Você está na página 1de 10

PAULO CÉSAR PINHEIRO

MATINTA, O BRUXO
Romance
1

9 ugia. Cara lanhada por espinho de mato. Sangue ainda


nas mãos e na barba. Camisa de pano ordinário encharcada.
Mancha do suor amarelo da travessia longa. E salpicos rubros
do esguicho das veias dos baixios do moço.

Atravessara o Grotão da Onça Parda, deixando distante


a cabana de beira-riacho. Dezenove léguas já. Língua seca,
parou quando viu filete d’água furando a rocha do Chapadão.
Arrancou o grande chapéu amassado, de aba larga e couro cru,
e, quase deitado, enfiou a boca no chão. Sentiu o gosto do cas-
calho e da pedra e o gelo da água de mina. Bebeu como a gata
negra depois de caça e pasto. Fartadamente. Molhou o dorso e
a peitaria. Afundou o rosto no riinho da fonte e, com as mãos
em concha, chuveirou o cabelo preto. Fez isso muitas vezes.
6

Desapeou da bota e afogou os pés no alívio da benta aguinha.


Se estirou no capim, enquanto a bruma vinha ocultá-lo, len-
tamente, da luz do dia. Perdera a noção do tempo. Comera
quando, por derradeiro? Agora, menos esbaforido, a barriga lhe
respondia. Abriu o borná, desembrulhou do trapo velho talisca
de charque salgado, talhou no dente forte e mastigou. Desfez
o nó do odre de pele de cotia, enterrou a canhota e trouxe um
punhado de farinha torrada, fritada na banha de porco, com
lascas de torresmo. Arremessou no bolo de carne já mascada,
fez o capitão com a saliva e ruminou sem pressa, sentindo o
gosto do alimento. Foi sossegando o ronco do ventre. No colo
do cansaço adormeceu.
Acordou num pulo de susto, com a lua marcando dez horas
no céu. Isso dentro do siso lá dele, que conhecia horário como
7

índio, no carrilhão do ermo do sertão verde. Se assuntou, que-


rendo arrumar as ideias. Não atinara direito com o acontecido.
Precisava montar o quebra-cabeça. Morrera o filho-de-uma-
-égua? E a mulher, sobreviveria?
Agiu no arroubo. No instinto do bicho cutucado. Na laba-
reda da traição. Precisava pensar.

Estudou o arredor. Beirão de serrania. Barro vermelho


e terra escura boa de nascer roça. Ribeirinho entortando o
chão feito rabisco de mapa. Arvoredinho miúdo espalhado
na navalha do capinzal. Pés de frutas que passarinho plan-
tou, dispersadamente. Doces, os bagos, de chupar, enquanto
matuta:
— Tenho que chegar no Poço da Paca Branca. Caminho
comprido. Compadre Amâncio me acoita, se é que já não sabe
do fato, que notícia ruim voa mais ágil que vento de maio.
O olho passeia, perscrutando. Bonito lugar pra se levantar
arranchado. Veio de nascente, solo bom pra milho, mandioca,
feijão e horta, abundância de pomar bravio, ar montês, pasta-
gem pra umas vaquinhas-de-leite e espaço de terreiro pra cria-
ção. Não fosse a fuga, ali ergueria pau a pique. Teria dono local
tão isolado, longínquo e desconhecido de gente? Na certa…
pois todo chão que Deus inventou cercaram. Posseiro eu, me
tomam. Grileiros os poderosos, os latifundiários, os políticos, e
8

a área vira documento carimbado na letra fria da lei. Forjado e


legalizado. Acabara de acontecer com esse tolo colono.
Êh mundo mais mal-distribuído! Êh lei mais fora da lei!

Bicando o farnel, de pouco e pouco, à maneira de pássaro,


foi repondo no corpo a força perdida na estirada. Tinha muito
de trilha ainda pra percorrer, de atalho pra desvendar, de pi-
cada pra abrir nas veredas do sem-final.

