos moinhos?
Nada mais mentiroso do que um dia após o outro! A sexta-feira que passa é só a cauda do
Leviatã, quimera nascida da sopa das sextas-feiras passadas. Sopa, se estivesse com fome
desejaria a deliciosa sopa. Sim, alguns ambientalistas têm toda razão do mundo!
Como se a cavalgada dessa sexta-feira estourasse os olhos de Anselmo, uvas sob
cascos, restam-lhe na cara duas cavernas ocas ecoando, poros que sonham com a cera quente
despregando os pelos e o asco. Os pés coçam para se chegar à escrivaninha e às folhas brancas
na gaveta direita, o vazio na cadeira e as canetas o convocavam. Gavetas da esquerda,
sosseguem! Aí tem volumes de manuscritos, umas cem páginas de rascunhos sobre a Estética
Transcendental, e vários fichamentos de livros! Páginas para ordenar e ordenhar, revisar e
recortar. E já é setembro, estamos em cima da hora, o orientador exige algo pronto no fim do
mês. Águas passadas não movem moinhos… Estamos em cima da hora, apesar disso, são as
gavetas da direita que o convocam à escrivaninha. As folhas brancas em cima, os escritos
avulsos em baixo; páginas destinadas ao escrever solto dos deveres universitários rumo aos
horizontes incertos afrouxando a obediência. Espirrar, tossir, fazer sangria, desentupir os poros,
escrever… Estava maduro o salto à escrivaninha, pernada sobre o abismo, quando veio o toque.
Toque com toda carga erótica da palavra toque. Toque assédio e súplica das sextas-feiras
passadas provocando a contração das escamas da pele, que ricocheteiam o maldito toque. O
celular tremeu e gritou sobre o criado-mudo, ao lado dos óculos e do Kant. Maria. Maria, agora,
aparecida, demasiadamente aparecida. Toque cauda do Leviatã sacudindo.

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Atirou o braço sobre o criado-mudo, derrubou o livro e os óculos no chão.
Prolongou o gesto dilatando o movimento contido, ergueu o troco… Calma, a cabeça se
enevoou, distúrbio na circulação sanguínea, brusquidão no movimento. Calma. Deitou
novamente e respirou fundo. Respirou fundo com as escamas da pele estreitadas como uma
blindagem? Pôs graciosidade no movimento, devagar, devagar, apoiou o tronco nos cotovelos
dobrados feito hipotenusa. Erigiu a coluna deformando a geometria. Ofegava. Desdobrou a reta
do braço ardido, ia sacudi-lo como um chicote quando esbarrou na escritura na parede. O toque
silenciou.
Invadiram seu quarto semanas atrás. Não passava a chave na porta ao sair, não
havia necessidade. Só trancava o quarto se estivesse dentro dele, só por garantia. A Avó e a Tia
o tinham por templo inviolável. O invasor que violou a porta e estuprou a escrivaninha não
morava ali. Profanou as gavetas e arrancou delas o estojo de giz de cera e com o vermelho mais
intenso rabiscou essa obra de arte aí na parede. Um mene mene tequel parsin escrito por um
deus infantil que mal dominava a mão. O colega do Colégio Militar contou do pai, sargento de
intendência recém-transferido para o Mato Grosso do Sul, cercava-o de livros e lhe negava
brinquedos. Mais uma mudança de cidade, não prejudicaria a educação do filho de quatro anos?
Vai ele custar tanto quanto o pai a aprender a ler? Quando o menino entendeu que de rabiscos
numa superfície nasce o próprio nome, escreveu de carvão em letras grandes no muro branco
de casa, na Vila Militar. O pai chegou do quartel e ele estava sorrindo na sala, aguardando a
recompensa. Três estalos nos lombos com o cinto retirado às pressas da calça, “uma para o Pai
outra para o Filho e outra para o Espírito Santo”, contava o colega às gargalhadas. Recordou a
história ao examinar a escritura na parede; foi revanche, castigo, concluiu às gargalhadas
também. Bar do Seu Benício, no meio da conversa, o celular tocou; Maria chorava. Arrancou-
se da mesa, pegou o ônibus e foi socorrê-la. Por que chorava? Dor de barriga e tristeza. Antão
esvaziou garrafas sozinho e levantou inspirado. Profanou a porta do templo e pintou um número
de telefone na parede do quarto do filho, que agora o obedece apertando nas teclas o bendito
número. O pai gaguejou do outro lado.
— Dez da noite… No Seu Benício…
A junta do ombro direito doeu quando Anselmo atirou o braço com toda a força
que dispunha. Um estilhaço do aparelho ricocheteou na parede e passou de raspão em sua testa.
Final. Esgotou-se nesse último esforço. Mas finalmente a ilha feita de quarto e quintal
desancorou. Anselmo abriu os braços entre os lençóis saboreando o fruto do penoso trabalho
de sua alma. Sua embarcação nagava livre agora. Deveria ter feito isso antes. Estava a salvo
daquelas súplicas…
O alívio pós-vômito não veio. Respirou fundo tateando no esófago um corpo
estranho, algo entalado na garganta, uma irritação nas mucosas, uma tosse, um espirro for fazer.
Restava algo a fazer, uma sangria, um escarro, a barba, ser uma figura geométrica mais pura.
Ah, Maria, tuas nuvens se dissiparam e o ouro fulminante de tua nudez feriu Anselmo de morte,
o deixou aos bagaços, restolho seco, madeira podre infestada de cupins. O fragmento do
aparelho derrapou no suor da testa e caiu no chão, ou penetrou fundo na cabeça, pois os gritos
do inferno, das sextas-feiras passadas, os rugidos do Leviatã, as súplicas de Maria, os toques
do celular estilhaçado, ainda se faziam ouvir no quarto e na cabeça. Anselmo respirava fundo,
inchando e esvaziando a barriga vazia.

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O Louco

A questão antiga assedia; a onipresença, a onisciência e a onipotência do


confinamento. Como escapar? O combate para sair dele não é apenas disputa pelos melhores
lugares ou para melhorar suas regras? O cérebro se asfixia nas malhas dessa questão...
Não, o confinamento tem de ter um núcleo e um contorno. No limite, a fronteira do
confinamento é a caixa craniana! Sim, a carapaça protetora do cérebro serve de modelo às
demais, que em nome da segurança, da saúde, da educação, da boa moral, do bem-estar, se
tornam aceitáveis. Os próprios encarcerados combatem para conservar e reparar suas paredes.
Furemos o crânio e esse edifício de mil camadas ruirá! Façamos uma trepanação como alguns
povos antigos, e receberemos uma lufada de vento! Nossos olhos só se tornam míopes por conta
dos horizontes murados, os nervos e os músculos se atrofiam pelo efeito das paredes.
Mas buracos são perigosos. No fundo são eles que nos aprisionam. Janelas e portas,
mais do que paredes, são coração do confinamento! O que encarcera a mente não é a redoma
óssea e maciça que envolve o cérebro, mas os olhos, os ouvidos, a boca e as narinas; cavidades
carcereiras que garantem o abre-e-fecha e o entra-e-sai, a respiração, a nutrição e a excreção.
Diamantes são lacrados em cofres maciços, animais domésticos que comem, cagam e respiram,
como nós, só os buracos confinam! A parede é o fundo dos buracos, o suporte das cavidades.
Os muros são ligações de furos arranjados numa determinada lógica. Animais domésticos
morrem entre paredes sem buracos, e o confinamento, pelo contrário, quer fazer sobreviver,
preservar, cultivar, manter sob rédeas calculadas o crescimento, a reprodução, os movimentos,
a visão Paredes têm ouvidos, diz a Avó. Digo mais, os buracos são cu, boca, narizes e ouvidos
das paredes, policiando quem entra e quem sai como funções vitais. Os buracos nas paredes são
pupilas de raio variável controlando as entradas de luz. Os buracos nas paredes são cu
controlando a saída de substâncias. O crânio e as camadas que o encapam qual casca de cebola
possuem janelas da alma que regulam as entradas e as saídas, burocracias de aeroporto,
alfândegas. As portas da graça se fecham junto com os ossos parietais, como reabrir a moleira?
O médium e o xamã são senhores de suas entradas e saídas, e podem se abrir aos espíritos que
o crânio tranca do lado de fora como as crianças...
Como respirar no vácuo? Animais domésticos são molúsculos carentes de conchas,
como viver fora das conchas? “Renunciar-se a si mesmo”? Até que ponto, nós, descendência
de índios e negros, não tivemos nossas conchas destruídas e fomos condenados a ser lesmas
rastejantes, a viver à flor da pele? Que conchas abrigam nosso cérebro com suas curvas
reguladoras da entrada de luz?…
Deixo de lado esses delírios febris e me atenho às marcas de agulhas abaixo dos
bíceps, vestígios do internamento no Hospital Menino Deus, aos doze anos. Seis meses no leito
por conta de um hematoma subdural, acúmulo de sangue entre as meninges – quanta revolta
nesse sangue! – enfermidade que veio com as explosões hormonais da puberdade. O resultado
foi um branqueamento dos anos anteriores ao surto de dores de cabeça, amnésia que a Tia e a
Avó trataram de engastar na Divina Providência, obcecada em orquestrar as miudezas dos
mortais, segundo elas.
Paquiderme adormecido na estante era a Bíblia aberta no Salmo 91 para que anos o
lessem e fossem bons, eis a suma teológica das duas mulheres, o que restava de catolicismo,
até a “ressurreição” do menino. Milagre que dividiu as águas e fez aflorar os tais “olhos da fé”,

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binóculos de ver o invisível. Amnésia? Não, uma benção! Perda de memória? Não, ganho,
dádiva! No Céu as memórias ruins serão apagadas, ou o inferno se reduplicará. Ninguém pode
ver Deus e viver, diz o dogma, mas uma versão apócrifa mais honesta diz: ninguém pode ver
Deus e manter o olho vivo. Os olhos da fé tendem a encaixar as miudezas numa grade que lhes
garante sentido, como telhas na armação de caibros e ripas. O diabo é quem mora nas miudezas!
Quem além de Anselmo fica horas a contemplar as telhas, fascinado com a potência dos blocos
anônimos capazes de compor e decompor peles aeradas, sem perderem a forma? Quando a
morte respirou no cangote do menino, as duas mulheres correram para a missa. Os dedos
trôpegos nos rosários gemiam o evangelho lido ontem: “Essa doença não veio para a morte!”.
E Deus, como sempre, concedeu mais do que o pedido, para o bem ou para o mal. Pois
incensado com miasmas de hospital, o filho de direito se fez filho de fato…
Eu deveria ter começado ordeiramente, moralmente, do começo: o nascimento de
Anselmo seguido da morte da mãe no parto, seguida pela reação de Antão, seguida pela infância
sob os carinhos da Avó, da Tia e da ausência do pai, seguida pela adolescência marcada de
doença, por aí vai. A narração vai parecer pobre de talento e de rigor, o que não nego. Mas pobre
mesmo, consinta o leitor, foi a reação de Antão à morte da amada; incolor, mecânica, quase
morta. Que reação? O esquecimento. Ponto final. Ou melhor, vírgula: o esquecimento da
desgraça e com a desgraça a criança. Um franzir de sobrolhos e um trincado de mandíbula.
Nada mais. O médico não insistiu mais de duas vezes para que Antão fosse ao berçário, o caso
era delicado e insistências apenas fortalecem a negativa. É preciso esperar o açúcar dissolver, e
quando a dor esfria a afeição reaquece, disse às duas mulheres o médico que trabalha com
generalidades e ignora a existência de carne e osso de gente como Antão. Anos se passaram e o
pai continuou a desviar os olhos do filho. A família em nome da qual se enfiara na vida militar,
ganha-pão, desmoronou em instantes. Culpava o bebê pela tragédia? Era mais simples. A
paisagem idealizada, balão de vidro flutuante, espatifou no chão. Antão colheu os cacos, pôs
tudo num saco e o lançou no mar do esquecimento. Restava o quê? Atolar-se, ir morar no
quartel! Chamam isso de “ser laranjeira”, desconheço a origem do dizer, mas Antão deitou
raízes profundas no quartel feito uma árvore. Só uma vez por mês vinha ver a mãe, deixava
uma soma de dinheiro e ouvia os rogos da irmã gêmea andando pela sala embalando o miúdo
sol nos braços: “Venha aqui e dê uma olhada, é a cara da mãe! Venha e segure ele um
pouquinho!”. Antão arrancava-se dali como um vegetal sombrio hipersensível ao sol que tivesse
pernas.
Eu deveria ter começado ordeiramente, mas neste instante apalpo hieróglifos
escorregadios na pele de Anselmo. O tempo passou? O passado não passa; persiste menino a
desenhar no chão da carne feito bicho geográfico. No fundo da pele os fatos se fundem em
fodas perversas e procriam monstros. Tenho orgias de abelhas entre os dedos, embora o
semicadáver na cama seja de incolor, sem tanta história ou heroicas aventuras que marquem o
tempo, “biografia sem fatos” como disse Pessoa, incompatível com os versos de Schiller
entoados na Nona de Beethoven.
Alegremente, como seus sóis voem
Através do esplêndido espaço celeste
Se expressem, irmãos, em seus caminhos,
Alegremente como o herói diante da vitória.

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Sóis copernicanos! Segundo certa tradição cabalista, a Tora foi criada com fogo
negro e com fogo branco. O fogo negro fez as sedentárias letras no pergaminho que prometem
maldição a quem mexer nelas. O fogo branco fez a cabala, murmúrios que segredam de ouvido
em ouvido e se mudam para permanecer o mesmo. Tem fogo negro e fogo branco no corpo
estirado na cama. Ossos inertes e fluxos líquidos e elétricos. Leio com calma. O hematoma
subdural foi mesmo uma dádiva, não de Deus mas do Sangue! O Sangue que tateou contornos,
forçou a estreiteza dos limites e deu coices selvagens. Pedra dura e água mole tanto bate até que
explode! O Sangue que deu golpes mortais e escapuliu. Leio com calma para não me enfadar e
reputar por desenxabida a vida de Anselmo. Sujemos as mãos no sangue!
A consistência dos bíceps e ombros, assim como a musculatura das coxas e das
panturrilhas, as cicatrizes dos tumores, tudo vestígio das dentadas do Colégio Militar, onde
ficou envergado por anos pela dádiva de um pai terreno. O “maior dos presentes”, “a melhor
educação do país”.
A matrícula no Colégio Militar foi monumento à paternidade recém-nascida. Mal
Anselmo chegou do hospital, Antão se pôs a pintar as paredes da casa com essa ideia
deslumbrando as duas mulheres. Um eletroencefalograma falso apagaria os últimos meses, pois
exigiam do aluno perfeita saúde mental. Não delegou essa tarefa à irmã, embora ela fosse
enfermeira-chefe do Hospital Menino Deus, decerto com maior facilidade em manobras assim.
Travava com ela contendas fúteis, para ocupar a boca e preencher os espaços necessários entre
irmãos.
–--- Por que não internou o menino no Hospital Militar onde o tratamento seria mil
vezes melhor?
–--- Sou enfermeira-chefe do Menino Deus, impossível tratamento melhor!
A Avó, prumo de toda economia, bradava da cozinha:
–---- Chega, o menino está vivo! Vão procurar o que fazer!
Antão cobrou o favor de um colega, sargento do Hospital Militar, e conseguiu o
exame falseado. A Avó, alfaiate de mão cheia como eram as mulheres do seu tempo, faria os
ajustes no uniforme e costuraria as divisas nas mangas da camisa. A irmã se encarregaria do
material didático e do enxoval, e de eventuais emergências.
A casa pipocou em leprosário de alegrias como nos preparativos do Natal. Perfeita
divisão do trabalho, eficiência turbinada de euforia com a vantajosa ausência da melancolia dos
fins de ano. Que alvoroço! O empurravam de cá para lá, o mandavam experimentar essa e
aquela roupa, recheavam suas orelhas de recomendações, suspiros e exultações. “Um tição
tirado do fogo!”, um “sobrevivente!”, “ressuscitado dos mortos!”, sim, sim, tudo isso, mas
atribulava essa elefantíase de felicidade sem motivo! O que sabia sobre o tal do Colégio Militar?
Que febres se soubesses, Anselmo! Que febres! A mera justaposição das palavras “colégio
militar” já o empalava de intuições aflitas. Trancava a porta do quarto e mantinha-se escorado
na janela, com os sentidos ciscando o quintal, embotados para a tagarelice acerca do “colégio
militar” lá fora. O alambrado do galinheiro, vizinho à janela, dava a ver o engenhoso sistema
de poleiros. O chão coberto com uma camada de pó de madeira, e sobre ela uma mão de detritos
orgânicos saídos da cozinha, e de borra de café para neutralizar o odor de bosta. Periodicamente
esses lençóis eram misturadas e levados aos canteiros de couve, rabanete e tomate.
Do lado esquerdo, no vértice do muro do fundo, o chiqueiro dos porcos. O chão ali
é de lama para não contundir os pés do Joaquim e da Valentina. Daqui a uns anos, quando se

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levantar o templo do consumo, shopping center, no lugar das casas de taipas acolá, um vizinho
novo reclamará do chiqueiro, “como uma enfermeira pode criar porcos em casa? Não sabe que
isso faz mal a saúde? Cadê a vigilância sanitária!”. Foi-se o tempo dos bois, cavalos, cabras e
as galinhas andando pelas ruas como pedestres. O gado entrava pelos muros sem portão e
capinava o terreiro com os dentes. Se a cabra estivesse inchada, os meninos a ordenhavam e
bebiam o leite quente. “Mal a saúde? O veneno está no supermercado!”, a Tia replicará sem
perder a compostura. Com uma simpatia cortante, baterá na porta do vizinho com um pernil do
Joaquim pelado e cortado por ela mesma.
No quintal se armazenam as memórias da infância alegre e difícil. Tinham quinze
anos quando se mudaram para o bairro, depois do pai caminhoneiro se acidentar em serviço,
que comprara a casa meses antes de falecer. Um bom negócio, baratinha; pouca gente se
aventurava a morar no Conjunto Jerreissati naquela época. “Homem, pra que isso de mais uma
casa?” “Mulher, esta casa aqui não é nossa”. “Como não é nossa, se faz mais de dez anos que
aqui estamos?” “Foi negócio torto, papéis assinados sem ler, depois explico”... O velho passava
de mês fora. Depois de sua morte chegaram os homens do negócio torto...
Não foi fácil a mudança. Juntos, mãe e filhos se esforçaram por repetir o cosmo da
antiga casa.
Do outro lado da porta, a euforia repicava o tal Colégio Militar. É melhor se
debruçar à janela analisando a conversa infinita das galinhas. Atritar os nervos no palavreado
que batia à porta dava febre. Tranque a porta, esconda a febre, banhe o rosto de ironia, que lar
mesmo é da porta do quarto para trás, até onde a vista dá; o quarto é o rabo da casa prolongado
em quintal. Sua tribo dançava ali dentro! Tranque a porta, escore os cotovelos no beiço da janela
com os olhos vigilantes no quintal. As galinhas, as pedras, os porcos, os patos, os cães, irmãos
filiados aos sonhos da terra, protegidos pela porta trancada. A porta do quarto, proa da
embarcação, é um porto conclamando comércios agressivos e cruéis aprendizagens de cálculos
e preços. Do outro lado da porta, mercadores apressados transpiram usuras, exigem trocas,
pagamentos, compras, negociações, compromissos, pactos, diplomacia, amor. Amor com amor
se paga! Por detrás da parede, a jangada feita de quarto e quintal navegava quieta, sem abrir
mão da circulação, das refeições à mesa, de responder perguntas constantes, de dar e receber e
aperfeiçoar a arte das trocas.
O esfigmomanômetro e o gélido estetoscópio da Tia auscultavam-lhe o peito magro.
As febres apagavam os próprios rastros, mas quando flagradas, a Tia empurrava os antitérmicos
que o estômago regurgitava com a última refeição. Que as febres se escondam. Que o peito
magro se entregue ao cuidado da Tia e da Avó, supremo analgésico. O crucificarão? Sim, quem
na vida escapa da cruz? O crucificarão? Sim, mas sem tétano, borrifando amor e higiene.
Anestesiado pela cegueira da fé, Anselmo convencia-se de pessimismo; reclamava de barriga
cheia, afinal. O crucificarão? Sim, mas quem o empurrou à via crucies? Apesar da miopia, via
muito bem, Antão, dito pai. Fique ele lá do outro lado da porta!
No grande dia, defronte à fachada do prédio principal, na quadra de jogos,
eriçavam-se a banda, as tropas, as bandeiras e os alto-falantes. Cardumes de garotos
uniformizados com cabelos raspados se enfileiravam em destacamentos retangulares. Entre
eles, Anselmo encharca a camisa de suor frio. O Sol, como que fendido e arredio à harmonia
da banda e das colunas e linhas de corpos, irradiava luz e calor assimetricamente. Os sapatos
engraxados e as fivelas dos cintos reluziam na manhã úmida. O cinza metálico do céu se mescla

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ao chão da quadra. O quadrículo que separava Anselmo dos demais se encastelava em cela
abafada, apesar da frescura do dia.
Da plateia, os olhos da Tia e da Avó engrossavam os contornos de Anselmo
destacando-o do fundo indiferenciado. Mereciam aliviar-se na ilusão de mundo entrando nos
eixos. Sem os óculos para ficar bem na foto, não dava com o sorriso das duas mulheres, mas
sabia-os e sofria-os.
Os alto-falantes cospem o comando e do fundo indiferenciado vem surgindo a
silhueta da Avó e seu sorriso de borboleta. Vem com a boina vermelha nas mãos envolta em
perfume doce. Ficou bonita nesse blazer cinza combinando com a vida. Ela impõe as mãos
eufóricas sobre a cabeça do menino e a ajusta no cabelo raspado. Está consumado! Com essa
coroa de espinhos o uniforme está completo. Uma rasga-mortalha grasnou em silêncio, Espírito
de Deus o ungindo. A mão do ente querido enfia o cravo final, o golpe de misericórdia, mel do
ritual. Os cílios molhados da Tia pintam o final feliz, telegrafam que valeu a pena a travessia
do purgatório. A vida chega a cinza por conta das provações, mas esse fogo também ilumina o
caminho.
Se Anselmo se confessasse, escutariam? O que um garoto com saúde mental
abalada sabe da vida? O leitor não estranha tamanho drama aos doze anos e não o toma mais
por literário do que literal? Se Anselmo se confessasse, de sua ilha se esgoelando, do outro lado
da porta as mulheres esticariam o pescoço. O grito atravessaria o alambique do amor, as
sinuosas cartilagens das orelhas, e seria destilado. Orelhas, elas se ajustam como pupilas,
contraem-se diante da luz, suas espirais são o plissado de um cu regulando o que sai e o que
entra. Se Anselmo abrisse a porta afinal? A Tia e a Avó esquentariam a fornalha do seu inferno
sete vezes mais, acelerando as máquinas do cuidado, excesso de produção que só diminuiria o
valor de sua dor. Desde o início da via crucies sua capacidade de doer foi banalizada. Com
abraços e lábios molhados esses que o amam apagam a capacidade de doer, a única alma de que
dispomos, vela acesa sobre a qual emborcam uma panela. “Tenha calma, filho, é só uma fase
de adaptação”, diriam as mulheres consoladoras. Escaldado de lágrimas e marcado em brasa
por aquelas rugas felizes, divagava. “E se eu soltasse as pernas nesse desejo fluvial que corre
pela Av. Santos Dumont, dribla automóveis e desaparece da vista de todos?”…
Coisa mais doida, de repente a banda estourou em cortejo de palhaços! Sorriam,
saltavam e gargalhavam com seus bumbos, baquetas, pistons, taróis e clarinetes enxertados.
Ciborgues. Simbiontes dançarinos. O circo chegou trazendo as aberrações de além-mar! Os
pulmões se encheram de cócegas e os joelhos amoleceram com o riso entalado. Quando sua
cabeça soçobrou, o sargento acorreu quicando no chão com suas pernas entroncadas e seu
sistema multifuncional no pescoço que lhe dava uma visão em 360º.
— Aluno, se estiver passando mal saia de forma!
Anselmo respirou fundo e enrijeceu a postura. O punho esquerdo estrangulando o
pulso direito, posição de descansar. Acenou ao sargento um “Ok” com a cabeça. Não frustraria
as mulheres evadindo-se do desfile. Antes, posaria para as fotos. Não saltaria a mureta nem
correria pelo sedutor asfalto. Aguentaria firme, não seria para sempre. A fachada do prédio
principal o ameaçava como uma onda gigantesca e lenta. As linhas da parede, perfurada por mil
janelas, encurvavam-se sobre ele num tubo. Na beirada da fachada, no alto, estátuas de soldados
com uniformes e fuzis arcaicos o miravam. “Aluno, se estiver passando mal saia de forma”. A
cabeça soçobrava para se meter na vagina no ponto de fuga das linhas da parede. O sargento

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tinha razão, um mal-estar o constrangia a escorrer por aquele furo aonde as linhas do prédio
convergiam, toca do coelho. Mas do outro lado a bandeira verde-amarelo escalava o mastro,
hipnótica, ritmada pelo vento e pelo hino nacional. A corneta dispara o “apresentar arma”, os
bumbos ribombam, e finalmente disparam o “ordinário marche” e os destacamentos se
deslocam.

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Torre

Abarco o tempo, série de fatos encadeados por relações de causa e efeito. Sou o
narrador e tenho o olho de Deus. Bisbilhoto a sanguinária cena que irrompe no Bar do Seu
Benício. Espio a palidez nua de Maria e seu rosto ressumando sobre o peito de alguém. Dou
uma olhadela em Antão revirando os olhos e sedado na ala psiquiátrica do Hospital Militar.
Tateio o abismo que circunda este escrito, a escuridão espessa que o separa da vida, sempre
mais confusa e mais profunda. Nas alturas desse céu fico cego para os esboços que borbulham
no corpo estirado na cama. Assentado no trono de Deus, não vejo tremores de pele, os ossos
gesticulando dentro da carne, não ouço os murmúrios da vitalidade, não passo dedos nos suores.
Por isso desço as escadas e me enterro nas virilhas da matéria e nas dobras gordas do tempo.
Pouso no telhado do quarto de Anselmo, tomo a telha de vidro por lente de aumento, e me visto
com a passagem das horas em seu quarto. Observo tudo, misturando os olhos à pele. O caído
do céu mora nos detalhes. Vejo então a maturação do movimento e o erguer-se da cama. Em
poucas horas Anselmo porá os pés no chão, tomará banho, enfiará as pernas na calça jeans e os
braços numa blusa amarrotada retirada da gaveta. Ele arrastará os membros doloridos pelos três
quarteirões da Rua 12 até uma das mesas na calçada no Bar do Seu Benício, onde Antão o
aguarda. O cabelo crescido, a barba por fazer, os gestos extravagantes agoniarão o pai. Aguardo
e assisto à preparação dos gestos, amassar de um pão com massas de temporalidades diversas.
Nunca deu corda no despertador mecânico sobre o criado-mudo, redondo e
vermelho, olho gordo irritado. Presente de Antão que perdurava sem tempo, mudo, de ponteiros
imóveis porque sua sonoridade era perturbadora. Não precisava dela, despertava com o sol sem
sacrifício como um títere puxado pelos fios de luz. A Avó o aguardava na cozinha; café, pão e
ovo na mesa. O uniforme limpo e passado no cabide pendurado num armador da sala. Uma
última ilustrada nos sapatos com uma meia velha, e mais um polimento na fivela do cinto. Põe
a mochila nas costas e segue para a Estação.
Naqueles dias a manhã recém-nascida no Maracanaú tinha um hálito friorento. Era
mais suave o âmbar sobre as tinturas das casas, os afetos das cores das ruas eram diferentes.
Nos meses de chuva, janeiro e fevereiro, o calçamento brotava riachos estreitos correndo
adjacentes aos paralelepípedos, onde fervilhavam guppys, guarus, baratas d’água, sapos,
girinos... Os postes se enxameavam de tanajuras e os meninos as caçavam para comer-lhes a
bunda. Algumas vezes, regressando do Bar do Seu Benício no raiar do sol, reencontrou na rua
os afetos daquela paleta antiga, graças ao colírio do sono e da embriaguez. No horizonte, as
serras borradas cantavam polifonias verdejantes respingadas com o amarelo dos ipés.
Chega na Praça da Estação onde a umidade matinal se faz um fio condutor dos
odores das indústrias. Os ares açucarados da fábrica de biscoito entram pelos narizes. Melhor
do que nas bandas da Av. Parque Central empesteadas com o fedor das fábricas de veneno! É
uma vantagem de se morar em Maracanaú: gestos comuns como andar pelas ruas e se entregar
aos automatismos do sistema respiratório viram condições de possibilidade para penetrar na
realidade, e ser conduzido pelos fios lógica aos dramas de nosso continente, nossa
industrialização precária conjugada à urbanização miserável, nossa economia dependente. Por
efeito dos odores e das tosses das chaminés, hão de nascer gente-caranguejo, gente-calango,
gente-mandacarú, mutantes! Seria Anselmo um deles?

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Pega o trem das cinco e desce na Estação João Felipe. Caminha até a Praça dos
Leões e apanha o ônibus que o deixa em frente o Colégio Militar. O Barão de Ibiapaba, cuja
história lera numa das publicações militares amontoadas na biblioteca do Colégio Militar,
invade sua cabeça. No final do século XIX, o Barão doou ao governo toda essa área da Av.
Santos Dumont por onde segue o ônibus, do Colégio Imaculada Conceição à Praça da Bandeira.
Terreno consagrado à construção de um Asilo de Mendicidade, grande dejetório dos
desgraçados retirantes, filhos do latifúndio, escultores das axilas e das virilhas da cidade.
Sentado num banco de ônibus, Anselmo atravessa a membrana do sonho do Barão. O Asilo de
Mendicidade foi abortado e sobre suas carcaças ergueu-se o Colégio Militar. Vinha-lhe um
cálculo: até que ponto o Colégio Militar encarna o sonho do Barão? Anselmo se tinha como
mais um fio de cabelo daquela quimera formada pela gentalha miserável, imunda e pulante nas
ruas, perigosa, respirando a vitalidade possante do mandacaru e do caranguejo, a qual a piedade
moderna do Barão tanto temia.

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A Força

“Kant nunca me convenceu de que estávamos definitivamente limitados; enquanto ele


afirmava isso, um tal Jean-Paul (Richter, não se confunda) e um tal Novalis já
dançavam num ritmo que o pedantismo não me impedirá de chamar de cósmico […].
Negar a suposta unidade e finitude dos fatos, esta é a questão”. Julio Cortázar

Outra vez afundando…


Caído no limbo de três anos atrás, na mesmíssima cama tendo de suportar os
mesmos alvoroços, os rangidos de choros, súplicas e silêncios arranhando o lado de fora da
porta...
Estava mais versátil; aprendera a beijar os beiços do abismo e a habitar o próprio
corpo sem os ressentimentos de outrora. Poder ruminar o Instante que o descarrilhou rumo ao
exílio de três anos atrás evidenciava isso. Amassava aquele Instante, misturava-o à totalidade
do tempo no lugar de ignorá-lo, embora dele só recordasse o clarão de luz, o latejo desarrumador
do mundo e do corpo, o arrepio a sensação de um lenço suave repousando nos ombros. Tinha
em vista que o início daquele escorregão rumo ao inferno estava além. Foi bem antes dos
membros se estilhaçarem feito granada detonada, durante aquela aula de História da Filosofia
Moderna I, que o demônio o possuíra!
O início da queda foi a noite de Natal quando anunciou à Tia e à Avó sua decisão
de fazer vestibular para Filosofia em vez de rumar à Escola Preparatória de Cadetes do
Exército. Desperdício, é atirar na sarjeta a “melhor educação do país”. Gaguejava e transpirava
no circunlóquio. Na sala, a mesa coberta com uma toalha nova bordada pela Avó e adornada de
louças e talheres cintilantes aos pisca-piscas da árvore de Natal plantada junto à estante. Ao
lado do pinheiro de plástico, tão estúpido e verde quanto, Anselmo agitava um envelope na mão
esquerda. Seus braços desenhavam no ar os diagramas da incerteza. Esgotado de tamanha
gesticulação nervosa, passou logo o envelope à Tia, que o segurou frouxamente sem curiosidade
nem surpresa, sem abri-lo como um presente. Deu dois tapinhas no ombro do sobrinho, as
pestanas elétricas num código Morse vago.
Depois que colocaram esse forro de alvenaria no teto, a sala ficou mais quente e a
mormaceira se acentuava no fim do ano. A vontade é de tirar a blusa preta de mangas longas
dobradas até o cotovelo, e a calça jeans nova incômoda de aspereza. Limbo entre a cozinha e a
varanda que acumulava as emanações dos dois extremos; os sussurros do fogão empesteavam
a sala com o cheiro melancólico dos banquetes de Natal. Que arames farpados a Avó cozinhava?
Aí vem ela saindo de detrás de seu crisol para ouvir esse solilóquio patético. Antão aparecerá
só amanhã, como sempre, e com a mesma desculpa, “o Natal é hoje, ontem foi a véspera”? O
presente etiquetado com seu nome aguardava ao pé do pinheiro de plástico. Caso venha,
refrigeraria a noite com cervejas junto do pai, no Bar do Seu Benício. Já estão às mesas senhores
solitários e jovens opiniosos fugitivos de celebrações cristãs. Punks de moicano, integrantes de
motoclube e suas jaquetinhas pretas com nome e patente, metaleiros, e outras saladas culturais.
Seu Benício os pastoreia e disfarça a tristeza. O único filho casou ano passado e foi morar em
Fortaleza, num bairro chique. Chegando o fim do ano, insistiu que fosse com ele para a casa de
praia, “mais um sonho conquistado”, onde celebraria as festas; quarto é o que não faltava e
tinha até piscina. “E o Bar fica às traças?”. Meu filho, não é bom mudar o endereço de um

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Quartel-general, nesta casa você nasceu e aqui estão os seus. O filho não escutou os
pensamentos do pai, prudentemente guardados. Odeio esta muvuca e o entra-e-sai desses
retardados beberrões, cambada de vagabundos inúteis, galinhas beliscando o chão, essa
gentinha que o senhor serve sorrindo! Eu sou uma águia, pai! Nem a paulada passo o Natal
nesta joça, que dá azar! Seria essa sua réplica caso Seu Benício soltasse a língua. Mas pai e
filho se abraçam num sapiente silêncio, ainda bem. “Fico. Se o ladrão arromba é prejuízo. Se
levam o Januário, então…”, um labrador preto que só metia medo pelo tamanho e pela cor: um
puto que sorria a quem lhe fizesse graça. Vá lá, meu filho, com essa sua esposa dondoca que
me detesta. Advogada é? Filha de empresário é? Pois nem parece que não teve pai e mãe, mal-
educada e fresca, narizinho arrebitado e gasguita. Vá lá, meu filho, e venham cá os bêbados do
Maracanaú! Uni-vos, ó familiares postiços! Vinde a mim vocês cansados e oprimidos que eu
vos aliviarei! Venham à ceia do Seu Benício que hoje se permite algumas taças de champanha,
mas mantém a regra de ouro de jamais passar troco errado! Será uma música para vocês e outra
pra mim, Rock e Brega. O salgadinho e o arroz com creme de galinha é por conta da casa.
Bebida de graça nem a pau, acostuma!
Antão não veio, Anselmo não debutou. Só mais tarde ele se tornará um exímio
degustador de bares mais do que de bebidas. Portará a vidência de que a cerveja servida nos
bares do Benfica não é a mesma dos bares do Maracanaú, onde a birita tem gosto de terra e
chaminé de fábrica, onde a flora e a fauna às mesas são peladas como calangos e mandacarus.
Vistas em conjunto, semelham uma só família de poucos gêneros, quase reduzida a
uma espécie invariável, divergindo apenas no tamanho, tendo todas a mesma
conformação, a mesma aparência de vegetais morrendo, quase sem troncos, em
esgalhos logo ao irromper do chão. É que por um efeito explicável de adaptação às
condições estreitas do meio ingrato, envolvendo penosamente em círculos estreitos,
aquelas mesmo que tanto se diversificam nas matas ali se talham por um molde único.
Transmudam-se, em lenta metamorfose vão tendendo para limitadíssimo número de
tipos caracterizados pelos atributos dos que possuem maior capacidade de
resistência.
Esta impõe-se, tenaz e inflexível1.

Todos anônimos e ninguém azeda a bem-aventurança. A conversa se enrola sobre


si mesma liberta dos conversadores e alimenta a nuvem sombria, mão invisível protetora do
lugar. Ali os bêbados são peças do jogo de Damas, arredondadas e do mesmo tamanho. O que
as diferencia é o movimento de cada uma. Quem é você? Pouco importa, conta é como você
pisa no chão, como você se move. Nos bares do Benfica a vegetação é ostentosa, árvores-de-
natal ambulantes enfeitadas de medalhas de honra ao mérito. Ameaça constante do cerco de
universitários; gente do cinema, do teatro, do mestrado, do doutorado, da antropologia, da
sociologia etc. Que curso você faz? Curso da puta que o pariu! Estamos é num parque temático,
arrombado? Há salvação fora da universidade! Que livro é esse na sua mão?… Sou o vencedor
do prêmio Avestruz, às ordens! Esse aqui é fulano especialista em Sartre. Prazer, eu sou sicrano
especialista em Foucault. Ah, Foucault, careca e sadomasoquista? Ah, Sartre, vesgo e machista?
O chapéu do Foucault está na cabeça do Deleuze! Prepara-se para a justa, sacarei meu
curriculum lattes!… No Benfica, à sombra das Universidades, departamento do departamento
francês de ultramar, os bêbados são peças de Xadrez, todas bem definidas com seus nomes

Euclides da Cunha. Os Sertões.


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próprios, ordem e rosto. O movimento das peças é determinado pelo título e pelo rosto, e
esperam que você obedeça às regras do jogo.
A Tia e a Avó o miram e ele ri sem graça arrancando a gagueira do peito estreitado.
Escondia o rosto locomovendo a cabeça bagunçadamente, a ponto de nem se encantar com os
cabelos amarrados da Avó, que reluziam prata combinada ao brilho do suor das bochechas, a
colher de madeira tremendo na mão como o cetro de uma fada tristonha. Finalmente, o menino
tomou jeito, caiu em si, deu-se conta da própria debilidade! A ponto de não decifrar as
piscadelas elétricas e os lábios mordidos da Tia. Que explosão de boas notas foi aquela, menino?
Escabroso esse último ano de Colégio Militar! Até em Física e em Matemática! Tinha se
desembestado o menino, e mais taciturno do que nunca, pudera, a cabeça pesa! Planejava meter-
se na Escola de Cadetes? Despacho daquelas malditas psicólogas do Serviço de Orientação
Educacional, que nas reuniões trimestrais apelavam para um “trabalho em equipe” que
alavancaria o menino ao “Padrão”. Exibiam gráficos e resultados de testes, “ele tem potencial!”.
Seus “diagnósticos” pronunciados em sotaque infantiloide não tinham o menor rigor científico;
não percebem os limites do garoto? Devem ter sido as piores da turma, contratadas pelo critério
da árvore genealógica. Ao inferno com o “trabalho em equipe”, suas lambisgoias! Essa dondoca
granfina que acaba de sair da sala, dessas estúpidas de classe média que curam chiliques
viajando a Miami, que a engula a papagaiada de vocês! Equivocavam-se com esta mulher aqui
pertencente à espécie de profissionais que encarna os altos valores de seu ofício! Soubessem
que ela escapuliu da miséria como quem se arranca do pântano com as próprias mãos agarradas
aos próprios cabelos… Competiu correndo a pé com os que voavam a cavalo. Dias e noites
minerando dos livros o metal de cunhar a chave da universidade pública, donde nascera expulsa.
Ninguém mais do que ela conhece as peculiaridades do menino, soubessem o quanto sua doença
foi uma universidade! Sossegue, menino, não nos deixaremos cair em tentação. Não cairemos
na lábia dessas capitãs do mato, aliás, que lábia mais fraca! Nada lhe faltará, menino, vá com
calma; pelas nossas feridas você foi curado. Trabalhamos duro foi para lhe dar conforto. Não
tente se enfiar na carreira militar que o motorzinho dentro de sua cabeça é frágil, menino!
E essa claridade pelas frestas da porta do quarto até o raiar do dia? Conhecia a luz:
combustão das pestanas nos livros! Olhe o exemplo de seu pai, menino, que na carreira militar
enlouqueceu, não lembra? Se um Golias cai que dirá um Davi!
A língua ressecou de gaguejar, calou-se. Desabotoou a blusa e a sacudiu
despregando-a do peito suado. Sob o peso de ideias confusas e gestos desbaratados, baixou a
cabeça e riu de si mesmo. Não entendiam. Como compreenderiam se só esbarravam no lado de
fora das coisas? Longa hora se passou, mas inda faltava pastoso tempo correr até a hora da ceia.
Suor escorria da testa pelas pálpebras e melava as lentes dos óculos. Piscou, piscou, cabisbaixo.
Levantou os olhos e esbarrou no coração da Tia e da Avó palpitando nesses rostos que o
miravam condoídos, moídos, rachados… As faces das mulheres se fundiam como vasos
comunicantes de bordas moles, unidos de não suportarem sozinhos a carga de dor. Cresceu na
sala a quimera de quatro braços como os querubins do profeta Ezequiel; o braço direito sacudia
a varinha de condão de madeira que fazia mágicas no fogão, e naqueles tempos difíceis de
outrora até multiplicava pães; no braço direito o envelope com papel timbrado com o boletim,
laudo que constatava a miséria desse verme. O olhar inchado do querubim avermelhava prestes
a espocar de compaixão.

