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Movimentos Identitários e seus processos kafkianos

By Hanry Sobjak de Mello

Vou começar esse texto por um exercício de imaginação. Vamos imaginar


que você, caro leitor, esteja em sua casa, fazendo alguma atividade qualquer.
Vou deixar que você defina qual é a atividade. Em meio a ela, a campainha da
porta toca (ou alguém bate palmas em frente a seu portão) e a pessoa que está
a sua frente se identifica como um oficial de justiça que veio lhe entregar uma
intimação, informando que você está sendo processado.

Nessa intimação não lhe diz o porquê de estarem lhe processando ou


quem lhe está processando. A única coisa que você consegue entender é que
feriu os sentimentos ou ofendeu alguém ou alguma coletividade. Obviamente
vendo a injustiça dessa acusação, você, caro leitor, vai até o tribunal indicado na
intimação para que possa defender-se dessas acusações espúrias, porém, ao
chegar lá, percebe que todas as provas, mesmo as mais sólidas, de que você
não cometeu nenhum ilícito são sumariamente desprezadas e recusadas. A
única motivação desse tribunal é lhe condenar. Somente importa ao juiz sua
posição social, sua etnia e seu sexo. É isso que irá definir se você é inocente ou
culpado.

Nesse momento acredito que o leitor mais informado deve estar pensando
que estou fazendo uma sinopse muito resumida de O Processo (Der Prozess,
no título original em alemão) de Franz Kafka, porém devo lhe dizer que essa
situação, em grande parte de como eu descrevi, acontece diariamente nas redes
sociais e, o que é mais assustador, dentro de universidades americanas e em
menor intensidade, nas universidades brasileiras.

Pode parecer que estou exagerando ou que sou um alarmista, porém,


após ver na realidade isso ocorrendo com várias pessoas dentro da universidade
em que estudo e ouvir diversos relatos de professores e alunos sobre esse
sistema kafkiano de “sindicâncias internas”, afora a própria convivência com
redes sociais fez com que eu não só percebe-se, como compreende-se como
funciona esse sistema em que não importa se a pessoa acusada é inocente ou
culpada e sim, qual é sua etnia, seu sexo ou classe social para que seja definido
a sua culpa ou inocência de qualquer acusação.

Nesse mundo estranho que os SJW (Social Justice Warrior ou “Guerreiros


da Justiça Social”) vivem, o Public Shaming (que seria expor publicamente o
suposto agressor ou fazer o “escracho social” do mesmo) é esse tribunal
kafkiano que eles submetem todos os que supostamente os ofenderam ou
cometeram algum ato que os SJW tenham considerado um crime e as redes
sociais são sua “corte” e os usuários o seu “júri”. Para o suposto
agressor/criminoso não é lhe dado nenhum direito a defesa, ou até pior: tentar
se defender das acusações é visto como uma admissão de culpa! Neste
estranho “sistema judiciário” o que determina se o indivíduo que está sendo
julgado é inocente ou culpado não é o fato de que ele tenha ou não cometido
alguma ofensa ou crime, mas se ele é de origem pobre, se ele é de alguma etnia
“oprimida” ou se ele pertence a algum sexo que seja visto como “vitima” da
sociedade.

Creio que algumas pessoas devam estar se perguntando: mas quando


isso começou a acontecer e por quê? Bem, tentando responder parcialmente a
essas duas questões algumas pessoas se debruçaram sobre o tema. Para o
ensaísta carioca Francisco Bosco, em seu livro A vítima tem sempre razão? –
Lutas identitárias e o novo espaço público brasileiro (Editora Todavia, 2017)
essas lutas começaram nos Estados Unidos, nas décadas de 1980 e 1990, e
migraram para a internet. Para ele somente após o ano de 2013, quando vários
movimentos sociais e identitários usaram as redes sociais para convocar
manifestações de massa, é que começamos a ver, em maior proporção, esses
“linchamentos virtuais” e o seu potencial destrutivo. Em sua obra, o autor
demostra que tem uma simpatia por esses grupos identitários e suas demandas,
porém faz críticas a esses “linchamentos virtuais”.