Antes de a névoa azular, agora refeito, entortou rumo, em-


purrado pela brisa perfumosa da madrugada. Tinha ouvido o
pio do Matintapereira pro lado da senda tomada. Era aviso e
bússola. Era apressamento de alerta. Era propósito de proteção.
Partiu no morse da ave feiticeira.
2

? ajeado da Conceição. Arruado de pouco povo. Pouso de


tropeiro e caçador. Menos de vinte casinhotas, mas com ven-
dinha de aguardente e carne de sol, farinha de puba e barra de
mascavo. Parou pra abastecer. Dois caminhadeiros proseavam
no balcão, entre uma talagada e outra.
— Soube do caso se-passado em Riacho Doce?
— Da tragédia do filho de coroné Graciano?
— Esse.
— E apois! Então não? É o que corre. Diz-que foi sanguei-
ra que só. Coisa de alugado de armas. Deve de ser briga de
terra. Os jagunço do velho tão atrás do foragido. A orde é levá
o cabra vivo. Pra mode interrogatório. Coitado do sujeito se for
pego. O fazendeiro escuma veneno quando enraivece.
— Afe! O que se conta das ruindade desse! Coitado mes-
mo do vivente.
10

— Pelo se-dado, diz-que foi crime de vingança.


— Luta de fera, seu moço. Luta de fera. De mando e de
poder.
— Recado de chefe pra chefe.
— É…
Emborcada a terceira lapada, de gole, durante o diálogo
telegráfico, ensimesmou:
— Em velocidade, vento perde pra notícia ruim…
Encheu a matula do que precisava, verteu a quarta mata-
-bicho e encurvou o corpo pro curso da rua.
— Cidadão! — chamou um dos viandantes, provavelmen-
te vaqueiro, pelos trajes. Virou o pescoço. — Que mal lhe per-
gunte, segue que rota o distinto?
— Vou pra Figueira Velha — engodou.
11

— Sabe tropear? — emendou o outro.


— Inhô — respondeu.
— Por que não vem mais nós na comitiva? Tão percisados
os donos. Bote preço se quiser. Cuma é sua graça?
— Francisco, na pia do padre. Chico, seu criado — men-
tiu mais uma vez. — Mas careço não. Tô a serviço. Agradecido.
Inté.
E João, rebatizado, seguiu falsamente por Chico, dali em
diante.

Cruzou o batente. Pisou o pó da cascalheira, levantando


nuvem, em direção ao matagal. Ultrapassada a cortina verde,
embicou pro revés da Figueira, mascarando rastro. Ia consi-
derando:
— Deve vir farejador. Tem que ir como quem vem, feito
caipora. Se afastar como quem se aproxima, curupira de novo,
no logro do escape.
E ia encobrindo pegada com vassoura de folhas. Repou-
sando em forquilha de tronco. Esfregou vestimenta e pele em
couro descarnado de carcaça de bicho morto. Besuntou as
mãos e a face em seiva de pau-cheiroso. E se perdeu nas bre-
nhas, no passo fingido de quem escapole de perseguição. Na
verdade nem sabia se era um acossado. Nem olhara pra trás
no calor do sucedido. Mas decerto que vinha em seu encalço
12

beleguim pago. O latifundista era sanguinário. Tinha história


bastante de malefício. Ouvia falar muito de quantidade de ca-
dáver de sitiante enterrado naquelas lavouras, tomadas à bala
de fuzil nas emboscadas de carreiro oculto. Muita ossada aflo-
rou, em estação de chuva, que não era de alimária. Era gente
que desbravou sertão desconhecido no gume de foice e no cabo
de enxada e, depois de tratado e semeado o solo bruto, domado
no calejo do colono, nem chegava a ver colheita, virado tam-
bém adubo do que plantara. Esse Graciano coronel era isso.
Usurpador. Enriquecera no documento simulado, expulsando
camponês de labuta, tomando rancho e lavra. Se reagisse o
cristão, eram sete palmos abaixo, às vezes menos. Mor das
vezes, um acima, revestido de seixo solto, pra minhoca comer
mais rápido.

Quando o sol se espichou no lençol da serração foi que se


amoitou pra adormecimento. Na madorna, escutou o assovio do
Mati. Se desaquartelou no força-viagem e despenhou o ouvido
atrás da pegada do som, quebrando sendeiro.
Obedeceu advertência do tapereiro bruxo.

Você também pode gostar