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O tinham por débil mental. Derretiam de candura. Inchavam de pena. Cólera!
Qualquer empreitada sua, fracassada que fosse, seria heroica. Nunca o molestaram nem
exigiram os esforços descomunais comuns ao sangue da família. Complacência ao cérebro
aleijado, ao réprobo inimputável, apêndice absolvido do pedágio à tradição dos filhos da
escravatura, forçados a percorrer quilômetros a mais. Vamos, abra logo o envelope! E então,
abismadas com a numerologia? Sobrenatural? O querubim se assombra perante Deus?… A Tia
pôs a mão na boca. A Avó correu até a cozinha para buscar os óculos. No boletim, nota dez em
todas as matérias, até em Matemática e Física.
Marchou até a cozinha e escapou da irradiação de constrangimentos se empolando
na sala. A vista se embaçava de um ódio líquido fervente, os lábios inquietos mordiscados por
dentes rangentes. Fungava asfixiado com os cheiros picantes da fome e da fúria; balançou a
garrafa de café seca que estava sobre a mesa e teve tino de atirá-la contra a parede. Abriu a
geladeira; uma garrafa de vinho deitada se exibia, agarrou-a. O calor torturava. Regressou à
sala com a garrafa e o saca-rolha em mãos, intrincou-os. Mostrou ao Querubim a garganta
gorgolejando sonoramente, a boca junto ao punho fechado no gargalo ereto. Espremia as
pestanas e o sumo rubro descia pelo queixo até o peito suarento exposto pela camisa
desabotoada.
Num relance, avistou o embrulho com seu nome junto à árvore de Natal. Foi lá e
rasgou a folha laminada; uma caneca. Encheu até a borda e limpou-a de um só gole. Repetiu
uma, duas, três vezes. Resfolegava feito um cão, o focinho molhado, os dentes à mostra
rosnando, o redor dos olhos enegrecidos. Erguia e baixava os ombros inchando e esvaziando o
peito. “O melhor filho do mundo”, estava gravado na caneca entre corações vermelhos.
Estupefatas, as mulheres observam esse empilhamento de gestos indiscerníveis; beber o vinho
antes da hora da ceia, abrir os presentes antes de comer, britadeiras nas rugas. O Querubim se
assombra perante Deus? Afinal o cérebro aleijado não é tão previsível assim? Ultrapassagem
dos limites? Ah, esperem, ainda verão os anjos de Deus subindo e descendo sobre o filho do
Homem! Verão prodígios ainda maiores!
Naquela hora o demônio o possuiu.
Há eventos capazes de rachar a vida. Podem ser estrondosos como um acidente de
trânsito; podem ser tácitos feito um câncer; bifurcam a língua largando-a ciciante entre
escombros como a das cobras. Só depois lhe emprestamos linguagem, só depois, distantes,
fatiamos o evento e marcamos o início, o meio e o fim ordenando seus elos internos. Marcamos
de giz o ponto de ruptura, esboçamos o desenvolvimento. Raios que nos partem? Um deus-
homem bloqueia a estrada com sua glória? As conversões de Lutero e de Paulo são mais
desperdícios de efeitos especiais e de fabulação! Vejam nosso herói, cortado ao meio na véspera
de Natal, à tardinha, com o Sol ébrio se debruçando nos cumes das serras, numa hora podre de
calmaria.
Converter-se em gênio, em monstro, empregar esforços hercúleos e elevar-se sobre
os demais! Essa decisão se apoderou dele feito espírito imundo, frivião. Redimiria a vida na
sala de estudo. Nas intimidades sombrias das estantes da biblioteca se metamorfosearia em
gigante, verão! Moenda de ossos, ginástica, treino infinito, e os anjos subirão e descerão sobre
o Filho do Homem, verão! Veloz, sem perda de tempo e sem se distrair com as frivolidades
juvenis do Centro de Humanidades. Aplicou aos estudos universitários a austeridade adquirida
no Colégio Militar. Apaixonou-se por filosofia alemã, roupa sob medida, principalmente o

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Romantismo; Novalis, Schelling, Schelegel, Fichte, Hölderlin, e suas intrigantes tramas acerca
do Eu. Encarnaria o sonho dos românticos alemães, o Eu absoluto, o esconderijo do Reino do
Céu na Terra. Penava em aprender o idioma para extrair todo o néctar das páginas. Escrevia
profusamente sobre temas áridos evitados pela maioria. Felicitava-se: o cérebro aleijado, afinal,
não ia mal com sua oratória trovoando nos encontros e congressos dedicados ao Romantismo.
Os professores afins conheciam seu nome: uma bolsista promissor, um bom filiado para o
mestrado e o doutorado. Os demais alunos é que o desconheciam; fugia dos entretenimentos
universitários, as festas, as calouradas e as animadas sextas-feiras no bosque; monge dedicado
a inflar o Eu absoluto. Não correria como indeciso nem esmurraria o ar; aprender o alemão não
é coisa fácil.
De tanto inflar o Eu absoluto explodiu! O cataclismo chegou ao final do terceiro
semestre, numa aula sobre Kant, Historia da Filosofia. O Professor esquecera a amarelecida
caderneta onde certo dia rascunhara como se psicografasse, a ordem correta dos raciocínios da
exposição sobre o sujeito transcendental. Saíra apressado de uma sala para outra deixando
caderneta sobre a mesa. Catástrofes tendem a se acumular num só dia, numa só hora, como
revela o Livro de Jó. Anselmo coçava o queixo e bocejava espreguiçando-se numa cadeira
próxima à mesa do Professor. A aula começou pontualmente com a sala abarrotada, mas a
mercadoria não honrava a propaganda; outra peça da “máquina de comer tempo”,
entretenimento universitário. Com que régua os Doze mediam para recomendarem as aulas
desse esclerosado? Os “Doze” era como chamavam o Grupo de Estudos Kantianos, baluarte da
Razão, casa edificada sobre a rocha contra os modismos oriundos da França, principalmente.
Os “novos filósofos” eram peste no Centro de Humanidades. Seus vocabulários molengas
impregnados de imagens ofuscantes borbotavam nas conversas do bosque, e quase todos tinham
à mão um livro deles. Estudá-los assumia uma feição revolucionária pelas dificuldades de
decifração; problemas de tradução, as metáforas quase cabalísticas, o modo assistemático e
repicado com pretensões poéticas – claro, sem a pureza de um Novalis!
O que causava mais repulsa aos Doze era o efeito de fim de mundo que esses
devotos promoviam: a filosofia iniciava com os “novos filósofos”, segundo eles, eram o ponto
zero! Viviam de escarnecer quem porventura ainda não tinha escutado que “O Homem está
morto”. Contra a peste negra desse irracionalismos os “Doze” se amuralhavam.
Anselmo ingressou nos Doze por razões particulares, mas comungava com a
rejeição deles a corrida maluca para acompanhar as “tendências internacionais”, sofreguidão
institucionalizada. Mal se aprendia os rudimentos de um autor e o largavam para estudar outro
recém-nascido dos fornos franceses. Mesclava-se a letra de um com a do outro em colchas de
retalhos de um mau gosto abominável.
Certa vez, de experimento, entrou num de seus encontros; chamou atenção o título,
“Microcefalias” – tinha de ser uma piada! Não era; um culto com glossolalias que contava até
com imitações de ataques epiléticos. As falas eram indiscerníveis não por excesso de erudição,
de recurso à História da Filosofia, mas por um grosseiro espontaneísmo imaginativo ao qual
designavam de “criar”, e julgavam cumprir assim o imperativo “filosofar é criar conceitos” – e
tome imagens bizarras torto e a direito! “Carrapato, porco-espinho…” Ó, dê-me ao menos três
ideias vinculadas por nexos lógicos necessários! Não, não que isso é Teologia: é chamar o
Homem dos infernos e trazer de volta do céu a Razão! Rompamos as correntes: morte a toda
ortodoxia! Criaremos realidades! Urge pensar na modalidade confete, picadinhos coloridos,

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soltos, livres, “Por uma Filosofia-folia”, rezava a palestra de um deles. Aquilo era uma Babel!
“Não compreenda – sinta!” E quanto mais repicado e “artístico”, mais revolucionário. Anselmo
saiu do auditório rindo e pensativo: se aquela peste o corroesse, como se apresentaria a Tia e a
Avó divino? Deuses o salvem! Tinha de se tornar gigantesco de fato e de direito! Não cederia à
tentadora lei do enganar e ser enganado que imperava na universidade. Tinha o coração mole,
sabia, um fraco pelo estético, pelo imagético, pelo poético; o emotivo, o gosto pelo romantismo.
Endureceria; criaria escamas. Obedeceria ao imperativo da Razão, ao ímpeto do Eu absoluto, e
triunfaria contra os filisteus do espírito. Eia! Suba-se na torre mais alta da filosofia kantiana,
castelo edificado sobre os montes! Com os pés firmados ali se tornaria colossal. Faria um
retumbante uso público da Razão. Eia! Esmaguemos o molenga esprit de finesse com o peso
de bigorna do esprit de géométri! Foi por isso que entrou no grupo dos Doze. Ensurdeceria,
criaria escamas!
O Professor arreganhou a boca e pôs o dedo no vértice do diagrama explicativo que
rabiscou no quadro, precisamente na linha que separava a faculdade da imaginação da faculdade
da razão. Eufórico por ter recordado o próximo passo, salivava palavras. Pois foi nesse instante
que uns estalos o acossaram nas costas e as palavras despenharam no chão junto com o copinho
descartável cheio d'água que estava sobre a mesa. Fez-se uma poça aos pés do professor e ele
quase escorregou. Susto! A cabeça torceu na direção do barulho sem que o corpo estivesse
sincronizado, rendeu-lhe um torcicolo. Junto de seus sapatos bem engraxados um corpo se
debatia como que detonado por dinamites internas; convulsão, ataque epilético, todos
reconheceram de pronto e ficaram feito estátuas boquiabertas em contemplação.
Alguém atravessou veloz esse museu de cera e empurrou as cadeiras limpando o
palco para a dança epiléptica. Ajoelhou-se e segurou com leveza a cabeça elétrica. “Me dê esse
caderno aí!”, com voz de comando dirigiu-se a um dos embasbacados. “Dê-me seu boné!”,
disse a um rapaz com uma boina estilo Chê Guevara. Outro arrancou a cereja do bolo da torre
de livros sobre a mesa do professor e passou à sua mão a Crítica da Razão Pura.
Os membros espatifados bateram na mesa do Professor, derrubaram o copinho
descartável e fizeram oscilar a coluna de livros. Como sabemos, a mesa do Professor só tem
espaço para um livro, o copinho d’água fica na beiradinha quase a cair. Se o Professor chegasse
com livros em excesso que os empilhasse sobre a mesa. Torre de livros, aliás, que causava
incômodo nos alunos, pois acontecia de ser alta o suficiente para esconder o Professor; por
detrás dela sussurrava a voz sem boca. Os volumes variados que compunham a coluna a
tornavam oscilante dando a entender que ruiria a qualquer momento. Os alunos a fitavam como
se pudessem fixá-la com um olhar, e nisso a voz sem boca batia inútil nas orelhas cujo sangue
fugira para encher os olhos. No caso deste Professor, a coluna era mediana encimada pela última
edição da Crítica da Razão Pura, de capa dura, saturada de notas de rodapé, comentários do
tradutor e do especialista. Daí porque ela não caiu quando Anselmo golpeou a perna da mesa
com a ponta do pé.
O socorrista, sujeito alto, corpulento e cabeludo, acolchoou o livro com a boina e
nela repousou a cabeça fervente. O Professor assistia a tudo de pescoço doído, sem saber onde
pôr as delicadas mãos, com seus olhos verdes de botões de vidro costurados em pano branco.
O Cabeludo ajoelhado virou a cabeça fervente de lado para que as secreções vazassem do nariz
e da boca. Não se sabe o seu nome, era pouco conhecido, trabalhava de vigilante num hospital
onde aprendera a prestar primeiros socorros, e não dispunha de tempo para o usufruir a metade

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ociosa e saborosa da vida universitária. O Professor, pálido, boquiaberto, recuperava o fôlego;
retirou do bolso da camisa sua caixinha de comprimido, engoliu dois, e sustentou o queixo com
uma das mãos trêmulas. O amontoado de rostos ao redor voltou a corar, pois o corpo bagunçado
finalmente aquietou-se. Cessara a tortura coletiva, a tritura dos afetos, a agonia de contemplar
uma possessão; tufão arrebatando à comunhão com o protagonista despedaçado, sopro
diabólico revirando inconscientes e dissolvendo a ordenação da sala de aula com espasmos e
espantos. “Chamem um Táxi por minha conta”, gaguejou o Professor dizendo a si mesmo que
era o mínimo a fazer.
Contar o acontecido à Tia e à Avó? Autenticar sua debilidade incurável credora de
cuidados infinitos? Resignar-se à ideia de um cérebro com limites orgânicos insuperáveis?
Então a natureza o destinara ao regime da Tia e ele que se acostumasse? Se acelerasse um pouco
os motores a geringonça fisiológica dava pane, convulsão?… Confinou-se no quarto por uns
meses. Tivesse outro ataque protegido dos olhos alheios, salvo da vergonha e do cerco de
expectadores com sua comoção pelo artista da epilepsia. Seus gestos espalhafatosos e sua baba
raivosa nunca mais salpicariam em ninguém.
As duas mulheres zumbizavam do lado de fora, espreitavam pelas frestas com
rosários gastos nas mãos aflitas, murmuravam rezas, batiam à porta, sussurravam chorosas,
questionavam as razões. Ora razões! “Deixem a comida aí no chão, por obséquio”. Engoliam o
pranto e atendiam prontamente, ou o menino passaria fome.
Tampouco contaria a Antão as razões dessa “opção pela vagabundagem”, como o
pai batizara sua conduta. Escutou-o falar do outro lado da porta: “Se tudo já foi feito e o cabra
não sai do quarto, o ignorem e relaxem, respeitem sua opção pela vagabundagem! Deixem ele
pedir socorro”… Tinha o fito de acalmar as duas mulheres, planejava aproveitar-se da ocasião
para aproximar-se do filho. Apareceria com mais frequência em casa, por volta das dez da noite,
e bateria a falange do dedo médio duas vezes na porta do quarto, sussurraria para que as
mulheres não escutassem, “vamos tomar umas…”. Anselmo fingiu dormir nas primeiras noites,
mas a constância do pai o foi amolecendo. “Ah, finalmente, pedra dura em água mole tanto bate
até que explode!”, o filho abriu a porta certa noite.
A Avó e a Tia se extasiaram com a novidade e fizeram vista grossa para a iniciação
do menino no álcool. Perigava agravar o quadro de depressão, ponderou a Tia. Piorar, como
piorar? O menino saiu da tumba! Replicou a Avó e seu sábio pragmatismo. Os chás preparados
pela Tia e a presença do pai faziam milagres.
A porta do quarto começou a abrir-se com mais frequência já que não vinha outra
convulsão. Anselmo ousava caminhar pelo quintal e pela calçada em frente de casa, aprendendo
a andar novamente. Mas qualquer variação, minúscula que fosse, febre, calafrios, inchaço nos
pés, o sepultava no quarto por mais um mês, para suportar heroicamente o zelo das duas
mulheres do outro lado da porta. Na hora das refeições a bandeja aparecia ao pé da porta com
duas batidinhas. Tanto cuidado gratuito, tanta graça, era humilhante. A porta trancada tinha a
função de protegê-lo desses excessos e de converter o quarto numa cela monástica cheia de
austeridade e disciplina. Pelo lado de fora as mulheres acolchoavam a cela com generosidades
infinitas, ausência de interrogatórios e de exigências, rogos em vez de ordens. A pressão e o
calor eram de tal grau que tinha de se despressurizar provocando-as com respostas indiferentes
e demorados silêncios. Com o tempo foi substituindo esse gozo perverso, mudez ferroando
suas cuidadoras, com os monasticismos da leitura e da meditação. Não sem o ressentimento que

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lhe é próprio; a ruminação amarga dos projetos estilhaçado de outrora, a autoflagelação com
seus cacos. Deitado na cama, às vezes febril, levantava a saia de suas ambições; acelerar os
motores, elevar-se sobre os demais, encarnar o Eu absoluto dos românticos… Atenuava a fúria
dos dentes mortificando a própria carne ocupar a boca com cerveja e os ouvidos com as
narrativas do pai, no Bar do Seu Benício, hábito que se consolidava. Já ultrapassava em muito
o portão de casa, ia cortar o cabelo, comprar livros, caminhar nos arredores da Lagoa, próxima
à Câmara Municipal, para fungar o bafo das árvores e meditar no tempo que elas ainda tinham.
As febres começaram a rarear.
Em sua “opção pela vagabundagem” cumpria um rigoroso programa de estudos;
cadernos e páginas avulsas testificam disso. Sem dúvida, etnografia e história dos povos
amazônicos e da América Central, e esquecidos autores latino-americanos fizeram parte do
programa. Destaca-se o registro entusiasta do encontro com a Suma Latino-americana, célebre
coletânea dedicada a pensadores sul-americanos publicada no início dos anos 80. Precária que
fosse, a Biblioteca Municipal do Maracanaú concedeu-lhe a graça de dois de seus doze volumes.
Eram antologias de gigantes como José Marti, Mariátegui, Ruy Mauro Marini, Guerreiro
Ramos e outros. “Evento soteriológico” análogo a uma “cura psicanalítica”, “repatriação”,
“reconquista do território”, “pés no chão”, assim é descrita a leitura. Seus “diários de sonhos”
se enxovalhavam de desenhos intrigantes e curiosas crônicas que faziam referência à
apaixonante leitura.
Também é digno de nota o impacto que o opúsculo de um obscuro filósofo
brasileiro, do qual nunca ouvira falar, exerceu sobre ele. A Questão da Universidade, de um tal
Álvaro Vieira Pinto. Esse pequeno escrito dos anos 60 fez um tipo de trepanação em sua cabeça.
Então o trabalho das universidades brasileiras é “missão catequética”, empreender a “conversão
do gentio”? … Reproduzo aqui um trecho transcrito seguido de um comentário de dez páginas
que omitirei por economia.
A Universidade absorve e amortece o surto da consciência popular,
representada pelo elemento estudantil descomprometido com os poderosos.
Sabendo que, por força das circunstâncias, tem de operar numa área cada vez
mais hostil e resistente aos seus propósitos, enquanto Instituição – as massas,
os estudantes oriundos das camadas modestas das classes média e mesmo
proletárias – a Universidade compreende que uma das suas missões específicas
é a que chamaríamos de “conversão do gentio”. Tem de agir sobre populações
sempre mais numerosas de “selvagens”. Por isso empreende a tarefa
catequética de fazer os elementos da massa estudantil “converterem-se” aos
interesses da classe dominante, acenando-lhes com a ilusão de vir um dia a se
tornarem membros desta mesma elite onipotente. E decisivo assinalar esta
“missão catequética”: a de destruir no estudante pobre ou procedente das
camadas populares o espírito de luta pela ascensão coletiva de sua classe aos
planos superiores da cultura, isolando-o, e levando-o a crer que é ele, como
indivíduo, que deve adquirir o conhecimento que almeja, deste modo
desarticulando-o no seu papel, desintegrando-o do meio, e inutilizando-o para
a luta social, justamente porque o “converteu” em aspirante individual à
cultura, o que traduzido em termos objetivos, significa o ajustou aos interesses
do grupo dominante.

Então, teias finíssimas e invisíveis apertavam seus testículos e neurônios... Ele,


como um cego de nascença arrogante, julgava borbulhar do sangue a insolação que o

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molestava. Eram os maquinários da Universidade que lhe obstruíam a carne e o espírito,
sufocavam seu sangue, prendiam os fluxos, tapavam os poros? Os fulgores de um conhecimento
puro sem contraparte concreta, peças abstrusas e abstratas que lhe exigiam o austero
aprendizado de uma mecânica que afinal não servia para consertar máquina nenhuma… Então
sua convulsão na aula acerca de Kant seria uma salvação, soteriologia instintiva, ímpeto do
sangue contra aqueles maquinários? Converter-se em gênio, em monstro, empregar esforços
hercúleos e elevar-se sobre os demais! Aspirante a Capitão do Mato, aspirante a Capitão do
Mato, sim senhor! Acima da ralé iletrada, pisando por cima da gentalha e socando a cabeça no
maquinário espremedor de cérebro. Sim, cão de guarda do Castelo da Filosofia de Kant, déspota
esclarecido apartado por um fosso da repugnante realidade do bairro, da carne, do sangue e do
suor dos maracanauenses, de sua terra, do germinal país… Sim, senhor, aspirante a Capitão do
Mato! Lacaio produtor de artigos de entretenimentos e produtos a ser consumido pela canalha
de mãos atrofiadas que se esconde na Universidade. Ora, Romantismo alemão!…
Por outro lado, o tema filosófico da “emenda do entendimento” e os estudos de
Kant não o largavam; os mesmos cadernos testemunham. Reduzindo e recortando as partes
inassimiláveis, percebo que dois assuntos ou problemas se destacam nos manuscritos dessa
época. Resta investigar em que medida um prolonga o outro, ou se não são dois aspectos de
uma mesma problemática geral.
1. A “terceira intuição”, “intuição sem forma” ou “terceiro olho”. Com certeza uma
variação da Estética transcendental kantiana, tema escolhido para a monografia de conclusão
de curso. Nessa primeira seção da Crítica da Razão Pura, Kant estabelece as condições gerais
da sensibilidade humana; a intuição a priori do espaço e do tempo. Bem, não convém doermos
a cabeça com explanações que nem filosofantes em alemão, carecas de lamber o kryptoniano
de Königsberg, dominam. Contentemo-nos em saber que Anselmo quebrava a cabeça nas
condições de possibilidade de uma “terceira intuição”, uma terceira via de acesso aos
fenômenos, o tal “terceiro olho” o qual videntes, xamãs e poetas portam. Esses “despertos”
“extravasam de modo aberrante a sensibilidade e a percepção”, reconciliando-nos com “os
espíritos não-humanos”. A história da filosofia vive de furar os olhos dos videntes e expurgá-
los da cidade, e a briga de Kant com Swedenborg exemplifica bem isso. A delimitação da
sensibilidade e do intelecto do Homem foi sacralizada na modernidade contra a vidência. Disso
atestam as primeiras edições da Crítica da Razão Pura com seus golpes insanos nas visões de
Swedenborg.
2. Os exóticos cinco opúsculos inacabados assinados por um tal de Al Sonali (1500-
1536) especulam acerca da similitude entre orelhas humanas e a forma espiralada das galáxias.
O estilo desses manuscritos heteronímicos imitava, talvez, Pico Della Mirandola. Expunham
um princípio imanente que ordena o cosmo, um logos como “imagem acústica primordial”. Os
ouvidos dos humanos surgiram para escutá-la, e escutando-a os humanos perduram no centro
do universo. Ensurdecendo, tornam-se bestial, “expulsos do paraíso”; esse é o autêntico pecado
original. Apouquei o assunto para não desanimar ainda mais o leitor com os raciocínios
extravagantes de um convulso.
São oito e meia da noite e Anselmo considera rever aqueles escritos, corrigi-los,
poli-los, remover deles a gordura ingênua. Estavam bem ali no Baú. Protelava, como sempre.
O tempo corria viscoso como uma cobra que acaba de comer uma ratazana. Ah, delirara com a
velocidade do trem nos trilhos retos… mas a locomotiva pifou logo no início da viagem.

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Naqueles dias sonhara em purificar-se e elevar-se até armar-se todo no esqueleto seco e abstrato
do sujeito transcendental kantiano, tornar-se universal e depurado de todos os acidentes
mundanos. Caíra como um Ícaro no abismo da cama. Agora estava de volta ao mesmo vale das
sombras da morte, ao fundo do poço cujos anéis uniam o antes e o depois da convulsão. Ali na
cama borbulhava o presente vívido, origem dos rios que corriam a extremidades opostas; uma
ponta à noite de Natal, visita do demônio; a outra ponta à manhã do retorno à universidade,
depois de três anos no fundo do poço. Ao lado da cabeceira, vértice obtuso que unia esses dois
rios, sobre o criado-mudo, estava um Kant junto aos óculos. Nove e meia da noite, levantará a
cabeça do travesseiro. E levantará para sempre.

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Os Namorados

Gentes que labutavam sem descanso sob o comando de capatazes cruéis estenderam
no chão essas estradas de ferro. Montões morreram martelando o aço e cavando o chão para
que os insumos da terra escorressem velozes ao seu destino: enriquecer a burguesia local.
Gente-mandacarú, gente-caranguejo, gente-calango, espinhos e cardos das paisagens secas
marcados pelo aço, encantados pelas feitiçarias da técnica. Os sobreviventes daqueles dias ainda
hoje choram com saudade da velha locomotiva a lenha. Lágrimas que reluzem o fogo de
Prometeu no ventre materno da Maria Fumaça, ardente e faminto como o de seus filhos, e
prestes a devorá-los.
Esses são últimos apitos do velho trem, que será substituído por um metrô, segundo
a lenda, e tem aí uns anos que quebram asfalto, escavam o chão, interditam estradas e erguem
montões de areia nas ruas, e nada de metrô.
Tênis gasto, calça jeans desbotada e camisa preta, salta na Estação Otávio Bonfim
que já foi chamada de Matadouro. Não é nenhum Walt Whitman: além da precária vocação
poética, falta-lhe aquele transbordo afetivo sobre os habitantes de sua terra, de todos os ofícios,
de todas as cores, de todas as classes; argamassa de uma comunidade igualitária e democrática.
O serafim da visão arrancou a brasa do altar e crestou, além da língua, o corpo inteiro fazendo
da pele uma crosta dura qual exoesqueleto. Sua caixa torácica fazia valer a palavra caixa e
encaixotava o coração. Sua aparência econômica de gestos e de expressões parece a de um
cadáver que só eventualmente ressuscita para a caixa se abrir e o coração aflorar na pele.
É o primeiro dia de aula pós-exílio, e Anselmo se apressa pela Avenida 13 de Maio
outrora trilhada por manadas e tangedores em direção ao matadouro público. Um carro raspou
o canteiro e arrastou um saco de lixo em frente a Praça da Gentilândia; suas vísceras se
espatifaram pelo asfalto, papel higiênico esvoaçante. Os restos do plástico preto levitaram no
vento junto com as longas fitas brancas manchadas rodopiando no ar, enroscando nos pneus e
deslizando nos para-brisas. Sinuosidades de uma bailarina invisível manobrando as fitas
brancas, encantador mas Anselmo se esquiva das pregas pretas soprada em sua cabeça e apressa
o passo.
Há barracas montadas na costa da Praça. Seus moradores estão acordados e
rodeados de cães, irmãos com quem repartem o pão. Cabelos desgrenhados e barbas espessas,
indigentes, indígenas, Diógenes a quem ninguém oferece presentes. Estendem tapetes no chão,
mostruários enfeitados de colares, pulseiras e brincos, tudo feito por mãos magras, tatuadas e
próprias. Um policial a cavalo trotou sobre uma das tendas, recorda.
— O senhor não faça isso não, por favor!
O policial devia estar com prisão de ventre ou ter brigado com a esposa.
--- O senhor não faça isso…
Deu um pinote do cavalo e foi largar um soco na boca do falastrão. Sorte. O homem
ingressou na profissão certa, ajustada às suas inclinações, coisa rara. O que seria se tivesse um
ofício em desarmonia com o sangue, e não pudesse espatifar, profissionalmente, um lábio
quando acordasse de mau humor? Todo apoio a esses executores do saneamento moral e estético
da cidade! Há muita demagogia em caluniar os momentâneos descontroles emocionais desses
guardiões do bem-estar! Quem nunca acordou de pá virada? Se quebram os dentes de alguém
vez ou outra, convém não julgá-lo, “não julgueis”, diz o Cristo! Tem o homem dentro da farda,

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que sofre e se estressa, o salário é baixo e o serviço não é dos mais fáceis. É preciso
compreensão, sejamos humanos! O Brasil prefere romancear a bandidagem! E ainda tem quem
defenda esses imundos que podem matar e estuprar nossas filhas! O respeito à polícia tem de
ser ensinado nas escolas e nas telenovelas no lugar de tanta pouca-vergonha! Que saudade do
tempo em que se adorava a bandeira nacional e se tinha aulas de moral e cívica! A solução é
simples: os militares de volta ao poder! A corrupção na política, a defasagem na segurança, a
crise econômica, e esse surto de homossexualismo combinado à deterioração da família, tudo
se resolve com os militares de volta ao poder! Amém! Glória a Deus nas alturas e paz na terra
aos homens de boa vontade! Essas são as vozes da Praça.
— Ei amigo, dá uma olhadinha aqui no meu trabalho!
Anselmo fez um aceno de mais tarde. Desacelerou o passo ao se embrenhar no
matagal da memória, que seivosas se armazenavam na Praça. Elas esvoaçaram em sua direção
como nuvem de gafanhotos! Ainda bem que os policiais não estavam presentes hoje, e o matagal
tinha buracos… Cavalos em cima, policiais embaixo, cascos batendo devagar nos dentes e nos
narizes dos guardiões do bem-estar; espetáculo educativo e delicioso de ver! Anselmo preenchia
os buracos do matagal com delírios. Pena dava era o sangue sujando a Praça. Policiais ainda
têm sangue!… Veja o leitor a austeridade desses afetos que seguiam uma linha dura, rasteira e
curva no horizonte; a linha passa pelos nativos massacrados, pelo gado destinado ao matadouro,
pelas gentes esfaimadas martelando o aço dos trilhos, pelos malucos de rua nômades das praças
e pelos inocentes cavalos. Jamais a linha sobe ao nível dos policiais, dos governantes e dos
mandachuvas etc; suas paixões lambiam o pó e se prolongavam rastejantes serpenteando para
derrubar do cavalo essa gentalha prolongadora da escravidão, parede onde o transbordo do afeto
esbarra…
Anselmo ficava na universidade até por volta das quatro da tarde. Nas terças-feiras
dedicava-se às atividades do Programa de Bolsas de Iniciação Científicas. Nos demais dias
ficava na sala de estudos ou deitado num banco do bosque contemplando as árvores e o azul-
claro do céu com um bloco de notas à mão. O bosque do Centro de Humanidades fervilhava de
estudantes nas mesas ao redor de garrafas e livros. O murmúrio de vozes ininterrupto se
misturava aos rumores das mangueiras e ao cheiro dos baseados.
Na esquina vizinha tinha um bar chamado Cantinho da Filosofia, “extensão da
universidade”, diziam. Ficava num espaço largo e arborizado que também servia de
estacionamento para os alunos que tinham carro. As mesas se espalhavam na área pavimentada
e se enxameavam de estudantes que nem sempre tinham grana para o álcool de cada dia. Mas
havia solidariedade e partilha do pão, afinal todos ali cultivavam a massa de ar embriagante e
rejuvenescedora, alma do lugar. Pela tarde as mesas do Cantinho da Filosofia se depenavam, e
imperava um silêncio melancólico no terraço ao redor contornado de árvores junto ao muro.
Nessa hora Anselmo sentava ali solitário, bebia cerveja devagar meditando em algo ao ar livre,
com um bloco de notas à mão. Pedia uma tigela de sopa e degustava com calma, as mesas
vazias. Vinte minutos para cinco horas, dirige-se à Estação Otávio Bonfim, pois se perdesse o
trem das cinco e meia ficaria privado de um pedaço magnífico do dia, a viagem num vagão
vazio. Por consequência, duplicaria o bocado mais abominável do dia, a viagem num vagão
abarrotado, irmão gêmeo do trem das seis da manhã. Uma boa caminhada que fazia
apressadamente, numa leitura dinâmica daquela parte da Avenida 13 de Maio. Por que não ia
de ônibus? Além de mais demorado, o preço da passagem estava o dobro.

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O trem das seis da manhã era um inferno, mas foi o canteiro onde aflorou a
faculdade de ler orelhas.
Uma pilha de carnes o pressionava destilando líquidos e odores fétidos. O bramido
das vozes pegajosas, chocarrices e gargalhadas que formavam um tutano heterogêneo e espesso.
Os nervos atritavam nele e entravam em combustão: febre. O vômito lhe sobia ao queixo; se o
jato saísse pela garganta derreteria as pernas dos passageiros e abriria um buraco negro no vagão
que sugaria meio mundo! Extravagante, buraco negro é acima da medida, mas ia bem uma
fratura, minúscula que fosse, por onde escapulir. Inspire, expire… Compunha-se, feche os
olhos, calma… Mil braços se entramelavam no teto como palitos numa caixinha de fósforo
sacudidas por um deus sambista. No interior, o fato brutal da ausência do nada, a totalitária
inexistência do vácuo, a onipotência e a onipresença e a onisciência dos corpos maciços se
apinhando – eis o verdadeiro inferno! O empilhamento dinâmico de corpos com seus calores e
vapores, com seus rangidos e rompimentos de invólucros gerando edemas, inchaços e
contágios. A destruição dos seres pela ausência de lacunas, de intervalos e de vácuos… No
princípio eram os corpos! Eternamente os corpos, os algos privados da preexistência dos nadas,
se amontoando no tempo em conflitos explosivos… Eternamente a dissolução dos invólucros
e a liberação dos ácidos. Oh, face horrorosa de Dionísio! O horror das mônadas sem janelas! A
biles alheia golfando em nossas papilas e pupilas! Inspire, expire… Feche os olhos… Respire
fundo. Engoliu pela terceira vez o vômito.
Não lembra em que altura da viagem, entre quais estações abriu os olhos e deu com
as dobras de uma orelha a um palmo do nariz. Muitos ombros, cabeças e braços se
atravancando, mas por uma brecha abaixo de uma axila peluda cruzada com um queixo
infestado de espinhas, insinuou-se a orelha com suas dobras ondulantes como frêmitos de um
lago profundo. A quem pertencia? Pouco importa. Abriu-se um olho d’água manando a melodia
que saciava a sede. Ao seu ritmo, os átomos no interior do vagão se orquestravam, uma ilha se
compunha insurgente contra o corrosivo oceano sangrado dos atropelos dos corpos.
O trem da cinco e meia da tarde era o paraíso, e foi nele que deu o primeiro beijo
em Maria.

1º Dia

A porta do vagão escancara o ventre da baleia de ferro e exibe seu recheio: o vazio,
o deus respirável. Anselmo caminha rente aos bancos sem gente acariciado pelos sons do metal
depurados de cordas vocais. Senta, cruza as pernas, retira da mochila um tijolo, livro volumoso,
e o apoia nos joelhos. Festa! O deserto não é estéril. Olhos doentes de miopia revestem tudo de
nada. Vendo bem, escutando bem, o deserto é uma fartura de delícias mesmo enquadrado de
aço. As chagas abertas pelo trem das seis da manhã, via crucies, brotam um oásis. Que as
moscas não caiam no perfume! Por isso entra no último vagão, o mais distante das entradas e
saídas da estação, e o menos frequentado. Sedentos de saliva alheia e necessitados de
empréstimo de ossos alheios, meia volta! Anselmo tem os pés ligeiros às orgias do vazio. Que
corpo estranho é esse que se aprochega e suscita o lascivo ímpeto de se afastar para reaver as
carícias do vazio?

2º Dia

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— Você tem uma caneta que me empreste?
As falanges, abelhas atiçadas, retiram com velocidade a caneta do bolso da calça.
O universo escureceu com os cachos negros vestindo o ar que entrava pelas janelas emperradas.
A garota sorridente, sentada cruelmente ao lado, encurvou-se contra os sacolejos do trem para
escrever no caderno apoiado nos joelhos. Anselmo decepou de si gestos e imaginações como
quem sacode uma barata da camisa. Que joelhos! Aprumou o livro sobre as pernas cruzadas,
desajeitado pelo calor que lhe empalava pelo flanco esquerdo. O corpo estranho ao lado, outrora
tão fácil de ser isolado pelas secreções dos poros, o atravessava; Cristo ressurreto permeando a
parede. Espirito Santo penetrando todas as coisas! O balanço do trem descarrilava os olhos do
livro e os fazia rolar para margens cada vez mais largas. Escapou como de um incêndio,
distraíra-se, sua estação era aquela e a porta quase abocanhou-lhe o pé esquerdo.

3º Dia

— Nem vi quando você desceu; levei sua caneta e acabei perdendo…


Deusa! Sou uma nuvem de insetos presa por alfinetes em teus cachos negros!
Deusa! – vozes assim mariposavam no esôfago de Anselmo.
— Você tem um rosto… intrigante. Branca, mas com traços indígenas… Pelo
sotaque, não é daqui…
— Tomara isso seja um elogio? Sou de Manaus. Minha mãe era de origem indígena,
Munduruku. E você…?
— Maracanaú, sou de Maracanaú.
--- Sou Maria
— Maria… Maria… Minha mãe, minha avó e minha tia também se chamam Maria,
mas ninguém as chama de Maria, chamam sempre pelo segundo nome ou os dois nomes juntos,
um cobrindo o outro. Como se Maria fosse um nome sagrado que não se invoca em vão…
Anselmo falou eufórico, embriagado pelo aperto de mão.
— Que ideia, rapaz! Maria é o apelido das mulheres comuns! Você nunca foi à
feira? Nunca ouviu quitandeiros se esgoelando às donas de casa, “Dona Maria, isto. Dona
Maria, aquilo”? Maria é um nome tão sagrado quanto a santíssima trindade Fulano e Sicrano e
Beltrano!
Os dois riem.
--- Seu nome?
— Anselmo.
— Taí um nome pra gente escrever em itálico! Sua mãe é devota do santo que
provou a existência de Deus!
— Minha mão morreu no parto. Foi Avó que me deu o nome. Mas em minha casa
todos são ateus, é uma síndrome hereditária…
— Todos ateus?!… Oh, sinto por sua mãe… era pra ser uma piada… desculpe.
— Isso mesmo, todos ateus!
— Isso não dá angustia?
— Não tenho lembranças dela…
— Digo… Claro, perder a mãe é terrível, eu também…
— Não cheguei a perdê-la, nasci órfão…

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— … perdi minha mãe cedo, sete anos, câncer…
— Não cheguei a perdê-la… Câncer?!
— … eu me referia a Deus, entende?
— Deus?!
— Sim, o céu vazio não lhe angustia? O mundo deserto, sem encanto, sem
mistério… Esqueça todo o departamento moral e metafísico, encare a religião por um ponto de
vista poético… As crianças e os indígenas têm mundos fervilhantes de espíritos, mitos… Você
nunca se angustiou com esse vazio no céu… apenas esse “céu estrelado acima de mim”?

4º Dia

--- Boa tarde… Anselmo!


--- Boa tarde, Maria.
Não leu sequer uma frase do livro aberto nos joelhos. Seus músculos estavam tensos
e rígidos, a garganta entalada. Maria sentou ao seu lado, enfiou os fones nos ouvidos e
emudeceu por um tempo infinito. A última conversa não terminou bem. Deus, Deus, que diabos
ter de falar de Deus! Não recebera nenhum dos sacramentos católicos, isso era verdade. Nunca
havia pisado numa igreja? Nunca? Ora, passara a infância e parte da adolescência assombrado
por não ter sido batizado. Os colegas o infernizavam, “pagão, pagão! Se morrer vai preto direto
pro inferno!”. Tinha medo de dormir no escuro, o diabo o carregaria, diziam. Em sua precária
memória restam os rogos para que a Tia o leve ao batismo. “Menino, o batismo é só um banho
mal tomado! Se Deus existe nem no mar ele cabe, quanto mais naqueles pinguinhos do padre!”.
Não se aquietava. Antes de dormir fazia o sinal da cruz, promessas a Virgem, rezava o Pai Nosso
e a Ave-Maria. Nunca pôs os pés numa igreja? E sua contrição na capela do Colégio Militar,
durante as missas? E sua curiosidade pueril pelos mistérios da Trindade? Não, ele não saiu
incólume do cristianismo como arrogava. Exagerou para desviar o rumo da conversa.
Os fones nos ouvidos de Maria, besouros zumbindo, entravam pelo rabo do olho.
Coçou as orelhas irritadiço. Soltou a língua bruscamente, num espirro.
— Não incomoda?
Maria retirou o fone da orelha direita. Os cachos negros encheram a boca do Kant
aberta nos joelhos de Anselmo. Maria aproximou o ouvido para ouvi-lo melhor em meio ao
barulho das ferragens do trem.
— É Belchior. Essa é linda, escuta aí…
Uma careta crispou a cara de Anselmo. Maria ficou de braço estendido, o fone nas
pontas dos dedos, depois o recolheu largando sobre Anselmo a metade do seu mal-estar, a outra
ruminaria sozinha. Seu dom caiu no vazio, que vergonha! Que custava receber a oferenda e por
uns segundos encaixar o inseto repugnante em um dos ouvidos? De que vale agora todo o
escrupuloso cuidado consigo se sobrevêm um surto de tagarelice para aliviar a sensação de
arrependimento? Mil vezes o fone no ouvido do que esse mal-estar! Agora, Anselmo, tente aí
apagar o incêndio em si mesmo a cusparadas!
— Você não acha incômodo enfiar objetos nas cavidades do corpo que afinal
querem ficar abertas…
Seus lábios se mexiam ao longe. Estivesse menos cego leria o rosto corado de
Maria, ensurdecida de vergonha pela inútil mão estendida, convidando-o para uma comunhão

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maior, o fone do ouvido como hóstia de uma eucaristia. Anselmo tagarelou até enojar-se da
própria voz diante da garota muda, indiferente e divina. Os dois suportaram o silêncio por umas
duas estações.
— Incômodo mesmo é ler esse livro aí!… Só presa, sem nada pra ler, eu comeria
uma palha dessa!… Você é estudante de filosofia, não é? Só pode!
Maria apontou o queixo para o livro nos joelhos de Anselmo desfazendo a postura
de estátua da qual estava exausta.
--- Minha língua é adoecida de poesia.
— Mas tem poesia em Kant!
— Como é? Ah, essa é boa!
Maria retirou os fones dos ouvidos e sorriu zombeteira.
— Agora você terá de me explicar isso!
Anselmo respirou fundo, coçou a testa e o nariz levantando os óculos para procurar
o fio da meada. Ia abrir a boca quando Maria o interrompeu.
--- Não, não, esqueça, acredito em você. Mudemos o tom. Li ontem no jornal que
os Pitaguaris estão sendo ameaçados por empresas de mineração e especulação imobiliária, com
o aval do governo. Isso é em Maracanaú, não é?… O que vocês, moradores de Maracanaú,
pensam sobre isso?
--- Na verdade isso é em Pacatuba, município vizinho… Chegou a minha Estação.
Até a manhã!

