Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
desdobramentos da participação de
Guimarães Rosa e Graciliano Ramos
no Prêmio Humberto de Campos
E
Gustavo Milano e Thiago Mio Salla
Nas palavras de José Olympio, no proces- ilustrador da Livraria José Olympio Edito-
so de criação do prêmio, avultava também ra. Este, valendo-se do pseudônimo Plácido
o desejo de servir à literatura brasileira, da Assunção, obteve, com o original Maria Pe-
qual ele se mostrava um sincero admirador: rigosa, a preferência do júri, agora formado
por Peregrino Júnior, Prudente de Moraes
“Basta notar que a nossa casa [a Livraria José Neto, Marques Rebelo, tríade que esteve na
Olympio Editora] é a única no Brasil onde a edição inaugural da premiação, além de Dias
literatura brasileira é a grande base editorial, da Costa e Graciliano Ramos.
onde o número de traduções é menor que o Segundo a ata dessa segunda edição do
de livros originais brasileiros. E, ainda mais, Prêmio Humberto de Campos, datada de
fizemos esse concurso visando a incentivar o 2 de março de 1939, depois de sucessivos
gênero literário atualmente mais abandonado escrutínios, dos 63 trabalhos inicialmente
no Brasil: o conto” (Olympio, 1936, p. 5). inscritos restaram 17, em seguida nove, seis,
quatro e, finalmente, os originais Maria Pe-
Da comissão julgadora dessa primeira rigosa e Contos1. Entre os membros do júri,
edição do prêmio fizeram parte Peregri- Graciliano Ramos e Dias Costa votaram no
no Júnior, Prudente de Moraes Neto, Jorge primeiro, ao passo que Prudente de Mora-
Amado, Marques Rebelo e Arnaldo Tabaiá. es Neto, e Marques Rebelo optaram pelo
O vencedor foi Telmo Vergara, com o seu segundo. “Como o voto do sr. Peregrino
Cadeiras na Calçada (Rio de Janeiro, Jo- Júnior poderia decidir o resultado final do
sé Olympio, 1936), que obteve tal triunfo concurso, pediu esse membro da comissão
em meio a um conjunto de mais de oitenta um prazo para ler o original nº 11 (Contos,
inscritos. Apesar da promessa de ser anual, de Viator), votando logo depois de terminada
o prêmio teve apenas mais duas edições, a leitura” (Ata da Reunião, 1939). Dois dias
separadas entre si por intervalos distintos: depois, Peregrino Júnior manifestou seu vo-
a segunda em 1938 e a terceira em 1942. to, “ficando assim o livro Maria Perigosa,
Instabilidades políticas como a instauração de autoria do sr. Luís Jardim, vencedor do
do Estado Novo no Brasil, no início de 1937, Prêmio Humberto de Campos de 1938” (Ata
e a Segunda Guerra Mundial, a partir de da Reunião, 1939).
1939, inevitavelmente complicaram a reno- Para além do texto frio da ata lavrada e
vação periódica do concurso. assinada pelos jurados, conhecem-se ainda
Na segunda edição do prêmio, no entanto, um depoimento de Marques Rebelo (1939)2
dentre os inscritos, estava aquele que, em e dois de Graciliano Ramos (1962, pp. 155-6
perspectiva diacrônica, seria o concorrente e 200-2), publicados logo após a divulgação
mais ilustre de todas as edições do refe-
rido concurso: João Guimarães Rosa, que,
encoberto pelo criptônimo Viator, alcançou 1 Soube-se, depois de divulgados os resultados, que
apenas a segunda colocação, com um vo- entre os inscritos da segunda edição do prêmio
estava também o futuro deputado federal, e pos-
lume intitulado tão somente Contos. Não teriormente governador do estado da Guanabara,
havia formalmente um segundo colocado, Carlos Lacerda, com os contos de Uma Luz Pequenina
(Villaça, 2001, p. 133), não obtentor de relevante apre-
mas ele ficou atrás de Luís Jardim, então ço por parte dos jurados.
fase de premeditação. Restava agir. Então, garantia de que, na prosa, o autor se sairia
passei horas de dias, fechado no quarto, can- tão bem quanto na poesia.
tando cantigas sertanejas, dialogando com Depois desse volume de poemas premia-
vaqueiros de velha lembrança, ‘revendo’ pai- do, tratava-se de um movimento audacioso
sagens da minha terra, e aboiando para um migrar tão rapidamente para a confecção de
gado imenso. [...] Lá por novembro, contratei um livro de prosa. Diz ele que começou a
com uma datilógrafa a passagem a limpo. escrever esses contos motivado pela sauda-
E, a 31 de dezembro de 1937, entreguei o de do interior de Minas Gerais, “lembran-
original, às 5 e meia da tarde, na Livraria ças e saudades de Cordisburgo e Itaguara
José Olympio. O título escolhido era ‘Sezão’; me fizeram escrever Sagarana” (Coutinho,
mas, para melhor resguardar o anonimato, 1965), dirá. Essas 12 “histórias adultas da
pespeguei no cartapácio, à última hora, este Carochinha” têm as suas raízes nessas du-
rótulo simples: ‘Contos’ (título provisório, as cidades mineiras com cujas terra, fauna
a ser substituído) por Viator. Porque eu ia e população Rosa nutriu relações íntimas.