Em seu livro, Bosco analisa esses “linchamentos virtuais” ocorridos no


Brasil. Fala, entre outros, do caso do turbante (a moça branca que estava com
câncer e levou uma bronca por estar se apropriando da cultura negra) e do caso
da cantora baiana que, ao tentar defender um amigo acusado de estupro, viu
sua carreira ser destruída pelas redes sociais. Relembra, também, a discussão
em torno das marchinhas de Carnaval racistas e homofóbicas, ocorrida no Rio
de Janeiro neste ano. Ao analisar os episódios reais, Bosco repassa os conceitos
que discutiu ao longo do livro - apropriação cultural, lugar de fala, crítica da
linguagem, etc. – e retira das iniciativas a aparência de atitude ridícula ou
despropositada que elas ganharam e tenta analisar como elas aconteceram e os
elementos que as deflagraram. Apesar de demonstrar simpatia com esses
movimentos identitários, isso não o impede de criticar os linchadores. Ao fazer
justiça com as próprias mãos, usando a internet, eles destroem vidas sem dar
às pessoas a chance de se defender de acusações, que muitas vezes são frágeis
e precipitadas. Com a justificativa de criar um exemplo e apoiar uma causa justa,
cometem-se terríveis injustiças nas redes sociais.

Esse tipo de linchamento virtual e de “processo” que chega às raias do


kafkiano é muito mais visível e comum quando se está tratando de acusações
de cunho sexual ou de discriminação de gênero. Nesse momento vemos o quão
bizarro pode ser esse tipo de processo. O autor do livro citado anteriormente
comenta em seu livro alguns desses casos, como o de alunos de Direito em uma
universidade americana que fizeram petições a direção da universidade que
fosse feita a retirada do estudo da lei de crimes sexuais da matéria de Justiça
Criminal para que “possíveis vítimas de crimes sexuais ou pessoa que se
sentissem perturbadas com essa pauta” não sofressem nenhuma angustia
mental ou do professor que passou por um processo de sindicância interna da
universidade com a condenação de demissão sem direitos por ter colocado em
uma prova uma questão em que os alunos tinham que analisar um caso fictício
de violência sexual que ocorreu em uma clínica de depilação; essa sindicância
ocorreu porque ele colocou a palavra “genitália” na descrição do caso e isso
“perturbou emocionalmente algumas alunas” e por isso ele foi demitido da
universidade.

Esses e outros fatos demonstram o complexo e absurdo sistema de justiça


kafkiano que está implantado no sistema universitário norte-americano e
europeu, e como o sistema universitário brasileiro tem o costume de copiar o
melhor (e o pior) desses sistemas, logo veremos de maneira mais ampla
situações como a citadas anteriormente. Como um defensor da escola de
pensamento legislativo-jurídico baseado no direito germano-romano clássico,
não me importa o sexo, nem outra condição social intrínseca dos indivíduos
levados ao julgamento perante a lei, mas o que eles individualmente fizeram. Se
um indivíduo negro discrimina um branco, ele deve ter a mesma penalidade que
um branco que discrimina um negro. Não posso aceitar a escola pós-moderna,
que acredita que o judiciário e o legislativo devem ser ferramentas do Estado
para proteger os grupos “oprimidos” dos grupos “opressores”. Neste sistema
importa saber se a vítima ou o agressor pertenciam a algum desses grupos. Por
esse sistema de justiça, você terá direito a tratamento privilegiado por parte do
legislativo/judiciário sempre que puxar uma “carteirinha de oprimido” que seja
suficientemente “convincente” para o agente operador desse sistema.

O que podemos concluir é que a busca por uma “justiça social” se está
cerceando e condenando pessoas simplesmente por estarem “do lado errado da
equação”, por não pertencerem ao algum grupo que seja visto como “oprimido”
por esses movimentos identitários, o que está levando a uma situação de
perseguição e “assassinato de reputação” dos que, supostamente, através de
atos ou palavras, tenham atingido esses “oprimidos”. Isso tem consequências
que esses grupos nem sequer imaginam, pois em muitos casos eles estão
“alimentando o monstro” que irá ataca-los no futuro e estão deixando um rastro
de vidas destruídas e carreiras arruinadas por denúncias que ou são tão frágeis
e precipitadas ou que são completamente falsas e mal-intencionadas, com único
objetivo de destruir aqueles que estão contestando o que esses movimentos
fazem.

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