5º Dia

Na Estação Otávio Bonfim, Anselmo e Maria entram no vagão pela mesma porta,
cumprimentam-se com um aceno de cabeça e assumem seus postos um ao lado do outro. Maria
remexe a bolsa e saca uma caneta metálica.
— Ah, você encontrou!
— Não tinha perdido. Menti! Menti pra ter mais o que conversar…
O trem partiu, o vento entrou pelas janelas e dispersou os cabelos de Maria.
Anselmo mirou a belezura daquele rosto por entre brumas, penas de graúna que lhe lambiam
os olhos e arrancavam escamas. Uma senhora preta rechonchuda e vestida com o branco de
sexta-feira carregava sacolas cheias e dava um passo difícil para fora do vagão. O vazio inchou.
Esperta, Maria meteu logo os fones nos ouvidos e fechou os olhos. O olhar de Anselmo a
obsedava, impessoal feito uma ostra em simbiose com as ferragens. O anjo agitava as águas.
Saltar nas águas agora é se dividir em antes e depois irreversivelmente. Maria se movia com
prudência e recordava uma passagem de O Ateneu, de Raul Pompeia:
Convidava à adoração colhendo aos ombros o manto da candura, refugiando-se na
indiferença hierática das vestais.

Era sobre Ângela, personagem que lhe grudou na pele quando era ainda criança,
que contrapunha suas tendências ascéticas como um vestido curto cobiçado na vitrine. Ângela,
“grande, carnuda, sanguínea e fogosa…”, tão humana e perversa quanto os personagens
bíblicos. Parecia ela, exceto pela cor castanha dos cabelos que nos deslocamentos imprevistos
da encarnação foram dar nos olhos. Ângela “era como os elementos, sem remorso das desordens

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e depredações”. Anjo caído que assombrava os internados do Ateneu e Maria sob a estufa de
um protestantismo tropical. Sentada ao lado de Anselmo, de olhos fechados e ouvidos
entupidos, cobria-se de “indiferença hierática”, buraco negro atraindo-o para si…
Saltemos do primeiro beijo para adiante visando economia de papel. Casais são
fenômenos repetitivos. É desonestidade tomar a parte pelo todo, mas tratando-se de casais, vale
a pena o deslize. Da fusão das mesmices de ontem com as mesmices de hoje é que nascem
novidades aí. E tanta vez a novidade não aparece a olho nu, não passando de alterações nas
papilas. Lei de Malthus do casal: a novidade dos gestos cresce em progressão aritmética, a
novidade dos gostos cresce em progressão geométrica. Varre-se para debaixo do tapete da
língua os desvarios no paladar, engole-se o sapo a seco e cola-se com cuspe a cadeia dos gestos.
E assim se faz o amor. Saltemos para três anos adiante e cheguemos à casa de Maria, por volta
das oito da noite.
É março, Rua Leandro Monteiro, fiapo mal iluminado que sai da Av. 13 de Maio e
se arrasta por detrás do Pitombeira Bar. Anselmo espera ao portão de um dos prédios quase na
esquina com a Rua Padre Miguelino. Chove grosso, é a terceira vez que ele aperta o terceiro
botão do interfone, sem se distrair com o coral de gotas suicidas na parede. As gotículas
estouram feito gomos de tangerina liberando sumos sonoros no amarelo da parede. Óculos
orvalhados, ciscos nos olhos. Abraçado à mochila jeans ensopada, mantém-se fito no breu do
corredor adiante. A água pode penetrar na mochila, embora tenha confeccionado o forro com
zelo cirúrgico, como aprendera nas instruções da infantaria, quando aluno do Colégio Militar.
Um pedaço de encerado dobrado feito um quadrado, do tamanho da mochila; esquenta-se as
bordas com um ferro de passar roupas até derretê-las e emendá-las; faz-se um saco para forrar
o interior da mochila. Como evitar as fissuras? Como limitar a esperteza da água? A fluidez e o
vapor são duas antenas tateando vias… via os carimbos da biblioteca nos livros borrando, e
condenando-o a gastar dinheiro para repor o livro. Comprimia a mochila contra os pulmões em
carnaval, mas… e se estivesse a empurrar a água mais para dentro?
Maria desponta no corredor e vem crescendo. Açoita a teimosia da fechadura e o
portão se abre rugindo ferrugem. Ela vem coberta com o espírito santo composto de sabonete,
xampu, cremes e humores. Não se incomoda de molhar a seda do vestido no abraço demorado.
Os mamilos se esculpem comprimidos contra o peito arquejante. O espírito santo empanturra o
corredor feito uma libidinosa gelatina a ser deliciada pelos movimentos da carne dentro dela. O
prédio de dois andares é um cortiço, empilha a ruma de apartamentos que são alvéolos de três
divisões, a cozinha, o banheiro e o quarto. A porta dá na cozinha que se dobra em cotovelo e se
prolonga no quartinho onde se cava o banheiro. Na parede da cozinha, à esquerda, há dois
palmos do teto, uma janelinha de ventilação dava para outra parede lá fora. Através dela o sol
se projetava no quarto e na cama.
Por que Maria veio morar num cafofo desses?…
A modéstia do apartamento irradiava higiene. A brancura nas paredes, o escrúpulo
na ordenação dos poucos móveis, simplicidade rústica e confortável. A ocupação do espaço,
sofisticada por inconscientes cálculos de geometria e de estética, fazia proliferar o espaço. Do
limiar da porta se vê o fogão abaixo da janelinha, na parede da esquerda. Ao centro, diante do
fogão, a mesa redonda de mármore se cerca de quatro cadeiras acolchoadas. Na parede adiante,
uma pia reluzente e sem louças sujas. À direita, numa parede reduzida à metade, se recostavam
o armário e a geladeira, e se abria a dobradiça para o quartinho. E nele, rente à parede, a

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cabeceira da cama, a cômoda e a estante, coladas, preenchiam o limiar entre os dois
compartimentos. Sobre cômoda, o rádio relógio latejava o tempo e a televisão tagarelava. As
emissões dos dois também faziam parte da frugal mobília da casa e se revesavam na ocupação
do espaço conforme a variação dos humores de Maria. Os móveis estavam tão perfeitamente
harmonizados que a falta de um deles esburacava o sistema e ameaçava ruí-lo inteiramente, o
circuito não se completava, por menor que fosse o buraco, e abria-se o espaço para a devoradora
bolha do vazio insurgir do fundo. Daí a importância de não deixar entrar o silêncio, e alternar o
som ora da televisão ora do rádio relógio.
Esse sistema eliminador de vazio, que ordenava a casa e mente de Maria, também
era útil a quem estivesse deitado na cama. Facilmente, com gestos curtos e simples, poderia
abrir as gavetas da cômoda, arrancar livros da estante, olhar-se no espelho pendurado ao lado
da porta do banheiro, e contemplar a deusa enrolada numa toalha temperada de aromas
alucinógenos quando saísse do banheiro.
Anselmo limpou os óculos com toalhas de papel do rolo guardado na primeira seção
do armário cujas portas eram transparentes. Despiu-se no mesmo ímpeto com que esvaziou a
mochila. Sorte! O livro da biblioteca se umedeceu só um pouquinho nas pontas, e os
apontamentos da monografia estavam intactos. Ficou grato à água mais do que ao forro da
mochila. O ventilador de coluna ao lado da cômoda é indispensável, mesmo nessas noites
chuvosas, com seus sopros giratórios se repartindo entre as costas suadas e os papéis sobre a
mesa. Sentado numa das cadeiras à mesa redonda e marmórea, quedou o queixo sobre o peito
e respirou fundo como se corresse.
Em Paris, por moda ou necessidade, ou amálgama dos dois, estudantes se amofinam
em quartos milimétricos no alto dos prédios, os Chambres de Bonne. Se isso é fácil para o
sangue francês, para esse desnudo de pernas peludas, nativo do baixo-ventre do mundo, é uma
tortura. Respira fundo para expelir o desequilíbrio provocado pela pequenez do lugar. Por que
Maria veio morar aqui? A questão o apertava junto com as paredes. Falta de dinheiro não é, o
pai é coronel e lhe manda uma gorda quantia mensalmente. Austeridade? Tempo demais sob a
canga do calvinismo? Talvez, mas vá com calma, cuide mais em arrancar os espinhos e se
anestesiar; você acabou de chegar e longa é a jornada. Cuide, que a saudade da janela para o
quintal e do cacarejo das galinhas virá assombrá-lo.
--- Você prefere mesmo acordar às cinco e fazer esse êxodo rural todo santo dia num
trem entupido de gente? Tome aqui a chave, me faça companhia! Não gosta da minha
companhia?…
--- Querida, tenho duas mães em casa, senhoras de idade…
Por um triz! Não seria besta de mencionar as galinhas…
As paredes apertavam seu pescoço, os vapores de Maria dilatavam as paredes. O
cheiro da pele mesclado às fragrâncias da comida se fazia sofisticada gastronomia combinando
tons de amargo, salgado e doce, tensões ultra-saborosas. Divindades são indissociáveis de seus
lugares sagrados.
Os ritmos certeiros da rotina, lua nova e shabat, mecanismo do amor que se faziam
extensões dos nervos. Sexta-feira, às oito horas, o jantar. Maria faz a comida e Anselmo lava a
louça. Assistiam a um bom filme, faziam amor, dormiam abraçados…
Mas Maria começava a desfiar essa briosa tapeçaria insistindo que Anselmo ficasse,
“pois onde já se viu um casal que só se encontra às sextas-feiras?” Retórica. Ficava até o sábado,

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até metade do domingo e em certas semanas chegava a comparecer todos os dias, fixado pelas
pontiagudas súplicas. “Estava em boas mãos”, para a Avó e para a Tia, que tinham uma
“simpatia exagerada” por Maria, segundo Antão. “Bonita, boa moça e branquinha!”. Estavam
maravilhadas com essa primeira namorada que invalidava as insinuações de Antão; está claro
agora que o menino não é efeminado coisa nenhuma, é cabra macho sim. E mesmo que fosse
efeminado, como sugeria o pai, foi bem-educado e com sorte os vizinhos nem notem. Mas não,
o menino é cabra macho. Ó, Maria, bendita és tu entre as mulheres. Sim, e por cima branca,
para branquear mais a família!
Seria o paraíso se Anselmo deixasse do lado de fora da casa de Maria, chapéu
pendurado no cabide atrás da porta, seus incômodos. Sim, do lado de fora, como faz o cristão
com a cabeça ao entrar no templo de seu deus.
Mas Anselmo não é nenhum inocente, contribuía para o desmoronamento da rotina
com seus constantes atrasos. Sexta-feira, sete e meia da noite, o relógio na parede branca,
impassível olho sem pálpebra, observa o crescente tormento de Maria. O movimento dos
ponteiros esfrega em seus seios um pedaço de nada. A terra é sem forma e vazia, e há trevas
sobre a face do abismo. Só a televisão e o cigarro por luz. Deitada no abismo da cama, dá tragos
sôfregos sugando as areias do tempo para acelerar seu escoamento, ou morreria. A ampulheta é
virada outra vez, a fumaça vaza pelas narinas e o peito recupera o oco. Por onde andará
Anselmo? Na televisão uma mulher clama pelo Espírito Santo. Maria empunha o revólver,
controle remoto, na direção desse rosto de maracujá murcho e seu chorro horrendo. A mulher
levanta as mãos e abre o redondo da boca encarquilhando os vincos da cara cheios de lágrimas,
saliva e suor. Um tiro – a campainha! –, a onça salta da cama e bate as patas no trinco. Hesita
em abri-la, o cigarro entre as garras há de queimar os olhos do messias esperado!
Abraça-o e o vestido de seda sobe desvelando opulentas coxas pálidas. As mãos do
Amado deslizam em seu dorso sem tatear o quadro de sintomas. Toma-o pela mão e o conduz
pela escuridão do corredor, levando aqueles olhos míopes grudados feito lesmas nas coxas
afobadas umedecidas de odores inebriantes.
Como se a eterna sonoridade da televisão não infernizasse o suficiente – o fedor do
cigarro. Contra o assédio das paredes, o único revide é se despir; retirar a roupa devagar, dança
japonesa que adorna a brutal necessidade de atenuar o abafamento. Nu, apoia os cotovelos
crespos nas manchas do mármore na mesa, e observa os dígitos vermelhos do rádio relógio
sobre a cômoda, 21: 35. Está atrasado… prepare-se… Com os braços rígidos ao lado do corpo,
Maria observa as costas suadas do Amado secando ao ventilador. Em pé, imóvel, na mórbida
música de fundo enxovalhada de gritos de “aleluia!” e “glória a Deus!”… “Tragam ele aqui
para o altar!… Tá amarrado! Ponha as mãos para trás!”…
Anselmo se ergueu feito cão raivoso destoando da dança japonesa e assaltando a
cama. Revolveu os lençóis rosnando e rangendo os dentes como um possuído. Livros, garrafas
vazias, embalagens de chocolate, potes de sorvete, latas de cerveja, papéis amassados, copos,
xícaras, embalagens de iogurte, enfim uma coleção imunda se acumulava na cama. “Qual é o
teu nome? Fala pra mim, fala!” Levantou uma das pontas do edredom e o monturo deslizou ao
chão. Puxou de supetão um dos lençóis embolados e um objeto metálico saltou no ar feito peixe-
voador. “Meu nome é Legião porque somos muitos! Ouviram isso, igreja? Esse aqui é o Legião,
o mesmo do Evangelho! O que você quer nesse corpo, Legião?”. No lugar de escorraçá-lo como
faria um animal se outro mete o bedelho em seu ninho, Maria se detém a observar. É que o

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brilho da cigarreira de prata, que havia pulado de dentro dos lençóis, cortou-lhe o ventre; um
bolo de vísceras caiu no chão: suas memórias. “Em nome de Jesus, sai capeta! Sai todo Exu,
sai todo Zé Pilintra, sai todo Tranca Rua, sai agora que esse corpo não te pertence!”. Anselmo
continua a fuçar nos lençóis, grunhindo entre os dentes: “onde está esse maldito controle
remoto?”
A cigarreira de prata morava na mesa lateral à destra da poltrona do pai, na sala de
estar. Todos os dias, por volta das oito da noite, Coronel Cláudio sentava em seu trono, fumava
uns cigarros, tomava chimarrão, e continuava a leitura de um romance. O livro da vez era
Sertões, de Euclides da Cunha, que lia há uns dois anos. Natural de Porto Alegre, ingressou no
corpo docente da Escola Superior de Guerra, no Rio de Janeiro, ainda jovem. Era respeitado
nas altas esferas por seus artigos e contribuições para a melhoria dos manuais de instruções
militares. Em Manaus encontrou a felicidade plena. Além de conhecer a mãe de Maria, uma
bela universitária de ascendência indígena, as atividades do Centro de Operações Guerra na
Selva lhe garantia o prazer máximo da carreira militar: dedicar de corpo e alma ao treinamento
de novos combatentes de selva. Autodidata excepcional, aprendeu alemão, francês, espanhol e
inglês usando de métodos próprios, cuja regra áurea era ter em vista a utilidade de um saber e
sua necessidade inadiável. O espanhol e o inglês serviam às atividades que desenvolvia na
Amazônia, das quais pouco sabemos.
Por força de uma equilibração forçosa, não é incomum que os filhos virem de ponta-
cabeça a ordem dos pais. Logo, não há nada de extraordinário crescer apaixonando-se por
Literatura e Poesia. Raridade mesmo é o pai aplaudir as piruetas rebeldes da filha, e se colocar
como trampolim. Sempre no início do mês, Cláudio presenteava Maria com romances e
coletâneas de poesia. A filha retribuía recitando Pablo Neruda de cor e arrancando lágrimas do
pai, com apenas dez anos. Lá pelos quinze, a menina passou por uma “revolução” que alterou
um tanto sua paixão: fez confissão de fé na Igreja Presbiteriana, a mesma onde a mãe fora
batizada e velada. Embora falecida, a mãe ainda amamentava a fé da casa. Coronel Cláudio se
conservava presbiteriano e herdeiro da Reforma calvinista, mensalmente enviava sua
contribuição financeira à igreja, onde tinha alguns colegas presbíteros com os quais partilhava
a simpatia pela Maçonaria, da qual fazia parte. Todavia, ficou no túmulo da esposa sua
assiduidade aos cultos de domingo. É exagero paterno Cláudio chamar o evento de
“revolução”; a única alteração digna de nota na filha foi seu novo interesse pelos empoeirados
tomos de Teologia que mofavam na pequena biblioteca da Igreja. Já ia pelo segundo volume
das Institutas de Calvino e lia pela terceira vez as Confissões de Agostinho. O novo interesse,
ao que parece, empurrou os romances e os livros de poesia a um lugar secundário, vizinho ao
Euclides da Cunha na mesa lateral do pai.
Cláudio o oferecia o cérebro a coisas realmente sérias, e dava-se o luxo de
despreciar os entretenimentos oferecidos pela Literatura e também pela Teologia. Alguém com
seus deveres não podia perder tempo e energia com esses passatempos; embora, naquele ritual
de aliviamento da estafa mental, pudesse dar algumas lambidas no Euclides da Cunha. Mas por
amor à filha entortava-se para acompanhá-la e presentear como convém. No começo desse mês
trouxe um livro chamado Uma vida com propósito. “Papai, esse livro mais parece um manual
de instrução!” No mês seguinte trouxe dois “best-sellers”, A Cabana e Deixados para trás; pois
talvez agrade a mescla de teologia e literatura, pensou. “Papai, isso nem é Literatura nem é
Teologia, são livrecos estilisticamente repulsivos e teologicamente ruins, entalados

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estadunidenses…” Como Cláudio poderia atinar que não é sem consequência alguém, aos
quinze anos, ter a “fome de Deus” despertada pela leitura de Irmãos Karamazov!
Cláudio vinha de uma dinastia de oficiais do Rio Grande do Sul, que remontava aos
combatentes da Guerra de Farrapos. O caráter prático e inapto para especulações metafísicas
estava no sangue de sua linhagem, vinda de imigrantes do Açores no século XVIII. O cultivo
de uma ascese positivista própria da educação militar, uma religião dos atos e dos fatos pouco
inclinada à introspecção e ao devaneio, regia seus hábitos. Austeridade evidente em seu modo
de falar, sempre lógico e lacônico, com ideias claras, simples e bem concatenas, depurado das
inoperantes pausas para pensar sonorizadas por fonemas como “ahn, hum”, e sem repetir
glossas estúpidas como “aí” e “né” e outros cacoetes. Ingressou no Colégio Militar de Porto
Alegre aos onze anos, como os dois irmãos mais velhos; desde então usa uniformes cobertos
de medalhas e condecorações.
Apesar disso, encantava com o jeito da filha, decerto influxo do sangue indígena da
mãe, fervilhante de mitologias primitivas e personagens lendários. A mãe de Maria se converteu
ao cristianismo na universidade, mas é claro que não superou a infantilidade de seu pensamento
selvagem. Não havia contradição entre o paganismo indígena e o cristianismo, Cláudio nivelava
os dois como infantilidade. O elemento superior do cristianismo está em sua superestrutura
cívica, decerto mais evoluída, organizada com hierarquia e disciplina, traço essencial à
cidadania. Porém, sua infraestrutura mitológica, suas fantasias, imagens, crenças aberrantes,
com rituais místicos como oração, jejum e adorações entusiásticas – precisamente a
superfluidade irracional à qual os incultos mais se apegam! – é tão infantil quanto o pensamento
selvagem. Nisso, o protestantismo tradicional está ainda acima do catolicismo por ser
autenticamente monoteísta, logo mais apurado pela razão. O monoteísmo, como se sabe,
coopera com a fé no Estado e com a unidade nacional. Embora o catolicismo se diga monoteísta
e sua unidade seja garantida pelo Papa, carrega um panteão de santos e ordens nascido de
sincretismos. Vejam agora a umbanda e agora mais essa epidemia de cultos sincréticos em torno
da ayahuasca, tudo tem o dedo do catolicismo!
Cláudio simpatizava com a fé da filha porque tinha em vista sua eficácia
infantilizadora. Mitos, vestígios da infância da humanidade, superada pelo progresso da razão
e pela ciência. E como qualquer adulto alienado do mundo das crianças, espiava a mente da
filha por um olho mágico, os contos de fadas que ela lia, as orelhas dos livros que presenteava.
Simpatizava com esses livros embora não compreendesse nada deles; eram funcionais,
preservavam a inocência e a infância da filha, a obediência e a distância dos perigos da
juventude.
Apesar de dobrar os joelhos e se colocar na mesma altura, como ouviu dizer que os
índios fazem, Cláudio permanece do lado de fora, cego para os milagrosos processos internos
a uma criança de dez anos.
— Filha, você quer estudar no Colégio Militar?
— Não, papai, eu não quero usar aquele uniforme horroroso não, e também não
gosto marchar não.
Seu espírito mecânico escuta como quem como os ossos de um pato no tucupi e
joga carne fora; reduz tudo ao “sim” e ao “não”. Matriculou a filha num Colégio de freiras.
— Você está gostando do colégio, filha?

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— Sim, papai. Mas as pinturas e os santos da capela estão precisando de
restauração, e a roupa das freiras é horrível.
Ninguém soube, mas Cláudio teve um “início de depressão”, segundo a opinião de
um tenente do quadro de saúde, seu amigo.
--- Depressão? É hora de piada?
--- Amigo, você anda introspectivo, devaneando e até gaguejando!
A moléstia se instalou quando a filha, aos dezenove anos, aceitou o encargo de
seminarista da Primeira Igreja Presbiteriana de Manaus. O Conselho foi unânime; Maria
receberia uma bolsa para se bacharelar em Teologia. Há anos ela vinha fazendo um excelente
trabalho na classe de preparação para a confissão de fé e na Escola Bíblica Dominical.
Explanava os Cinco Pontos Calvinistas e o Catecismo menor de Westminster. Uma jovem
brilhante, sem dúvida, com soberbo futuro ministerial! Sim, sim, com certeza, ainda mais agora
que os sínodos decidem pela ordenação de mulheres, e que a Teologia feminista se populariza
na América Latina!
A amargura e o remorso carcomeram Cláudio por um ano inteiro. Por que não
persuadiu a filha a ingressar na universidade, como aconselharam? Por que não usou de
autoridade para encaminhá-la? No fundo, acomodara-se. Via a filha debruçada nos livros, longe
dos dilemas das garotas de sua idade, namorados, festas pela madrugada, álcool, drogas etc.
Sonhava em mantê-la assim, sentada à escrivaninha, no quarto. Uma hora ela descobrirá por si
mesma o que fazer. É jovem, tem tempo. Parecia ter nascido sabendo de tudo, arrancava dos
livros o que precisava, sozinha – puxou ao pai! Os amigos integrantes da Cruzada de Militares
Espíritas, admirados da eloquência de Pablo Neruda na voz da menina de dez anos,
especulavam que talvez Maria fosse a reencarnação de algum escritor, tinha uma missão na
Terra. Tem sim, amigos, fazer o pai feliz!… Agora fique aí, Cláudio, ruminando o amargo
preço da tolice de não ter empregado métodos racionais e eficientes na criação da filha! Oh, foi
o tempo que desembestou veloz… Nesta Vila Militar à sombra da Amazônia, a vida é lerda
feito um bicho-preguiça que cega a gente com seu butô; um piscadela e o bicho já está lá no
olho da árvore gigante! Para onde? E por que o Nordeste? Fortaleza, Ceará? Não há escolas
teológicas no Sul? Logo no Ceará, terra de cabeças planas? Tem certeza disso, filha? Não é
desperdício de talento perder tempo no Nordeste? Nada lhe falta aqui! Não prefere estudar algo
realmente útil, Direito, Medicina, Engenharia… No Exterior, no Sul? Mando você para a casa
dos tios… Ah… Descobriu o que quer? Entendo, entendo… Sim, sim, sim, claro, tem razão…
Sim, sim, sim, é verdade… Sim, sim, sim… Bem, se essa é “sua missão”, se é essa “sua
vocação”, se os Céus assim ordenam, quem sou eu para me entrometer entre uma alma e o seu
Deus?
A moral da obediência encontrou uma autoridade superior ao pai, e Cláudio só podia
abençoar mais uma vez as piruetas da filha.
Desconsidero detalhes como as atividades de Cláudio na Amazônia, seu entusiasmo
pela integração do território nacional, a psicologia de um pai amoroso que coexiste com o
militar capaz de dizimar uma população indígena para garantir a execução dos “Objetivos
Nacionais Permanentes”. O que dizer do acordo discordante entre o casório com uma
Munduruku e o comando de cortar as mãos de nativos insolentes para, “dar exemplo”? Todos
podem ser bicho de sete cabeças, afinal… O que preciso explicar agora é por que Maria foi
furtar a cigarreira do pai.

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Depois do novo casório com uma garota da idade de Maria, o ritual de sentar na
poltrona às oito da noite virou uma espécie de zona de tolerância. A Madrasta decretou o
extermínio da memória da antiga esposa, e incluiu no codex a ser atirado na fogueira a “filha
que não era sua”.
A secretária veio lhe avisar do telefonema do pai. Deixou os rascunhos sobre a
mesa, na sala de estudos do Seminário, e foi atender na secretaria. Há dois dias, Maria redigia
as cinco páginas de sua defesa. Já comparecera a duas reuniões com a direção do Seminário, e
tinha esperança de tudo não passar de um mal-entendido. Aquelas páginas trovoarão como
Paulo perante o Rei Agripa, tudo se esclarecerá. Sua defesa amansará a tempestade, e as calúnias
e ameaças de expulsão do Seminário se dissiparão. Se foram seus sopros nos púlpitos, nas casas
e nos ouvidos que produziram essas ventanias, são bons ventos! Se de fato comemos do fruto
da língua, há esperança. Sua defesa será irresistível como a voz de Estevam esmigalhando os
empedernidos corações das autoridades.
Maria, não há nada de réprobo em sua conduta, em seus hábitos e nem em sua
dedicação intelectual, bem conhecida por nós. Sejamos honestos – e o que mesmo isso importa?
Manchas na conduta podem ser acobertadas. O problema é a língua, esse órgão indomável que
transborda o que o coração oculta! Não se esconde uma vela acesa debaixo da cama; a casa
pega fogo! Atente, a mácula está no que você tem anunciado sobre os telhados, no que tem
escrito e pregado nos sermões de domingo. O que se faz em segredo é problema do Altíssimo,
mas olhe aqui o ofício que nos foi enviado pelo Conselho da Primeira Igreja Presbiteriana de
Manaus. Ele revoga sua bolsa e alega que você tem deturpado a sã doutrina e “deixado satanás
penetrar o coração”. Sabemos que satanás é apenas uma casca mitológica, mas vale aqui o
miolo… Não, ao menos nesse caso, o problema não é o dinheiro. Se você pode custear os
próprios estudos, o melhor é que conclua o curso em outra instituição. O regulamento é claro:
seminarista excluído não pode mais fazer parte da casa. Sim, você tem razão ao dizer que nossas
regras são híbridas de laico e religioso, mas convenhamos: isso é a marca de todas as
instituições educativas do país. Você tem um mês para deixar o quarto no Casarão. Que Deus a
abençoe, Maria.
Como é, papai? Casar amanhã? E só agora o aviso? Sim, entendo… Tantos
preparativos que se esqueceu da única filha… Oh, me desculpe, pai, não poderei comparecer,
ando ocupada. Não, não é dinheiro. Pai, nem sempre o dinheiro resolve… Coisa minha! Não se
preocupe. Meus parabéns, pai. Seja feliz!
Maria regressa à Casa paterna semanas depois. O pai perdurava atlético e bem
cuidado com seus cinquenta e poucos anos. Depois de tanto tempo viúvo “merecia ser feliz”.
Frase esquisita, tudo é sorteio e a ideia de felicidade é inadequada, valor criado por homens
impregnado de teleologia, “fim último da vida”; ficção ardilosa, arapuca! Mas quando o queixo
áspero do pai roça-lhe a testa, sussurra, “o senhor merece ser feliz”.
Sussurros ao ouvido, só assim para conversar com o pai. A Rainha louca, Madrasta,
não o largava um segundo. O que é isso, o pai de eunuco no palácio? A Rainha louca ronronava
e o pai a lambia? Fofocas de vizinhos descem a ribanceira. Meus pêsames, querida, a profissão
de sua madrasta… Calem-se, que estupidez dourar a viuvez de luto virtuoso! A solidão e a falta
de calor estão na lista das fraquezas e não das virtudes! Profissão: dançarina de cabaré, e o que
tem? O pai se entregava a celebrações noturnas em lugares impróprios? Grande surpresa! O
homem é saudável e vive dos próprios recursos; só para os faltosos de vigor e imprudentes esses

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excessos são proibidos. Oh, querida, que desonra à santa da sua mãe!, dizia revirando os olhos
a mãe de oficial do quarteirão de frente que a conhecia desde bebê. Maria empurra sua cadeira
de rodas no passeio da tarde, como outrora. Constata a poda maldosa nas árvores da Vila,
algumas arrancadas por mandíbulas de trator. O cinzento floresce e espezinha o verdejante. É
bom ouvir a voz da senhora e recordar suas conversas com a mãe na sala, as falas misturadas.
Não mudou muito seu rosto escuro e com traços indígenas, e menos ainda suas convicções
morais que não acompanhavam as evoluções na paisagem da Vila. Maria empurra a cadeira de
rodas esmagando as indignações da senhora e sua pregação cobiçosa de varrer do mundo toda
corrupção. Nessa idade, tão ingênua, soubesse ela a qualidade dos empoleirados nos púlpitos…
Maria escuta mansa os trovões da senhora recordando suas lágrimas no dia da despedida rumo
ao Seminário, anos atrás. Vai com Deus, minha filha, não esqueça de mim, sua avó postiça!
A mesma idade e as mesmas medidas de Maria, a mesma cor nos olhos e nos
cachos… Mas que mal há nisso? Não obstante – a náusea! Como negar a náusea provocada por
esses fatos irrisórios? Este coração à deriva no mar encapelado da náusea, como ancorá-lo?
Como domar essas vagas com rédeas curtas? Não se versou o suficiente na situação histórica,
social e política das mulheres? Não tem sob os pés a Moral dos Homens? Sua monografia de
conclusão de curso era um ensaio que relacionava duas variáveis: a) A “percepção dos aspectos
femininos da divindade”; b) a “a simpatia social pelas mulheres”. A hipótese é a de que o grau
da primeira é diretamente proporcional ao da segunda. O ódio à imagem de uma mulher
amamentando, a criminalização do adultério feminino, e o índice alarmante de feminicídios no
Brasil poderiam ser abordados por esse ponto de vista teológico? Teologia prática,
experimental, e escrita com estilo. A expulsão do Seminário sabotou o trabalho. Isso explica a
náusea? Certos fatos apareçam criminosos ao entendimento que depois de um exame os absolve
– nada de mais! As vísceras revoltadas agarram de volta esses fatos para linchá-los ou reabrir o
processo. Hesitantes, puxados em direções opostas por cavalos possantes, que fazer? Examinar
com mais rigor os fatos até encontrar neles a mácula que justifique a revolta das vísceras? Ou
inspecionar que resmungos viscerais são esse, se não passam de infantilidades? Maria se
esforçava no segundo procedimento, não obstante – a náusea!
Regressou à Casa paterna para ficar. Jurou que só poria outra vez os pés numa igreja
para pisoteá-la. Por que não escutou o pai e foi estudar Letras em Porto Alegre, na casa do tio?
Agora volta como o Pródigo, esgotada, sem planos e sem fé; só queria repousar, respirar o
fantasma da mãe misturado ao cheiro do pai, à sombra das grandes árvores e dos muros baixos
da Vila Militar onde nasceu. Deus estaria apenas ali.
Pontas de arame farpado em seus dedos: a Rainha louca apoderou-se do principado.
Maria tateava os hieroglifos na casa; a mudança da pintura e das cores, a nova disposição dos
móveis perfazia um cercado demarcando a propriedade. Precisou apenas de uma semana para
desvendar e enigma – o pai não a queria ali! A presença de Maria fez da nova esposa um porco-
espinho. “É a minha enxaqueca de sempre, por favor, deixe-me só. Vá dormir com sua querida
filha, vá!”. Com a tática de Lisístrata, a Rainha louca cavalgava a possante vontade do Coronel.
Com mãos, pernas e boca, mananciais de gozo estancados, o chantageava.
“Pai, basta para mim! Retorno amanhã ao Ceará”. O Coronel alargou os dois
buracos da cara. A agitação espalhafatosa de suas mãos e pernas era notória, a língua inquieta
limpava continuamente os lábios ressecados e com um fio vermelho beirando o bigode ruivo.
Seus modos no falar, sempre lacônicos e lógicos, se estragavam em gagueira. Seu rosto branco

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se abrasava e o opaco nos olhos azuis tiniam como os de um viciado. “Ahn?… Você acha
mesmo, filha? Bem, hum… Certo… Tá…” Entregou um talão de cheque em branco à filha,
aliviado, vergonhosamente aliviado. Os lábios arenosos tremiam por balbuciar algo que a
cabeça não soltava. Como olhar Maria nos olhos? Girava a cabeça de um lado para o outro;
talvez a Rainha louca o bisbilhotasse, atenta às suas declarações de amor à filha. Mas hoje, ah!,
finalmente, as portas do paraíso se abrirão! Como um Sansão ele afastaria as duas colunas do
templo e morreria de gozo.
Na última madrugada insone na casa do pai, Maria deambulou pelos
compartimentos farejando resquícios, odores, cores, formas e objetos, ânforas do passado.
Proust lhe veio à cabeça junto com todos os livros da estante ausente que ficava bem nessa
parede aqui… Arrastava no chão o lençol, enorme língua cansada, e roçava os dedos nas coisas
feito borboleta faminta extraindo néctar da dureza dos objetos. Asas amassadas e caídas como
o pano rastejante. Novos móveis, nova pintura, nova arrumação. Reconstrução que dividia a
história e afundava uma Atlântida de memórias. O cenário mudo não partejava lembranças. O
cheiro de tinta fresca não perfuma, os móveis luxuosos não ejaculam centelhas divinas. Só o
altar do pai se impunha ilha no dilúvio universal. Na sala de estar, a poltrona e a mesa lateral
flutuavam no oceano do nada. Maria se aproximou da orgia dos objetos sobre o altar, o ícone,
os incensos, o livro. Tomou nas mãos o porta-retrato de ferro esculpido com adornos
minimalistas. À sagrada imagem da mãe com um bebê no colo veio um jorro de lágrimas.
O dia raiou dificilmente, as malas feitas fizeram saltar as enjoativas delicadezas das
despedidas. “Volte sempre, boa viagem, a casa é sua, venha nos visitar quando quiser…” Maria,
já que você se vai para o quinto dos infernos agora, receba minha cortesia, recompensa por nos
deixar em paz. Beijinhos nas faces frias. Você veio cedo e já vai tarde, Maria! Pai, volto para o
seu aniversário. Ah, querida, em fevereiro viajaremos, venha com a gente, traga o namorado,
vamos adorar, não é querido? Não tenho namorado, sua besta! Beijinhos nas faces frias.
O concreto e o cinza da Vila Militar se arvoram universais, desertificam a vida,
aplainam os picos, soterram os vales e esmagam as papilas da língua. Pela janela do Táxi que a
leva ao Aeroporto, Maria lança mau-olhado à cidade e ao mundo. Que o avião não caia com o
maremoto que lhe vaza dos olhos. Caia!
Desvirginar uma casa pode ser difícil. Um hímen espesso preenche o espaço com
palha de aço. Nascer para dentro, afinal, é tão duro quanto nascer para fora. O renascer no
interior de um espaço esbarra nos cacos de outros lares fincados na pele. Estreito é o caminho
e apertada é a porta da salvação! É mais descomplicado para os nus e desterrados; por precário
que um barraco seja, é o abraço do deus encarnado em templo para eles. Que o Argemiro de
João Ubaldo em Vila Real, para quem o teto alegra tão somente pelo seu ofício de cobrir, viesse
lhe fazer companhia na noite de inauguração do apartamento. É menor que seu quarto na casa
do pai, mas suas paredes impõem assombros de uma catedral gótica. O deserto de dentro pode
ser tão imenso quanto o de fora.
Maria senta na cama e retira da mala a cigarreira de prata, presente de casamento
de um general, recordava. Arrancou-a da comunhão de objetos à destra do trono do pai. Talvez
por isso a coisa estava muda; foi preciso violá-la para extorquir seus segredos. Abre a cigarreira
e encontra três cigarros. Nessa escuridão que apaga a vastidão dos compartimentos, por que não
acender um cigarro e conjurar os espíritos que a socorram, que auxiliem na defloração da nova

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casa? Maria põe o cigarro do pai entre lábios salgados de lágrimas, caminha até a cozinha e o
acende na boca do fogão. Quase torra os cílios curvando-se sobre a chama.
Na cozinha, Prometeu tomba do Olimpo e tudo se encandeia. Tanta vez a brasa do
cigarro é a única luz no fim do túnel – e basta! Surpreendeu-se de já saber tragar. O saboroso
gole de fumaça inundou a garganta e fartou o ventre de prazeres indizíveis. Quanto de alívio
podia se esconder naquela fina haste! Uma nuvem divina vaza em gomos dos lábios e das
narinas, e escorria pelo rosto em deliciosas carícias.
Furtou a cigarreira da mesa lateral para ter uma recordação do pai? A cena originária
da mão malfeitora desplantando o objeto lhe parecia tão absurda quanto uma possessão. Vingar-
se do pai? O ponto de apoio da alavanca, a mão anárquica, afundara-se no mangue da memória.
O cenário daquela noite de despedida ressurgia agora como um velório presenciado na infância,
embaçado sonho ruim. O motivo deslocara-se daquele nó na linha do tempo – para onde?
Perdia-se de vista, não estava acolá nem ali, mas a única pista era o aqui! Por que furtou a
cigarreira? Simples, para agarrar-se ao cigarro, para dar esse delicioso trago e exorcizar a
escuridão devoradora, para que nuvem de Deus entrasse em sua casa! Com os dedos no cigarro,
pendurava-se e não caia no abismo.
Naquela noite de despedida abriu-se a fonte do mangue cósmico, o buraco negro da
vida com seus dentes cariados de antimatéria. A fumaça do cigarro paira sobre esse abismo,
espírito de deus sobre a face das águas, aroma do Pai.
Mas o cigarro se sustenta por si mesmo na boca; o alento físico que dá basta para
fundamentá-lo no organismo. O gole de fumo produz ramificações profundas nos brônquios e
no estômago. É claro que cigarreira pode ser uma recordação do pai, mas com toda certeza é
também uma coisa em si com metabolismo próprio e evolução autônoma. A coisa viva que era
a cigarreira motava a fumaça do cigarro e crescia. Por sua vez, a fumaça do cigarro se
desenvolvia por enxertos de coisas que incensava. É claro que a cigarreira pode ser uma
recordação do pai, mas como um soluto no fundo do copo, o cotoco que nunca virava brasa
nem fumaça, apêndice à margem do circuito entre a cigarreira, a fumaça do cigarro e as coisas.
Maria fumou o primeiro cigarro, retirou da cigarreira o segundo e tocou a ponta do
primeiro emendando-os. Fumava um só cigarro. Por toda a vida fumará um só cigarro.
Interrompia-o eventualmente por ordem de fatores externos como placas “é proibido fumar” ou
a chegada de Anselmo. O cigarro nunca chegava à parte seca e sem sabor, ao soluto no fundo
do copo, pois o fundo é a vala horrenda que transborda morte e horror. Por toda a vida, um só
cigarro a ser cultivado pela fusão de uma haste a outra, ad infinitum. Um só cigarro a ser
produzido e consumido num mesmo processo. “O fogo arderá continuamente sobre o altar e
não se apagará”. Quando Anselmo chegava depois das 20:00 e queimava as narinas no fedor do
cigarro, e perguntava se ela havia fumado, Maria não mentia:
--- Fumei só um.
Anselmo agarrou o controle remoto e desligou a televisão, finalmente. Ignorou o
barulho e o brilho da cigarreira caindo no chão. A escuridão tomou conta, Maria reagiu batendo
a mão no interruptor e acendendo a luz como se matasse um mosquito. Haja luz para empilhar
olhares pesados sobre esses ombros bem repousados no encosto da cadeira adiante!
— Não fiz o jantar, vamos comer na Praça da Gentilândia sanduíche com pão árabe,
aquele que você gosta.

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Anselmo envergou o pescoço como um caule pisoteado. As pernas peludas que
batiam feito asas de morcego gordo se paralisaram.
— Querida, não tenho fome…
— Mas eu estou morrendo de fome!
Retirou os óculos, espremeu os olhos com o indicador e o polegar, respirou como
se corresse. Maria o chicoteava com cigarros e suspensão do jantar.
Mea culpa, mea maxima culpa!
Quem mandou se atrasar? Vestiu a cueca e a calça com presteza… Ao dar o último
laço no cadarço, mãos frias lhe afagaram as costas.
— Não precisamos ir se você não quiser…
A voz veludosa acompanhava as mãos friorentas. Veio um dejá vu, adivinhação de
não sei o que difícil de discernir por ser do pântano do presente onde se está atolado. O peito
sobre o joelho como o Newton pintado por William Blake mas sem a disposição um tempo
interminável para o uso do compasso – é que Maria contava friamente os minutos dessa
amarração de cadarços. Encurvado pelo laço no indicador e os elefantes nas costas, o olhar de
Maria.
Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa.
Ideo precor beatam Mariam semper Virginem…

Vamos, engula a seco o ouriço dessa intuição que quem tem fome tem pressa! Está
vendo esse relógio aí na parede, olho sem pálpebra? Ele tem torturado Maria desde o ocaso!
Vamos, corra! Amarre o cardaço que não é hora para visões febris! Dê o laço e regresse às
relações causais da originação dependente, à roda viva do samsara, ao mecanismo! Quem tem
fome tem pressa!