ter de começar longas viagens, logo após” Mais especificamente, ele assinala que al-
(Rosa, 1999, pp. 377-9). guns contos “pertencem” a Cordisburgo
(“O Burrinho Pedrês”; “Corpo Fechado”;
E, no posfácio “Porteira de Fim de Es- “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”; “Mi-
trada” presente no referido volume, Rosa nha Gente” e “Duelo”) e outros ele “deve”
complementa dizendo que essas 12 histórias a Itaguara (“A Volta do Marido Pródigo”,
“foram começadas e acabadas no formoso “Sarapalha”, “São Marcos” e “Conversa de
ano de 1937, precisamente entre 20 de maio Bois”) (Borba, 1946). Mediante esse tipo
e 4 de dezembro” (Viator, 1937). Fica evi- de afirmação, o autor deixaria de se colo-
dente nesse relato a aparente despreocupa- car no centro do processo narrativo: não
ção do escritor mineiro, que parece inventar seria ele, em princípio, o “dono” daquelas
um pseudônimo e um título quaisquer, sub- histórias, a única voz capaz de produzi-las.
metendo o seu original aparentemente sem Não por acaso, tal estratégia argumentativa
muitas pretensões. Como aduz Cecília de faria com que, em certo sentido, o artista se
Lara, “Guimarães Rosa afirma que se ins- assemelhasse a um transmissor impessoal
creveu [no Prêmio Humberto de Campos] de dados da realidade, ainda que os sele-
para que sua obra fosse avaliada, visto que cionasse, elaborasse e os narrasse segundo
não possuía quase relações literárias” (Lara, sua própria cosmovisão.
1996, p. 31). Os cenários pelos quais passou, Os Contos entregues para a avaliação do
os dramas que padeceu no sertão de Minas júri do Prêmio Humberto de Campos não
Gerais deixaram marcas indeléveis na sua se constituíam nos primeiros trabalhos em
fértil imaginação, e era preciso avaliar o prosa que Guimarães Rosa tornava públicos.
valor artístico desse material bruto, pois o Entre 1929 e 1930, ele publicara na revista
prêmio da Academia Brasileira de Letras O Cruzeiro, sem recorrer a pseudônimos,
que ganhara em 1936 com a sua primei- três contos fantásticos, vencedores de con-
ra obra, o livro de poemas Magma (Rio cursos promovidos pelo mesmo periódico
de Janeiro, Nova Fronteira, 1997), não era (Gama-Khalil, 2012, p. 144): “O Mistério
2001, p. 134), tal foi a indisposição gerada Graciliano afirmou, em 1939, que:
pela diferença de juízo.
Além dos depoimentos desses dois mem- “Em virtude da decisão do júri, muita gente
bros do júri, encontram-se apenas sumárias supõe que o concorrente vencido seja um
alusões a comentários de Prudente de Moraes escritor de pequena valia. Injustiça: apesar
Neto. Em artigo de 1939, Graciliano Ra- dos contos ruins e de várias passagens de
mos assinala: “Prudente de Moraes acha que mau gosto, esse desconhecido é alguém de
ele [Viator] fez alguns dos melhores contos muita força” (Ramos, 1962, pp. 155-6).
que existem em língua portuguesa” (Ramos,
1962, p. 156). De modo análogo, o jornalista Seu voto em prol de Luís Jardim – ou
Henrique Pongetti também menciona: “No melhor, contra Viator, como prefere Gra-
livro de Viator, Prudente encontrou dois dos ciliano Ramos – só se deu por conta de
dez melhores contos brasileiros, conforme “dois contos e algumas páginas campanudas”
nos declarou” (Pongetti, 1946). E Marques (Ramos, 1962, p. 155). A narrativa “Conver-
Rebelo acrescenta: “Causou-me singular sa de Bois”, por exemplo, foi considerada
impressão este livro [Contos, de Viator], o pelo escritor alagoano como “uma verda-
mesmo acontecendo com o sr. Prudente de deira maravilha” (Ramos, 1962, p. 156), o
Moraes Neto” (Rebelo, 1939). Assim, mais que enfraquece o posicionamento de quem
do que um opaco voto a favor de Contos, o interpretasse que, com esse voto, Gracilia-
que poderia significar uma falta de melhor no estivesse dizendo não haver talento em
opção, o renomado crítico literário Prudente Viator. Em seu depoimento, Ramos também
de Moraes Neto viu no autor em questão um apoiou a publicação do livro do autor des-
exímio escritor, rasgando-lhe elogios antes conhecido, tributou admiração a persona-
mesmo de conhecer o criador encoberto pelo gens como Joãozinho Bem-Bem, referiu-se
pseudônimo. ao autor como “um sujeito que sabe o que
Outra grande figura da literatura bra- diz e observou tudo muito direito” (Ramos,
sileira do século XX, Graciliano Ramos, 1962, p. 156); enfim, disse que “realmente
como se viu, votou de forma diferente. a escolha [entre Maria Perigosa ou Contos]
Nesse sentido, Cecília de Lara afirma que era bem difícil” (Ramos, 1962, p. 156).
