Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
r ã o
v e
r ã o
s
d iéis
o v e
i n f
d e queirós
o s
d iéis
dinah si l v e i r a
ISBN 978-85-64502-08-6
www.mobileditorial.com.br
2011
Edição
Eduardo Coelho
Gravura de capa
Andrés Sandoval
ISBN 978-85-64502-08-6
11-13132 CDD-869.93
Apresentação, 7
Nota da edição, 13
Fortuna crítica
Um verão como nenhum outro, 201
Dois romances de Dinah, 203
Sobre a autora, 207
•8•
•9•
• 10 •
Notas
• 11 •
• 18 •
• 20 •
passantes com uma pilhéria qualquer tão cheia de desprezo por ela quanto
a dos homens desabusados, a gritarem de cima do caminhão para os que
ficavam no asfalto, à beira do sinal.
Antes de entrar no edifício dos Correios, viu uma sua velha amiga,
caixa da sapataria, a Malva, que acenou com um jornal. Ela lhe impôs um
gesto como “espere”, “depois”.
Entrou no grande saguão e se viu fustigada pela tensão que criava
uma atmosfera dentro da atmosfera: gente que esperava, em fila; pessoas
que redigiam telegramas ou cartas e olhavam umas para outras, transpare-
cendo reciprocamente em suas perplexidades. Bolas de papel significavam
palavras a mais ou a menos, traições pequeninas, ventres apertados de an-
gústia, súplicas que pretendiam não parecer assim, ordens que passariam a
um melhor polimento, talvez adulações a ser ou não moderadas.
— “Dá licença.”
Tomou uma parte do pequeno balcão.
O homem que compartilhava o mesmo campo cheirando a cola, num
mapa de continentes de vãs palavras borradas, ia escrevendo “Motivo im-
perioso...” riscava, tomava nova folha. Ela o observou em seu nervosismo,
quase com a mesma curiosidade inimiga do entregador de bicicleta e dos
homens do caminhão. Dois segundos após, lavou-se de toda antipatia, nes-
sa hora desumana. Redigiu, a letra firme, longa e grossa:
Domingos
Joaquim Egídio
Venha
Valentina
Quando terminou, o homem elevou para ela um rosto miserável, me-
droso, em meio à feitura do telegrama e disse, por fim:
— “Quanto dói uma desculpa!”
Ela, caindo em humildade, acrescentou para sua mão que tremia, tal-
vez porque estivesse de mau jeito no raspão como o carregador da bicicleta,
ou talvez porque os dedos sentissem melhor a solenidade das coisas:
— “É mais fácil pedir socorro, como estou fazendo, agora.”
• 21 •
• 22 •
— que dos filhos. Seus três filhos haviam motivado o telegrama; chamara
Domingos mais por eles que por ela própria.
Pouco a pouco — não sabia contar como — fora perdendo os meios
para seguir de perto a existência dos filhos. Comparava-se, agora, àquela mu-
lher do guichê dos telegramas. Fizera-se desconectada, distante. Estava can-
sada de ouvir dizer que as mães de hoje teriam todas a mesma dificuldade.
Mas talvez elas, mais felizes, pudessem ainda, a seu modo, amar os filhos
como sabia que fora amada pela mãe. Em relação a seus meninos, pouco a
pouco sentira crescer uma irritação que ia, em algumas ocasiões, às raias da
antipatia. Carminho, por exemplo, com seu namorado bêbedo; fechada sem-
pre no quarto, ouvindo discos ou pálida de emoção cada vez que o telefone
soasse. Bem sabia que para ela a mãe representava apenas uma mulher ino-
portuna à espreita de todas as ocasiões de saber-lhe os segredos. Indevida-
mente ela se aproveitava, sim, dos segredos de Carminho, apurando vez por
outra uma ligação telefônica ou, numa indiscrição de amiga, fatos da vida que
a filha encobria, não podendo saber por que motivo. Os rapazes, por outro
lado, viviam sempre, embora fossem mais delicados que a irmã, na defensi-
va; sempre alertas em negar qualquer esclarecimento. Geraldo, o mais velho,
poderia — quem sabe? — se quisesse, conquistá-la para seu esquerdismo ou
comunismo — “hoje em dia essas coisas são tão vagas”. Mas preferia calar, o
que fazia sempre a tratando muito bem, com a devida cautela de quem não
estende a sua inteira confiança. E Aloísio, o caçula, que tinha o nome do
pai, por que depois de homem feito ficara como o irmão e passara a ocultar-
-lhe até mesmo seu sabido namoro com uma “protestante”? Ele, justamente
o mais religioso, que se zangava quando a mãe perdia a missa de domingo?
A benzedrina lhe dava uma centelha interior e tanto mais passava a
reforçar as doses quanto maior acuidade lhe vinha para surpreender numa
ou noutra conversa as porções ocultas de vida dos filhos que se iam distan-
ciando, com seus liames de vivos, enquanto ela se deixava ficar ancorada em
sua nau dos mortos, vendo-os como partir, largar para mais longe.
“Se eu mesma reconheço que não lhes tenho mais tanto amor, aquele
amor que as mulheres possuem para os filhos, incapaz de discernir, todo
• 23 •
feito adesão, por quê, meu Deus, eu me aflijo tanto por eles? O sentimento
do dever será assim tão pesado? Foi por isso que chamei Domingos?”
Deixou a rua Toneleros e passou à pequena travessa Júlia, onde mo-
rava. O porteiro veio-lhe ao encontro:
— “Volta o regime outra vez. Já estou avisando que amanhã só tem
água das sete às oito. Todo mundo tem de entrar na linha. E logo mais —
falta energia...”
E ria para ela, como um triunfador. Durante anos, aquele homem só
pesava na existência dos moradores do prédio quando faltava água ou luz.
Então, todos o inquiriam, o pressionavam, até mesmo o adulavam; uns
para que avisasse mais cedo, para que se pudesse fazer a reserva de água
em latas e panelas. Outros, para que fechasse o suprimento uma hora mais
tarde. Era a sua preciosa superioridade ocasional e ele não abriria mão de
seu respeitável poder por entre os habitantes do edifício. Valentina, porém,
não se queixou nem se interessou, como os outros, pelo assunto, segundo
o qual se afirmaria o absoluto poder do porteiro. Perguntou pela filha. Ele,
tendo perdido a primeira oportunidade, agora teve o gosto de responder:
— “Dona Carminho não desceu. Mas aquele fotógrafo da revista está
lá embaixo, ali naquele carro.”
E riu, mais uma vez, possuindo quase com ternura o repentino des-
gosto da mãe.
Quando Valentina chegou à porta de casa, Carminho ia deixando o
prédio e crispou o rosto. De dentro do carro, o fotógrafo saiu, com ar de
grande afabilidade, puxando e beijando a mão da senhora, inteiriçada.
— “É sempre um prazer cumprimentá-la”, disse ele, com a severidade
que se impõe a si próprio aquele que bebeu excessivamente e apela para um
controle maior do que usaria normalmente.
Valentina apenas teve coragem para dizer:
— “...O senhor está se sentindo bem?”
— “Eu não estou bem”, disse ele, “eu estou tinindo de bem. Vim aqui
buscar a sua encantadora filha para que ela... me faça companhia, enquanto
eu executo meu magnífico trabalho.”
• 24 •
• 25 •
• 26 •