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Roda da fortuna

O contraste maltratou as narinas; minutos atrás apreciavam a brisa na Praça da


Gentilândia, de volta ao cafofo entram em combustão. Teve de enfiar as fuças nos arames
farpados, seguir o fio e farejar a origem do fedor de cigarros. Deitou o peito no chão, ao lado
da cama, e esticou o braço para um cinzeiro cheio de guimbas que cozinhava no ar abafado do
quarto; vela acesa debaixo da cama. Não era um cinzeiro mas um pires de louça; transportou-o
como se fosse um pinico de bosta e o esvaziou na privada. Despejou a garrafa inteira de
desinfetante e deu descarga uma, duas, três vezes. No centro do pires tinha um negrume
asqueroso, atirou-o logo no cesto feito papel higiênico usado. Bobagem era o delírio de nunca
mais ver esse objeto de nome plural deslocado de sua função original; havia um conjunto deles
guardado no armário, e amanhã Maria elegerá outro pires para vaso de desonra.
Nua e alvoroçada, Maria atravessou a via estreita entre a parede e a privada
manchando-lhe a camisa com o suor dos seios. Abanava-se com as mãos e resmungava. O
chuveiro apagou o incêndio em seu corpo e os resmungos viraram gemidos. Maria amansava-
se surrada pela água. Venha aqui, Anselmo! Venha saciar a sede destas labaredas que nem os
oceanos aplacam! Venha, tire a roupa! O fogo arderá continuamente sobre o altar e não se
apagará… Surdo para os comandos telepáticos de Maria, saiu do banheiro e a deixou usufruir
sua alegria solitária em paz. A porta bateu com fúria às suas costas; nunca que ele romperia sua
ortodoxia, deveria tê-lo agarrado e o arrastado com roupa e tudo para debaixo do chuveiro, só
assim… Não, não que está exausta. Reclinou o pescoço sob a torrente e assistiu aos cabelos
afilarem-se até os pés, até o chão, até o ralo, até o fundo…
Do outro lado Anselmo dava nó nas quatro pontas do edredom embarrigando o
monturo, as garrafas de iogurte, as embalagens de chocolate, as latinhas de cerveja etc. Salvou
apenas os livros metendo-os de volta na estante. Encostou essa trouxa de lixo na parede e
esticou um lençol limpo sobre a cama. Deitou-se exausto. Descalçou os tênis com as pontas dos
pés e tirou a calça e a camisa sem se levantar. O som do chuveiro afagava o cansaço, rara música
de fundo que combinava com a higiene do quarto, agora restaurada.
Para distrair o enfado, meteu os dedos na estante e tomou um volume qualquer. O
tomo I das Institutas da Religião Cristã, de João Calvino. Enrugou a testa e o enfiou de volta.
Sacou outro, um caderno de capa preta sem título… A porta do banheiro prendia o cheiro do
desinfetante e o fedor do cigarro campeava no quarto, fazia-o fungar e contorcer os sobrolhos.
Apoiou o livro aberto sobre o peito e a cabeça no travesseiro. Esfregava o nariz no verso da
mão que passava as páginas, respirava pela boca. A higiene do quarto ainda não fora restaurada
como convém, constatava. Os olhos lacrimejando não leram uma só frase das letras miúdas.
A água do chuveiro massageia o dorso de Maria e arrefece o cio por cigarros. Os
braços dependurados ao lado do corpo curvo chegam até os pés e as pontas dos cabelos.
Resmungou do calor durante todo o passeio. “Em Manaus as noites não são quentes assim,
Maria?” Fingiu não ouvir. Calculara mal. Deambular pela Praça não driblava o desejo de fumar.
Na rua, as bocas encaixadas nos cigarros acessos a beijavam no pescoço.
DENTRO DE CADA UM DE NÓS EXISTE UM VÁCUO COM A FORMA DE
DEUS, QUE SÓ DEUS PODE PREENCHER.
Essa foi a única frase que Anselmo conseguiu ler. Estava em grandes letras de forma
na primeira página.

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--- Se Deus preenchesse meus vazios eu certamente implodiria!
A porta do banheiro se abriu de repente e a glória de Maria empesteou a casa; o
nariz de Anselmo imediatamente se desentupiu. Os olhos aliviados grudaram nos quadris
carnudos de Maria feito carrapatos. Ela esfregou a toalha nos cabelos e assanhou mais ainda
seus odores medicinais, triunfando sobre o miasma do cigarro. Com um gesto de serpente se
enroscando num tronco de árvore, embrulhou-se na toalha e ciciou por entre os dentes como se
picasse:
— Entendes o que lês?
Deu bote e arrebatou o caderno das mãos de Anselmo. Acha pouco violar um ninho
e vai agora bisbilhotar seus segredos? Serpente e ao mesmo tempo deusa espezinhando a
serpente, tem olhos chamejantes e a boca curva em foice. Têmis sem vendas nos olhos, muito
pelo contrário, com um espelho diante de si!
— Pascal fala aí da incompletude do ser humano, da lacuna interior que só algo do
tamanho de Deus pode preencher…
Maria fala como metal que soa, de costas, diante do espelho, indiferente. Besunta
as pontas dos cachos e esfrega as mãos nas mechas. Não gosta de pentear os cabelos antes de
dormir, mas como deitar agora?
— Tenho também essa lacuna, Maria?
— Se você não for um animal…
— Bem, se eu tenho de ter essa lacuna, ela tem mesmo de ser preenchida?… Não
gosto de ter os orifícios tapados… Não seria essa lacuna uma janela ou uma porta que deve
ficar aberta, como o nariz, como o ouvido, como os poros?…
Ligaria a televisão outra vez ou o rádio, de preferência bem alto para não escutar o
Amado, que se distraía com tagarelices no seu enfado. Pentearia o cabelo para ficar de costas,
isolada na solidão do reflexo. Sua postura de estátua a tagarelice do Amado a picava tirando
água da pedra. Não, não macularia o rosto com choros, e para que o veneno da raiva não
inchasse os olhos, iria cuspi-lo.
— Você não sofre esse vazio, Anselmo?
— Se eu sofro esse vazio…
— Você não sofre esse vazio?
— Se eu sofro…
— Não sofrê-lo é sinal de animalidade! Esse é o sofrimento que nos impele a
transcender, a ter espírito, a amar! Pelo amor de Deus, você não sabe disso?… Por que os povos
primitivos começaram a embelezar sepulcros? Pra lutar contra a sensação de miséria diante do
nada! Foi assim que nasceu a Arte, nasceu da necessidade de embelezar sepulcros para resistir
à morte…
O sotaque de Maria evoluía em vulcanismo, Anselmo se refestelava – a divindade
colérica pousa na montanha!
Mas a divindade se consumiu no próprio fogo, o sarau de raios se findou deixando
um palito de fósforo esturricado e curvo diante do espelho. O pente fadigado se arrastava nos
cachos, o par de nádegas balançava cegando os olhos para o par de brasas no espelho. “Como
ele não sofre falta de nada? O que ele está fazendo aqui se não sente falta de nada?”.
No espelho, quase o mesmo formato da porta do banheiro ao lado, a imagem de
Maria é um prato de leite aparando gotas de sangue. Foi à geladeira e bebeu um copo d'água,

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engoliu o choro – nenhuma lágrima sujaria seu rosto de estátua, nenhuma! Recompôs o pentear
dos cachos, fios de escuridão pendentes da cabeça salpicando gotículas perfumadas no chão,
no espelho e no troço ali estirado na cama de olhos secos para cima. Dardejar com palavras
venenosas esse boneco de madeira duplicado no espelho, eis o que desejava, mas quais
palavras?… Palavras que corroessem feito cupins, que transformassem pau em carne! Quais
palavras?… As palavras que renderam a expulsão de David Brainerd da Universidade Yale,
século XVIII, recordou… Numa reunião de estudantes, o Prof. Whittelsey gaguejou ao orar em
público, então Brainerd, íntimo do Deus branco como um anjo, sussurrou na orelha do colega:
“Ele não tem mais graça do que esta cadeira”. Caguetaram ao reitor e Brainerd, missionário do
Deus branco, acabou indo sugar o sangue os nativos de Kaunaumeek sem diploma. O que tem
para se ver aí em cima se estou cá embaixo? Anselmo, você não tem mais graça do que esta
cadeira! Por que não estender a mão e me amassar as coxas e subir os dedos por dentro da toalha
no lugar de observar a planura do teto?
Deu-se conta agora da trouxa de edredom recostada à parede, mas conteve a fúria.
Penteava os cabelos.
— Então qual é a razão dos cigarros?
Anselmo sentou na cama como o Cristo prestes ao Sermão do Monte, boneco de
madeira insuflado pelo sopro divino. Sorria.
— Se é só Deus preenche o vácuo, por que você fuma, Maria?
E deitou de novo na cama sorrindo para o teto. O pente tremeu na mão para acertar
aquelas fuças arreganhadas. Engoliu o choro; nenhuma lágrima riscaria seu rosto, nenhuma!
Segurou firme o pente e fechou os olhos como se entrasse num rio até a cabeça e desaparecesse
na profundidade; mais Iara do que Ofélia.
Anselmo se deu conta da própria grosseria, mas já atirara flecha – pois que ela não
retornasse vazia! Fosse certeira e arrancasse o cigarro da boca de Maria! O cigarro causava-lhe
irritação nos olhos, entupimento e secreção nasais, perda de olfato e de bom humor. Que inveja
de Maria que com tragos rápidos e profundos obtinha agudez de espírito, fineza no olhar e
atenção multiplicada; com tragos lentos conquistava suavidade e quietude; com tragos
superficiais sorvia a própria respiração temperada de sabor. O cigarro lhe era uma ginástica,
instrumento de alteração de si mesma, enquanto para era um dilatador de coices nos nervos,
suscitador de golpes que fariam de tudo para arrancá-lo como espinho da carne. Quando os
orifícios da carne são tapados, inicia-se a revolução carnal para reabertura dos orifícios. Por
todos os meios necessários, por automatismos de sobrevivência, funcionamentos bioquímicos-
mecânicos e reações orgânicas. Esse era o seu vício, a diminuta brasa do cigarro tinha o poder
de evaporar seu espírito e acender o inferno das reações orgânicas involuntárias, tão grosseiras
como esse gracejo atirado em Maria.
Maria interrompeu a meditação de Anselmo com uma voz branda e quebrantadora.
— Deus está nos cigarros.
— O quê?…
Deslizava calma o pente por entre os fios ondulados, equilibrando-se.
--- Deus está nos cigarros.
— Deus está no cigarro, Maria?
— Questão de lógica: Deus está em tudo, o cigarro é parte do tudo, logo, Deus está
nos cigarros…

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Demorava-se mais do que o habitual no penteado, pois o que faria depois? Deitar
na cama, comprimir como uma mola a vontade o passar esse pente nas tripas de Anselmo? Faria
amor com esse que agora calcula quanto de troça cabe na fina louça de um silogismo?…
ria do silogismo de Maria, mas também vislumbrava chifres por detrás de sua
sintaxe, como uma sombra, areia caindo do teto em seus olhos. E se for verdade? E se Deus for
mesmo o tapa-buraco universal? E se a ligação de Maria com Deus for mesmo do tipo vazio-
preenchimento? E se Deus estiver mesmo no cigarro?…
Maria cansou e repousou o pente sobre a cômoda. Foi quando deu conta da mudança
nas feições de Anselmo, empalidecia como quem disfarça uma dor de barriga.
E se Deus estiver mesmo no cigarro?… Será preciso derrubá-lo primeiro, então. Foi
murro no ar o seu gracejo. Flechada no vazio… A imagem do Deus-cigarro é mais repulsiva
que a dos simplórios cigarros, infinitamente mais repulsiva! O Deus de Maria é um caranguejo-
eremita cósmico abrigado numa concha feita de cigarro! Pela primeira vez na vida, teve ódio
de Deus. Pensamentos venenosos rastejavam na cama, serpentes assanhadas. Só agora Maria
se dava conta, tinha uma infecção se alastrando na cama! Ainda de costas, pelo espelho ela
assiste à deterioração do amado, e aplaude. Você não tem mais graça do que essa cadeira,
Anselmo! E sim, sim, você carece! Sim, sim, você necessita do meu perpétuo socorro!
Um gosto de pele despenca no tártaro. Enxames de graúnas enegrecem o céu,
cachos negros. Uma carne leitosa se derrama nos músculos febris, membros fluidos, carnudos
e deslizantes como uma jiboia devorando um sapo. Sim, você carece, Anselmo. Sim, sim, você
necessita do meu perpétuo socorro! Um dilúvio inunda os poros de Anselmo e os entope de
prazeres. Abrem-se crateras sem fundo que só Maria pode preencher. Asfixiado de gozo,
confluindo os estertores dos quadris nos abafadiços da volúpia, ele fecha os olhos e mergulha
na amplidão desemparedada, na temporalidade pastosa que desarticula os ossos e desinflama
os nervos. E assim deixa escapulir por entre os dedos um cardume de visões. Visões ainda mais
aterradoras do que o Deus-cigarro. Ele, ele mesmo, é a concha vazia onde Maria enfia o
Supremo Caranguejo cósmico! Ele, ele mesmo, é um buraco onde o Deus de Maria se
esconde!… O amor de Maria é um vício fundamentado teologicamente. Deus está nos cigarros
e também está em Anselmo! E Maria cava fundo nele procurando-o agora.

48
O Sol
Como essa peça antiquada foi parar aí no quarto? Os braços do menino cresceram
empurrando o Baú para baixo da janela e escondendo-o de volta no lugar, à direita. Os pés
moles pisavam em sua corcunda de madeira e absorviam a consistência dura. A cabeça curiosa
e pequena enfiava-se na janela para assistir as galinhas arando o chão e cacarejando canções de
trabalho. Quando dava, o menino pulava a janela e despontava entre as pedras cheias de
segredos grandes demais para as mãos crianças que moldavam metais e forjavam civilizações
visíveis e invisíveis com o fogo dos sonhos. O Baú, escada que elevava o menino ao jardim de
Deus. Pular a janela era encarnar deus ou divinizar o menino, tanto fazia.
No quintal se refugiavam as quinquilharias, as coisas quebradas e repudiadas pelo
lar. Esses objetos todos se associavam e se fundiam espontaneamente para criar mundos. Nesse
Éden era bom que ele estivesse só. O Baú era a perna postiça com a qual o menino se agigantava
até o quintal. Ao regressar ao quarto escalando a janela com o pé num balde emborcado, o
menino tinha de empurrar o Baú de volta ao lado direito escondendo nele a ponte entre os
mundos. As peripécias do menino tinham de ser mantidas em segredo.
De início, o enigma do Baú estava em sua casca carimbada pelo barro do terreiro
no pé do menino-deus. Quando os pés se enrijeceram e as pernas já valiam por escada, o Baú
se enraizou de vez no lado direito da janela e adormeceu feito rocha. Então, os enigmas inscritos
na corcunda desceram ao estômago: o menino passou a guardar papéis ali, desenhos e escritos.
Anos mais tarde, Romeu, meu amigo, exumará o corpus de Anselmo do estômago do Baú e o
trará a mim, metido a tanatólogo e necromaquiador; metido a escritor.
Essa delinquência de metido a escritor é um diabo que cobiça tronos. E Maria?
“Romeu, o que você sabe de Maria?” O homem corou e olhou os pés”. “Morreu?”. Com
apelações e chantagens furtei de Romeu mais do que ele tinha. Ele escondia o ouro, tapava parte
do cenário. Quando se bacharelava em teologia naquele extinto seminário presbiteriano no
Bairro Damas, Av. João Pessoa, atualmente em ruínas e coberto de mato, fez amizade com
Maria, seu único lucro desse erro de juventude. Todo bônus tem seu ônus, como dizem, e
Romeu, apaixonado à altura do nome, encenou a ingrata farsa de melhor amigo. Não há perdão
nem arrependimento suficiente para quem comete o pecado de amar em segredo!
Maria acabou expulsa do Seminário por celeumas doutrinárias. Iniciou a
correspondência com Romeu depois de deixar o quarto no Casarão do Seminário. Com mil
recomendações, meu nobre amigo me deu a conhecer seu diálogo com Maria por e-mail.
Apresento-o parcialmente aqui, cortado pela metade, depurado da prosa de Romeu a fim de
poupá-lo da vergonha e livrar o leitor de canseira. Vamos direto ao fundo da lama, driblando as
epístolas paulinas psicografadas por Romeu. Afinal, problemas teológicos só se aclaram à luz
de sua fonte, o pântano das paixões. Não fará nenhuma falta, basta ao leitor saber que Maria
mencionou estar apaixonada – por outro, claro. Romeu reagiu conforme sua adolescência
espiritual, com deselegantes arrotos e trovoadas de tagarelice teológica. A amizade ficou
comprometida, nunca mais se falaram. Bem feito!
***
Meu amigo Romeu,
Proíbo você de entoar lamentações ao pé do meu ouvido – que precisa andar! Não
seja uma pedra de tropeço à minha ação de graças ao destino. Já estou rica de tristeza e não
careço da sua. Estou bem, creia nisso e se salve.

49
Passei no vestibular da Universidade Federal para Letras-espanhol. Pretendo fincar
raízes em Fortaleza. As aulas começam em fevereiro. Decidi não comparecer esse ano ao
aniversário de meu pai, pouparei minha saúde. Outrora, estar com ele fazia tudo mais leve,
lenitivo que me foi tirado. Como havia lhe dito, meu plano original era voltar para Manaus de
vez. Meu retorno em agosto depois de deixar o Casarão foi uma surpresa ruim. Foi duro ver
meu berço moldado pelas digitais de uma madrasta. Pior ainda foi ver um Coronel de Infantaria,
treinador e comandante de tropas militares, manipulado por sua “Picurrucha”, como ele a
chama. Quando eu me vi baiacu, cascavel chocalhando o rabo, anunciei a hora da partida.
Coronel Cláudio me manterá distante enviando-me boas quantias de dinheiro. Na abundante
Graça não falta sentença, sabemos.
Chegando aqui, fiquei um dia e uma noite num hotel na Beira-mar recomendado
por meu pai. Odeio hotéis! Quanto mais luxuoso mais os odeio. Fui galgando lugares cada vez
mais confortáveis, cada vez mais modestos, passando por pensões e quartos alugados, descendo
e ajustando a casca externa aos ânimos internos. Peregrinando nas redondezas do Benfica,
encontrei um apartamento onde aconchego e modéstia se encontram. É numa espécie de cortiço
próximo ao IFCE. É pequeno, mas quando o ocupei, parecia uma ilha deserta. O lavrei até obter
aquele sentimento de Bernardo Soares, “o conforto que dá dignidade ao tédio”. Recheei com
uns poucos móveis e livros, e ele se tornou um Éden. Venha conhecê-lo!
Não, eu não frequento mais templos. Acordo cedo e vou passear na Praça da
Gentilândia. Degusto árvores, observo a materialidade dos silêncios e faço disso o meu
devocional matutino. Não é de ajuntamentos religiosos que sinto falta. À tarde, a casa fica um
pouco abafado, ainda não comprei o ventilador. Refugio-me na biblioteca da universidade e
fico lá até o anoitecer gozando o refrigério dos livros e do ar-condicionado. Respondendo sua
pergunta, suspendi todas as leituras de teologia. Atenho-me à Poesia. Sei que você é deficiente
de leitura de poesia, o que é uma pena; isso pode causar sérias doenças no espírito, cuide-se!
Experimente os poetas ao menos como “teólogos anônimos”. Os teólogos, principalmente os
sistemáticos, desconhecem um atributo essencial de Deus – a musicalidade (eu quis dizer
essência e não atributo). Os poetas são os profetas da musicalidade divina, não esqueça disso.
Ah, a coisa mais teológica que li ultimamente foi Resistência e Submissão, de Bonhoeffer. Acho
até que a ideia de um “cristianismo secular” despido de firulas religiosas é mais minha do que
dele!
Dê-me notícias suas!
Beijos e abraços…

***

Você debruçado numa monografia sobre eclesiologia. Eu correndo às léguas de


igreja. Você não acha que Kierkegaard tem certa razão, ou uma certeira desrazão, ao dizer que
a Igreja é um covil de gente medrosa, de gente com medo da vida e do mundo? Quem quiser
tornar-se cristão que renuncie a essa sagrada família e aprenda a peregrinar no deserto.
Saúde e paz, querido Romeu!
***

50
Saudade – que assombro! Saudade, e não solidão! A saudade é o ingrediente
especial que faz da solidão um inferno. Talvez o fogo do inferno seja nada mais que uma
nostalgia sem limites. Morre-se de saudades. Doença mortal por não matar. Morro de saudades
do meu quartinho no Casarão do Seminário, de meu pai, de você – único e ausente amigo – e
de tudo mais, até de dores antigas e do que não lembro mais. Saudade do futuro, do passado e
do que não existe. É a saudade a minha grande tentação, o meu deserto, o meu diabo, o meu
espinho na carne, a minha guerra… Nos dias em que essa sensação-sem-nome se prolifera em
meu quartinho, eu saio para me alienar de mim, como Deus, e peregrino pela cidade. Acredita
que eu nunca tinha andado de trem? Às vezes caminho até a estação Otávio Bonfim, pego o
trem, vou até o fim da linha e volto. Você espera sensatez de um entediado? – Não espere!
***

Como ele é? Mulato, altura mediana, cabelos pretos e curtos, usa uns óculos de
lentes grossas que escondem o tamanho e o brilho dos olhos escuros. É estudante de filosofia e
ateu. Claro, eu sei que sua pergunta não mira os acidentes mas a substância, pois é tudo que sei
dele e me indago se não é tudo que se pode conhecer dele. É cedo pra dizer que estou
apaixonada? Ora, a paixão só acontece enquanto é cedo! Quando tarde demais, é sempre tarde
demais: o anjo move as águas, não pulamos no tanque e perdemos o tempo da graça. Encontrei
Anselmo por acaso, há exatos dois meses, em minhas viagens de trem. Ele é a encarnação do
silêncio. Lembra um pouco você… Bem que vocês dois poderiam ser amigos. O ateísmo das
pessoas vale tanto quanto elas; ele pode ser brilhante, ascendente, divino, como pode ser baixo,
imbecil, desagregado. Não ocorre o mesmo com a fé?
***

Foram alegres essas festas de final de ano. Franqueza: não me arrependo de ter
trocado de família e não viajado a Manaus. Em dias de serenidade, usufruo a revelação de que
tudo naquela Vila Militar, naquela casa, só me caem bem na Saudade. Não me faltou amor no
Natal e nem na passagem do ano junto a família de Anselmo. Ele mora com a avó e a tia, duas
mulheres formidáveis e fortes. O pai, ao que parece, mora no quartel. Ele é um caso à parte,
galho disforme. Na Ceia, todos exalavam simpatia e atenção por mim; o pai destoava. É um
militar ranzinza chamado Antão, que nada tem do santo de Flaubert – tinha mais era de anta!
Ríspido, sarcástico, deselegante. Segundo Anselmo, estava com ciúmes; que Édipo mais
estranho, não é? Será que todos os militares são desprovidos do dom de conjugar soberba e
charme? Exageradamente extravagantes, agem como se pudessem intimidar a qualquer um
facilmente. Ora, foi só por fineza de espírito que não o pus em seu devido lugar. Ele até tem
uma aparência jovial que lembra Anselmo, mas é gigantesco, o velho caso da massa corpórea
inversamente proporcional ao espírito. A única vez que se dirigiu a mim, disse: “conheço seu
pai”, o resto foi linguagem subliminar. Sabe quem ele me lembrou? Dimitri Karamázov, dos
Irmãos Karamázov. Eu me diverti imaginando estar num apócrifo de Dostoievski.
E você? Como foram suas festas?

***

51
Traçar uma lacuna entre você__________e mim, como uma ponte. Seja esse o meu
gesto de reverência a você. Seria esse o sinal da santa cruz, nossa proteção? Começaremos a
nos morder, Romeu? E nos iniciaremos agora, tardiamente, no fanatismo? Cheios de fé e do
espírito santo, não sobrevoávamos de mãos dadas esse pântano, embora em direções diferentes?
É com toneladas de ideias pesadas atiradas de nossas alturas que esmagaremos um o coração
do outro? Você quer mesmo duelar comigo? Restará algo depois? Não me delicio em debates –
minha língua prefere vinhos e beijos! E é mais contra mim do que contra você que decido não
atirar. Você é meu amigo, o melhor deles – deixará que o fel da Verdade amargue o fruto da
amizade? Fruto que se gesta na paciência da evolução das espécies, longe da pressa criacionista
de um deus arbitrário. Verdade de Deus não é mais útil que uma guilhotina ou uma forca? Não
provoquemos um no outro a embriaguez da retórica, a volúpia de levar cativa a mente alheia –
ou espancá-la até a morte. Você ficaria maravilhado com o que posso fazer, querido. Sabe a
Besta do Apocalipse, a que enfeitiçará o mundo com a eficácia das palavras? Você que é “sábio
para calcular seu número”, talvez descubra quem ela seja… Economize sua hybris. Como disse
o Nazareno a Pedro: “embainhe sua espada!”. Não cutuque uma onça com esse seu curto
sotaque paulino! “Eu sou aquela que disse!”
***

Você me julga, isso não é culpável. Você julga mal, também não é tão culpável; é
chutar um pênalti e não fazer gol, “errar o alvo”. Você diz que vendi a Fé pra comprar a Razão;
meu amigo, largue dessas infantilidades! Não esmagarei essa falsa oposição agora; meu método
e meu prazer é começar a destruição do mais para o menos importante; metodologia do bom
gosto. Se é como você afirma, se o meu pecado é esse, o que sou senão a desmesura do mesmo
gesto de vocês, teólogos? O que é um teólogo dogmático senão um expert em lançar as malhas
da razão num divino animal selvagem, Deus? O que é um teólogo dogmática senão o fabricante
de um pássaro encantado, supostamente livre por ser etéreo e idealizado, mas que só canta
mesmo dentro de uma gaiola? E vocês a fabricam ficções não com fios simples com que rústicos
pescadores fazem suas redes, mas com os complexos industriais filosóficos. Sabe qual é o meu
Mal, a doença que padeço? Coragem! Eu atirei meu espírito como uma flecha lá onde vocês,
modestamente, sonham chegar. Apenas sonhar com os pés chumbados no dogma e na covardia,
ventres preguiçosos! É por inveja que você me calúnia, querido? Falei coragem? Expressei-me
mal sobre o meu Mal. Quando não posso cuspir espadas e atirar raios pelos olhos sempre me
expresso mal. Não é coragem a minha virtude – é a fome! Você consegue ter inveja de uma
borboleta que se queima na lâmpada sedenta de calor e luz? Venha cá em meu sepulcro. Venha
aqui tocar minhas mãos e meu lado. Venha aqui colocar seus delicados dedinhos matemáticos
nestas feridas. Você consegue ter inveja de feridas, querido Romeu? Liberalismo teológico? Seu
discernimento de espírito está um tanto embotado, suas faculdades estão pouco exercitadas.
Talvez você seja um garotinho carente de leite espiritual, ainda carnal, privado da gnose dos
pneumáticos. Quando o fogo sagrado da Razão provou as Escrituras, restou apenas as escórias
insossas dos moralismos ocidentais. Os teólogos chamados liberais coroaram a si mesmos com
essas grinaldas, essas virtudes europeias. Mataram o Pai e ficaram com a herança – a Lei, a
Moral. Vocês, jumentinhos de orelhas enormes carregando o peso da erudição alemã. Foi a
degenerescência que os colocou assim de quatro? Mas perante a congregação vocês sabiamente
lavam o rosto, vestem a toga bem engomada e ostentam a máscara de anjo ocultando as orelhas

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de burro. Não é assim um pastor presbiteriano? E por quê? Por que vocês sabem – até melhor
do que eu – que não podem atrair passarinhos com pérolas! Estamos nos Trópicos, os pássaros
que aqui gorjeiam de fome não gorjeiam como lá; brasileiros não comem pérolas, sua fome é
outra! Vocês sabem que é preciso saciar a fome das congregações com mitos e sonhos e
superstições. Cultivam essa falsa e pública precaução contra a Razão colocando-a como inimiga
e escondendo o cio que vocês têm pelos calorosos debates eruditos. Vocês conservam no
segredo do quarto os esoterismos exegéticos e os bisturis dissecadores de mitos, e dos telhados
atiram à congregação os bocados lendários que vocês mesmos não comem. Não há nada mais
racional do que uma igreja, nada tão sistemático, tão kantiano, tão newtoniano! Mas não seria
rentável apregoar nos telhados as peripécias dos dissecadores de Deus, não é? Os exegetas
fizeram necrópsias de Deus mil vezes mais bem-sucedidas do que os filósofos, não concorda?
Atirar pérolas aos porcos, ou as tripas de um Rei aos súditos, ou as vísceras do Pai aos seus
filhos? Não, vocês não tem estômago para tal! Eu fui essa louca que rasgou véus caros e himens
sagrados. Confesso o meu pecado: fiz isso mais por desespero do que por coragem. Blasfemei
mais para saciar a fome do espírito. Você espera que um morto de fome seja racional? Eu injuriei
belezas usando essa maquininha, a Razão, porém, o que será de mim, caro amigo, se os dentes
da Razão, manobrados pela minha fome, se desgastaram? A cobra mordeu o próprio rabo! As
moedas de prata de Judas não compram sequer um pedaço de pão. Como posso ser uma coluna
do Templo da Teologia Liberal se vejo o fogo de seu altar apagado? – E eu mesmo estou em
cinzas! Que tenho eu com mestres de moral? Que tenho eu com o conteúdo moral das Escrituras
sagradas? Eu até mataria Deus se fosse para roubar seu fogo, seu espírito poético, seu vento,
sua malícia de artista – não a Lei, não a Moral, como vocês fazem. Você tem um mau olho e
uma má luz, ou apenas ingenuidade? Acredita mesmo que deixei a Fé pela Razão, essa
Cinderela às avessas que só vale pra limpar o chão? Se eu injuriei belezas foi pra parir outras!
Meu amigo, eu morro de fome! E o faminto é um animal para além do bem e do mal. Na fome
não há Deus – tudo é permitido! Eu pari belezas pra me nutrir, como algumas fêmeas que
comem a própria placenta. Eu amo os mitos, eu amo a mentira, eu amo a verdade escondida na
mentira; eu sou Maria, a mãe de Deus! E no útero do meu espírito procrio monstros, diabos,
centauros, currupiras e caiporas. O universo, essa máquina de produzir deuses, grita e canta no
meu útero!

***
“Tira-lhe tudo, poupa-lhe apenas a vida”, disse Deus à Satã acerca de Jó. Atenta
para isso, pois é o que nos resta, amigo – a Vida! As demais questões são tolas! Sofro, logo
existo! Do Credo dos Apóstolos basta um “creio”: Creio na ressurreição (ou insurreição) do
corpo – e essa graça me basta!

***

O que me aconteceu? – o Acontecimento!


Recordo a quietude de bela adormecida regalada em seu berço dogmático. Não, não
creio que alguma filosofia tenha inoculado dinamites em minha carne. Não posso sequer crer
que eu tenha mesmo despertado. Passo de um sonho a outro, cavo um túnel dentro de outro
túnel. Recordo a paz do meu otimismo quando as coisas divinas se aproximavam claras e eu as

53
hospedava em mim. Ah! Eu me reconhecia cristã. E reconhecer-se cristão é uma estrada
divergente do tornar-se cristão, você sabe. Saboreava Deus, absorta, tão dócil, bem-
aventurada… Eu podia ver claramente o meu Deus e apalpá-lo entre frestas de rochas sólidas,
as Escrituras. Eu podia subir suas escadas de degraus firmes ao alto, tocar com a ponta do
indicador a orla da túnica de Deus, e estancar minha hemorrágica Nostalgia infinita. Meu
coração submisso pisava calmo. Meu peito atendia quando eu chamava; um falcão adestrado
que pousado em meu punho serenava vendado. Contudo – Aconteceu! Um devir selvagem me
atropelou. Avistei-o pelas costas, um vulto veloz já distante. A alma encarcerada nos calabouços
do crescente castelo, por fim, tornou-se maior que o castelo. O que eu era? – o que todos vocês
são: discípulo de um Cristo reencarnação de Platão, morbidamente apaixonada pelo Mundo das
Ideias perfumado de Reino de Deus; caluniadora da Terra e do corpo, como Jesus de Nazaré
nunca foi. Vocês que confiam nesse erro histórico, não sabem que houve uma segunda Queda,
o mais terrível peccatum originale? – a invenção do Cristianismo. Por vingança esmaltaram o
Crucificado com a lenda do Messias salvador de almas, mestre do post-mortem, para escapar
de suas reais exigências. Por que o cristianismo foge tanto de seu Protagonista? É estratégia dos
instintos fracos baratear a graça oculta na humilde crisálida da vida terrena e trágica do
Crucificado. Vocês crucificam Jesus novamente chamando-o de Salvador! Sim, meu amigo. E
eu renuncio a mim mesmo! Renuncio a paz e a ingenuidade que vocês tanto prezam. Condeno
ao inferno minha antiga beatitude!
***

Se a fé é a pulsão que antecede a racionalização, como você diz, então, de fato,


decaí da fé. Fui de mãos dadas com esse Virgílio aos infernos; o fogo subterrâneo refinou minha
razão deixando-a rústica e modesta. Se a alguém diviniza a razão humana é porque nunca
desceu aos infernos. Os teólogos – e mesmo os filósofos – entendem lá nada de inferno! O
poetas sabem mais, glórias a Dante! Eis a boa nova que me dei a mim mesma, e que trago ao
ser cuspida do ventre sulfúrico da baleia: Deus só pode ser conhecido pelo corpo! A fé é a fome
dos sentidos! Não está escrito, “a Terra está cheia de Sua glória?” O Deus que podemos saborear
é a carne e o sangue das coisas terrenas. Seria vão que as cerimônias sagradas sempre se
associam a banquetes? Eis o meu evangelho – para o qual poucos são chamados e poucos são
os escolhidos. O Absconditus transcendente? Deixo pra vocês que sem misterium dei perdem o
emprego. Vocês pastores sequer sabem mendigar, não é mesmo? Absconditus para a plebe –
Revelatus para os sacerdotes. O Guardador de rebanhos de Caeiro saboreia mais de Deus do
que qualquer pastorzinho presbiteriano!
Plagiando Fernando Pessoa: o mito é nada que é tudo! O inexistente em socorro do
existente. Falando nisso, vou lhe contar uma história que no mínimo servirá de entretenimento.
Anselmo é o herói dessa novela. Ela começa quando o herói deixa a princesa esperando, esse é
o conflito que dá ignição à narrativa. Veja só a lenda que ele me contou para se fugir da ira
vindoura, essa raposa que sabe valorizar um covil.
Praça da Gentilândia. Sexta-feira. Farfalhar de árvores, garotos jogando bola na
quadra e vendendo venenos. Anselmo perambulava por ali quando o cerca “a roda dos
escarnecedores” subitamente. Munidos de vinho barato e copos descartáveis, os estudantes de
filosofia que se consideram os tataravôs do Super-Homem o constrangem a sentar-se no chão

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e a participar do sarau. Anselmo não prova o vinho barato que sempre lhe ferra o estômago,
mas é incitado a declamar. Rugiu um poema curto que reproduzo aqui.

Levantem-se, ó assentados nas sombras


Dos bosques e dos bares
Para o balé das emboscadas
Aos berrantes e aos baques
Levantem-se, ó infectados de varíolas
Dos pensamentos e pulsos frouxos
Para o baile das enxadas
As bacantes serão seduzidas pelos deuses
Fabricados por nossos rios confluentes
Abeirados de nossas fulgurantes artérias

Venhamos, façamos as cortantes curvas!


Venhamos, ultrapassemos as estreitas portas!
Vocês não vão dormir para sempre nessas teias de aranha
Vocês não vão roncar para sempre bacharelismos sem sanhas
Tomem posses de nossas dores, vamos!
Baionetas, baiacus, bois-bumbás eriçados!
Banzos plantando bananeiras e planejando badernas
Sejamos flautas nos lábios do abismo

Nem eu nem você nos contentaremos com alforrias calculadas


Com drogas miseráveis, amores magros e rostos mirrados
Costurados nas fábricas, nas escolas, nas prisões a lições ou a pauladas
Nem eu nem você nos contentaremos com poesia alheia e alheada
Sem a pujança onça de nosso pó e nossa maresia
Sem febre xamanística e belicosidade tropicália
Sertões transpirarão seus cangaços e seus mares de cactos
Somos nós, do Gênesis, os malditos espinhos e cardos!

Sigamos mastigando tristezas portuguesas e cuspindo saraivas


Sigamos espezinhando a pureza, convertendo em preciosidade
As escórias e os amálgamas das raças condenadas
As imundícies reluzentes das cores de nossa precariedade
Filhos da Catinga, filhos do Rio Negro, filhos do concreto, filhos do ultraje
Sigamos, filhos do carbono e do subdesenvolvimento!

Cerveja para as onças em nossa carne


Corre na jugular dos homens de Estado e de Empresa
Nossa humanidade se esticará sobre
O dorso desta terra como um couro de montaria
Acolhendo os minérios e os vegetais
Na verve que estrugirá mil ais;
São eles as cinzas de nossos irmãos e nossos pais
Que os comedores de pedra arrancam aleijando nossa alegria

Não vi você na rua


Alongando canções como colunas do céu
Numa gaiola livresca, só sua
Você andava de lá para cá

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Chorava e sorria
Levantava e caia
Cego para a biosfera de espíritos
Surdo para o sangue dos violados
Embotado para a educação das pedras
Tolhendo a intuição mediúnica das feras.
Dedilhei com meus dedos de foice nas grades do seu cárcere
Plangeram oráculos pontiagudos
Voltem! Voltem os videntes do vórtice porvir!
Faltam é poetas do mundo caduco!

E uma das línguas envenenadas o pica, “palavras, palavras! Estamos fartos delas!
Quando os poetas renunciarão a essa virgem auréola e coroarão suas bundas com os espinhos
da Vida?” E esse dito bastou pra unir os frangalhos num só fôlego. Você fala de excessos e fala
“venhamos!”? Pois que tal agora? “Queremos o mundo e queremos agora!” Vamos peregrinar
no dorso da Noite!

Let's swim to the moon


Let's climb through the tide
Penetrate the
Evening that the
City sleeps to hide2

A Beira-mar nos espera! Quem irá? Quem se atreve a ser mais do que um zumbi
tagarela, hem? Os risos consentiram e ergueram-se os copos descartáveis. Anselmo seguiu
arrastado por essa quimera coagulada de vinho. Era mais de oito da noite.
A cambada escoou pelas ruas em procissão ao Centro Dragão do Mar, turbinada
a gargalhadas. Abancaram-se numa daquelas mesas ao ar livre, num bar onde o violeiro
cantava Belchior, cientes do que fariam sem tostão no bolso e pedindo o melhor do cardápio.
A Lua minguante sorria e se perfumava com incenso de violão. Mas o passar dos minutos foi
regelando o sangue deixando sólida a situação. E agora, José? É meia-noite, uma dupla de
policiais deambula por ali “cumprindo seu maldito dever e defendendo seu amor...”. No
terceiro gole de um vinho mais ou menos potável, Anselmo exorcizou a ansiedade da mesa.
“Não se preocupem! Ao chegar a hora, podem sair todos à francesa. Deixem-me aqui que de
francês não tenho nada. Talvez eu saiba como me safar, como saber? Talvez, de repente eu
descubra como driblar o garçom e a segurança. O perigo nos faz inventar. Sairemos ilesos.
Verão!” As gargalhadas explodiram e levantaram-se os copos, outra vez. Mas o ponteiro do
relógio foi arrancado as pétalas da mesa uma por uma, e a brisa friorenta foi soprando-as por
entre as personagens cinzentas da Praça. Anselmo deu cabo do vinho, que não era bom mas
ao menos não causaria dor de barriga. “Saia do meu caminho eu prefiro andar sozinho…”.
Falar a verdade, aqueles instantes de solidão povoada foram os mais agradáveis da noite. A
noite não estava quente, a brisa marítima chegava até ali e regava Praça amalgamando-se
com a música e criando uma atmosfera divinizadora da movimentação ao redor. Teve a ideia
de ir ao banheiro e ficar ali por algum tempo desaparecendo. Num bar tudo pode ser mais

The Doors, da canção Moonlight Drive.