ele, como membro do júri da edição de Dois anos depois, em 1941, talvez movido
1938, “não soube reconhecer o talento do por algum tipo de remorso e em atendimento
novato que se assinava ‘Viator’” (Lara, a uma sugestão de José Olympio (Ramos,
1996, p. 30). E a também pesquisadora 1962, p. 251), Graciliano retoma o caso ocor-
Cássia dos Santos diz que essa edição do rido e produz uma espécie de anúncio com
concurso “entrou para a história de nossa o objetivo de saber o paradeiro do ainda
literatura por ter reunido, em lados opostos, desconhecido Viator. Antes de o romancista
talvez os dois mais importantes romancis- alagoano assinalar, ao final do texto, que
tas do século passado: Graciliano Ramos “gratifica-se quem trouxer a esta redação o
e Guimarães Rosa” (Santos, 2012, p. 117; conto ‘Conversa de Bois’” (Ramos, 2012,
grifo nosso). Com relação a esses pontos, p. 182), ele rememora que, em Contos, “há
é legítima a discordância. coisas ótimas”; que o livro “sobe muito ou
algo que contrariava as diretrizes literárias nados no Diário de Guerra, que integra o
do autor de S. Bernardo quanto à repre- Arquivo Henriqueta Lisboa do Acervo de
sentação literária dos homens do hinterland Escritores Mineiros da Universidade Fe-
brasileiro (Ramos, 2012, p. 115). deral de Minas Gerais (Rosa, 1938-1941)5.
Em 1944, quando Ramos e Rosa se co- Na altura de 1942, quando Brasil e Ale-
nheceram pessoalmente, ambos estavam manha romperam relações diplomáticas, e
de acordo a respeito da má qualidade de Guimarães Rosa e outros funcionários do
três dos Contos: além de “Uma História de Itamaraty na Alemanha foram trocados por
Amor”, os também já mencionados “Bicho diplomatas alemães no Brasil, Rosa se apro-
Mau” e “Questões de Família”. Não se pode xima do também diplomata Cícero Dias, a
presumir, como ficou exposto, que Rosa te- quem deu a ler os seus contos, recebendo
nha mandado apenas a porção mais cuidada deste ânimo para publicá-los (Perez, 1968,
de sua produção literária ao julgamento do p. 31). De volta ao Rio, entrou em contato
Prêmio Humberto de Campos, nem um tra- com Marques Rebelo para marcar um almo-
balho demoradamente burilado. Conforme ço, chamando também Prudente de Moraes
declara o próprio Viator no posfácio aos Neto, que não pôde estar presente. No já
Contos (Sezão), em se tratando da capina citado discurso na ABL, Marques Rebelo
e da poda dos textos apresentados “muita relata o acontecimento:
moita má ainda era a ser foiçada” (Viator,
1937). Tal caráter ainda transitório da cole- “Desconfiado, [Rosa] passou-me uma sabatina
tânea, e não uma suposta cegueira crítica de em regra sobre a leitura do livro, como se
Graciliano naquele momento, parece estar eu não o tivesse lido e defendido. Acalma-
na base do voto contrário que ela recebe- do, pediu-me conselhos, a que respondi ser
ra do romancista alagoano. Para além das muito humilde para aconselhar um escritor
virtudes dos Contos, este último concedeu que se revelava daquela maneira superlativa,
excessiva importância aos textos considerados mas, usando da minha modesta experiência
ruins, que compunham somente um quarto no trato literário, sugeria que ele cortasse
da obra. O critério, pois, assumido por ele uns dois contos, e fizesse em outros uns
foi o da oscilação no que diz respeito à apuros que achava necessários para a melhor
qualidade literária dos contos do volume, e compreensão de certos trechos um tanto em-
não o mérito elevado de parte considerável bolados, digamos bizantinos ou gongóricos.
do conjunto. Respondeu-me que era sua intenção refazer
De fato, o escritor mineiro não esperava o volume [...]” (Rebelo, 1968, p. 137).
grandes aplausos ao seu original. Em 1938,
como cônsul-adjunto, foi a Hamburgo, na
Alemanha, onde ficou “por quatro anos e
5 Para este artigo, entretanto, consultou-se aquela que
meio” (Coutinho, 1965), até 1942. De lá, se imagina ser a cópia de tal documento presente no
sabendo do resultado desfavorável obtido acervo João Guimarães Rosa do IEB/USP. Na entrada
de 30 de maio de 1940 desse diário, por exemplo,
pelos Contos no concurso, empreendeu a em meio ao alerta de bombardeios na Alemanha
reformulação do conjunto de textos. Alguns em guerra, o escritor registra: “Estou trabalhando,
corrigindo o último trecho de ‘O Burrinho Pedrês’.
relatos referentes a tal processo são mencio- Mugiram as sirenes. Alarme!” (Rosa, 1938-1941, p. 17).