2

56
onírico. Talvez não seja difícil criar confusão nos olhos. Sentou na privada e amadureceu o
coração, lutou contra a vontade de me telefonar e explicar o que se passava. Abriu a porta do
banheiro devagar. Antes, armou-se de maneiras ousadas. Inflou-se numa postura de dono do
mundo. Estava bêbado. O ar soberbo do Thor na boa fase do Walt Simonson se fundiu à imagem
do caboclo Mata Virgem que vira numa loja de artigos de Umbanda no Centro da Cidade. Foi
como retirar um tampão e ver saltar um bestiário: Lampião, o Ajax de Sófocles, o Julien de O
Vermelho e o Negro, o Raskholnikov de Crime e Castigo, e os mitos de seu clã do qual o pai
falava. Agora era gigantesco! Pisava firme, o mundo era seu! Deu quatro passos para fora em
direção a uma luz dourada e ferina às suas pupilas que contrastava rudemente com a lâmpada
de neon do banheiro. No quinto passo, um homem realmente gigantesco com um cassetete na
mão o abordou; “por favor, o senhor queira pagar a conta”. Gigantesco mas nem tanto. O
Dono do mundo o olhou com desdém. Cambaleava. “Vocês costumam pedir por favor pra que
os clientes paguem a conta?… E isso na sua mão é pra matar baratas? Um bar nessa região
não pode ter baratas!”. O gigante bufava, esbugalhava os olhos e batia com o cassetete na
palma da mão esquerda,“isso mesmo, pra baratas!” Anselmo gargalhou alto, “Sou eu algum
cão para vires a mim com pedras e paus…?” Uma moça saiu das sombras e pôs a mão no
ombro de Anselmo sussurrando melodiosamente ao seu ouvido. Com a maior das simpatias, o
conduziu devagar ao caixa. “Você é tão bonita!” Anselmo diz com olhos sorridentes e retirado
a carteira do bolso de trás da bermuda. “Mas diga-me, diga-me, moça bonina, olhe bem pra
mim – já virei uma barata?”
Anselmo sempre anda com dinheiro no bolso porque vez ou outra encontra bons
livros a venda nas calçadas ou em sebos. Ele é muito econômico e sabe multiplicar a merreca
da bolsa de iniciação científica. Dos cinco tataravôs do Übermansch que estavam à mesa, ele
é o único disciplinado o suficiente para dedicar algumas horas semanais às atividades
requeridas. Os demais, “espíritos livres” avessos a esses pesadumes burocráticos, podem
contar com a mesada dos pais. Pagou a conta e ainda deixou gorjeta pra garota bonita. Antes
de ir deu alguns passos na direção do gigante, a moça bonita o pegou pelo braço e o dissuadiu
com seus murmúrios melódicos ao ouvido, acompanhou-o até a saída.
O combinado era se encontrarem do outro lado. Quando Anselmo chegou, ileso,
foi o festim. As gargalhadas retornam. Eram invencíveis! Os malditos triunfam! Mas a verdade
é que no trajeto Anselmo vinha calculando a parte de cada um, dividindo a conta
igualitariamente. Econômico que era, o montante no bolso tinha destino certo. Gastá-lo assim,
inesperadamente, era um distúrbio que precisava ser sanado; tinha de compartilhar o prejuízo
ou ao menos mencioná-lo a fim de aliviar a perturbação. Mas ao se chocar com o calor festivo,
as felicitações, os abraços, os brados e as gargalhadas, Anselmo se deu conta do arreio de
almas em suas mãos. Nasceu aí um egoísmo superior. Assumiria a função de fio de cabelo
suportando aquela noite de triunfo. Questionado sobre como conseguiu a façanha, respondeu,
“ora, apenas me levantei e saí! Não houve nenhum heroísmo. Às vezes os olhos alheios estão
apenas por dentro, e é tão somente isso que nos impede de fazer o que precisamos!”.
Flutuantes, foram até a praia, despiram-se e se desaguaram no mar para batizar a noite de
triunfo. Depois disso, o grupo passou a reverenciar Anselmo, “poeta coroado com os espinhos
da Vida!” Naquela noite Anselmo se tornou um mito, um socorro nascido do que não existe.
Eis, caro Romeu, a Verdade! Assim nascem os heróis e os salvadores. Assim nascem
as ilusões libertadoras. Não transforme o mito em ciência ou você morrerá de fome. A verdade

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bem pode ser a mentira que faz viver. E não queira sabotar meu paladar exibindo os
“fundamentos da Verdade”, a mecânica da História, a Lei caída do Céu, o “Jesus Histórico” etc.
Que são essas coisas todas senão mitos calcificados descorados de modéstia, que perderam o
perfume e a leveza da Poesia?
***

O fragmento a seguir estava numa folha avulsa com uma caligrafia que evidenciava
pressa e aguardo de revisão, reproduzo aqui tal como encontrei, cru, víscera do Baú, que talvez
ofereça algo de enigmático ao olho do leitor.

AS TRANSFORMAÇÕES DO CORAÇÃO DE MARIA

Essas são as transmutações do espírito de Maria: Árvore; Podadora de árvores; A


que gargalha entre a Floresta (ou que se banqueteia no jardim).
Árvore: No primeiro estágio, Maria é autótrofa. Move-se às alturas e às
profundidades, apenas. Estende as mãos ao Sol e às raízes ao coração da Terra. Mais tarde
descobrirá que isso é uma tautologia clássica da Teologia: o conhecimento de Deus conduz ao
conhecimento de si; o conhecimento de si conduz ao conhecimento de Deus, como falou
Agostinho e Calvino repetiu no primeiro capítulo de suas Institutas. Arraigada no mesmo lugar,
Maria atravessa os estratos do solo em busca de lençóis freáticos. Os livros são auxílios para
sua autotrofagia. O nível de cobiça, fome e sede é mínimo, adormecido na infância. O que mais
deseja é ser uma solidão entre solidões. Nos níveis mais avançados desse estágio, a realidade
será ordenada e imutável, composta de átomos vazios e imóveis, como uma colmeia recheada
de substâncias eternas. Parmênides governa. Maria dorme na infância e na doçura dos
autótrofos. Nesse tempo, habitar entre as árvores dá segurança e protege contra as tempestades.
Um vento forte pode arrancar do chão uma árvore que mora sozinha, nas margens; se não a
arranca pode atormentá-la bastante. O movimento do vento nas copas é sempre tormentoso.
Havia uma farpa nesse estágio, incômodo indissolúvel: o repouso parmenidiano é
uma promessa não cumprida. É certo que morar entre as árvores protege, mas não faltam
percepções e sensações imprevisíveis, a ventania nos galhos arranhando e rugindo. Há sempre
música demais e dança demais despertando as raízes de seu sono vegetal. O medo de ser
arrancado não deixa em paz. A ameaça da tempestade revive as suspeitas de que tudo é instável
e que os fundamentos da Terra estão em movimento. E isso arruína o repouso eterno. E se os
ventos não arrancam a árvore, a balançam de um lado para o outro, movimentos contrários à
natureza do autótrofo enraizado, que só conhece o alto e o baixo.
Esse estágio começou a ser superado quando Maria se colocou sob os imperativos
do cristianismo. Foi o despertar do sono dogmático para um sono sonhador.
Podadora de árvores: Maria foge de si – e se depara com árvores. Vaza do
egocentrismo inocente que pendia ao próprio repouso. Possuída e enternecida de amor pela
vegetação em redor, vendo-se munida de ferramentas, inicia a poda. Claramente, o mundo se
move e as árvores se espalham e crescem desordenadas e selvagens. Mas a floresta precisa ser
jardim. Mãos à obra! Dedicação, desprendimento, altruísmo, triunfo sobre o egocentrismo da

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infância. Maria podará tudo com carinho, oferecerá suor e sangue para ver a beleza tomar forma
nas árvores. Que ideal de vida maravilhoso abdicar de si mesmo em favor da grande obra!
Quanta baixeza no homo incurvatus in se, atolado na lama suja do próprio umbigo, quando há
tanto por fazer! Há tantos que carecem de poda, de limpeza, de beleza!
Platão quebranta o domínio de Parmênides; agora é ele o tirano, como sempre quis.
Maria olha para as árvores com a consciência iluminada por certos modelos, ideias que atingiu
intuitivamente ou com sonhos. Elas a enchem de vigor para o trabalho hercúleo diante de si.
Nisso consiste o dom de Maria: ter os detalhes e o talho dos modelos; discernir o que está
conforme eles; saber impor hierarquia à confusão, separando o que precisa ser tratado; saber
cortar um pouco aqui um pouco ali para que a beleza e o equilíbrio apareçam na floresta.
Maria foi serva das árvores e do Mundo das Ideias até suas ferramentas de poda se
desgastarem pelo uso. Platão começou a envelhecer e adoecer. A alma de Maria pendia agora
para a expansão além da alma, pendia para cair e rolar na Terra e encher-se de barro e de carne
– cansada de ser pura, cansada de obedecer aos modelos. Foi mais ou menos na época da
expulsão do Seminário que o ocaso do reino de Platão começou.
A que gargalha entre a Floresta (ou que banqueteia no jardim): Até então, Maria
só se permitiu baixos níveis de intensidade de alma. Velava pelas virtudes da modéstia e do
comedimento. Mas Platão estava senil e suas costas largas se encaracolavam nunca corcunda.
Caduco, comia as próprias fezes. Facilmente Heráclito, o saudável, correndo em rio, passou-
lhe a rasteira e o derrubou do trono. Não precisou matá-lo, sepultou-o moribundo como estava,
no rio. Então Maria pôde vislumbrar diretamente a Floresta: era infinitamente maior do que um
mero conjunto de árvores! Imensa, complexa, aterrorizante, extensa, intensa, densa, conflituosa,
agônica, substancialmente movimento. Sentindo na pele o bafejo da totalidade da Floresta, viu-
se ínfimo micróbio. Como seus olhos estavam cegos! Não tinha ideia de como a Floresta era
monstruosa, como guardava em si tantos intrincados de forças e mistérios! – A Floresta era
Deus! Em pensar que ela, Maria, um micróbio, pôde arrogar-se podadora da Floresta! Ai, que
ingenuidade! Que profundo sono dogmático! Cheia de ardor e esperanças, ofereceu os músculos
para lapidar a ordem no caos da Floresta. Quanta tolice nas molas de suas piruetas! A Floresta
tem sua respiração própria, sua dança cósmica e obscura e incognoscível. As pulsões que
moviam seus músculos nasciam da Floresta – Ela, a Floresta, é que é a grande podadora! A
Floresta é quem poda Maria! Maria só podia cair de joelhos diante da Floresta. Em adoração ao
mistério e a infinitude, zombar de si mesmo, do verme que rastejava num cantinho minúsculo
desse mistério infinito, e salmodiar: Meu Senhor e meu Deus! Numa constrangedora modéstia,
Maria ria de si mesmo e de todos os espíritos infantis. Ah, como o penso logo existo não passa
de um juízo cego e irreverente, um juízo infantil!
Restavam gargalhadas por consolo; o riso lenitivo e angustiante de ser uma
borboleta pairando no caos. E lamber e saborear tudo que era possível – eis o seu lugar na
Floresta! Comer a beleza das pequeninas flores e frutos, ver neles uma revelação da infinita
Floresta – revelação de Deus! – e zombar das infantis ambições dos homens que se pensam
grandiosos, racionais, autônomos, imagem e semelhança de Deus. Escarnecer de seus
dispendiosos projetos arquitetônicos, tão atrevidos e tão pomposos, nascidos da puerilidade.
Todos esses intentos de podar a Floresta não são sempre estilhaçados pelas forças indomáveis
da Floresta? – São piadas, remelas que nascem em olhos doentes, como diria mestre Caeiro.

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Maria beijou Heráclito, mas beijou sem língua, a boca oca. E emprestou a ele toda
sua fome abismal; ela beberia o mar por inteiro, comeria todo o magma da Terra – antes que
fugissem! Possuída pela certeza de que tudo é fugaz, tudo é movediço e tudo é imprevisível,
ela corre para agarrar o vento. Sempre já! Tudo precisa ser abocanhado antes que fuja! Maria
beijou Heráclito, mas com a boca cheia de vazio. Maria fez amor com Heráclito, mas na
velocidade de quem persegue orgasmos. Heráclito, o saudável, adoeceu nesse beijo. No ventre
vazio de Maria estava enganchada a ossada de Platão, e o rio não conseguia dissolvê-la.

60
Imperador
“A tristeza de um filho pela morte
do pai não consegue suprimir sua
satisfação por ter finalmente
conquistado sua liberdade. Em
nossa sociedade de hoje, os pais
tendem a se agarrar
desesperadamente ao que resta de
uma potestas patris familias agora
tristemente antiquada”.
Freud

Seis e meia da manhã, o QT do Curso de Sargento chegou do campo, Penedo. Eu


tomava um café na cantina antes da formatura. É bonito ver de manhãzinha esse pau de arara
coberto de verde tendo em seu interior duas fileiras de alunos assentados com fuzis entre os
joelhos, que em silêncio misturam alívio à saudade das vicissitudes do acampamento.
Um dos alunos veio a cantina pedir um café. Fiquei perplexo com ele! Já vi muita
coisa nesses mais de trinta anos de Exército, faltava-me essa. O aluno era de uma cor assim
como a nossa, de um preto claro, todavia, o inchaço e a vermelhidão em seu rosto doíam na
vista de dar gastura. Uma horrenda mancha de carne viva tomava o lado esquerdo de sua cara,
começando do supercílio passando pela orelha até o queixo.
Os alunos voltam esfolados do acampamento, fato. Mas com queimaduras no rosto,
para mim, é novidade. “Guerreiro, que diabo foi isso na tua cara?”. O aluno tomou posição de
sentido. “Senhor… foi… reação química do suor com o gás lacrimogêneo”. Gás lacrimogêneo?
Sei…
O Curso de Sargento tem seus segredos, alguns devem permanecer por lá. Não era
o caso. Tinha algo azedo ali. “Guerreiro, esse gás era material padronizado? Nunca vi acontecer
esse tipo de reação”. “Padronizado? Como assim, senhor?”. Fui improvisando a conversa.
“Padronizado, guerreiro. Prescrito pelo manual. Você não teve nenhuma instrução sobre isso?
Aluno do Curso de Sargento e não sabe o que é um material padronizado? A coisa vai mal…”.
O aluno arregalava o olho e gaguejava. Dava pra ver que era rapaz tímido, de temperamento
conformado com o porte físico franzino; tinha as feições de um cachorrinho manso. “Senhor,
na verdade foi um spray”. Eu disse que tinha coisa azeda ali… “Calma aí, calma aí, guerreiro,
se decida, spray ou gás lacrimogêneo?”.
Nunca ouvi falar de spray em instruções de Curso de Sargento. Olha que na minha
época era tudo era menos “humanizado”, como se diz; nem se sonhava com essas associações
de assistência jurídica aos praças que tem hoje em dia. Todo mundo sabe que o acampamento
é o lugar por excelência das sacanagens. E há uma diferença profunda entre essas sacanagens,
entretenimento de militares pervertidos, e o rigor da formação. A confusão entre as duas é sinal
de degeneração militar. Os acampamentos exigem crueldade? Sem dúvida! O treinamento
militar deve ser severo o suficiente para modelar os homens e torná-los aptos. Mas veja que
essa severidade é racionalizada, calculada, organizada. É como método científico ou receita de
bolo. Cada golpe tem sua utilidade e seu lugar; tudo dentro do regulamento oficial, que exprime
o acúmulo de experiências antigas em fórmula algébrica. Nada nos manuais é arbitrário. Gente
experiente pesquisa e se dedica a confeccioná-los e melhorá-los através dos anos. Cada regra
ali tem sua função na formação do militar. É como fazer um bom perfume ou uma boa comida.

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É uma crueldade estritamente disciplinada, e não essa imundície que os pervertidos fazem.
Quando o soldado é afligido pelo autêntico rigor disciplinar, sai disso orgulhoso, acrisolado,
cheio de amor-próprio e admirando a rudeza de seu superior. Passa a valorizar sua formação e
o pertencimento ao grupo; pagou caro por eles. Quando o soldado é apenas vítima de sacanagem
torna-se odioso, vulgar, vingativo, descontrolado, e disposto a repetir em dobro as mesmas
sacanagens na primeira oportunidade. Se você precisa se ausentar do comando e deixa um
soldado desses como xerife, ele mata a tropa brincando. É uma reação em cadeia, por isso a
coisa não para de acontecer. Militares degenerados estão cagando pra reações em cadeia, cegos
para os efeitos do que fazem; estão cagando pra economia e os cálculos necessários para se
produzir tropas eficientes. Esses pervertidos não têm a guerra à vista… Nisso se reconhece um
autêntico comandante: ele sabe dar uma ordem que será obedecida por um século!
Sim, pois bem, então improvisei na hora uma historinha:
Em certa turma do Curso de Sargento, lançaram numa instrução um explosivo
estranho, parecia um foguete. Ele veio riscando o chão e foi parar dentro da gandola de um
aluno. Conheci o cara. Teve o peito todo queimado. Passou-se o tempo. Um ano depois, a
cicatriz começou a virar vitiligo. E nenhum médico conseguiu prescrever um tratamento, pois
o tal do foguete não era um material previsto, devidamente registrado, devidamente
regulamentado pelo manual e com uma fórmula clara. Nem foi feito rigorosamente o exame do
atestado de origem da queimadura. Não se sabia quais os componentes químicos do foguete,
nem o tipo de reação química na pele. Resultado: o guerreiro ficou quase completamente
branco, que nem mandioca descascada. Foi pra reserva com pouco mais de 30 anos com
perturbações mentais. Até hoje, às vezes, ele aparece por aqui, ficou meio doido, o coitado.
O aluno tremeu a xícara e quase ganhou outra queimadura. “E se tivesse atingindo
teu olho, guerreiro?” Ele piscou com força três vezes. “Aluno, você tem que ir na enfermaria
fazer o atestado de origem…” Falar a verdade, nem sei se existe o tal do “atestado de origem”,
fazia parte do improviso e da investigação. “Senhor, na verdade o tenente quis atingir meus
olhos, virei o rosto no último segundo”. Como é? Vi o ódio reluzir, a carinha de cão aflorou
feroz, raivosa; ódio que poderia me ser útil. Um tenente, pela obra reconheço o artista. Um
tenente, filho da puta que estava na minha mira há algum tempo. Não era a primeira vez que
esse tarado fazia sacanagens assim, eu devia garantir que fosse a última.
Tenho uma bomba, pensei, usarei a ameaça e o suspense. Se a surpresa derruba o
inimigo enquanto ele coça o saco, o suspense e a ameaça agigantam os medos sem desgastes.
É a magia do terror, que torna desproporcional a ameaça equilibrando-a ao medo. É a arte de
vencer a guerra sem desembainhar a espada. Refleti nisso por horas, planejando, costurando,
turbinado pela raiva. Mas o excesso de cálculo pode estrangular os bons impulsos. Covardes é
que calculam demais, refletem demais, hesitam demais e terminam por desperdiçar o estado de
graça, a possessão da fúria. Uma ação instintiva é sempre certeira. O animal em nós é infalível!
Fui procurar o sargento instrutor do Curso de Sargento. “Que tipo de instrução é
essa que faz churrasco com a cara dos alunos? Isso está previsto no manual? E esse spray aí?
Ele é padronizado?”, enfiei o dedo na cara dele. “Sub, Sub, calma, fomos nós mesmos que
compramos o material, e é só um spray de pimenta, calma, a gente sabe o que faz, o soldado
era alérgico e não sabíamos, azar militar, acontece, o senhor já tem muito o que fazer, deixa isso
com a gente, Sub, deixa isso pra lá”. Ah, aí o cara falou a senha…

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Nada desperta tanto minha fúria quanto esse deixa isso pra lá! Vou coar camelos e
mosquitos, vou às últimas consequências!… “Ah, tudo bem, tudo bem, sargento, está tudo na
mais perfeita ordem não é? Só um sprayzinho de pimenta, não é? Você comprou com dinheiro
do próprio bolso, filho de uma égua, ou do contribuinte, da verba federal? Ah, tudo bem! Você
pega a mísera verba federal destinada à formação de novos sargentos, e compra a merda de um
spray de pimenta para queimar os olhos deles. Tudo na mais perfeita ordem e eu devo procurar
o que fazer, não é? Ah, então é assim que vocês formam novos sargentos, queimam os olhos
deles – é um verdadeiro poema! É lindo! Sargentos, o elo entre os soldados e os oficiais, cegos.
Pois, meu caro, isso é imoral! Mas esperem só você e esse tenente filho da puta. Esperem só o
que farei. Tenho uma bomba e vou explodi-la, entendeu? Tenha você vergonha na cara seu baba-
ovo de merda! Você goza? Você tem orgasmo queimando cara de aluno? Você é algum tipo de
tarado? Você nem suspeita que um cabra desses pode ter sangue dentro da carne? E sangue com
armas faz uma combustão incontrolável, ouviu? Você é tolo nem suspeita que o aluno pode não
conseguir dormir, e rolar na cama sonhando em estourar a sua cabeça. Você tem mesmo dinheiro
pra andar com segurança, blindar o carro, proteger-se em condomínio de luxo? Será que você
tem intestino grosso no lugar de neurônios, sargento? Você é praça, imbecil! Por que diabos vai
cagar na cabeça de seus irmãos de arma, seu imundo tarado?”. Minha língua pegava fogo, você
me conhece… “Calma, Sub…!”.
Comuniquei o ocorrido a todos, de um por um, trabalho de formiga. Deixei claro,
não vou deixar pra lá, não senhor! Mas ontem, após o toque de fim do expediente, eu afofava o
jardim com umas minhocas – aliás você precisa ver como está o jardim, plantei umas hortênsias
agora que no contraste com as outras ficaram lindas! – de repente, uma sombra cresce às minhas
costas: o tenente filho da puta! Acocorado estava, acocorado fiquei. Olho pra cima, olho pro
jardim, fico na minha, vou cortando minhocas ao meio e enfiando na terra. O tenente filho da
puta estava de oficial de dia. Começou a esbravejar e me cuspir com aquele ridículo sotaque
gaúcho. “Que é que tu andas dizendo aí, Antão?” Bufava feito vaca. O filho da puta dá uns dois
de mim, branco feito vela, olho azul, nariz afilado bom de esmurrar. E se ele sacar a pistola?
“Senhor?” Levantei e cerrei os punhos. “Senhor, é esse o caminho que o senhor vai tomar? Por
que se for…”. Parti uma minhoca grande dando a entender que faria o mesmo com ele. A vaca
recuou. Foi demais! O filho da puta teve a audácia de diminuir o timbre e invocar a
“camaradagem”, ouviu isso? “Camaradagem”! Só faltava uma harpa pra acompanhar a voz
doce que ele fez. Como respirar o mesmo ar de tipos assim? O cara comendo o cu dos alunos e
vem me falar de “camaradagem”! Que eu deveria ter conversado com ele primeiro, que eu
deveria ter me informado melhor da situação antes sair tocando a trombeta, e por aí vai. Eu já
estava fora de mim. “Tenente, olha aqui, entenda bem: eu não tenho camaradagem com
ilegalidade não, o senhor entendeu? Eu não tenho camaradagem nenhuma com esse tipo de
perversão não…”. Aí vaca bateu a mão no coldre. E se ele sacar a pistola agora? Pensei. Você
sabe que oficial de dia anda com uma pistola no coldre, não é? Sabe que enquanto ele está de
serviço ele é o militar mais antigo, a maior autoridade da caserna… O filho da puta alisou o cão
da pistola com o dedão dizendo arrastado, “Cuidaaado Antão!”. Será possível que ele esperou
entrar de serviço pra falar assim comigo e me intimidar com a mão na pistola. Pois dei um passo
adiante: “Isso é uma ameaça, tenente? Ouvi mesmo uma ameaça? Se o senhor prefere resolver
fora das artificialidades, muito bem, resolvamos! Permissão para me retirar, senhor!”. Prestei

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continência, dei meia-volta e entrei na minha sala. “Volte aqui, Antão! Volte aqui!”. Teve ele
peito pra entrar na minha sala?
Ficou duro comer e dormir depois disso. Hoje, no rancho, explodi e foi feio,
inevitável. Já todos sabiam do ocorrido. Os sargentos vieram a minha mesa pedir que eu tomasse
cuidado etc. É incrível como há sempre quem repita a velha senha, deixa isso pra lá. Veio
violenta a contra-senha e o monstro tomou conta. Gritei, esbravejei e foi uma comoção no
refeitório. Sargentos de outras mesas acorreram aumentando a algazarra. Soquei a mesa e
quebrei uma cadeira. O Adjunto de dia, amigo meu, veio me retirar do refeitório.
A ladainha do deixa isso pra lá é o axioma da moleza institucionalizada dos
militares, da falta de espírito, da ociosidade, da inércia que apodrece o quartel. Onde está a
força e a bravura que cantamos feito macacos treinados? Esse deixa pra lá é a conserva onde
flutua nossa morosidade, o imperativo que preserva o sossego infecundo. Todos satisfeitos
adormecidos na mesquinhez… Como suportar isso? Você me conhece, sabe que não posso
suportar… Despedaço-me, mas viro as costas a esse deixa pra lá! Espatifo-me contra o muro!
E que se dane a hierarquia e a disciplina, que só valem enquanto fabricam gigantes; atualmente
produzem anões aos milhares; são falsas – hora de transcendê-las! Que venha um Napoleão!
Olhe pra mim, Anselmo. Olhe pra mim – o que sou eu?… Sou o efeito colateral
dessa máquina arruinada! Sou um rebento tardio do passado!… Você sabe, socaram-me no
serviço militar contra a minha vontade. Cheguei a arrancar um dente para que me reprovassem.
Governo Figueiredo, a transição da camuflagem da Ditadura em Democracia… Atualmente
uma massa de jovens sonha em fazer faxina e perder o sono nas guaridas do quartel. É a miséria
de nossa época, a falta de gênio dessa geração, herança da Ditadura, que eliminou boa parte do
fulgor rebelde da juventude. O deserto cresce, a miséria prolifera, a pobreza assola… quem
pode mesmo ser talentoso de barriga vazia, não é? Bem… mas a pobreza também atiça o
espírito! Esses jovens de hoje querem se pendurar no Exército como carrapatos. Havendo esse
excesso de retardados ansiosos por vestir um uniforme, como o serviço militar pode na prática
ser compulsório? Semana passada eu vi rapazes caindo no choro porque foram reprovados para
o serviço militar; estou de cabelos brancos de tanto ver isso. Quem dera naquele final dos anos
70 tivessem me perguntado, “você quer servir?” como se faz hoje! Tivessem me deixado ao léu
do meu talento, eu teria brilhado! Nossa família é pobre, mas nosso sangue é forte. Viemos de
linhagem nobre, nunca esqueça, viemos de guerreiros africanos e indígenas! Eu poderia ter sido
político, artista, livre pensador… Sempre me empenhei nos estudos, pergunte a sua avó! Acabei
enraizado no quartel entre a gentalha, à esquerda ignorantes, à direita fracos ociosos; o fascínio
das miragens me engabelou. Os rituais, as cores, as canções, as bandeiras, essa glória falsa do
Exército, pregos! O patriotismo dos militares? Foderam com a Amazônia durante o Regime!
Patriotismo de merda esse que entrega o território, nosso espaço vital, de mão beijada pra ser
explorado pelos inimigos sabotando nossa economia e nos deixando fracos! O patriotismo dos
militares? Piada! As virtudes do guerreiro, tão adoradas entre nós nas canções, nos hinos, aquilo
tudo enfeitiçou meus olhos juvenis. Anselmo, você fez bem em não ter se enfiado naquele covil
que é a escola de cadetes, fez muito bem!… No Curso de Sargentos, você conhece a história,
e no Curso de Guerra na Selva, outra vez fui sacaneado! Não sou um efeito colateral? Quem
está a minha altura? O que digo é o delírio de um diabo? Vá lá e veja! Mencione o meu nome
nos quartéis por onde passei. Está tudo documentado, nos arquivos, na memória. E se a saída
for a guerrilha?… O Brasil precisa de guerrilheiros, cangaceiros urbanos saqueando bancos,

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distribuindo a renda, causando tumulto e pavor aos mandachuvas, suscitando um novo
tempo?…
“Você conhece a história”. Antão refere-se ao incidente durante sua formação, na
Escola de Sargento das Armas. Ingressou aos dezoito como soldado de artilharia, no 10º Grupo
de Artilharia de Campanha, atualmente desativado. “Estou grávida, o que faremos?”. Os olhos
negros e apreensivos da morena formosa, um ano mais nova que ele, o flecham. O jovem
soldado, extasiado, recostou a mão grosseira no ventre da amada para apalpar ali um pedaço de
si, seis meses depois de vestir o uniforme militar pela primeira vez. De disciplina exemplar e
notável inteligência, foi aconselhado pelos sargentos a se inscrever na seleção para a Escola de
Sargento das Armas, solução plausível para o sustento da família. Sem dificuldades, ficou entre
os primeiros lugares e tudo mais correu aos borbotões privando-o de uma decisão encubada no
útero do livre arbítrio, entre parênteses que suspendessem causalidades. Pelos cálculos, o bebê
nasceria um pouco antes do voo para o Rio de Janeiro, onde ficaria por um ano e meio no Curso
de Sargento. Mas a vida é arredia e o parto prematuro espezinhou as previsões. O que se sucedeu
o leitor já conhece: duas tempestades mescladas, duas extremidades da vida arredia, morte e
nascimento. Olhos vermelhos e silêncio foi a reação de Antão à morte da amada no parto.
Repousou pela última vez o olhar encardido no rosto da morta, face eternamente intangível e
distante, próxima aos deuses, entre a matéria e o espírito. Como uma tora arrebatada pelas
correntezas de um rio, Antão apanhou o avião para o Rio de Janeiro.
Meses depois, a irmã gêmea recebeu uma carta com caligrafia esfarrapada em folha
de receita médica, que chegou ao destino trapaceando a vigilância hospitalar e os limites
fisiológicos do autor. Quase desmaiou ao decifrá-la; bem que teve um sonho ruim, elo
misterioso entre gêmeos. Poupou a mãe dos detalhes. Um tio residente no Rio de Janeiro,
tenente reformado da Aeronáutica, foi contatado e encarregado de resgatar Antão do pavilhão
psiquiátrico do Hospital Geral Militar.
No ano seguinte, Antão reingressou no Curso de Sargento e o concluiu com louvor,
entre os melhores colocados. Intrometo aqui notas de rodapé: Antão foi atirado no manicômio
por dispor de um excesso de saúde, algo perigoso e intolerável num curso de formação militar.
Recorda ter questionado um oficial durante a instrução, e empunhar uma voz amolada sem os
modos adequados à situação, 1979. Despertou três dias depois, sedado, sujo e confuso, no
pavilhão psiquiátrico do Hospital Geral Militar do Rio de Janeiro. Um cabo internado há cinco
anos, viciado nos medicamentos, foi seu Virgílio durante essa temporada no Inferno. Mas o
grande deficit na sanidade mental só veio no ano seguinte, quando dispôs-se a repetir os mesmos
passos e reingressar no Curso de Sargento.
“No Curso de Guerra na Selva, outra vez sacaneado”. É raro, conta-se nos dedos as
vezes em que Antão se referiu ao passado. Por exemplo, só agora Anselmo fica sabendo que
por muitas noites o pai teve pesadelos com a Selva amazônica. De serviço, dormindo
uniformizado, abria os olhos e saboreava o ar livre da Selva; caminhava empunhando o fuzil
por entre as sombras dos grandes troncos afastando com uma mão os gordos cipós verdes
cinzentos, a folhagem úmida, quente e chilreante, pelos pubianos da Terra. Harmonizado, sem
pensamentos, puro como uma onça, feliz como um sapo-cururu. A luz do sol de repente penetra
por entre as exuberantes copas e lhe esmurra as pálpebras: despertava solitário na cama
quadrada, oprimido pelas paredes cinzentas da caserna. A repetição desse pesadelo era
enlouquecedora.

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Voluntariamente o militar envia a solicitação ao Centro, com vários documentos e
comprovantes. A papelada é examinada e eles decidem se a solicitação será aceita. Em caso
afirmativo, o militar viaja para longe da família e passa meses sob a tutela de uns putos oficiais.
Fome, sede, privação de sono etc. O militar aprende coisas que será bom se nunca precisar
praticá-las. O soldo não aumenta, pelo contrário, há dispêndios. Para ganhar o quê? Mais rugas
e cabelos brancos. E para quê? Exibir no uniforme um brevê. Sim, uma bosta de brevê feito de
pano bordado e talvez com bordas de borracha, que ficará grudado no gorro ou na gandola!
Entenda então os punhais espicaçando os tímpanos de Antão, diariamente, quando uma tropa
em marcha entoa a ladainha:
Olha a onça dele no chapéu
Olha que essa onça é o seu troféu
Olha que essa onça não é fácil de se ter
A fome e o frio é grande e o cansaço é pra valer!

Antão foi grandioso no Curso de Guerra na Selva, arrebatado pelo seu vigor, outros
concluíram o curso. Todos os dias os instrutores trombeteavam, “Alguém quer ir pra casa
hoje?”, e quase todo dia alguém levantava o braço. A dureza do treinamento sobrepujava as
expectativas. Na última semana, numa instrução na qual os alunos amarravam pistolas em cipós,
uma delas despencou no chão. Estava devidamente travada, não disparou, não feriu ninguém,
exceto Antão, que foi imediatamente desclassificado por imperícia... A irmã quase não o
reconheceu no Aeroporto; mais parecia um sobrevivente de campo de concentração ou um
retirante da seca. Ali mesmo a irmã lhe contou: seu filho estava internado há alguns meses.
Antão murmurou entre os dentes, “Não vai escapar dessa vez”. A irmã fingiu não ouvir e
engoliu o choro.
Meses depois, Antão tirava o serviço de adjunto ao oficial de dia quando
transferiram o telefonema da irmã ao ramal da guarda. Os soldados de serviço, sentados com
fuzis entre as pernas, notaram a mudança na expressão do sargento ao telefone. Pôs o telefone
no gancho e se apresentou ao oficial de dia. “Uma viatura, tenente! Meu filho teve alta são e
salvo; vou pessoalmente deixá-lo em casa”. Não é coisa recomendável, o oficial de dia sabe
que procissão assim só em emergências como a captura de um desertor. Mas quem faz o pedido
é Antão e o oficial de dia, 1º tenente recém-chegado da Academia, recomendou que fosse
rápido. “Uma hora basta, senhor!”. Anos mais tarde, um assalto aos sentinelas da hora arrebatou
três fuzis. Antão, promovido a subtenente, está fora da escala de serviço, mas solicitará ao
sargenteante que o reintegre temporariamente. Cabra mais doido, pensa sargenteante, é todo
mundo fugindo da escala de serviço e vem esse! Solicitou também que o pusesse como adjunto
daquele tenente, de preferência, o assalto se deu no serviço dele. O homem ficou mal dos
nervos, equilibrava-se com remédio, não sorria mais, diziam –; e sorrir é essencial à saúde do
militar! A solenidade interminável é um veneno para a alma, é por isso as chocarrices e as
pilhérias, peculiares nos quartéis, são um componente essencial ao seu funcionamento. Os
assaltantes, decerto ex-soldados, conheciam os meandros do serviço de guarda do quartel, as
horas de troca de sentinela e outros detalhes. Pois que venham quando Antão está de serviço!
O sargenteante ouvira falar, Antão era do 10º Depósito de Suprimento quando
houve aquela invasão. A multidão dos sem-teto cortou as cercas e se apropriou de parte da área
militar adjacente ao quartel. Antão estava de adjunto ao oficial de dia, sem conseguir dormir,
embora o Comandante do quartel tenha se calado, os trâmites se processavam nas altas esferas.

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Passaria o seu serviço com alteração ao próximo adjunto... Como dormir? Serviço com
alteração! Qual? Invasão na área militar do quartel. Não, isso nunca! Mas Antão, é uma
multidão de sem-teto, já tem vereador, partidos, advogados, a cambada toda do suporte; mesmo
o Comandante ainda não se pronunciou... Sim, é um bando de maltrapilhos que necessita dessas
terras mais do que o quartel, é evidente. E sim, com razão, toda razão, o bando força as coisas,
invadem e pilham. Até aí tudo bem; são efeitos de injustiças profundas no país, com toda
certeza. Mas... no meu serviço? Serviço com alteração. Qual? Invasão da área militar... Isso é
que não! Registrado no livro de partes, para ficar na memória, para sempre? Jamais!
De madruga, Antão levantou e puxou os cadarços de mais dois soldados, passou as
instruções. Só agir por comando, armem baionetas, mantenham a empunhadura. Escorreu a
equipe pelo mato, no meio do breu, até as tendas... “Quem é o cabeça aqui!” Quando a multidão
viu os fuzis e a pistola, coagularam apavoradas. “É seguinte, a razão está com vocês. O certo é
esse, tomar na luta o que é preciso tomar, agora – no meu serviço é que não! Então, metam o
pé na carreira senão vai ter morte e não tem advogado, vereador, partido dos cambal que devolva
a vida! Amanhã, quando eu passar o serviço, vocês podem voltar!”. O sargenteante recordava
a história, que só podia ter algo de exagero, enquanto registrava os pedidos do subtenente. “O
cabra é doido e com doido não se discute!”
— E você tem um filho, Antão?
— Agora tenho, tenente.
O tenente não entendeu bem, deve ter escutado mal entre roncos da viatura velha
na qual Antão embarcara com um soldado motorista. Termino este anacoluto e retorno aos
últimos acontecimentos da caserna, que o pai narrava entusiástico ao filho.
O Comandante, o homem lá de cima, desceu do seu trono de glória e veio falar com
o relés aqui. “Antão, você anda se preocupando com os alunos, pelo amor de Deus, com os
alunos! Tem sargento e tem tenente pra cuidar disso aí!” Com a mão no meu ombro, o Coronel
sussurrava essas coisas no meu ouvido. A conversa não foi no seu gabinete mas diante do jardim
plantado por mim, meu lugar de poder. “Coronel, suponho que está na minha esfera. Não sou
o praça mais antigo da caserna? Minha esfera, se não por ordem oficial, por ordem moral. Além
disso, eu to preocupado comigo. Um homem daquele tamanho e de arma na mão… Bem, se é
esse o caso… Se é pra deixarmos as formalidades, ora, o que ata as minhas mãos, Coronel? Um
fio de cabelo! É pra cuspir nas artificialidades? É barbárie, pois bem, aux armes, et caetera!”.
O Coronel já não suportava mais me ouvir. Apertou meu ombro para fixar-me ao chão e
perguntou, “Antão, o que você quer? O que você quer afinal? Deixa isso pra lá, homem!”.
Anselmo, a Academia de oficiais é continuação da Casa Grande. O oficial é
descendente do colonizador europeu. Os praças são a descendência dos nativos, os que nascem
da mistura das “raças tristes”. O Curso de Sargento é o prolongamento da Senzala, formação
de capitães do mato. Você, filósofo, faria bem se pensasse nessa direção no lugar de papagaiar
Kant ou Marx ou outro qualquer... Acha que isso não tem a ver com você? Acha que a
escravidão é um fato acabado, turismo africano que apimentou nosso sangue? Lembra do
Capitão Monte Negro, um louro bode alto que comandava a terceira companhia quando você
estava no último ano de Colégio Militar? Dia desses, no churrasco do Dia da Infantaria, veio
vomitar bêbado nos meus ouvidos dizendo que você era um “apagadão”, “bisonho”, um
“moita”, não dava mesmo pra Academia das Agulhas Negras, “é mesmo seu filho, Antão?”…
Entende o que quero dizer?… Mas você tem um sangue superior ao daquele louro bode! Eu me

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tremi com vontade de enfiar o copo na boca dele. “Capitão, ainda bem que o senhor não mexeu
com ele, porque dentro dele tem um igualzinho a mim que o senhor não gostaria de conhecer.
Com licença, permissão para me retirar!”. Anselmo, a escravidão perdura; o sistema se prolonga
e se aperfeiçoa… Porém, somos nós, praças, que educamos esses retardados, os oficiais. Somos
nós, praças, que ensinamos a sabedoria diária do quartel. Que seria deles sem nós? Perdi as
contas de quantas vezes fui babá de tenente! Não nego minha antipatia ao comunismo, está na
massa do sangue, mas não posso negar que no quartel tem trabalho alienado e luta de classe.
Os oficiais são uma classe que se apropria de nosso trabalho. Quantas vezes fui babá de tenente?
Ah, lembrei agora de uma historinha que conto nessas festividades militares. É uma fábula,
claro, mas baseada em fatos:
O filho do general acabou de sair da Academia de Oficiais. O pai o chama até seu
gabinete e diz: meu filho, tenho orgulho de você, peça-me o que quiser e eu concederei. O
aspirante coça a testa, fica em silêncio por alguns instantes, e finalmente responde: pai, o
senhor pode me conseguir um sargento só pra mim?…
Não é uma boa? Conto e arranco a casca da ferida. Os oficiais se atiçam! Antão,
nunca ouvi falar disso! Em que unidade aconteceu?…
Antão olha as horas, três da madrugada, e com um aceno chama Seu Benício. As
palavras embriagaram mais do que a cerveja. Pai e Filho estão exaustos e sonolentos. Seu
Benício já tinha recolhido as mesas do asfalto e da calçada, e recusado novos clientes, “já já já
estou fe-fechando”. Teria encerrado às duas, que amanhã cedinho fará compras e resolverá uns
problemas para o filho. Pretendia dormir cedo, mas estava ali “o Sargento”, chamava-o assim,
à maneira do filho, ex-soldado de Antão. O Sargento salvou sua vida e isso não será esquecido.
O velho quase enfartou temendo perder o unigênito para a “vagabundagem”. O rapaz fugia dos
estudos e dos serviços no bar. Depois da morte da esposa, há dois anos, que lhe restava no
mundo senão esse garoto? Trabalhou duro e pagou o melhor colégio que pôde, e não foi nada
fácil bancar aquelas mensalidades acrescidas de taxas e outras invencionices. Negociaria até
com o Cão para fazer do filho alguém, de preferência um médico, para cuidar da saúde do velho
pai quando chegasse a hora. Danou-se; o garoto de dezessete anos se trajava feito delinquente
com brincos nas duas orelhas! Em que havia errado, meu Deus? Tatuagem? Tiro ela do seu
couro com ferro de passar! O dia inteiro assistindo televisão, e só levantava do sofá para comer,
cagar e deambular pela rua até de madrugada. Como se não bastasse a preguiça, tão destoante
da juventude do pai, em Mulungu, que andava quilômetros para chegar à escola, onde fez até a
quarta série; carregava baldes d’água do chafariz até em casa no alto ao lado da Igreja de São
Sebastião; tirava o café do forno e do pilão, e para comer cuscuz, mugunzá e canjica era com o
suor das horas trabalhando o milho. “Tem tudo nas mãos, esse é o problema!”. Como se não
bastasse a criminosa preguiça, drogas! Nesta casa não! O único filho um drogado? Antes fosse
abaitolado! “E essas bitucas aqui debaixo da cama? Maconheiro você não vai ser que eu não
trabalhei feito mula pra isso!” Deu-lhe uma sova com cabo de vassoura e no dia seguinte o
garoto desparecera. Três dias depois o filho pródigo regressou magérrimo e fedorento. Deus é
Pai! Seu Benício agora pisava em flores e cobria o filho de mimos. Até aumentou a mesada e
comprou o videogame, parafernália comedora de tempo pela qual implorava. O garoto dormia
até o meio-dia enquanto o velho só conseguia grudar os olhos com fortes remédios. Ouvia um
minúsculo ruído na sala e saltava da rede – era o filho metendo a mão no caixa e escapulindo
pela madrugada! Não, era um cão mijando no portão rolante que o filho era um corisco

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impossível de ser flagrado. Onde ele estaria às duas da manhã, meu Deus?… Falta pulso forte,
é isso? Será falta de compreensão da “crise da adolescência”, como disse o doutor na televisão?
Mato, mas vagabundo ele não será! Essa vergonha?… Raimunda, querida, de onde esteja,
ajuda teu velho aqui! Virgem Maria, rogai por nós, pecadores!…
Seu Benício conhecia Antão desde que ele era um moleque brigão. Apelar a ele foi
o último recurso, o frangalhar dos nervos amolecendo a altivez de interiorano.
— Deixe comigo, Seu Benício. Deixe comigo...
Antão estancou as lágrimas do velho e arranjou para ingressar o rapaz nas fileiras
do Exército por ocasião da prestação de contas com o serviço militar. Como era de se esperar,
o rapaz bateu o pé e ameaçou fugir se tivesse de vestir uma farda. Antão o convidou para sentar-
se com ele à mesa, beber umas cervejas e conversar de homem para homem. Seis felizes anos
de infantaria se passaram, dois de soldado e quatro de cabo.
— Um excelente infante, excepcional auxiliar do qual até hoje tenho saudade.
Dizia Antão ao velho relembrando-o a quem ele devia a vida. Enchiam d’água os
olhos verdes... Chegando o tempo da baixa, o rapaz convertido em homem supereficiente e
disciplinado, engenhou um empreendimento no mercado da segurança e foi bem-sucedido.
Agora nutria o sonho de ter Antão como chefe do treinamento dos guardas. Assim esse pipocar
de empresas de segurança privada não o ameaçaria; teria um “Curinga”. Ano passado implorou
para que o Sargento fortalecesse sua campanha para vereador e “desse uma palavra” no comício
que faria ali mesmo, no Bar, juntando vizinhos e familiares. Em troca doaria fundos à recente
associação de amparo jurídico aos praças, da qual Antão era cofundador.
— Quando eu for reformado ainda estaria inteiro o suficiente para me dedicar a
coisas assim. Por ora tenho muito que fazer, não tenho tempo...
O ex-soldado consentia recordando o estilo industrioso do Sargento, um exemplo.
Com ele aprendera as lições que aplicava cotidianamente; “caminhar o quilômetro extra!” Não
esquecia a fórmula e renovava sua eficácia repetindo-a diariamente aos seus empregados. Em
suas palestras comovia-se narrando o episódio emblemático que ilustrava a “lei do quilômetro
extra”. O Comandante da companhia foi à sala de Antão com uma lista de tarefas não cumpridas
no prazo estabelecido. Na posição de descansar, o Sargento ouviu paciente o oficial debulhar a
relevância daquelas três tarefas. Quando o Comandante se calou, Antão desfez a posição de
descansar para retirar da gaveta um bloco de notas e entregá-lo ao oficial.
— Capitão, reconheço minha falha, não cumpri o prazo, e pedirei ao senhor
compreensão pois só poderei cumprir essas tarefas depois de amanhã, e o senhor tem toda razão,
não cumpri no tempo previsto as missões dadas pelo senhor, mas, veja aqui as missões que eu
mesmo me dei.
Na página do bloco tinha uma lista de dez trabalhos de importância e urgência
superior. Como ele, Comandante da companhia, estava alheio àquelas urgências? O capitão se
demorou observando as anotações farejando vírgulas fora do lugar.
— Ok, Antão, mas que não passe de depois de amanhã!
Quando o Comandante deu as costas, mestre e lacaio caíram na gargalhada.
Seu Benício queria ter fechado às duas, mas agora tinha concorrência lá na ponta
da Rua. Filho do Babau, um maconheiro pichador que havia virado crente, agora desvirou e
inventou de montar um bar no começo da Rua. Vivia aqui, o maldito, cercado de uns
universitários fedorentos. Fecha em menos de um ano, aposto! Não é má pessoa, mas vai

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quebrar a cara – inveja mata! Sim, o Bar é até bonitinho, cheio de firulas e tem até caricaturas
de deuses desenhada nas paredes como Belchior, Cartola e Chico, e tem até banheiro perfumado
com privada de louça preta para as mulheres. Mas qual Bar tem a “Criação do Homem” de
Michelangelo no teto, hem? Fui lá jogar uma partida de sinuca e desejar boa sorte, dia desses.
Gado, perdeu feio; eu não jogo – leciono! Não tenho estudos, mas leciono isso e outras coisas.
Escuto que o rapaz não tem jeito pra coisa, não contenta a clientela; ora é molenga ora
exagerado na indispensável grosseria de dono de bar. Falta virtude, experiência! Vocação de
dono de bar é como a de pescador, tem que conhecer a movimentação do mar e dos peixes. Não
é para todos. O ponto é bom, ponta da Rua 12 beirando o Calçadão, mas como um bom navio,
exige um bom capitão. Mas aqui, no cu da Rua, está quem faz da noite festa, quem apazígua a
vizinhança e a polícia, e é como árvore plantada à beira da lagoa, graças a Deus! Ah, Raimunda,
olha por mim do céu, tenho de vencer nos negócios! Deixe estar que vou fazer a reforma e
incrementar, melhorar o banheiro das mulheres, encher as paredes de quadros e pintar o chão
de xadrez. O Maracanaú sou eu! A noite perfeita é aqui! Deus que nesse teto se estica todo para
tocar o dedo preguiçoso do Homem, segura na minha mão!
Enquanto aguardava os dois deixaram a mesa restante, Seu Benício alçava voo em
vislumbres das modificações que faria no bar, e inflava o peito com o oxigênio que saía das
caixas de som:
Teu infinito sou eu, sou eu, sou eu… No Corcovado, quem abre os braços sou eu…

Antão cai morto de sono no sofá da sala depois de balbuciar algo ininteligível.
--- Esse filho do Benício… um imbecil!… Não consegue enxergar nada além de
grana… Você é mil vezes melhor do que ele, Anselmo! Mil vezes… Você será gigantesco…
Eles são todos anões…
Anselmo tranca a porta do quarto. Sonolento e exausto, senta à escrivaninha; não
pode dormir sem escrever algumas linhas, transfusão à anemia do papel, sangria que o
desintoxicava da palavra do Pai. As folhas brancas na gaveta da esquerda, nunca tão neutras,
nunca tão brancas, nunca tão passivas… Deitados, os papéis esperam quem nunca está tão
pronto, tão ereto e tão possante para o coito. Não tinha deserto no branco desse papel! Embora
sonolento e exausto, urge fazer sangria e abrir um deserto nos papéis com a aspersão do sangue
embranquecendo a página. Urge tornar a página alva mais que a neve e assim elevar os dois,
ele e a página, ao branco que apaga a palavra do Pai. Escrever é apagar a palavra do Pai, esse é
seu sentido, sua função, seu poder, seu feitiço e seu ideal.
A palavra do Pai desenhava o plano para o Filho fixando-o no cruzamento de um
curto-circuito. Palavra de pregos enferrujados que imobiliza os membros e se camuflava na
planura da página. Não tinha deserto no branco desses papéis… O Filho cresceu puxado por
duas cordas: 0) a iconoclasta linha do ódio aos oficiais; 1) a idólatra linha do amor aos oficiais.
O ouvido esquerdo para as denúncias da falsa glórias dos tenentes, capitães, coronéis etc.,
desmascaramento das estrelas mortas nos ombros, da frouxidão e da debilidade frente a guerra.
O ouvido direito para as descrições entusiastas da entrega do espadim na academia de oficiais.
Sim, ir além, que o Filho corresse um quilômetro a mais, e se tornasse o oficial que o Pai não
pôde ser! Tem o dever de honrar a memória do Avô policial, Tenente Benedito, cuja fama se
espalhava no Sertão e no Litoral, e punha medo até em Lampião, segundo a lenda da família.
Cresceu forçando as linhas do plano do pai redesenhando-as por meio de minúsculos

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deslocamentos, como os dos alunos na posição de descansar ou de sentido nos exercícios de
ordem unida, à revelia dos gritos do sargento, “não mexe, só respira!”.
A decisão de cursar Filosofia no lugar de rumar à Escola Preparatória de Cadetes
fez emergir relevos bizarros no plano do Pai. As linhas serpenteavam, a prudência das serpentes
picava o filho, o crucifixo eclodia em rosa-dos-ventos. Afinal o espírito do Filho vagabundeava
em procissão por lugares ermos ignorados pelo Pai. O mau-olhado se virava em mal-olhado
como questão de vida ou morte; o mau-olhado e o mal-olhado oscilavam matando e
ressuscitando o Filho. Quem chega à porta dos fundos que une a cozinha ao quintal enxerga o
menino falando sozinho sentado numa pedra próxima ao chiqueiro dos porcos, mas não percebe
as civilizações que brotam de seus dedos. De sua altura, o Pai ignorava o quanto sua pregação
socorria involuntariamente as revoluções do Filho; a Palavra centrifugada por seus ouvidos
sagazes fecundava resistência. Por isso é que não tinha importância explodir o império do Pai;
em certo sentido ele seria é cada vez mais expandido em proliferações aberrantes e inusitadas.
O Filho depurava o plano do Pai de seus cancros malcheirosos, das torres inúteis, das
alfândegas, das muralhas, dos gases esterilizantes e das luzes incertas de ideias confusas. Por
exemplo, a ideia de que o Pai é um tipo de sargento, o único elo entre o oficial e o soldado,
único mediador entre Espírito do deus e o Filho, o liame entre o passado e o futuro, era uma
ideia tola e inadequada. Todovia era essa ideia que endemoninhava o Pai quando falava do Avô,
Tenente Benedito e atualizava a mitologia do clã. Quando apresentava as lições das raças
guerreiras; para as civilizações antigas a concepção atomista de indivíduo era estúpida; estar
plantado na nobreza dos ancestrais é que era vital, e só assim somos gigantes. Cada homem é a
ponta de uma linha amarrada a tempos remotos. Os gregos, os romanos e até os judeus com sua
obsessão por genealogias pensavam assim. Uma terra encarna na flor que brota, um povo, um
punho fechado golpeando. O Pai tomava a postura de caminho estreito por onde o Filho
necessariamente tinha de passar; cruz aonde ele seria crucificado para alcançar a glória de um
deus. O Pai materializava as emanações do deus do clã, Tenente Benedito; o Filho era a matéria
amorfa onde o Pai imprimia as ideias retiradas do seio do deus do clã. Caso o Filho não se
sujeite ao modelo original, resta-lhe o caos e a degeneração.
Porém, o Pai também era um penoso regime de extravagâncias, de oscilações
bruscas excessivas, hybris da natureza; insolações intercaladas por aguaceiro ácido sob forças
de agentes desordenados e fugitivos, orquestrações das leis caóticas do clima sertanejo. Ao pé
dele, o Filho desenvolvia seu sistema imunológico, suas defesas, antídotos no sangue; as feições
estratégicas da catinga, a neutralidade armada dos espinhentos cactos.
Tipos clássicos da flora desértica, mais resistentes que os demais, quando decaem a
seu lado, fulminadas, as árvores todas, persistem inalteráveis ou mais vívidos talvez.
Afeiçoaram-se aos regimes bárbaros; repelem os climas benignos em que estiolam e
definham. Ao passo que o ambiente em fogo dos desertos parece estimular melhor a
circulação da seiva entre seus cladódios túmidos. 3

Sonolento e exausto, não dorme sem antes escrever, sangria que o desintoxica da
palavra do Pai. Escrever contra a palavra do Pai, contra a palavra-prego, contra a palavra-tétano,
contra a palavra-crucifixo. Escrever para afrouxar o fado de ser a carta interminável do Pai, a
“ordem que seria obedecida por um século”. Escrever para neutralizar a saliva que cai na

Euclides da Cunha. Os Sertões.


3

71
circulação sanguínea e catalisa a herança genética. Contra ela, a sangria que expia a vida, a
escrita. Sangria que produz a saudável anemia e limpa as veias para que insurja um sangue novo
das profundezas, sangue que produz zinzum, vazio a ser engravidado. A palavra do Pai era veloz
e sempre chegava mais cedo para aguardá-lo camuflada no papel.
Das venezianas o Sol coroou Anselmo. Murchou feito um vampiro e dormiu com a
cabeça nos braços sobre a escrivaninha. Os deslizes dos pés no outro lado da porta o acordaram
horas depois. Ergueu a cabeça, era cinco da manhã. Depositou as folhas rabiscadas no Baú e se
estirou na cama. É quinta-feira, já perdeu a aula da manhã.

72
Morte
Cinco da manhã. Casa de Maria. Anselmo é um náufrago sobrevivente de um sonho
tempestuoso. Deixado na beira da praia entre algas geladas, pedras roliças e espumas amargas,
ele arqueja e respira difícil com as narinas entupidas de areia e sal. Tem uma bola cabeluda
flutuando em seu peito de água-viva. Respira difícil mas já com ouvidos para se irritar com a
música do rádio relógio. Respira difícil, a bola cabeluda subindo e descendo no diafragma, mas
já com olhos para a réstia que cai da janelinha acima do fogão.
Como um rio que claudica por entre as pedras, desliza de debaixo da cabeça cravada
em seu pulmão e senta à mesa adiante. Repousada no travesseiro com a bora entreaberta, a
cabeça ressonará até o rádio relógio tocar seis e meia. Sentado à mesa entre o fogão e o quarto,
umbigo da casa, enxerga tudo melhor. Ainda tem gala onírica e algas marinhas nativas das
regiões abissais do sono entranhadas nas articulações dos ossos. Sentado, aguarda que esses
vestígios evaporem para que a glória de Maria ocupe o quarto. A réstia que cai da janelinha
engorda lambendo as cores dos móveis e das paredes… ela escala a cama para degustar a colcha
de retalhos de variadas espécies, seda, pano e pele.
Na Capela do Colégio Militar acontecia algo semelhante, e pouco importa se
Anselmo recorda ou não. Esses acontecimentos abriram buracos inextinguíveis em seu cérebro.
Lá fora, sobre as ruas, os jardins, os pavilhões das Companhias e os prédios cinzentos, a Luz
em seu puritanismo se enojava das dez-mil-coisas coloridas e fervilhantes da terra. Era o
monóculo da ótica de Newton, o Sol de Platão e de Agostinho escarrando desprezo ao baixo-
ventre terreno infestado de multiplicidades pululantes, insetos, raízes, resinas nos troncos, os
traços e as cores das cabeças dos alunos. Mas ao perpassar os vitrais da Capela, a luz do Sol se
travestia. Estilhaçada em múltiplas tonalidades incandescentes, cores histéricas e atonais, a luz
do Sol encarnava o Deus ao vivo e suas cores expressas no lascivo grito dos santos de pedra;
pedras viravam pães. A dor se personificava nos pés do Cristo em brasa, e nessas róseas feridas
se abriam pulsantes vaginas entre o Céu e a Terra. Os vitrais da Capela eram as lentes com que
uma Criança colossal nos Céus chamuscava neurônios humanos e abria neles buracos de
minhoca.
O mesmo espírito luminoso despenca agora da janelinha acima do fogão e se estica
até a cama para fulgurar a glória de Maria. Basta sentar à mesa e esperar.
Anselmo esfrega os olhos na carne de Maria e uma dor suave lhe pinica a nuca e
pesa nas pálpebras. Foi à geladeira e bebeu um copo d’água, os pés chumbados quase não
consentiram. Sentou cambaleante de volta, os cotovelos crespos na retoma de mármore. A dor
se disseminava pelo pescoço feito mancha negra em rio. Sempre que tinha variações assim
temia ser a tal aura, prenúncio de uma convulsão. Os anos transcorridos não dissolviam o pavor
de uma segunda convulsão. Águas passadas não movem moinhos. De ouvir falar sabia da tal
da aura, não tinha conhecimento experimental acerca dela como tinha da febre, sinfonia
conhecida em seus muitos sons e instrumentos. Seria a convulsão uma experiência de liberdade
a ser explorada; desaparição, completa ausência de controle, êxtase? As vísceras arredavam
pressentindo o inverso. A convulsão era antes o triunfo do automatismo dos gestos, da mecânica
orgânica irresistível e do vício!… Peixes não padecem o peso do rio… Sua vida inteira podia
estar imersa na tal da aura e por isso nunca a sentiu?…
Levantou da cadeira sem motivo e deambulou ao redor da mesa. Deu-lhe o ímpeto
de pôr o pé direito na boca aberta do forno, escalar o fogão e olhar o lado de fora da janelinha;

73
as partículas de poeira viajando no feixe de Sol deram a ideia. Os músculos flácidos o fizeram
desistir dessa empreitada; a mancha de dor se esparramava pelas costas. Deu dois passos
mancos e se aproximou da cama, apreciou o ronronar de Maria. Estava nua e umedecida de
suor, uns fios de cabelo grudavam nos lábios entreabertos e outros esvoaçavam no sopro do
ventilador. Encurvou-se, estendeu o dedo e ajeitou o fios de cabelo pregados naquela boca atrás
da orelha.
Deu-se um milagre, movimento a ser compreendido de dentro, do ponto de vista do
olho do instante. Ajeitar uns fios de cabelo atrás de uma orelha pode implodir o chão? É claro
que não podemos concluir algo dessa natureza sem demonstrações. Que causalidade pode haver
entre um gesto simplório como esse e o terremoto de liquefazer joelhos que se seguiu? A
simultaneidade de dois eventos nem sempre sinaliza causalidade. A sorte de Anselmo é que a
cadeira estava razoavelmente afastada da mesa e ele conseguiu o aparo das nádegas quando as
pernas se esmigalharam junto com o piso. Não fosse isso, talvez a bocarra infernal que se abriu
sob seus pés o teria engolido de uma vez.
Desmaiada nos braços sobre a mesa, a cabeça aguarda a conclusão do terremoto.
Diabos! Esperava a glória de Maria e veio o quê, um disco voador, o Sol em pessoa pela
janelinha? Diabos! Abriu os olhos para afugentar a névoa de imaginações com percepções
concretas. A febre ao produzir ideias sem contrapartes fatuais pode ser uma usina de confusões.
A terra tremeu, os pés quase foram engolidos pela vagina dentada que se abriu no chão: seria a
aura? Com dificuldade, sustentou os olhos abertos para atenuar a vertigem. Caminhar, pôs os
pés no chão, enrijecer os músculos com alguma ação, talvez sacuda a tontura e o delírio.
Levantou da cadeira e sob o peso os pés criaram alguma carne.
Aqui convém investigar a ordem das causas. Qual seria a causa prima?
Conhecimento indispensável sem o qual estamos à mercê da superstição. É com muito custo
que começamos a manobrar conscientemente a lógica causal, lá por volta dos 11 anos. O que
vem primeiro e o que vem depois? Qual a relação entre o instante X e o instante Y? O instante
segundo é que explica o primeiro? E essas questões ficam ainda mais complexas se levarmos
em conta os casos em que os efeitos retroagem e refazem as próprias causas; uma só causa pode
engendrar efeitos dúplices e divergentes! E dizem que depois de se “desaristotelizar” o mundo,
depois que o motor imóvel foi destronado, só os surfistas e os jogadores poderão nos ensinar as
leis da natureza! Dizem. Ainda bem que o problema aqui é mais modesto. Trata-se apenas de
saber se o desfazer dos joelhos em água resultaram do escanchar os cabelos atrás da orelha da
bela adormecida. O mais provável é que seja uma simples coexistência de instantes sem vínculo
causal. Acabemos já com especulação e refinemos a metafísica em virtude da experiência
possível. Não é difícil resolver a questão, basta repetir o movimento armado de uma atenção
disciplinada.
Outra vez as articulações das pernas se racharam, voltou a sentar na cadeira. Muito
bem, verifique-se se não foi perturbação na circulação sanguínea pelo levantar-se de supetão,
que isso costuma acontecer. Respirou fundo, levantou, aguardou o coração acalmar para refazer
pela terceira vez o experimento. Deu passos até a cama através do feixe que caía da janela, o
elmo da lógica em sua cabeça reluziu. Zás! Os joelhos se estilhaçaram como pernas de pau
puídas; estatelou-se ao lado da cama. O elmo da lógica tilintou no chão e foi parar debaixo da
cama, talvez. Não se arranhou, Maria não acordou com o estampido. Agarrou o beiço da cama
e ergueu-se para sentar junto dos saborosos quadris desnudos. O cérebro nocauteado batia nas

74
paredes do crânio. Ajeitou a postura angulosa do corpo, o tronco torcido, o cotovelo esquerdo
escorado na cama e os joelhos atirados para o lado direito, os pés frios virados para dentro.
Aparou a própria cabeça com uma das mãos, e foi nesse instante teve um arrepio e a sensação
de um tecido levíssimo lhe cair sobre os ombros. Súbito, algo lhe arregaçou as pálpebras e
sugou seus olhos como um buraco negro…
A leitura de orelhas segue princípios análogos ao da quiromancia, da leitura de
vísceras e da decifração de rachaduras em cascos de tartaruga feitas por um braseiro, prática
que aliás deu origem aos hexagramas do I Ching, do tinhlolo de Moçambique. Em geral, são
práticas que dependem da perícia do agente, que além da vocação divinatória marcada por uma
“doença de chamamento”, precisará de um longo aprendizado. Sendo Anselmo um noviço na
arte, o que se passa é confuso e destoa de tudo que sabia a respeito. É que a orelha de Maria
deu um salto-mortal feito bicho insano de fome e se atrepou em sua cabeça, pulando todos
procedimentos ortodoxos. E agora, Anselmo? Como determinar a causa e o efeito de um
fenômeno bizarro como esse? Como é que você vai analisar a ocorrência de uma orelha de
mulher que trepana a cabeça de um homem?
Dos milagres captamos só os efeitos. A Virgem perguntou ao anjo que anunciou sua
concepção, “como poderá ser isso?”. Simples, o altíssimo te cobrirá com sua sombra, disse o
anjo. Ou seja, a sombra cobre o processo do qual só conhecemos o produto. Sombras, tal é a fé.
Como se deu a imaculada conceição? Sombra! O resultado, o efeito, o rastro na areia, é tudo
que temos. “Rogo-te que me mostre tua glória”, disse Moisés a Javé. “Ninguém pode ver a
minha face e viver, mas poderás me ver pelas costas, o rastro, um vulto veloz, as pegadas no
chão”, responde Javé. E agora, Anselmo? Como obter a visão direta das coisas, do que
aconteceu?…
Até segundos atrás, o crânio e suas cavidades policiadas estavam firmes e fortes
represando a massa de visões, deixando-as do lado de fora. Num instante a orelha enxertou-se
esburacando a muralha e aquela multidão bárbara invadiu o cérebro de chofre…
Maria nem se mexeu quando Anselmo espirrou duas vezes estrondosamente, sem
conseguir libertar o olfato da força magnética que o conduzia. Arrastado por um anzol, o nariz
seguia a linha que engrossava ao aproximar da origem, o pires de louça abarrotado de guimbas
e cinzas debaixo da cama. Engrossava e ia bifurcando em ramificações divergentes, capilares
vívidos e pivotantes. E o que parecia um fiapo exalado de mais um corriqueiro pires de louça
debaixo da cama revelava-se uma arquitetura complexa, teia estendida por toda a casa –
ninguém acende um lampião e esconde debaixo da cama, disse o Cristo! Mas o pires afinal não
era a pedra fundamental desse edifício de linhas difusas e movediças, cujos cruzamentos eram
sustentáculos autônomos e móveis articulados aos demais, como uma extensa rede nervosa,
excrescência dos neurônios, sistema radicular complicado donde brotavam filetes que se
enganchavam nas paredes.
O nariz corria nesses fios entre o asco e o feitiço, e qual surpresa não foi chegar ao
ponto central onde as linhas convergiam! Quem diria que os fios se esticavam até a porta dos
fundos de sua casa, onde um gigante se escorava na ombreira com o braço direito movendo-se
lento de cima para baixo tendo uma haste fumegante entre os dedos! A cabeça do gigante tocava
as nuvens e seus pés tinham adiante as galinhas desenhando hieroglifos no chão, o espírito de
Deus reluzindo em seus olhinhos apaixonados pela terra. Junto ao muro do fundo, entre gangues
de pedras e patos cintilantes, entre o amontoado de granito que chegava até o cimo do muro e

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o chiqueiro dos porcos, quadrilátero de tábuas de madeiras velhas e encaixadas, estava ele.
Josefino e Josefa esparramados entre restos de repolho e jerimum, inocentes do dia de hoje,
roncavam adormecidos. Quando o menino de sete anos viu o gigante, atirou-se com suas
perninhas rechonchudas driblando os jarros, as fileiras de mudas de arruda em sacos de leite, o
assentamento das couves, e um pneu de caminhão cortado na horizontal, prato dos bichos. Deu
um olé no filhote de pequinês que julgara ser a hora da brincadeira e que quase o derrubou
passando por entre suas perninhas. Ofegava. Chegou diante do gigante. Ofegava. A Avó gritou
da cozinha.
— Não fume na frente do menino!
Trazia as mãos beijadas de barro e o desejo de abraçar as colunas do universo, as
pernas do gigante. De seu alto celestial, cego, gigante cuspia preguiçosos jatos de fumaça,
nuvens…
É comum que gente grande ignore a telepatia das crianças. O gigante despenhou
um olhar que fez chover sobre o menino as galinhas do quintal mortas e depenadas. Com um
peteleco atirou a chaminé em miniatura que tinha na boca, virou as costas e desapareceu no
cômodo seguinte. Entre as galinhas nuas em fúnebre silêncio, o menino virou pedra. A Avó
preencheu a moldura vazia da porta com rugas assombradas e olhos crescidos de dor. Nunca na
vida vira deserto tão extenso num rosto de menino! Enxugou as mãos engorduradas no vestido
e assistiu ao líquido quente escorrer por entre as perninhas rechonchudas, choro da pedra.
Acorreu e ajoelhou-se para abraçar o menino, beijou um olho e depois o outro olho como num
ritual de transfusão de lágrimas, deus soprando nas narinas para reanimar o barro endurecido.
No dia seguinte o menino revivido investigou o terreno e encontrou a ponta de
cigarro próximo dos cacarecos, lado direito da porta do quintal. Pôs na boca a guimba para
vestir-se de gigante celestial e obter aquela força hercúlea de estrangular o universo com um
apertar de pálpebras. Pegou a caixa de fósforos na cozinha, acendeu a bituca e mergulhou nos
movimentos do pai. Deu a primeira chupada e engasgou-se, os veios incharam no pescoço, os
olhos e o nariz expeliram água vermelha, a cabeça quicou sem parar de tossir…
Uma hora depois a Tia o encontrou desmaiado no umbral. Sangue vazara pelo nariz
e espuma pela boca. No limiar entre a cozinha e o quintal, sua primeira convulsão esfriava no
corpo ainda quente.
Um fio grosso desceu pelos lábios formando uma cruz. A geometria aberrante
emaranhava como arame farpado, crucifixo que se desdobrava em teia de aranha, em orelha
labiríntica de fios cortantes, linhas, dobras e fibras de um sexo reluzente, vagina com seus dez
mil olhos de querubim que assombra e seduz… Empurrado pela eletricidade das sinapses
excêntricas, chega a uma esfumaçada sala de aula, tem onze anos, é o mês de Abril, aniversário
da menina a sua frente. A Professora pede que a menina fique de pé e inicia o “Parabéns pra
você”. Depois escolhe alguém para entregar o presente, como de praxe – quem mais indicado
do que o rapazinho tímido e bem-educado sentado atrás dela? E todos sabem que o rapazinho
tem um fraco pela menina, pudera, ela é linda, com doze anos já tem a formosa de uma mulher
feita. Com dificuldade ele levanta da cadeira, dão-lhe o embrulho que ele passa apressadamente
às mãos da menina a fim de desembaraçar-se daquele desconforto o mais rápido possível. “Dê
um abraço em nome da turma, Anselmo”, diz a Professora. A tortura não acaba. “Parabéns,
Maria!”. Anselmo a entrelaça com braços débeis, e por uma proximidade excessiva toca os
lábios e a ponta gelada do nariz na pequena orelha da menina, branca e cortinada de cachos

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escuros… Seu primeiro amor, não lembra o rosto; tem apenas um borro branco no lugar da
cabeça, e todavia, as curvas daquela orelha pequena e branca são inesquecíveis!…
Puxara o fio para silenciar o rádio relógio ao erguer-se da cama, não haverá o toque
das seis e meia. Quando Maria despertar ele já estará em seu quarto, deixado na cama, pisoteado
pela invasão bárbara das visões.

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Papisa
“A onipotência do amor talvez não se apresente jamais com tamanha força como em
suas aberrações” Freud.

Maria tinha intolerância fisiológica à ideia de felicidade. A felicidade, a beatitude,


a bem-aventurança, como queiram: roupa folgada demais para as sinuosas medidas da vida. Se
a felicidade é alguma coisa, é um sintoma a ser mensurado em cada caso. Tinha uma fórmula
tão precisa quanto equações de psicofísica para essa mensuração: a felicidade é proporcional
ao grau de promiscuidade, ou seja, de mistura do corpo com outros corpos. Logo, a ausência
de misturas com outros corpos é a perdição, o inferno. Céu e inferno, obviamente, não são
demarcações de uma geografia metafísica, são variações de humor, um fio de cabelo separa um
do outro. O Céu de Maria é a abundância de misturas de corpos; mastigação e digestão: estado
de graça. O Inferno de Maria era a fome, que aliás é o mesmo vácuo de Pascal.
DENTRO DE CADA UM DE NÓS EXISTE UM VÁCUO COM A FORMA DE
DEUS, QUE SÓ DEUS PODE PREENCHER.
O Deus de Maria, rústico e sulamericano, não se entroniza entre os querubins, ele
mora na fome. Deus não está à mercê do entendimento humano, como já disseram, mas pode
ser comido por todas as criaturas. Deus, o numinoso, só pode ser “conhecido” pelos processos
de mastigação e de digestão. Os autênticos problemas teológicos são bendito fruto do vosso
ventre, gerados no estômago e não na cabeça; nisso os Pais da Igreja erraram feio. As cansativas
provas da existência de Deus são ingenuidades masculinas. Várias querelas teológicas podem
ser resolvidas ou dissolvidas no comer. É nesse ponto que a Religião se separa da Moral, que o
Totem se distancia do Tabu, e a Religião apresenta seus valores puros, diferentes por natureza
dos valores morais – Totem contra o Tabu! Na prática isso significa formular os problemas de
modo exclusivamente religioso, depurando-os da contaminação com a Moral. Claro, isso é
nadar contra a correnteza humanista europeia, que define a religião como um estágio primitivo
a ser superado pela Razão.
Vejamos, por exemplo, o problema da luta entre matéria e espírito, corpo e alma.
O problema só fica bem-posto se formulado às léguas da teologia masculina que triunfou no
Ocidente. O corpo está emaranhado nas obrigações sociais, pressionado pela Moral e pela
ordem acidental do mundo. Essa Moral é feita de regulamentos que impõem aos corpos hábitos
estáticos visando a domesticação social, a regulamentação estatal que separa os corpos uns dos
outros e higieniza os espaços entre eles condenando-os à miséria e à subnutrição. Mas essa
ordem acidental é uma casca sem substância, sem polpa ontológica. Ela é, como diziam os
gnósticos, o mundo fabricado pelos arcontes para que não vejamos a Luz. Quem são os
arcontes? Os poderes que organizam a vida social e política, que cristalizam a História, que
solidificam as tradições e o ordenamento social. Eles procriam uma moral desenhada à imagem
da matéria, donde retiram as diretrizes básicas: inércia, impenetrabilidade, estabilidade, peso,
divisibilidade, homogeneidade. Esses regulamentos impõem ao corpo um estado sólido,
manobrável, dócil às leis da física, passível de divisão, restrição, manipulação e ordenação no
espaço.
A História da Teologia e da Filosofia se encastela sobre alguns erros masculinos
fundamentais. Enfiar a Moral no problema da relação corpo e alma é um deles. O problema foi

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lapidado por uma moral de Império, rancorosa contra o feminino, contra a fugacidade poética
dos êxtases e dos impulsos da carne. Então qual é a ordem essencial do mundo? O espírito de
Deus, a fusão incandescente constante e criadora, o coração magmático da Terra, o fogo
primordial do Amor divino. O nosso espírito é apenas uma fagulha, um fio de cabelo do espírito
de Deus. A luta da ordem essencial contra a ordem acidental é a verdadeira guerra entre a
Cidade de Deus e a Cidade dos Homens à qual a teologia masculina de Agostinho alude.
Maria tinha algumas ideias gnósticas, embora divergisse delas em alguns pontos,
por exemplo, a cegueira de não enxergar o abismo entre a carne e a matéria. A carne é o
pneuma, o único espírito que temos. É a carne que se opõe à matéria, e esse é o cerne da luta
entre alma e corpo. A carne é o único espírito que temos, o fogo ululante que se opõe à inércia
da matéria. A carne é o barro animado pelo fôlego divino soprado das profundezas da Terra.
Nossa linguagem habitual testifica disso quando falamos da paixão e do amor como um fogo.
A carne é o próprio fogo e o fôlego de Deus! Ela é que opera a combustão dos elementos da
matéria por meio da digestão e assim cria o movimento.
O mandamento do Amor tem nisso o seu fundamento: amar é alistar-se para guerra
da Cidade de Deus contra a Cidade dos Homens – de fato arquitetada por homens, não por
mulheres. As mulheres são eternas nativas da Cidade de Deus. Amar é participar da
promiscuidade do espírito de Deus contra a inércia da matéria e da moral dos homens. É a moral
dos homens que converte a carne em corpo adestrado por regulamentos. É a moral dos homens
que faz do corpo uma peça mecânica. Daí porque, diferente do que diz Freud, não é o Eros que
gera as grandes generalidades humanas inertes, as nações, os estados, a civilização. É mais fácil
que o Eros tenda a mastigá-las, digeri-las, corroê-las! Tampouco o Eros nasce de uma ruptura
com a carne, da inibição dos impulsos vitais primitivos. É a carne, em sua animalidade erótica
mais crua, próxima do divino e do primitivo, do mito e das esferas primordiais, o autêntico
Eros, o impulso espiritual, o hálito puro de Deus! À luz dessas ideias fica mais claro o fervor
com que Maria amava Anselmo, e porque o Conselho da Primeira Igreja Presbiteriana de
Manaus enviou uma carta ao reitor do Seminário solicitando o desligamento de Maria da
condição de seminarista da congregação.
Todavia, a Moral dos homens violava seu ninho e se deitava em sua cama sem pedir
licença. A efígie da Cidade dos Homens, afinal, marca todos os corpos. Tantas vezes, deliciando
a fartura das misturas, fazendo amor com Anselmo, uma dor de barriga forçou a interrupção do
movimento. Tinha de se levantar para ir ao banheiro quando o que mais desejava era mesclar
esperma, saliva, suor, fezes e urina e fazer da cama um caldeirão divino de misturar os fluidos
e os excrementos da carne; regresso à sopa primordial no espírito de Deus! A cama como
cosmogonia de um universo incandescente, um crisol que transmutasse essa pesada vida de
chumbo, aguilhoada pelas generalidades inertes, pela férrea moral, em ouro líquido! Todavia,
ela tinha de se levantar para ir ao banheiro, estagnar a grande obra para realizar a miserável
higienização do corpo. Talvez, suas crises de gastrite e refluxo nascessem da penúria de ser
envergada, forçosamente, à ordem acidental da Cidade dos Homens. De alento, a Poesia, a Arte
pela qual embelezamos o sepulcro e aliviamos a fome.

79
Imperatriz

Maria testava novas maneiras de usufruir os próprios membros que, por acidente,
estavam em Anselmo. Amantes são uma só carne, segundo as Escrituras. Geniosa na arte de
matar a fome, fabricava sempre seduções frescas, redes mais afinadas e anzóis mais afiados.
Não percebia o ar entediado e a distração que esculpia as feições do Amado? Por onde
vagabundava seu espírito nesses lapsos de inércia e palidez?… Fugia como vento. Tinha de
detê-lo oferecendo diariamente novos sacrifícios, correr atrás do vento, lutar com seu deus para
que ele jamais a deixe.
Em meu leito, pela noite,
Procurei o amado de meu coração.
Procurei-o e não o encontrei!
Levantar-me ei,
rondarei pela cidade
pelas ruas, pelas praças
procurando o amado da minha alma…
procurei-o e não o encontrei!…

Encontraram-me os guardas
que rondavam a cidade:
“Viste o Amado da minha alma?”
Passando por eles, contudo
encontrei o amado da minha alma.
Agarrei-o e não o soltarei…
(Cânticos 3. 1-4)

As redes afinadas e os ganchos afiados feriam. A hiperatividade de Maria causava


edemas como as extravagâncias do sexo. Enganava-se, o Amado não fugia e se fugia era para
regressar, eternamente regressar. Nenhuma delícia na terra era maior do que se misturar a Maria
para ele.
Como és bela,
quão formosa,
que amor delicioso!
Teus o talhe da palmeira,
e teus seios são os cachos.
Pensei: “Subirei à palmeira
para colher dos seus frutos!”
Sim, teus seios são cachos de uva,
e o sopro das tuas narinas perfuma
como o aroma das maçãs.
Tua boca é vinho delicioso.
(Cânticos 7. 7-10).

Não fugia, cavava intervalos, tempo para cicatrizar as feridas, pausas para respirar.
Sem essas lacunas as feridas se multiplicavam e se interpenetravam umas nas outras formando
latifúndios de chagas. Pequenas as feridas têm sabor, cor, cheiro, nuances. Pequenas as feridas
são ilhotas paradisíacas, oásis. Crescidas são monocultura do inferno, deserto. As pequenas
feridas não queriam se fechar nem se expandir; eis o equilíbrio a conservar, mesmo embriagado.
Era preciso ser bom no cálculo das compressas de ausência e impor medida à fricção constante

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dos corpos. As pequenas feridas eram o rastro da glória de Maria, hieróglifos por decifrar.
Porém, regular a medida, garantir o tempo de lamber as feridas, era como pentear a cabeleira
de uma tempestade. Anselmo intentava pactos, Maria atentava possessões.
Veio de Anselmo a proposta de se encontrarem apenas na sexta-feira, tentativa de
instaurar a ordem na confusão caótica das misturas. Ingenuidade, como a fome de Maria
engoliria uma lacuna dessas, ela que se declarava alérgica ao látex dos preservativos, essa fina
película separadora de mucosas? Tinha intolerância visceral aos invólucros e membranas, as
mucinas do espírito repeliam o que quer que impedisse a plena mistura dos corpos. Dava golpes
de estado, contornava os diques que Anselmo levantava e encontrava frestas no muro.
Em si mesmo, Anselmo era um buraco negro, um noumeno que não enchia a boca
nem o estômago, um fantasma intangível. Mas a fome tem sua gnose. Devidamente molestado
e submetido a certas regras, Anselmo aparece; nos gestos, no movimento, no trajeto de um
ponto a outro, torna-se então comestível e inteligível. O verbo se fazia carne para ser devorado
e saciar a fome, o fantasma reencarnava. Os segredos íntimos, os abismos da alma? Fiquem lá
para Deus que a boca quer beijos e não mistérios! O Amado deve se mover e aparecer. E deve
se mover e aparecer de tal maneira… Só assim saciaria a fome de amor.
Anselmo tendia à decifra, Maria à devora. As duas tendências coabitavam e
concebiam um único axioma: “Decifra-me enquanto eu te devoro”. Embora as duas tendências
se enovelassem, não deixavam de formular cada um enigma singular
A decifra sibilava:
Se a beatitude é a promiscuidade,
Por que tamanha voracidade?

Maria, faminta de velocidade e de novidade, comandava.


— Mais rápido, mais rápido!
E ditava a cadência e a potência dos golpes.
— Mais força, mais força!
E definia a movimentação.
— Agora assim, agora assim!
Punha as palmas das mãos de Anselmo na cara como máscara; excitava tê-las sobre
as contorções do rosto prendendo-lhe a respiração durante os esforços do amor. Depois as
colava nos generosos seios, “aperta!”, ordenava. Agora nas nádegas, “bate!”. Manobrava as
mãos de Anselmo, seu fetiche, fazia delas fórceps para arrancá-lo do buraco negro onde se
ocultava, o instrumento cirúrgico de uma maiêutica, a metonímia da aparição de Anselmo.
Eis que a mão do Senhor não está encolhida para que não possa salvar…
Punha os dedos grossos e pequenos na boca, sugava-os, mordia-os. Anselmo
perturbava-se; parte de sua excitação vinha da visão do rosto de Maria, de suas caretas de gozo
assomadas aos gemidos; tudo isso obliterado pelas próprias mãos grosseiras comandadas por
Maria. No cerne mole dos prazeres, essa sofreguidão e seu regramento minucioso afligia. Fazer
amor com Maria parecia uma marcha com suas transpirações alucinógenas, exercício de ordem
unida. Por que esse controle obsessivo dos gestos, sempre novas posturas e novas receitas? Por
que essa velocidade cavalar rumo aos orgasmos? Por que tanta agressividade e violência?
Condimentos extravagantes para uma comida sem gosto? Vestígios de apetites canibalescos em

81
seu sangue Munduruku, eficiente aparelho de apoderação eletrificado pela libido, como diria
Freud? Tamanha voracidade às vezes entristecia seu pênis e enuviava sua cabeça com sombrias
meditações. Anselmo decifrava em Maria uma vontade de fim, repulsa ao processo, à mescla
dos corpos em si mesma, o meio, o caminho, o movimento livre desatrelado de finalidades…
Tristonhas meditações ejaculadas do pênis murcho.
A tristeza sabotava os discernimentos de Anselmo, nada rigorosos e nada generosos.
Pois se Maria suspirava pelo fim, como julgava, também atrelava o fim a um novo começo,
movimento pouco dignificado. O trem se atirava de uma estação à outra e depois outra e depois
outra ao infinito. Ímpeto só esclarecido à luz da guerra da Cidade de Deus contra a Cidade dos
Homens. Maria intensificava a pulsão de aniquilamento do corpo material a fim de liberar a
carne, magma espiritual; dar um fim ao corpo organizado pela Moral dos homens e engendrar
um corpo ressuscitado que ultrapassava o cárcere da individualidade; eis o amor. Tinha algo de
férreo e violento no amor de Maria, uma vontade de rachar a crosta do corpo e libertar a
quintessência de Eros, devora.
A devora é a prática por excelência da fome. É a práxis da alergia ao mistério, ao
absconditus, ao noumeno, ao buraco negro; e nem mesmo Deus será poupado! A devora separa
o de comer do que não é pão, separa o fantasma do que é carne e se esforça por converter o
segundo no primeiro. Esse é o procedimento da fome: método de conhecer e de viver ao mesmo
tempo.
A Razão é Luz, a inteligência é Olho interior, o entendimento é Clareza etc. A
devora tem aversão a essas metáforas óticas. O olho cobiça contornos fixos e objetos
delimitados, mas tem por condição a distância. O trasporte do funcionamento ocular para a
dimensão do espírito é uma fonte de graves erros. Metáforas óticas estrangulam um tipo de
conhecimento vital e profundo cuja condição é a supressão das distâncias, essa que o olho
determina entre ele e os objetos. A gnose da fome fecha essa ferida entre o sujeito e o objeto, e
faz do estômago, da boca, do paladar e do tato imagens tão dignas quanto a visão. Grave erro
da Teologia cristã a redução da palavra hebraica nephesh e a palavra grega psique ao mesmo
significado: alma. Ora, nephesh quer dizer literalmente garganta e dá a imagem de uma boca
que respira e come.
Eu procuro em minha garganta o nome, e como que o cílio vibrátil das coisas 4
A psique, a alma: olho que sonha com a Luz, com o contorno das ideias claras e o
fim das sombras. A Teologia cristã apaga, com sua grosseria masculina, delicadas diferenças de
natureza e assim nivela coisas distintas como a tendência de Maria e a tendência de Anselmo,
cujas perversões seguiam vias divergentes, ela o tipo a e ele o tipo b, que de acordo com Freud
são:
a) extensões anatômicas das áreas do corpo determinadas para a união sexual; ou b)
permanecimentos nas relações intermediárias com o objeto sexual, que normalmente
seriam percorridas com rapidez, no rumo da meta sexual final 5.

A alma de Anselmo se nutre da contemplação dos contornos e das contorções de


Maria. Já a alma de Maria ama como uma garganta faminta.
Você é a vil caipora

Antonin Artaud.
4

Sigmund Freud. Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade.


5

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Depois que me devora
Ó jiboia do amor!

Negar que me cospe aos bagaços


Que me enlaça em seus braços
tal qual uma lula do mar6

Raul Seixas,
6

83
Julgamento

Uma borboleta beliscava as flores, Antão conteve o jorro d’água com o polegar no
bico da mangueira. Contemplou as asas esvoaçantes se confundido às pétalas. Um ignorante
que o flagrasse agora aguando o jardim de cara abobalhada para um voo de borboleta, talvez o
julgasse o tipo de militar pacato, um tanto efeminado, esforçado em repousar no lado frio da
caserna nos afazeres burocráticos distantes de treinamentos brutais. Não é difícil encontrar esses
exemplares, mesmo num quartel de infantaria. Nos quadros de todo ofício se esconde o
contingente dos que foram parar ali por acidente, condenados a driblar os valores e as funções
do ofício que o acaso os legou. Há professores que odeiam ministrar aulas, médicos que odeiam
sangue e preferem canetas a bisturis. A categoria dos que estão no lugar errado é a mais
numerosa do mundo. E dentre esses, em número menor, há os que vivem essa inadequação da
maneira mais excelente. O farmacêutico que em desavença com seu ofício vira poeta e passa a
compor remédios espirituais. O engenheiro que em contenda com sua profissão vira escritor e
passa a engenhar a palavra. Casos raros. Comuns são os dribles e a manutenção das aparências,
tão intrínsecos a vigente ordem social. O resultado é que um farmacêutico como Drummond e
um engenheiro como Euclides da Cunha, desajustados que só conseguem respirar
espiritualizando seus ofícios, encontram sempre mais dificuldades na vida do que os
dribladores.
Antão é um desses cuja profissão foi decida pelo azar. Não obstante, ele não é um
exemplar da categoria dos desajustados, ordinário ou raro. Pertence antes a categoria dos que
encarnam os supremos valores de seu ofício. Quem o vê a essa hora da manhã regando o jardim
espremido entre o asfalto e a Companhia de Apoio, dá bom dia e presta continência. O ignorante
flagra que cogitei de início é impossível graças aos automatismos da rotina na caserna; ninguém
se dá conta de sua cara abobalhada para o voo da borboleta. Igualmente ninguém nota o quanto
o Subtenente rumina a tediosa rotina na caserna, a atmosfera deletéria que dissolve o cume dos
montes e nivela por baixo os valores de todos os ofícios, a atmosfera desse maldito tempo de
paz. Aguando o jardim, o Subtenente delira com ventanias, revoltas, revoluções, guerrilhas. Ah,
que a tempestade varra os entulhos e os pesos mortos, e faça refulgir como diamantes brutos os
valores do Exército Brasileiro! Estoure uma revolução que reverta o “rebaixamento dos fortes
e a elevação dos fracos”, ressuscite a descendência dos gigantes!
A umidade da manhã ungia o jardim misturando seus odores ao esperma amarelado
do Sol propagando-os ao redor da Companhia de Apoio. Vestido com a camiseta e o calção do
uniforme de educação física, Antão degusta a refração da luz nos respingos da mangueira,
inspira os aromas do jardim e enche o pulmão de orgulho. É o ar do próprio espírito, gás
peçonhento pronto para empestar o quartel. Quem conceberia um jardim aí? Para Antão o
jardim faltava, foi ser o parteiro dele. O jardim não era para exalar perfumes mas o veneno das
zonas abissais, o gás provocador de mortes, alucinações e visões. Ah, que o Exército Brasileiro
seja conduzido à sua glória!
Nuvens cinzentas se adensam numa extremidade da redoma celeste como se
deslizassem por essa abóbada e se depositassem na margem da retaguarda. Há de chover. Há
de chover e essa será a única revolução, a única extravagância esburacando a monotonia da
caserna. Os fracos não se engasgarão com a própria baba. Os adormecidos não serão vivificados
por alucinações. Os olhos não se incharão irritados com verdades pontiagudas. Há de chover e

84
isso é tudo. A rotina cinza da caserna é dura feito sepultura; ela perdura e todos os que habitam
estão tapados para o cheiro das flores. Quem o vê de mangueira na mão ignora sua cara
abobalhada para o voo da borboleta, e o quanto ele rumina, furioso, o amargor do presente.
“As borboletas têm o paladar nas patas!”, leu isso numa das revistas de jardinagem
empilhadas no lado direito de sua mesa. Era isso que verificava interrompendo o fluxo da
mangueira e afiando o olho para as patas da borboleta. No lado esquerdo da mesa tem um
telefone de modelo antigo, daqueles de enfiar o dedo no orifício e girar, que nesse instante grita
estridentemente incapaz de alcançar os ouvidos de Antão ensurdecido pelo revolutear da
borboleta.
— Grupamento, atenção!
Antão atirou a mangueira no chão e prestou continência num sobressalto reagindo
maquinalmente ao grito do terceiro-sargento que conduzia uma tropa de recrutas com seus fuzis
desajeitados nos ombros feito varas de pescar. A mangueira caiu sobre o caule de uma tulipa
branca. A borboleta assustada esvoaçou e se destaparam os ouvidos de Antão: “É Anselmo!”,
pronunciou em voz alta saltando dentro da sala por cima dos três degraus para atender o
telefone. Reconheceu a voz de imediato, custou a acreditar.
— Encontrei seu número num guardanapo no bolso de uma calça que Anselmo
esqueceu aqui em casa.
— Maria?!
A irmã telefonou anteontem, conversa de sempre: a mãe já estava velha, o filho
tinha “peculiaridades”, era bom ter o pai por perto etc. “Venha ver você mesmo!” Replicou a
irmã quando ele perguntou ia tudo bem com Anselmo. “É bom ter o pai por perto”, repetia a
frase como um mantra. Ou seja, o curso ordinário das coisas. O filho não estava morto nem
doente, então qual é a razão do telefonema de Maria?
Confinado em seu quarto há semanas, resta-lhe saúde suficiente para influenciar as
duas mulheres e proibi-las de convocar o pai. “Não abrirei mais essa porta e farei greve de fome
caso o chamem!”. Assombradas, as mulheres invocavam a Deus no lugar de Antão. Ao telefone,
a Tia mordia a língua para não gritar por socorro; pelo amor de Deus, o menino está em crise
outra vez! Não sabemos mais o que fazer! Socorro, cansamos de tanto rezar! O telefonema
costumeiro da Tia era um alívio de tensão. Fazia um mês que a porta do quarto estava lacrada
ocultando o menino dos olhos e das mãos da família, bloqueando a passagens desses
mediadores da Graça divina que podem resgatá-lo da depressão. Fazia um mês que as duas
mulheres não respiravam direito.
Coturnos metralham o asfalto lá fora, é a tropa de recrutas que regressa.
— Alô, está me ouvindo?… O que está acontecendo com Anselmo? Ele não atende
minhas ligações. É doença? Estou preocupada! Você não gosta de mim, eu sei, mas não tive
escolha. Era ligar pra você ou aparecer. Ligo pra lá, chama, chama e ninguém atende, o telefone
deve está quebrado. Mas aparecer com que cara? Não sei ainda se é proposital o silêncio…
Maria se engasgou com um grande soluço.
Antão retirava um guardanapo do suporte sobre a mesa e escrevia o número do
telefone com o ramal de sua sala na Companhia de Apoio. Repetiu o gesto várias vezes.
Anselmo tinha um celular, presente de grego dado por Maria, que funcionava como coleira
eletrônica. Nunca lhe deu o número, o que achava? Que o pai tem tempo para incomodá-lo com
ligações inconvenientes? O que achava? O pai telefonaria de hora em hora para verificar onde

85
estava e o que fazia, tal como a namoradinha? No auge da boa conversa, Maria de longe se
intrometia e Anselmo levantava da mesa ao comando de sua voz. O diálogo se esfrangalhava
irremediavelmente. Pedir o número? Já não é humilhação suficiente entregar pela milésima vez
esse guardanapo?
Precavia-o: é a primeira de muitas, calma! Saiba lidar com as mulheres. Isso, como
tudo, exige treinamento, aprendizado. Filho, muito mel enoja. O homem que se viciar numa só
mulher verá seu preço aumentar acima do que pode pagar. Saiba lidar… Quando saí da Escola
de Sargentos e fui servir em Recife, mandei um soldado desenhista pintar um cavalo no muro
da companhia. Eu mesmo comprei a tinta e arranjei a fotografia do modelo. O desenho saiu
mais parecido com um cachorro, horrível. Quis punir o soldado e ele se defendeu assim:
“Sargento, mulher e cavalo são os bichos mais difíceis de desenhar do mundo!”, não pude
contestar. Parafraseando, mulher e cavalo são bichos difíceis de dominar; em certo sentido, a
mulher é como um cavalo que é preciso domar para continuar montando. Montar e domar, há
que se aprender. Você monta sem domar? Cuida, que é queda do cavalo na certa! E acontece da
égua fingir docilidade, o caboclo monta, a égua galopa e a bunda se estatela no chão. O pior é
a vergonha… Você tem inteligência? Tem, mas é preciso mais do que isso; treinamento,
experiência. Aí você replica e me solta uma pérola tirada dessas ostras invioláveis, os filósofos:
A máscara do adulto se chama ‘experiência’7.
Máscara? Não, marcas! Cicatrizes no rosto. Marcas que o olho míope da juventude
chama de máscara! A feiura que a experiência esculpe na cara é irremovível. Mas como você
entenderia se essa é a primeira mulher que lhe abre as pernas? Cuida, se passaram quase três
anos! O grande mal do vício é que come o tempo da gente privando de prazeres maiores. Um
prazer só mostra o auge do sabor numa paleta de prazeres, como um prato do cardápio. É se
lambuzando com uma variedade de sabores que nos livramos da monotonia do gosto por uma
coisa só. Comer por três anos a mesmíssima fruta? Uma mulher só não faz um homem!
Essa Maria com carinha de santa não engana. E as aparências não enganam, não!
Vai coroar essa cabeça romântica com um par de cornos, prêmio merecido. Viciados não domam
mulheres, filho! Você adora uma mulher? Isso só tem serventia aos poetas, pobres poetas que
não comem ninguém! Românticos, efusivos, descontrolados, viciados, ejaculam em papéis.
Filho, o que você fez com a leitura de Maquiavel e do Banquete de Platão? Aprenda a amar
essa mulherada com o maquiavelismo de Sócrates fazendo delas o banquete; coma-lhes a carne,
sugue-lhes o sangue… Muito bem, o pai cumpriu sua missão, deu o toque, apontou a via. Não
escuta? Paciência. Olha a queda do cavalo aí?
Por infeliz coincidência, filha do tenente-coronel Cláudio! Pode essa loteria? Deus
é um lance de dados. Razão mais do que suficiente para domar e montar como convém. Quem
diria, o filho de Antão comendo a filha do tenente-coronel Cláudio? E o que você faz? Vira um
escravo dela! Pior é a vergonha. Aí eu lembro do Capitão Monte Negro…
Se é porque é filha de oficial a antipatia? Não, é porque ela perturba a paideia que
faz do filho um homem. Maria é um míssil atirado pelo Tenente-coronel Cláudio. Exagero? Sim,
mas é como se fosse. Cláudio, um dos poucos oficiais dignos de respeito, não conseguindo
gerar um filho homem, enviou esse míssil para arruinar a descendência de um subtenente.
Exagero? Sim, mas quanto já não se fez para rebaixar os fortes e elevar os fracos? Farão de

Walter Benjamim, Experiência.


7

86
tudo para impedir o surgimento dos gigantes e a revolução que instaurará a glória dos fortes…
Deixando de lado as especulações, há razões práticas para essa antipatia; além de arruinar a
educação do filho, roubava o ar do pai.
A conversa na mesa de bar era um rito de instrução para o filho, uma catequese. Por
meio dela o pai fincava seu industrioso maquinário produtor de grandeza na carne do filho, a
narrativa de seus feitos heroicos, a sabedoria sintética dos aforismos. Mas havia o inconsciente
do rito, um conteúdo latente, medicinal e miraculoso. A face maiêutica do filho fazia o
industrioso maquinário repousar. O ar gracioso do filho, narcótico que amolecia o desespero de
ser Napoleão, desacelerava a produção. O filho apoiava os cotovelos na mesa e oferecia os
ouvidos em oblação, o pai discursava pelos intestinos. Confessasse ter matado, estuprado,
torturado, o filho perduraria à mesa, todo ouvidos. Filho, nos anos do General Figueiredo, eu,
soldado, sob ordens precisas… Filho, eu, jovem, fiz o que fiz em nome da Pátria para eliminar
os “inimigos de dentro”… Do outro lado da mesa, de boca cerrada, sem julgamentos e tábuas
da lei, o filho absolveria os crimes do pai. O ar dessa graça, que parecia infinita, afrouxava as
escamas da armadura e fazia escapar os vapores da alma, a pressão interna se atenuava.
Maria o estrangulava! Eis a razão de tanta antipatia. Aqueles pezinhos de lã
pisavam-lhe a garganta, obstruíam o fluxo do espírito e privavam o pai de seu sacramento
medicinal. Filho, naqueles anos de falsária redemocratização, eu, soldado, sob ordens precisas,
pela Pátria… O espectro do comunismo rondava o país… Não, de jeito nenhum a Ditadura foi
a glória do Exército Brasileiro! Foi sua mais grave baixeza, traição de sua vocação! Convertido
em mão de ferro de latifundiários escravistas, máquina da elite vira-lata que abana o rabo para
os ianques, jogou no lixo seu destino de guiar o país à autêntica independência nacional, de
moldar um povo gigantesco, uma raça mestiça gloriosa, uma nação com alma própria que
honrasse o sangue forte dos mestiços e eliminasse de uma vez por todas os resquícios da
escravidão. Mas no meu serviço, no meu horário, se eu estava na escala, se me convocavam,
sob ordens precisas, fui o Capitão do Mato mais feroz e eficaz do batalhão… Maria pisoteava
a jugular e bloqueava a procissão do espírito entre o Pai e o Filho.
Antão jamais confessaria seus crimes; lançara já tudo no mar do esquecimento. Mas
a profundidade do mar ora se engolfa na beira da praia, as ondas coléricas escumam contra o
quebra-mar, e pedra dura e água mole tanto bate até que explode. Os filhos do Sertão se nivelam
ao território, tornam-se excessivos; ora sequidão de estio, insolação medonha, ora precipitação
abundante de águas, decompondo e fendendo rochas, linchando a superfície e estourando
profundidades.
Entrava no quarto do filho, acendia a luz e o vazio na cama esbofeteava – a mão de
Maria. Sentaria sozinho à mesa de bar remoendo ideias fixas, tendo de escutar a ladainha do
Seu Benício e as novas conquistas de seu filho imbecil. Então o que é isso, faz um mês que o
filho foge de Maria?… Não esqueceu a última vez que entregou aquele mesmo guardanapo. O
maldito celular cortou a conversa. Anselmo se levantou da messa, pegou um ônibus e foi socar
o nariz entre as pernas da branquela. Sentirá falta do pai… Sofrerá a saudade dessas conversas
de bar, ainda. Conversa de bar é tapeçaria; o último copo da noite é um intervalo no artesanato.
Sem recordarmos de onde paramos, recomeçamos no encontro seguinte tecendo com linhas de
outras cores; é o que faz o brio da tapeçaria. Mas o rosto completo de sua beleza só é
vislumbrado na saudade quando a ausência senta do outro lado da mesa. Faltando aquele que

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nos alivia de nós, desenrolamos o tecido na memória. Cedo ou tarde o filho chegará a esse
ponto.
Mas já corria um mês… O viciado não tira a cabeça de entre as pernas da santinha,
nem pra respirar. Deve está lavando a louça e fazendo a comida, não duvido. Pior é a vergonha.
Fique então por lá o frouxo! Talvez seu miolo mole seja irrecuperável, apesar de irrigado por
um bom sangue… Depilar a cara com cera já dizia tudo! A conta que não fecha é Anselmo
fugindo de Maria… O turbilhão de raciocínios troa na cabeça de Antão enquanto Maria soluça.
— Posso conversar com você pessoalmente?
A pergunta sapecou como um raio na cadeia dos raciocínios…
Não é incomum, vez ou outra, nos julgarmos mestres de adivinhação e
transfigurarmos uma ideia nublada, que surge de supetão, em certeza rochosa. Tolice! Somos
seres racionais, deveríamos usar a cabeça. Certo. Mas do ponto de vista de quem vive, sofre e
se vê resvalando no abismo? Tolice? Convenhamos, é uma tolice plausível que alguém caindo
no vazio esperneie feito louco e agarre o tiver pela frente, sombra ou fio de cabelo, para não ser
comido pelo abismo. Há vantagem em ser engolido estoicamente? Um movimento de falanges
agarrando sombra ou fio de cabelo, ideia nublada soprada pelo vento, é o gesto de Antão ao
afirmar sem titubear, “É isso! Então é isso!”, como quem grita eureka.
— Desculpe incomodar… é que… eu preciso muito conversar com alguém…
— Não é incômodo. Diga-me onde e quando encontrá-la, conversaremos sobre esse
assunto.
E Maria mais uma vez o surpreende.
— Pode ser agora?
***
Antão apoiou a testa na mão fechada e coçou os cabelos grisalhos da nuca com a
outra derrubando minúsculos farelos de pele; a seborreia se agrava nesses momentos de tensão.
Afasta o cotovelo apoiado sobre o mosaico de fotografias debaixo do vidro transparente e fita
um retrato. Sargento, recebe o brevê de Combatente de Caatinga das mãos de Cláudio, na época
Capitão. Primeiro lugar do curso, mesmo sendo o mais velho da turma. Capitão Cláudio foi o
melhor instrutor que já teve na vida, difícil esquecê-lo. Esparramou-se na cadeira e lançou a
cabeça para trás inspirando fumaças de imaginações que se mesclavam à saudade dos
sofrimentos da Caatinga. O fantástico bolo etéreo, cerração ao redor da cabeça, se pendurava
num fio amarrado acima, não se sabe onde. Para escapar de sua sombra caminhou até a porta e
observou o horizonte. Nuvens sobrevinham em revolta contra o sol. Vai chover. Desceu os
poucos degraus da sala para a calçada rente ao jardim, e flexionou os joelhos para se sentar nos
degraus. Apercebeu-se a tempo do gesto descabido e aprumou-se. Aproximou-se do jardim e
retirou a mangueira de cima do caule da tulipa branca, que permaneceu atolada no canteiro,
desfigurada. Deu vontade de regar o jardim outra vez. Também seria bom fumar o baseado
guardado na última gaveta da mesa. Sentaria na privada, acenderia incensos, mastigaria cravos-
da-índia; não seria a primeira vez. Todavia, uma estranha temperança o detinha, efeito do clima
sombrio? Olhe na abóbada celeste esse recheio de nuvens metálicas… Os temperamentos da
alma e do clima tendem a se nivelar. No sertanejo moldado ao Sol e ao chão seco, um verão
chuvoso injeta sentimentos confusos, melancolia e inspirações estranhas. Inspirações
estranhas…

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Soltou a mangueira de súbito e regressou veloz à sala. Retirou da mochila um livro
vermelho e desgastado. Sentou à mesa, frenético, puxou a primeira gaveta do lado esquerdo e
retirou delas duas moedas de um centavo. Onde estaria a outra? Vistoriou as outras duas gavetas
abaixo e finalmente encontrou a terceira moeda junto do baseado. Coçou os cabelos grisalhos
da nuca…
Lia com frequência o I Ching para se familiarizar com sua linguagem. Sacava-o nos
bares a mulheres desconhecidas como um recurso para disparar diálogos. Se as motivações
eram frívolas, a consulta ao oráculo era, primava por realizá-la com máxima destreza. Sabia de
cor a descrição de vários hexagramas, estudava-os, tornara-se quase um especialista.
— Você quer conhecer seu destino?
Atirava a queima roupa com um riso curto e uma distorção insinuante nos
sobrolhos. Daí se originava a sequência que manobrava ao quarto mais próximo. Domar e
montar. Qual a razão do tremor nas mãos no lançamento das moedas agora? “Podem uns
míseros anagramas acessar as obscuridades da sina?” Nunca havia ponderado sobre isso.
Atritou as moedas entre as palmas suadas e fechou os olhos. “Basta uma olhadela nas entranhas
do destino para que ele se altere, basta…”

Anagrama 24, FU, REGRESSO.

JULGAMENTO
Fu indica que haverá livre escolha e progresso (no que ele simboliza). (O sujeito) não encontre
ninguém para estorvá-lo em suas saídas e entradas; amigos o procuram, e nenhum erro é cometido.
Ele voltará e repetirá sua (própria) conduta. Em sete dias será seu regresso. Haverá vantagem em
qualquer direção que se faça o movimento.

COMENTÁRIO
“Fu determina a livre escolha e progresso (o qual ele simboliza):” – é o retorno do que é pretendido
pela linha inteira.
As ações de (seu sujeito) mostram movimento dirigido de acordo com a ordem natural. Portanto,
“ele não encontra ninguém para estorvá-lo em suas saídas e entradas” e “amigos o procuram, e
nenhum erro é cometido”
“Ele retornará e repetirá a sua própria conduta; em sete dias será o seu regresso:” – tal é o
movimento da revolução (celestial).
“Haverá vantagem em qualquer direção que se faça movimento:” – as linhas fortes estão crescendo
e aumentando.
Não vemos em Fu a vontade do céu e da terra?

O GRANDE SIMBOLISMO
(O símbolo da) terra e do trovão no meio dela formam Fu. Os reis antigos, de acordo com isto, no
dia do solstício de (inverno), fechavam as portas das passagens (de um Estado para o outro), de
modo que os comerciantes ambulantes não pudessem (então) prosseguir em suas viagens, nem os
príncipes continuar com a inspeção de seus Estados.

Lambe as sílabas, as paredes de cada sílaba. A paciência é uma sonda no aquífero


das palavras. Paciência, com jeitinho abrir as pernas das palavras. Lamber as virilhas entre as
sílabas. Domar e montar o cavalo selvagem das sintaxes…
Releu pela terceira vez as OBSERVAÇÕES DE LEGGE e perdeu a paciência.
“Podem uns míseros anagramas acessar as obscuridades da sina?”. Nunca havia ponderado

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acerca disso porque nunca padecera profunda necessidade do oráculo. Ele sempre foi um
entretenimento, manipulação exterior adestrada pela repetição. O soldado amazonense que
conheceu no Curso de Guerra na Selva, cafuzo de quase dois metros de altura, na hora da caça
noturna despia-se e desaparecia no mato, “é assim que se faz”, dizia ele sumindo na escuridão
esponjosa da Amazônia. Por que recordou isso agora? Sacode a cabeça e recobra a atenção.
Lambe as sílabas. Paciência, beijar a vagina das palavras até que o orgasmo secretar seu sumo
viscoso.
O que diabos estou a fazer?… Influência do clima, certeza. Distúrbios
eletromagnéticos perturbavam suas sinapses. Circulam no mundo energias desconhecidas que
podem afetar a sensibilidade, radiocinestesia. A mente exausta concluía que o oráculo
emudecerá, castigo por anos de uso frívolo. Ergueu-se da cadeira evasivo e só por automatismo
foi até a porta. Uns sargentos tomavam café tranquilamente recostados ao balcão da cantina, e
mais adiante, alguns metros, as instalações brancas da enfermaria obliteravam a cabeleira
verdejante das árvores ao fundo.
— Moro próximo ao 23º BC, anote aí o endereço, passe aqui quando sair… Há um
barzinho aqui perto, conversamos lá.
A cabeça moia a rouquidão chorosa de Maria. Não sentou mais durante o
expediente, andou de lá para cá, divagando, possesso por uma rara flacidez de vontade. Deixou
os olhos rolando nas flores do jardim sem atenção firmada, devaneando. Nem para almoçar
queria deixar a sala, mas tinha de verificar a documentação da compra dos materiais para a
reforma da Companhia, fazer a vistoria do depósito e da nova horta, perto do estande de tiro.
Deixou por responsáveis dois bons soldados, mas convém renovar as ordens, fortalecê-las com
elogios e fazer correções, ou a coisa desanda. As exigências o obrigavam a suprimir a ansiedade,
e venciam sua crescente inclinação de adiar tudo para amanhã.
Antão cuspia no famigerado suspiro coletivo pelo fim do expediente, uma praga no
quartel. A canalha aguardava o toque da corneta à paisana e de mochila nas costas, contava os
segundos e murmurava palavrões se o corneteiro atrasasse um único minuto. Alguns
desenvolviam sagazes métodos de escapar do quartel antes do toque da corneta, máxima
emoção do dia. Antão era um baluarte contra essa baixaria. Deixava o quartel horas depois do
melancólico toque da corneta, que sempre o surpreendia no meio de uma tarefa. Continuava
aferrado a sua atividade enquanto o quartel se esvaziava, o que até melhorava sua concentração.
Desfrutaria a quietude da caserna, da vermelhidão do crepúsculo nas companhias, a poeira
torvelinhando nos pavilhões sem gente, da emissão do ecos secos e puros. O drapejar das
bandeiras no céu enegrecendo fazia vivaz o cromo dos brasões. O quartel, depurado da canalha,
se tornava ele mesmo: o castelo dos gigantes ainda não nascidos. E nos arredores, perto das
guaridas da Luciano Carneiro, rente aos muros no fundo verdejante, caminharia sozinho, cataria
mangas e cajus, se fosse tempo, e os comeria lambuzando o rosto e um pouco a farda, como um
símio. O quartel sem gente tinha algo de selva, de antigo, de primitivo, de mundo antes da
queda. Deambular pela caserna nessas horas era regressar ao mundo dos gigantes. Os frutos das
árvores, nesses instantes, revelavam seu secreto sabor – a ele, apenas a ele.
Antão não suportaria um só dia nesses quartéis minúsculos e burocráticos como a
10ª Região Militar, onde se contava as árvores nos dedos. Como ficaria longe das mangas, dos
cajus e da terra dos gigantes? Mas hoje é um dia atípico, pois quando o corneteiro se dirigir ao

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seu posto e comprimir os beiços na corneta, Antão o acompanhará com os olhos como qualquer
militar ordinário.

91
A Justiça

Ao passar pelo Portão das Armas suspirou aliviado: esquecera o I Ching sobre a
mesa. A chuva despencou abrupta logo que pôs os pés fora do Corpo da Guarda. O livro se
encharcaria na mochila e teria um destino semelhante ao de seus irmãos gêmeos esquecidos nos
balcões e nos quartos de motel. A sentinela da hora se aprumou a ver que o Sub se aproximava,
era um dos soldados responsáveis pela horta. Desceu o toró, e um soldado no Corpo da Guarda
cobriu-se com o poncho e correu para deixar o do sentinela. O capuz e a cobertura de couro
sintético soa fervura contra a chuva. O céu tempestuoso, o uniforme ensopado, a água
escorrendo pela aba do gorro, compunha um faustoso cenário de filme de guerra. Por isso o
sentinela se negava receber o poncho, respirava a solenidade com o peito inflado. Bateria firme
os coturnos e a palma na coxa num estrondo de dar inveja aos trovões quando o Sub passasse o
Portão das Armas. Não estragaria o momento único vestindo o poncho, não o interromperia por
nada. Sua continência enérgica, numa feição sisuda e simpática, consagraria o instante
cinematográfico. Todavia, apressado e tateando cabisbaixo a mochila nas costas, Antão ignorou
o sentinela.
--- Bem-feito, baba-ovo de merda! Vai de novo! Eles não ligam pra você, recruta!
Aprenda!
O barulho da chuva no capuz irrita profundamente o soldado, que toma
momentaneamente o posto para que o outro se cubra com o poncho. O barulho evocava os dias
difíceis da família, num barraco coberto de encerado, na beirada do rio. Os desmoronamentos
e aguaceiros, a ameaça e a iminência deles, gotejam pontiagudos em sua cabeça.
Antão leva a mochila nas costas por hábito, ela está vazia. O fardo das imaginações
ele carrega na cabeça de couro cabeludo irritado. Fenômeno curioso: em momentos de tensão
seu falo fica ereto, por isso ele caminha com certa dificuldade, embora apressado. Gravida de
trovões e precipitações bizarras, a conversa com a namorada do filho engorda no horizonte
cinzento. Antão dava passos quase a correr, se adiantando às trevas crescentes e contornando às
bestas camufladas por entre as chilreantes folhagens em redor. Coágulos de nuvens abrasadas
rebocam a extremidade do céu. Cerco de matilhas que se estreita, resfolegante e atento aos seus
movimentos… Contra essa correnteza de imagens ácidas, marcha veloz pela Av. 13 de Maio.
Chegou ao endereço e apertou a tecla 3 do interfone, como recomendado. A chuva
encharca a roupa mas não incomoda. Nunca pegou resfriado por conta disso. “Doenças para os
doentes!”, o aforismo era a irmã gêmea, inclinada à medicina alternativa, mas nisso
concordavam. A chuva não adoece, os já fisiologicamente debilitados é que estão privados de
saborear a chuva. Aí vem Maria…
Antão simula hesitação.
— Não é melhor deixarmos a conversa pra outro dia?
— Vamos, entre logo! Saia já dessa chuva ou vai acabar gripado!
A cerâmica branca contrasta com a imundície excretada pelos pés de Antão, que
segue Maria até a porta do apartamento deixando uma via lamacenta pelo corredor. Caminhava
feito um caranguejo na tentativa de sujar menos.
— Não se preocupe, limpo depois.
As pontas enlameadas dos tênis se detiveram no umbral. Os olhos correram rápido
pela mesa redonda coberta com uma toalha amarela manchada de café, pelo fogão encimado de

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panelas destampadas, a pia entulhada de louça suja, a torneira gotejando. Maria não estava nesse
compartimento cuja estreiteza, para quem o observa de fora, se apresenta hostil e aversiva, nada
convidativa. Embora o cheiro de cigarro temperasse o ar com algum sabor. Esquecera de
comprar cigarro um dia, depois dois, e já iam meses que não fumava. Sacode três vezes a calça
jeans ensopada pinçando-a com o indicador e o polegar na altura do joelho. O caldo barrento
escorre inchando a mancha negra no meio da soleira da porta. Onde está Maria? Deu dois passos
à frente e a encontrou de cócoras revolvendo gavetas, com os olhos comprimidos enuviados
pela fumaça que exalava do cotoco aceso na boca. Como os lábios queimassem, parou um
segundo o alvoroço e amassou a bituca no pires sobre a cômoda derrubando no chão, do
amontoado piramidal acumulado ali, guimbas corcundas. Depois lhe atirou uma toalha verde
que Antão pegou no ar.
Depois de enxugar o cabelo e a cara, depois retirar a toalha de cima da cabeça, a
vida será outra, o mundo nos eixos, a situação esclarecida pelas palavras de Maria, o drama
concluído. Bobagem! Com as duas mãos pesadas e lerdas Antão esfrega a toalha no rosto, como
um jabuti retraindo o pescoço dentro da carapaça frente a uma situação hostil. Cegar-se um
pouco desoprimia o peito, abria espaço para o agir instintivo que atravessava feito flecha a
intempérie. A sonoridade encorpada sinaliza que a chuva não há de cessar tão cedo. Maria
agora lhe atira uma camisa que Antão reconheceu de imediato.
— Vai caber, em Anselmo ficava enorme. O que não dá é essa camisa de manga
longa molhando meu chão!
Antão desabotoou a camisa, a mais elegante no cabide de seu armário de
alojamento. Cena desarranjada e descabida. O gesto de desabotoar a camisa diante de uma
garota bonita e mais nova era elemento de uma composição mais complexa, vanglória
pavoneada e libidinosa, rito de corte animal. Afinal, quem aos cinquenta anos tem um abdome
bem definido e o peitoral volumoso como esse? Todavia, o gesto emergia solto de sua
engrenagem habitual. Titubeando e hesitante, Antão retirou a mochila das costas e desabotoou
a camisa, tímido, desenrolando uma cena que nascia desarranjada e descabida pois quem estava
ali era namorada do filho. Mas ao passar a camiseta de baixo pela cabeça, deu pela desaparição
de Maria, falta que tornava estéril o inchaço da exibição; sumira de sua frente outra vez. Pouco
importa: a camisa ficou justa o suficiente para salientar bem o tórax. Agora um cheiro de
chocolate se capilarizava dentro do odor de cigarro. Deu um passo seguindo seus fios, na
direção do limiar entre a cozinha e o quarto, contornando um ventilador de coluna com as
camisas ensopadas na mão.
--- Onde deixo isso?
Sentada na extremidade da cama, Maria tem nas mãos uma enorme caneca à boca,
sorve a fumaça doce que lhe enuvia o nariz avermelhado e se dissipa no sopro do ventilador,
que também bafeja nas bordas de seu roupão fazendo-o lamber o chão. Baralhado a esse sonido,
a música do rádio relógio se achata sob a maciça soada de chuva. Sem virar o rosto, imóvel,
Maria responde.
--- Na pia das roupas, na cozinha.
Antão se impacientou com a pose indiferente de Maria que tornava a situação ainda
mais absurda e fútil. Ensaiou severidades: qual é mesmo o assunto da conversa? O que queria?
Fui chamado aqui pra quê? Onde fica mesmo esse bar?… Ali estava ela em seu roupão de seda
branca, bem repousada e sem pressa, virando-se com chocolate e café porque os cigarros

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acabaram. Ali estava ela, alheia, silenciando-se com goles, como se não fossem estranhas
demais as circunstâncias e não clamassem por alguma explicação. Quando ela vai abrir a boca?
Garota esquisita do caralho! Frases grosseiras como essa se gestavam no peito inquieto de
Antão, esbarravam no semblante glacial de Maria e mantinham emboladas na garganta. Os
estrépidos da água nas paredes dão a entender que a chuva será longa, que as nuvens inchadas
demorarão a se esvair. Mas, pode acontecer de bruscamente a hemorragia se estancar, e
precipitar-se um céu límpido e seco de uma hora para outra… Pode acontecer, Antão especula
aguçando os ouvidos, e com o cessar da chuva, rumarão ao bar, terão a conversa e até fumará
um cigarro, finalmente. Então, abruptamente, o rochoso semblante que lhe aparecia só pela
metade se rompe sob a pressão da impetuosidade das águas. Um emplastro de dedos
imediatamente vem barrar o aguaceiro sem conseguir sanar a ferida de sua origem. Maria chora
e soluça compulsivamente, com uma mão no rosto e a outra na caneca como se aparasse torrente
de lágrimas.
Choro de mulher: gesto acessório e estéril, precisamente por isso, é uma arte!
Expressão da passividade indefesa, mas atua como uma esponja nos sugando o sangue e o
pensamento. O choro, em geral, é detestável, mas o choro de mulher… esse fingir-se de morto
que entorpece nossas defesas, golpe baixo curvo e penetrante. Nas mulheres, a inteligência
coabitou com o instinto de maneira a evoluir o choro e torná-lo genialidade, feitiçaria. São
mestras na arte de vencer a guerra sem desembainhar a espada, em atuar sem atuar; e o choro
é sua arma mais letal. A cabeça de Antão esvaziou-se de chofre como a cabaça de um berimbau
que ecoasse as turbulências fisiológicas do coração, dos nervos e dos músculos feitos uma corda
só distendida num arco. Ei-lo em pé, no limiar da cozinha com o quarto, emoldurado por
estreitas paredes, pela sonoridade do ventilador, da chuva e da música indiscernível,
hipnotizado pela telegrafia dos soluços de Maria.
— Não se preocupe, cuidaremos de tudo, conversarei com seu pai, conheço Coronel
Cláudio, ele entenderá…
Maria desgruda a mão do rosto num gesto ríspido e o encara. Sucesso! Na mosca!
Falou a coisa certa na hora certa! É preciso ser um Jesus ou um Laozi para realizar proezas
assim, ao menos para que o chorão vá chorar lá no quinto dos infernos.
— Que tem meu pai com isso?
— Tudo! Não se deve esconder nada do pai… Não se preocupe, ele aceitará…
— Aceitará o quê?
— O filho…
— Anselmo? Ah, meu pai não liga para isso…
Antão perdeu o equilíbrio e quase escorregou na poça escura sob os pés. O bater
daquelas pálpebras encharcadas, sobre olhos acessos e cinzentos, cortou o sustentáculo das
imaginações que se condensavam desde o telefonema de Maria. E foi como se o fardo lhe
rolasse das costas rumo ao abismo, como uma ilustração da salvação do Peregrino de Bunyan.
Não exatamente, Antão se contraía todo para reaver o fardo a fim de recuperar o equilíbrio.
— Você não está grávida?
— Grávida?! De onde saiu essa ideia?…
Correra em vão. Socos no ar. Agora é regressar imediatamente. Retornar à antiga
antipatia. “Não está grávida… Não está grávida…”, moía a sentença como para extrair dela
uma seiva secreta que afirmasse o inverso. O bendito fruto caía por terra. Casa sobre a areia.

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Maria, estou sem saco, tenho mais o que fazer, então diga logo o que você quer, e
pra que diabos me chamou aqui: esbravejar o que ensaiara antes da erupção de lágrimas seria
mais útil do que remoer o remorso de Édipo por não ter visto bem as circunstâncias…. Afinal
de contas os sangues não se cruzaram, as raças não se mesclaram, foi tudo devaneio e delírio.
Passe bem ou morra bem, que vou me embora deste aperto, é inútil estar aqui: deveria trovejar
isso agora mesmo. Mera divagação, as genealogias não se misturaram para a gestação dos
gigantes… Mas que belo espécime seria! A linhagem de tenentistas vinda dos Açores
imbrincada com a linhagem dos filhos do Sertão, caboclos, negros, índios! Componente novo
e forte no sangue de Tenente Benedito… Acorda, Antão, que o ventre está vazio da semente,
ponto de convergência de duas linhagens de guerreiros! Só há chocolate e merda sobre esses
largos quadris de parideira! Agora é regressar imediatamente, imediatamente.
Os soluços de Maria são pedras de tropeço, tambores conduzindo ao transe. Quem
não conhece esses sortilégios? Há belezas femininas que, quando engelhadas de pranto,
inseminam alterações em quem a contempla como o olhar da Medusa. A contorção do rosto,
por meio de processos obscuros, parece se identificar a processos de geológicos perturbadores,
à contorção de uma paisagem, a um desmoronamento de terra. Expostos a tal turbulência,
nossos afetos e gestos são convocados por uma força irresistível a restaurar o equilíbrio, custe
o que custar. Regressar imediatamente, imediatamente! Já desperdiçou tempo e simpatia o
suficiente aqui… Mas os soluços de Maria são pedras de tropeço, súplicas irresistíveis.
Deu três passos e sentou na beirada da cama, na reta perpendicular do
paralelogramo, às costas de Maria. A calça jeans ensopada manchou a colcha e alguns lençóis
embolados, Antão assistiu ao dorso de Maria convulsionar em pranto, mudo, desnorteado, sem
ter ideia do que fazer. Então, bruscamente Maria distorce a cintura e atira a cabeça como uma
flecha no peito de Antão, que respondeu o extravagante gesto com dois braços frouxos triscando
de leve a convulsão do dorso. A voz rouca se esgarça pelas incessantes contrações do pescoço.
— Faz um mês que não saio de casa, que não vejo ninguém…
Antão agora dá tapinhas nas costas de Maria, vazio de pensamentos, desengonçado.
Chove. Os trovões gargalham. Os lábios da noite continua a procriar bestas-feras que circulam
loucas pelas bordas do céu; são diabos cintilantes escorrendo por tobogãs com olhos em
chamas, meteoros caindo na mata fechada.
— Amo seu filho mais do que tudo…
Antão continua os tapinhas nas costas trêmulas de Maria.
— Nunca tive intimidade com outro homem como eu tive com ele…
Como que inflados por sussurros e lágrimas, os braços flácidos vão se enrijecendo,
determinado pelas exigências de sanar aqueles tremores. As bestas nas bordas do céu trevoso
metem os focinhos ardentes entre as folhagens. A palavra “intimidade” riscou feito navalha nas
mucosas do espírito, como palito de fósforo na escuridão polvorosa. Os dedos de Antão se
mexeram dentro dos cachos negros de Maria, acendo uma lembrança: “as borboletas têm o
paladar nas patas…”
Uma mão ogra ergue a cabeça de Maria que enfiada no peito manchava de lágrimas.
Tambores pulmonares pipocam. Os alucinógenos aromas do escuro jardim se mesclaram ao
bafo lisérgico das bestas da noite. Os relâmpagos são túneis unindo céu, terra e inferno, dentes
dos deuses quando gargalham. Feições de jacaré se estufavam em Antão, que num último
suspiro de timidez, também golpe de misericórdia na temperança que o dominava desde a

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manhã, talvez por efeito da mornidão celeste, saltou fora das ciliadas poças de mel adiante, que
por um segundo parou de sangrar para olhá-lo frontalmente. Pulou fora desses dois abismos a
procura do chão, mas sem destreza e desengonçado, torceu o pé e derrapou em lábios túmidos
entreabertos. Nesse confuso instante, o oráculo do I Ching raiou.
Haverá livre escolha e progresso…
Não encontra ninguém para estorvá-lo em suas saídas e entradas…
Repetirá a própria conduta…
Haverá vantagem em qualquer direção que se faça o movimento.

A matilha das bestas se precipitou como uma nuvem de gafanhotos foliões, cegando
a vista…
Antão retirou da mochila um tira de preservativos, a única coisa que havia nela, e o
rasgou com os dentes.
— Não!

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Mundo

A palidez, a barba por fazer, a cabeleira grande despenteada e a blusa desabotoada


espetavam nos olhos. Inevitável uma arrepiadura de ojeriza diante do filho estufando esse peito
cadavérico e desbotado, com as omoplatas sanfonadas para trás e o queixo elevado numa
postura inflada de galo-de-briga. Sintonizou os sentidos peneirando os átomos da situação de
perigo, inspecionando as duras linhas de expressão na cara do filho. Que diz as vísceras desse
ouriço?…. Maria deu com a língua nos dentes?
Seu Benício veio deixar a cerveja e infestar o ar com seu perfume de alfazema
impotente para adocicar os ânimos ali. Sapiente, tateou a atmosfera pesada da mesa, solene
conversa entre pai e filho, e retirou-se reverente sem puxar assunto nem levantar a cabeça.
Virtude indispensável de um dono de bar, saber a hora de ser apenas braços servis pendentes de
um fantasma invisível como um tradutor, mesmo a clientes bem conhecidos com quem anseia
pôr a conversa em dia. No terreno sagrado da conversa de pai e filho ninguém deve pisar, e no
bar também se lava roupa suja; o álcool na saliva vira um alvejante potente!
Anselmo agarrou o pescoço da garrafa e derrubou-a, verteu na boca o copo cheio
sem aguardar que o pai o servisse, como de costume. De sobrecenho pregueado numa calmaria
de protesto, Antão manteve seu copo cheio na mão estendida. A transgressão desse pequeno
ritual é um prenúncio, constatou.
--- Beber sem brindar – sete anos sem trepar!
Tilintaram-se os copos.
--- À verdade!
O riso sarcástico do filho acrescentou àquela arrepiadura inicial tonalidades de
pavor: se as primeiras palavras navalhavam assim, o que virá quando a “verdade” for
descascada? O I Ching não oferecia consolo.
Amigos o procuram, e nenhum erro é cometido.
O erro já foi cometido inaugurando a expectação do castigo.
Anselmo bebeu vários copos seguidos numa voracidade inédita. Para intervalar a
sofreguidão, esparramou as costas na cadeira espichando as pernas para frente. Levantou os
olhos para o breu do céu e pôs as mãos na nuca. Ria do quê? Inquiria Antão assistindo ao sorriso
desdenhoso do filho. É verdade que a lua ecoava sua libido circular no oco da boca celeste
reverberando nas mesas esparsas na calçada e na beira do asfalto sua calidez glacial. Ria do
quê?…
Não, não estava ali quem se debruçava na mesa para oferecer os ouvidos em oblação
ao pai! Transbordo da lua cheia e suas consequências?… Maria deu com a língua nos dentes?…
Da rua emanava um tremido abafado que se enrolava nas pernas. Buracos barbados de outeiros
confeitados com cacos de asfalto denunciavam a demorada reforma no saneamento do bairro.
Britadeiras trabalhavam até aquela hora nas mãos de uniformizados sem rosto. Ria do quê?…
Inaturável esse silêncio! O filho o torturava ostentado feições nédias, com uma
mudez espinhosa bem diferente do silêncio de sempre. Premido pela necessidade, desviou a
vista para repousá-la no balcão pela entrada do boteco, às costas de Anselmo. Ali a penumbra
cortinava as vicissitudes da existência, a inquietação e os murmúrios dos bêbados. A luz branda
no balcão foi dica de um rapaz punk metido a poeta. Seu Benício acatou com uma gambiarra,
encasulou as lâmpadas com quebra-luzes artesanais feito com a palha que orna certas garrafas

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de cachaça. Ali as silhuetas gargalhavam, sombras dentro da caverna salvas da claridade
mortífera da lua cheia e dos postes da rua. Oh mundinho fechado e seguro, radicalmente
diferente desse vertiginoso ar livre aqui de fora, essa rua infinita sob a bocarra negra do céu
aberto!
“À verdade?”. Ironia! Já sabia de tudo. Maria engolfou. Ironia! Brinca. Atreve-se.
Brinca com o pai!… Pois é preciso acabar a brincadeira logo, adiantar-se. Tiremos a coisa a
limpo. Conclusão. O que tem de fazer, faze-o depressa! Disse o Nazareno ao traidor na última
ceia, rara demonstração de pressa. Jogo lerdo e morno é que não. Antão cerrava os olhos por
detrás do copo como se esse fosse um prisma, uma lente para examinar miudamente os moveres
do filho, que perdurava inerte com a vista no céu e as duas mãos na nuca. Correm as horas e o
inimigo não se move, como acertá-lo? Atuar sem atuar, coisa do Tao… Orientais e sua
sabedoria complicada! A espada deve perdurar oculta na bainha. Não existe primeiro ataque no
Karatê, princípio do Mestre Funakoshi. Mas se o inimigo se mete num buraco de rato é preciso
constrangê-lo a se mover arriscando um primeiro golpe. Correm as horas…
— Como vai Maria?
Perguntou com numa voz contida fingindo naturalidade, os olhos baixos dentro das
borbulhas da cerveja. Anselmo respondeu fulminante sem alterar o rosto, as pernas esticadas
como varas, os braços agora cruzados fechando a camisa, o peito estufado. Continuava olhando
para o diabo lá em cima.
— Não estamos mais juntos – para a vossa felicidade!
— Ora, por quê?…
— Pai, deixa isso pra lá…
Agora os calafrios de uma sensação ambígua: o esboço de uma conversa interrompe
a impudente mudez, a ameaça do que se desfraldará nessa conversa. Mas alguns esporos de
alívio se expeliram na voz do filho, talvez a tonalidade da palavra “pai” ou modo como a
detestável máxima – o deixa isso pra lá! – funcionava gerando um efeito diverso; pela primeira
vez Antão queria atendê-la. Reposicionou a cadeira como se ajustasse os cálculos de artilharia;
o há por trás do transtorno no filho? Começou a enfileirar causas e efeitos e proliferar ensaios…
Que óculos imundos são esses? Deu-se conta agora, mais uma aberração… Prendia
o mijo para não interromper os raciocínios, mas a intensificação da necessidade o fez tomar
consciência da introspecção que o aguilhoava. A noite abrasadora privava-o de atribuir seus
devaneios aos efeitos de um céu nublado. Levantou e foi ao banheiro.
Anselmo retirou a garrafa do suporte de isopor e mamou no gargalo até esvaziá-la.
Seu Benício veio imediatamente trazer outra, ao retornar ao balcão cruzou em silêncio com
Antão, que regressava à mesa com um tufo de papel higiênico na mão.
— Limpe esses óculos!
Anselmo recebeu o bolo, arrancou dele um pedaço e retirou os óculos da cara…
A primeira vez que Antão o levou à praia, o garoto ficou a polir as lentes
esfumaçadas pela maresia sem dar a mínima para as três beldades adiante. Duas lapas de negras
e uma loira, de biquíni, jogando frescobol. As belezuras se umedeciam e se temperavam de
areia, os fios do biquíni se afrouxavam na movimentação e apareciam nacos deliciosos aqui e
ali. Sentados à mesa, sob a sombra de um guarda-sol há uns poucos metros, Antão acotovelava
o filho de 14 anos e apontava com a cabeça. A Praia do Futuro não estava lotada como de
costume, e aquelas gostosuras concentravam a atenção dos que homens que passavam. O

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balanço dos seios fartos, as gargalhadas finas, os quadris movediços açucarados de areia e as
pernas brilhantes de bronzeador. “Olha que bicho bom! Olha!”. O garoto fixava as espumas das
ondas e o degrade azulado no horizonte infinito… Tornava a polir as lentes com guardanapos.
Ah, banhar-se naquelas vagas sem ter que retirar os óculos! Temia ir ao encontro delas e não
acertar o caminho de volta. Pedir ao pai que o acompanhasse? “Olha aí, olha aí que bicho bom!”.
Esfregar o papel higiênico nas manchas gordurosas dos óculos firmava os pés de
Antão, tornava-os resolutos e prontos para o próximo passo. Afinal, endemoninhado,
descabelado, barba por fazer, desvairado que estivesse, o filho ainda sujeitava a palavra do pai.
A limpeza das lentes é um exorcismo; o espírito imundo será afugentado agora. O filho se
debruçará na mesa, dócil como um cordeiro, todo ouvidos à palavra do pai, como outrora.
Manchava as lentes ainda mais, os dedos úmidos de cerveja. A teima em polir as
lentes era uma cena cômica de cinema mudo. Antão observava prendendo o riso, quase
restabelecido ao posto, os artelhos subindo os degraus até o lugar na mesa que era seu de direito.
Nessa altura podia enxergar o filho a certa distância, com um regelo de vísceras de atirador na
trincheira. Destacava o filho das adjacências que entulhavam a visão e a mesa, podava as arestas
e os espinhos, abstraía-o dos elementos secundários e estranhos, dos acidentes; aquela noite…
Ajustava o foco da observação à positividade palpável depurada dos dias passados enuviados
de fantasmagorias, ilusões e projeções fúteis… Aprumou o pescoço e a cadeira: quase não
conteve o frenesi promovido pela nova perspectiva. O filho chamou o pai porque precisa de
socorro, resolvido! É como deve ser. Tudo em ordem. Tudo está no seu lugar, graças a Deus.
Nenhum erro é cometido!
Tem outra origem o transtorno do filho, debilidade mental? É provável. O horror
que sacudia o pai até então a antevisão da fúria do filho ciente de tudo, Ira do Cordeiro. Horror
agigantado por sua aparência demoníaca. Horror descabido: o filho nada sabia, estava claro
como o dia. As raízes de seu desvario devem ser fragilidade mental… Talvez saudade mesclada
ao ódio, mágoa, sentimentalismos juvenis, veneno no mel… Chamou o pai para acompanhá-lo
no afogar as mágoas, sim, isso mesmo. Tudo está no seu lugar, graças a Deus… Antão saboreou
um gole doce. Todavia, do cadáver do horror sepultado aflorava lento e fatal um novo…
Antão ingressara na paternidade com doze anos de atraso, luxo masculino
aparentemente vantajoso. O pai delega a cria recém-nascida aos cuidados exclusivos da mãe. E
tem até teorias psicológicas que justificam a deserção originária do pai e fixam a data de seu
regresso por volta do sétimo aniversário da cria. Aparentemente vantajoso. Antão, por exemplo,
nunca teve as mãos ogras beliscadas por dedinhos minúsculos. Nunca o rosto lapidado pela
atenção de olhinhos virgens absortos. Nunca a educação que só um bebê é capaz de
proporcionar. Rejeitou a pedra filosofal encarnada, síntese da matéria e o espírito. Toda sua
preocupação agora, a de escalar até o cume da mesa, o lugar de pai, não é mais que um virar de
costas ao pântano das fragilidades e precaver-se contra contágios insalubres, os pestilentos
afetos… Subida que prolonga o originário virar as costas ao bebê, recusa de visitar o berçário,
fuga do feitiço daquele botão de forças cósmicas. A surdez para o choro da cria recém-nascida
funda o progressivo embotamento do tato para as fragilidades alheias, masculinidade do
caçador de mamutes. Nisso Antão é o representante de todos os homens, um Adão cuja deserção
original explica a estupidez estrutural dos homens.
Vejam, o macho primordial erra pela savana no encalço de mamutes… No interior
das grutas e em precárias habitações, a fêmea amamenta a cria e se banha nos raios desse

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pequeno sol dando início à primeira revolução. Ensolarada, a fêmea, de um só golpe, inventa o
fogo e a culinária. Do caldeirão fervente ela extrai a magia, a linguagem, os primeiros poemas,
as primeiras palavras de feitiçaria… Enquanto isso o macho primordial erra pelas savanas no
encalço de mamutes e hipertrofia o repertório motorístico da macheza.
O novo horror de Antão advém do lado sombrio da deserção originária projetado
pelo marco de suas vantagens; horror que aflora o asco mesclado ao medo de tocar a fragilidade
alheia, horror aos processos de empatia como de uma lepra, medo do contágio com a debilidade
alheia, sua loucura e seu sofrimento subjacente. Esse novo horror o impede de enxergar
diretamente a ruína do filho, como quem se assombra na contemplação do abismo. Sua
autodefesa mecânica prefere esconder a chaga do filho com as botas, e enfiar a lança de
centurião romano no flanco do crucificado. “E toda essa cena por causa de uma putinha
daquelas… Não tentei eu abrir essa cabeça dura?…”
Beber! Beber! Beber! Num atentado contra si mesmo! Bater a cabeça na parede até
rachá-la e fender esse mundo exato, estreito e geométrico. A vida secou. Os poros se entupiram.
O brutamonte aí no outro lado da mesa é tão somente o pai, ente familiar, boneco de palha. A
mesa do bar é quadrada. A lua é um satélite. A noite é o céu desolado. O mundo é um conjunto
de objetos bem encaixados, res extensio. O movimento da Terra é óbvio e redundante. As coisas
do mundo estão patrulhadas pelo princípio de identidade. Há quanto tempo não escreve uma só
linha… O corpo é um conjunto de órgãos hierarquizados encimados pelo osso vestigial de Deus,
cúpula que aprisiona o cérebro. O que tinha mais a fazer senão atear fogo nos bonecos de palha?
Por que chamar o pai? Iria implodir-se agarrado à mesa de bar; que o pai juntasse
os cacos e os carregasse para casa, servisse! Carecia de auxílio nessa revolta contra a seca, que
já durava um mês! Beber! Beber! Beber! Mas a salvo do opróbrio de dormir pelas calçadas,
livre da vergonha dos gestos espalhafatosos e da baba raivosa salpicando… Que pai recolhesse
o cadáver do filho, servisse… Quem sabe o ajudasse a vomitar e pudesse sua nuca debaixo do
chuveiro e massageasse seu pescoço? Eia! Abrir buracos no crânio! Vômitos! Tosse! Espirro!
Não se espere mais o alinhamento dos planetas, a era de Aquário, o ano novo, o Verão! Eia,
encher o ventre de cerveja até estourar a caixa torácica e libertar o coração! Desentupir os poros!
Homem bomba! Espírito trágico! Hybris! Nunca na vida havia tomado um porre de verdade –
é chegada a hora! Suicídio a tempestades em copos… Amanhã, quem sabe, o chumbo se
converterá em ouro e a carne volte a ser porosa… Eia, despregar dos poros a pele de Maria,
essa placenta espessa e grudenta, bolha plástica que o asfixiava encolhendo-o, gestando-o…
Eia, despregar seu sexo, cruzamento de teia de aranha com crucifixo, vagina dentada faminta…
Eia, desgrudar esse plástico com cera quente e arrancar os pelos e limpar os poros de uma vez
por todas! Os poros fechados o condenavam à mornidão, ao pesadume geométrico, ao crânio
fechado, ao confinamento das regras relojoeiras da razão… a Terra há de vomitar os mornos…
--- Mais uma, Seu Benício!
Os analfabetismos do pai e do filho se aproximam…
Antão é débil em temperança, pouco disposto a transmutar compulsões em
introspecções; pisar em ovos não é com ele. Como se ser filho do Sertão o destinasse a ter no
sangue os regimes excessivos, os picos bruscos, as oscilações violentas entre a secura absoluta
e as bátegas. Uma espécie de princípio sadomasoquismo lhe organizava o íntimo, se impunha
como bússola do espírito. Furiosa disposição para padecer e fazer padecer: tal é a essência do
ser sargento, elo entre o oficial e os praças; princípio que estrutura o mundo, a lei da natureza,

100
a lei de Deus, a justiça cósmica. Fascinar-se com as autoridades como um cultuador do sol;
odiar as autoridades como quem padece insolação. Delirar com fugas e motins coletivos contra
o despotismo do sol, e ao mesmo tempo em refletir a glória do sol sobre os demais.
Anselmo é débil em desesperança, em lidar com dias mornos quando as febres
negam seus dons, e as visões e as ideias escasseiam, a alma enganchada em regiões medianas.
Tinha a rusticidade e a disciplina de um lavrador, semeava e esperava colher. Mas quando chega
a seca para cauterizar os sulcos da terra, e os entes da natureza se vestem de monótona planura
infinita… “É preciso escutar a seca!”, ouvira de um engenhoso lavrador no Assentamento da
Barra do Leme que abria vergões no chão seco e os entupia com os galhos da catinga delirando
com a ressurreição de olhos d’água. Aguardar a convalescênça da terra, iniciar-se na gagueira
das rochas e exercitar a língua enchendo com elas a boca sedenta. Aprender dos mandacarus e
dos xique-xiques o tal do fatalismo russo… muito mais o fatalismo dos filhos do Sertão para
quem a terra, extensão da carne crestada, expira e inspira longamente seca e chuva. Nesse
quesito Anselmo é um tolo, um surdo, sangue do pai. Nessa hora de trevas as duas impotências
se tocam como nuvens grávidas de raios e esporões de galos em briga.
— Maria é um mulherão…
Cospe Antão exausto de amansar a língua e do chororô do filho. Virou o copo na
garganta contagiado.
— Mas pai, Maria tem orelhas que…
Amolecido na cadeira, Anselmo comprime os olhos e balança a cabeça com as duas
mãos agarradas nos tufos da cabeleira.
— Como é? Uma beldade daquelas!… Aqueles seios, aqueles quadris, aquela
cinturinha, aquela pele branca… E você vem reclamar das olheiras?
Anselmo resmungava obscuridades revirando os olhos com a cabeça pendente para
o lado esquerdo, um fio de saliva pelo canto da boca. Com entusiasmo, Antão apoiou o cotovelo
direito na mesa, sustentou na mão a mandíbula sorridente e alargou os ouvidos à lógica do
bêbado, que é como o grito de um louco ou o último suspiro do moribundo, revelações! Que
baita espetáculo o filho lhe saía! Realçava o aspecto divertido da cena para se indenizar pela
agonia descabida que o torturou inicialmente, e de quebra precaver-se prudentemente contra
qualquer sorrateiro surto de compaixão, tentação iminente. Nada mais eficaz contra o contágio
com a debilidade alheia do que um rasgado escarnecimento que a escorrace ao seu lugar de
direito, há milhas espirituais desse soberbo observador. Só os fortes sobrevivem…
Caiam mil ao teu lado
e dez mil à tua direita,
a ti nada atingirá
basta que olhes com teus olhos...8

Nessa altura folgava, ébrio e restabelecido ao seu lugar na mesa, o do pai.


— Reclama de barriga cheia como sempre, Maria é um mulherão! E ainda por cima
tem uma boa cabeça, coisa rara — Pontuou com um gole — Claro, e o que a gente faz mesmo
com essa “boa cabeça”, hem? Ah, ah!
Antão incrementava o deboche com gestos largos como um rei bêbado no trono.

Salmo 91. 7, 8.
8

101
— Conheci o pai dela, grande oficial, o melhor que já encontrei na vida; combatente
de Catinga, excelente paraquedista, instrutor de Guerra na Selva… Vem de uma boa linhagem
a menina. Hum, e pelo tamanho de seus quadris, é uma excelente parideira!
Essa última frase encheu a boca de silêncios. Pediu mais uma cerveja e juntou a
garrafa vazia ao amontoado no pé da mesa. “Uma boa cabeça… excelente parideira… Afinal,
por que rejeitou o preservativo?”… Até então esse fato era insignificante; não seria a primeira
vez que o calor do momento derreteu a prudência. “Boa cabeça… excelente parideira…” Bebeu
mais um gole para deglutir o bolo de ignorância enganchado nos neurônios. “Terá sido tudo
calculado, planejado?… O que ela pretende afinal com isso?…”
— Ela pretende me encaixotar, pai! Encaixotar!…
Anselmo bradou surpreendendo; ainda tinha reservas de lucidez e energia nesse
molambo. Quase derrubou a garrafa e os copos da mesa com o gesto brusco das mãos, mas
Antão segurou o gargalo da garrafa… Os que estavam nas outras mesas torceram os pescoços
à algazarra. Depois de ejacular seu último suspiro, murchou na cadeira e voltou a pender a
cabeça sobre o ombro, títere inanimado.
— Encaixotar… hum, seria isso tão ruim? Não me diga que… não… ah, espere…
Não me diga que… você não gosta de xoxota? Seria essa razão do fim do namoro? Mas… logo
agora que você deixou a barba crescer!
Falava sozinho, Anselmo desmaiara. Não tivesse ocupado demais lavrando
especulações se dedicaria ao cultivo da aversão aos trapos, frangalhos de gente, esses que não
suportam o peso da própria cabeça cheia de álcool – que não bebam! O que nutre os fortes
envenena os fracos…
O que eu como a prato pleno
Bem pode ser o seu veneno…9

Dava asco esse farrapo sentado do outro lado da mesa babando e murmurando
doidices. Seu Benício veio deixar mais uma cerveja e inspecionar o que se passava. Tudo em
ordem, conversa de pai e filho, porre, estamos aqui pra isso, o Sargento sabe resolver.
--- Mas pai… Ela tem orelhas…
— Como é? Olheiras? E você já viu o tamanho das suas?… Maria é como você,
liquidificador de livros, sua alma gêmea! Olheiras de muito ler; ler e apenas ler, tudo o que
vocês universitários sabem fazer é ler e ler… Sim, vocês são duas belas almas universitárias,
meros leitores incapazes de grandes maquinações… Isso mesmo… incapazes…
Macerava as próprias palavras, “Sim, incapazes de grandes maquinações…”. Outro
trovão interrompeu seus raciocínios, raio que reanimou o boneco assentado e quase derrubou
Antão da cadeira de um susto. De repente Anselmo cresceu na mesa e levantou o queixo e a
voz…
— O que o senhor sabe das coisas que eu leio, pai, as coisas que eu liquidifico?…
O senhor não entende NADA!
— Como é? Não entendo nada?… Entendo que você é o cara que reclama das
olheiras de uma gostosa como Maria… Entendo que você é uma maricona… Entendo…
Anselmo inchou e se remexeu na cadeira. Desenrolou os ombros e fez deles o
suporte de um dedo rígido apontado para o pai.

Raul Seixas, Eu sou egoísta.


9

102
— Excelente genitora? Boa cabeça? Fique o senhor com ela, vá lá!… Faça dela a
bem-aventurada que conceberá a linhagem messiânica de milicos imbecis! Eu, eu mesmo, é
que não serei crucificado nessa teia de aranha!… Eu me despedaço todo mas escapo! Ah, se
escapo! Passo pelo fundo da agulha! Esburaco o crânio! Eu vou me depenar e me raspar todo
mas escapo!Ah, se não escapo!… Eu não sucumbirei como você, Capitão do Mato Antão, Sub-
gente…
Esbravejou gutural e animalesco, bufava expelindo saliva e mostrando os dentes.
Que diabo o possui? Antão trincou a mandíbula, mordiscou o lábio inferior e semicerrou os
olhos. O ímpeto era de esmagar o pirralho ali mesmo e ensiná-lo a respeitar o pai. Fale baixo!
Cala a boca! Não pondera, bisonho! Mas o rugido do filho foi golpe nos testículos, um aluvião
nas ideias, um surpreendedor choque nos nervos. Desbaratou-se de tal modo que por um
instante não soube mais onde estava, os músculos flácidos, só conseguiu sair do impasse
agarrando-se a uma gargalhada desajeitada. Premeu as pálpebras mordendo o lado direito do
beiço inferior como para temperar de amargo o riso.
— Acho lindas as olheiras de Maria, lindas!
— Ah! Ah! Ah! O que senhor entende de orelhas, Sub Antão?… Senhoras e
senhores, respeitável público, vejam! Veja aqui o Napoleão brasileiro, a reencarnação do
Brigadeiro Sampaio assassino de índios e camponeses e, pasmem, também é leitor de orelhas!
Vejam aqui o descendente do Tenente Benedito que nas horas vagas decifra algumas orelhas!
Palmas! Ecce homo! É a sabedoria dos nefilins! Palmas, gente! Ave César!
Fazia estardalhaço e berrava com gestos extravagantes chamando a atenção dos que
estavam nas mesas. Crise, perturbação mental; o garoto sempre teve miolo mole. Surtava, com
toda certeza… Mas saber das “peculiaridades do filho”, como diz sua irmã, não impede a
combustão no sangue, os golfos vermelhos cegando os olhos e a contração das falanges. Miolo
mole, vá com calma… Acalme-se aí, sente-se, pediremos a conta agora mesmo, a noite
acabou… Miolo mole, vá com calma que é um fio de cabelo que amarra.
— O senhor não entende nada; não entende é porra nenhuma de orelhas!
Bateu o copo na mesa marcando o ponto final do espetáculo, a cabeça apontada
para o pai como um aríete. Os cabrestos em pedaços, as línguas endemoninhadas, pai e filho se
entreolhavam nus despojados dos invólucros que os conservavam em seus devidos lugares à
mesa. O filho rasga a pele de cordeiro: não suportaria sequer um lenço de seda sobre a carne!
Agiganta-se expropriando o barro excedente do pai e sinalizando a justa, discórdia que blasfema
o lugar da eucaristia, a mesa de bar. O combate puxou as pontas da toalha de mesa e sacudiu a
harmonia preestabelecida, os invólucros, as membranas que mediavam as carnes. Estouradas
as bolsas, pela primeira vez o pai vê a face do filho sem máscaras. Também o filho vê o pai
desnudo pela primeira vez, fora do crisol abstrato com o qual transmutava o chumbo de sua
palavra em ouro, o maquinário de morder e sugar montado na mesa de bar; fábrica implantada
nos dois corpos como uma unidade cibernética que salvava pai e filho. Próximos demais,
demais…
O pai tem quase o dobro do tamanho do filho e os supercílios volumosos de um
boxeador calejado, o cabelo curto grisalho, manchas amarronzadas nas faces carimbadas pelo
sol, e uma pequena cicatriz do lado direito do queixo, resultado de um soco. Briga no ônibus,
Grande Circular II. Uma garota branca de vinte cinco anos, artista plástica, deitada sobre uma
toalha vermelha com um biquíni verde, esperava-o na Praia do Futuro. Entrou pela porta da

103
frente um pedinte que arrastava o toco sem pernas, os chinelos nas mãos feitas de alavancas;
“uma esmola pelo amor de Deus, uma esmola…”. Surdo, Anselmo fixa a imaginação na beldade
branca que o aguarda. “Desgastou as pernas de tanto arrastá-las no chão!”, alguém grita lá
detrás. Antão girou o pescoço e mirou o piadista, que revidou na esgrima. Levantou do banco
rente à janela, passou por entre os joelhos de uma senhora vestida de funcionária de escritório,
e foi ter com o piadista. “Ele pode não ter perna, mas o verme aqui é você!”. O ônibus fez uma
curva e Antão se desequilibrou, foi a deixa: um soco no queixo o atirou na catraca. O trocador
observa atônito ansioso pelo desfecho, tempero na monotonia insossa do dia de trabalho. Não
se sabe como: num segundo Antão estava caído junto da catraca, no seguinte amassava a cabeça
do grandalhão brancoso com uma sucessão de murros, bote que ninguém acompanhou. Mãos o
seguram pelas axilas; o homem já estava desmaiado, sem dentes e com o nariz esfolado. Para
aí, motorista! Antão desce com as mãos tremendo de gozo e ensalivadas de sangue, uma
dormência magoa o queixo. Meu Deus, o que aconteceu?… Garçom, traga um saco com gelo
e mais um copo, por favor. Meu Deus, o que aconteceu?… O homem é um corisco! Vem pelo
caminho faiscando e arrumando briga! Antão senta ao lado garota sob o guarda-sol. É uma
barraca de praia chique que não costuma frequentar, dessas pra gringo e que destrata gente
preta; já deu muita confusão tentar ser atendido aqui… Com uma mão pressiona o saco de gelo
no queixo, com a outra empunha o copo de cerveja. O Sol é brando, as ondas e o vento são
sinfonia, as mão pararam de tremer. Que dia lindo!
— O que mesmo eu não entendo?… Oh, não diga que depois de homem-feito você
decidiu virar a casaca? Se isso é uma confissão… resolveu mesmo dar o cu, realmente eu não
vou entender… Se bem que você sempre deu indícios, sempre foi fresquinho, chorão,
doentinho… Não, agora arranjou uma namorada – antes tarde do que nunca! Não, ele gosta de
mulher, gosta de mulher afinal… Aí você me vem com essa conversa de olheiras… Seja um
boi mas não seja um veado, rapaz! Caia do cavalo mas não caia de quatro!
Anselmo se pôs de pé dum salto, gigantesco; seus olhos escureceram. Apoiou uma
mão na mesa e encurvou a cabeça tateando o reequilíbrio. As sobrancelhas e a testa suadas
gotejaram suor nas lentes embaçando-as ainda mais e tornando a rua um espetáculo de
sombras… Retirou os óculos e o repousou na mesa. Arrancou do bolso aquele tufo de papel
higiênico e esfregou no rosto com as duas mãos. Os joelhos tremiam – soluços da terra? A mesa
bambeava como uma bengala prestes a quebrar. Antão apurava o ouvido aos murmúrios, os
gestos do filho eram tão insólitos que chegavam a ser hipnóticos.
— O senhor nunca vai entender que eu leio o I Ching nas orelhas… nunca vai
entender…
As surpresas não cessavam. De repente o boneco cambaleante se estagnou como
que petrificado por uma frequência estranha. Empalideceu como a lua, os olhos em crateras.
— Preciso mijar!
Antão se inclinou para ouvir os bodejados desse doido que de repente retesou a
coluna e projetou os quadris para frente, abriu o fecho da calça e empunhou o pênis
entumescido. O pai boquiaberto não acreditava no que via…
--- Preciso mijar!
Intentou acertar no meio das dobras cartilaginosas, centro da espiral, mas a terra
soluçava e os joelhos se desfaziam em água. O jato de mijo golpeou o céu da boca do pai, que

104
no momento iniciava uma estrondosa gargalhada. O esguicho raspou nos dentes superiores e
respingou para dentro das narinas asfixiando e ateando fogo nas faringes…
O ar gelatinoso desliza devagar sobre a carne que saboreia os instantes sucessivos
da queda como se sugasse mel dos favos. O queixo estilhaçado em três pedaços tinia e suas
fraturas se ramificavam pela rua. A cabeça bateu no meio-fio e faiscou um clarão que rivalizou
com a lua; na boca negra do céu ecoou um estalido seco de louça espatifando. Imediatamente
os poros se desentupiram, frutos caídos de uma árvore sacolejada, abelhas esvoaçantes. A
rachadura na louça, na altura da têmpora, aflorou uma avarenta mancha vermelha mas também
abriu um funil para os espíritos da noite entrarem na cabeça. A queda, efeito do gancho de Antão
em seu maxilar, serviu de ato cirúrgico para abrir a cabeça e expandir o cérebro; as articulações
do crânio se prolongaram nas da rua, o paralelepípedo do meio-fio reabriu a moleira.
A multidão de curiosos toca a ponta dos pés na mancha de sangue que consagra o
anfiteatro onde o pai tem nos braços o filho imolado. O pai agarra-o, sacode-o, clamava seu
nome, chora. Mas o filho escapa volátil nas raias da matéria, do peso e do volume que afloravam
latitudes inusitadas, a unidade processual originária da multiplicidade das coisas abrindo largos
horizontes por onde deambular. Lá se ia o filho em éter… Via-se cego, bebê, saído de um útero
cósmico, sem pele, frágil… O ímpeto da leveza o desprende das cascas, das carapaças e das
conchas concretas e abstratas, com suas mil camadas de cebola entre as extremidades. Via
claudicante que fluía e refluía, ia e retornava, recordava e nascia. Via-se grande cabeça chorosa
recostada ao seio da mãe sobre o coração solar agonizante. O ritmo e o calor desse coração
gestaram seu espírito, e agora, depois alçar tons azucrinantes, esmorece e silencia. Sua
irradiação feita lar composta de pensamento e carne se dissipa deixando o recém-nascido em
absoluta perdição, solidão, escuridão. Tensões e contrações perturbadoras vibram sua carne, ele
se esforça em rasgar a pele sobre os olhos contra os calcanhares da luz. Sua cama e o universo
é a carne morta da mãe onde seus pés e mãos convulsionam. Sua cabeça enorme, sulcada de
moleira, toca as gélidas dobras cartilaginosas que ondulam as origens de Deus, a orelha da mãe
morta.
O Golias berra, baba e reencontra seu sotaque imperativo. Dá golpes no peito magro
de Anselmo e grita:
--- Ressuscite, ressuscite agora! Ressuscite agora e já, mais uma vez!
Mas o filho nem por um reino regressará. Seu sangue inquieto agora escorre livre
pela artéria negra do bairro mesclando-se ao pó da Terra e das estrelas, penetrando nos capilares
e nas nervuras de Deus. Os devotos ao redor testemunhariam o milagroso e ordinário
acontecimento se pudessem vê-lo por dentro. Eles se benzem comungando a superficialidade
religiosa do que enxergam. “Pai matou o filho!” “Resultado do álcool!” “Esmurraram-se, foi
briga feia!” “Esse não é aquele da polícia?”… Os jornais dirão, “Subtenente do Exército se
desentende com o filho e…”. Os pregadores das igrejas pentecostais em cada esquina bradarão
sobre o fim dos tempos e falarão línguas estranhas. “É chegado o Reino de Deus, descarreguem
todos os pesos para entrar pela porta estreita: renunciem ao eu e esvaziem os bolsos!”.

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Epílogo
Maria é cuspida de um pesadelo. Sobre a cama empesteia o fedor de enxofre que
grudado à pele atravessou o umbral até o quarto. Uma radiação pálida advém da janelinha na
cozinha, é a lâmpada fluorescente do outro lado assomada à luz dos postes. O rádio relógio
emudeceu, mas o visor exibe os dígitos vermelhos, 23:45. Uma calmaria tenebrosa rangia
silêncios e pesava sobre o pulmão. Dava para ouvir o conta-gotas na torneira da pia, os rebuliços
do coração, as pinicadas de dor na barriga, e o eco do vazio… Improvisa uma compressa feita
com corpo ao lado, encolhe uma das coxas roçando-a por cima do quadril quente e aperta-o
com tremura.
— Está tudo bem?
Lágrimas afogam-lhe as amêndoas dos olhos.
— Sim, tudo bem, sonho ruim…
Na estante, o caderno de capa preta abocanha uma caneta metálica na seguinte
página:
Segunda-feira
Ele senta no mesmo lugar, penúltimo vagão. Está lendo uma história em quadrinhos
que reconheço: o segundo livro da Saga do Monstro do Pântano, de Alan Moore, o meu
predileto. O Monstro faz amor com Abby pela primeira vez: como resolver o problema da
cópula entre um vegetal humanoide desprovido de falo e uma mulher? Abby diz que pode abrir
mão do sexo. O Monstro tem outra solução… “Deve haver alguma forma de comunhão…”.
Ele tem uma ideia: produz em si pencas de um estranho tubérculo, arranca-o e o oferece à
amanda. Ela o morde e os amantes submergem numa viagem lisérgica correlata ao orgasmo.
Eucaristia. Ela participa do sangue e do corpo do amado. Ingere o esperma monstruoso e
absorve as percepções e sensações do amado e ele as dela – conhecimento supremo de Deus!
São como deuses! O Monstro faz as vezes da Árvore do conhecimento do bem e do mal, uma
variação do mito da Queda que põe o amor como a fome primordial do corpo alheio; busca de
Deus no fundo da carne alheia. A eternidade enrolada no núcleo de um instante de comunhão,
esperando para ser rompida por dentes afiados de paixão.
Não o olho demais que isso cega. Ele é lindo! A pele do rosto é lisa e rosada, tem
uma barba quase ruiva, os cabelos lisos e curtos. Alto, forte. Não o olho demais; passo
sorrateiramente ao seu íntimo e impregno seu inconsciente, como uma mensagem subliminar
de gestos e não-gestos, uma telegrafia espiritual. Ele não olha o abismo, mas o abismo o vigia!
Quando ele se der conta, estará cheio de mim!
A barba lisa desliza na face suada de Maria. De repente a dor na barriga dá coices
e manifesta a obra que progredia nas trevas. Maria salta da cama despregando-se da compressa
de carne para cair no banheiro. Líquidos esverdeados jorram da garganta. Enroscada no oco do
vaso sanitário, a cabeça chupada pelos beiços de louça, ela esguicha grunhidos. Depois senta e
abraça o próprio dorso convulso, lacrimando, suando, excretando todos os líquidos possíveis,
balançando-se para frente e para trás como se isso aliviasse a dor lancinante na barriga. Formou-
se uma pintura abstrata de fezes e vômito no chão do banheiro.
— Maria? Tudo bem?
O rapaz queima as narinas na fedentina que empestou o ar, e abre os olhos para dar
com uma ilha de carne se contorcendo na privada, margeada por uma salada esverdeada e fluida.
O bolo de carne brota uma quelícera veloz que fecha a cortina do espetáculo.

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— Volte a dormir, querido! Está tudo bem!… Está tudo bem!…
Rouqueja a voz líquida abafada detrás da porta fechada. Acossado pela visão
dantesca, como voltar a dormir? E ainda é meia-noite! O som veloz dos esguichos importuna o
rapaz e ele levanta. Inspeciona a bermuda pendurada pelo cós na cabeceira, e se frustra com os
bolsos vazios. Sai apalpando feito louco a cama e procurando pelo chão até que encontra o
pacote perdido debaixo da cama. Enfiou-o no bolso, apanhou a chave e esvoaçou pelo corredor.
Agora sim: ar livre! Rumo à Av. 13 de Maio, por essa ruazinha escura. Sonolento, não atenta
para o motoqueiro que cruzou seu caminho diminuindo a velocidade; atitude suspeita. É a
terceira vez que o motoqueiro sai para assaltar celulares no mesmo perímetro, ao redor do
Pitombeira Bar, armado apenas com a empostação da voz e a mão dentro da calça. “Bora
vagabundo, só o celular! Só o celular!”. Terceira vez, porém estava tenso e não foi difícil que o
passo vagaroso e indiferente do rapaz alourado, mais corpulento que ele, metesse medo. No
trajeto, o barbudo polvilhou num papelzinho estreito o conteúdo gramíneo do pacote, enrolou,
lambeu e acendeu. Na esquina, avistou a Praça da Gentilândia fervilhando, e oscilou entre
gargalhadas e tragos, se entalando com a fumaça, imaginando a reação dos amigos quando
narrasse a visão do inferno. Tossiu e sorriu, e nessa movimentação uma faísca caiu na altura do
peito e abriu um orifício na camiseta rósea. Ficou mal-humorado; são o olho da cara as camisas
dessa marca! Encontrou os amigos no bar recém-aberto em frente a Praça, com o nome
pomposo de Barba Ruiva Pub. Estavam à mesa, muito sérios, cada um com uma caneca de
cerveja Dubbel. Dois deles jogavam xadrez e os outros observavam. Ansioso para relatar a
visão, torcia para que fulano desse logo o xeque-mate em sicrano, como sempre.
O feixe de sol entrou vagaroso pela janelinha da cozinha, e tocou Maria que
progredia no chão feito lesma deixando um rastro viscoso atrás de si. Como se a luz lhe injetasse
uma dose cavalar, conseguiu estender o braço e apanhar o celular sobre a cômoda. Chamou a
ambulância… O médico constatou a apendicite.
Nessa mesma janelinha, um Anjo aparecera a Maria dizendo:
--- Alegra-te, agraciada!
Mas nada se via além da luz cegante. O Anjo acrescentou.
--- Não tenha medo, Maria, foste agraciada, e conceberás e dará a luz a um filho, e
ele será grande.
Maria, deitada na cama, estupefata, respondeu.
--- Como isso é possível se sou estéril e uma terra sem forma e vazia?
O Anjo respondeu.
--- Um fôlego de vida soprará sobre ti; um impulso vital te cobrirá com sua sombra,
e por isso, o que nascer de ti será sombrio.
Imediatamente Maria entrou em trabalho de parto. Seu ventre começou a inchar e
a se arredondar. Algo volumoso feito uma melancia forcejava por entre as pernas. A garganta
esfarrapava-se em gritos de dor. Céus! A barriga de esticar se abriu feito uma boca, e a cabeça
gigantesca, negra e ensanguentada, irrompeu. Céus, é a cabeça de Anselmo! Esse fora o sonho
de Maria naquela noite, na mesma hora em que Anselmo agonizava no meio-fio. A sexta-feira
da paixão foi um alfinete transpassando dois insetos, uma paulada para dois coelhos, que ao
que parece, eram mesmo uma só carne.

107
Fim.

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