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ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA

Comitê Memória e Devires em Linguagens de Dança – Julho/2012

UMA PROPOSTA COSMOPOLITA PARA TRADUZIR AS DANÇAS MITOLÓGICAS


DOS ORIXÁS
María Laura Corvalán (UFBA)

María Laura Corvalán (Rosário, Argentina): Mestranda em Dança (PPGDança, UFBA), bolsista Capes.
Especializada em 'Estudos contemporâneos em Dança' (PPGDança, UFBA) e Licenciada em
Comunicação Social (UNR, Argentina). Professora, investigadora e artista em Danças Afro-Americanas,
através dos quais participa de projetos de criação e produção coletiva, e de divulgação e intercambio. E-
mail: danzanegralali@yahoo.com.ar

Resumo
Este artigo pretende analisar o trabalho de tradução que propõe o sociólogo português
Boaventura de Souza Santos (2002), como uma opção para traduzir as danças
baseadas na mitologia africana dos orixás, em uma cultura colonizada pelos valores e
critérios ocidentais, em busca de uma articulação recíproca e evitando uma
canibalização da cultura hegemônica. O autor sugere um trabalho de tradução
sustentado por dois procedimentos sociológicos: a sociologia das ausências e a
sociologia das emergências, os quais visam desafiar, transgressivamente, o modelo de
racionalidade imperante, que ele chama de indolente, através da dilatação do presente,
que amplia as experiências sociais disponíveis e da contração do futuro, que expande
o domínio das experiências sociais possíveis. Este trabalho de tradução se estabelece
como alternativa diante da impossibilidade de uma teoria geral, alternativa esta que,
por sua vez, assenta no modo de abordar a dança da mitologia de orixás, a qual se
afasta da ideia de “reproduzir padrões de movimentos” e pressupõe que cada corpo
estabelece um modo particular de traduzir os princípios de movimentos configurados a
partir de valores do ambiente onde surgiu tal dança. Interessa, portanto, atender aos
múltiplos processos tradutórios que ocorrem entre o universo mitológico afro-yoruba e a
dança criada por um corpo colonizado, a partir daquele universo. O trabalho de
tradução é capaz de fazer inteligível a multiplicidade de experiências disponíveis,
buscando uma relação coerente com aquelas outras que ainda são possíveis. Com o
objetivo de analisar, posteriormente, os processos de tradução experimentados nas
propostas de duas professoras e dançarinas, Tânia Bispo e Isa Soares, tentaremos
aqui, atravessar os contextos e condições específicas de nossos campos de tradução
pelos seguintes questionamentos que sugere o sociólogo Santos: O que traduzir? Entre
quê? Quem traduz? Quando traduzir? Traduzir com que objetivos?
Palavras-chaves: Tradução Cosmopolita, Danças Mitológicas dos Orixás, Corpo
Colonizado, Cultura.

A COSMOPOLITAN PROPOSAL TO TRANSLATE THE ORIXÁS´S MYTHOLOGICAL


DANCES
Abstract
This paper pretend to analyze the translation work proposed by Portuguese sociologist
Boaventura de Souza Santos (2002), like an option to interpret the dances based on
orixás´s african mythology, into a culture colonized by occidental standards and values,
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to a reciprocal articulation and avoiding a cannibalization of the hegemonic culture. The


author suggests a translation supported by two sociological procedures: the sociology of
absences and the sociology of emergences, which are trying to find a challenge, in a
transgressed way, the dominant model of rationality, called indolent, through the dilation
of the present, that broad social experiences available, and through the contraction of
the future, that spread the control of social experiences possible. This translation´s work
is established as an alternative to the impossibility of a general theory, which in turn,
agrees with the way to approach to orixas´s mythological dances, which moves away
from the idea of “reproduce patterns of movement” and assumes that every body makes
a particular kind of translation of the principles of movement configured from the context
values where this dances emerged. It is interesting therefore, to pay attention to the
multiple processes of translation that occurs between the mythological afro – yoruba
and the dance that is created by a colonized body, from that universe. The translation
work is capable of make intelligible the multiplicity of experiences available, searching a
coherent connection with those others that are still possible. In order to analyze later the
translation process which were experienced in the proposals of two teachers, named
Tania Bispo and Isa Soares, we will try to cross the specific contexts and conditions of
our translation fields by de next questions that the sociologist Santos suggest: What are
we going to translate? Between which things are we going to translate? Who is going to
translate? When we have to translate? With which object are we going to translate?
Keywords: Translate, Cosmopolitan, Dances of the Orixas´s Mitology, Colonized Body,
Culture.

O presente artigo propõe estudar os diferentes processos de tradução das


danças mitológicas dos orixás de modo que seus princípios de movimentos possam ser
personalizados e recriados em cada corpo. O texto busca apresentar questionamentos
sobre de que modo é possível realizar um trabalho de tradução de danças de uma
cultura africana e ancestral para uma cultura imperada pelos valores e critérios
ocidentais contemporâneos, sem se deixar cair numa canibalização que suprima tudo o
que incomode neste processo e/ou põe em risco a compreensão do mundo ocidental.

Neste viés, interessa tratar aqui o trabalho de tradução que propõe o sociólogo
Boaventura de Souza Santos (2002), sustentado por dois procedimentos sociológicos:
a “sociologia das ausências e a sociologia das emergências”. Esses procedimentos
visam desafiar, transgressivamente, ao modelo de racionalidade imperante - que ele
chama de “indolente”. O autor centra-se na crítica a uma de suas formas: “a razão
metonímica”, a qual opera sempre sob uma teoria geral que pressupõe a ideia de
totalidade e a homogeneidade das suas partes. Essa totalidade se explicita,
concretamente, nas relações dicotômicas que encobrem sempre uma hierarquia e uma
verticalidade: Ocidente/Oriente; civilizado/primitivo; cultura/natureza; branco/negro;
conhecimento científico/conhecimento tradicional; etc. (SANTOS, 2002, p. 242).

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Assim, na crítica a esta teoria geral da ciência moderna, o autor parte de outro
pressuposto: ‘a teoria geral da impossibilidade de uma teoria geral’(Ibidem, p. 268),
para o qual sugere um trabalho de tradução que permita “criar inteligibilidade recíproca,
coerência e articulação num mundo enriquecido por uma multiplicidade e diversidade
de experiências disponíveis e possíveis” (Ibidem, p. 268). Este pressuposto também
sustenta nosso entendimento a respeito da dança da mitologia de orixás, para a qual,
longe de pretender ‘reproduzir padrões’ de movimentos que representam um dado
orixá, busca-se uma dança na qual cada corpo contemporâneo e colonizado
estabelece um modo de tradução daqueles princípios de movimentos que foram
configurados a partir de valores do ambiente onde surgiu tal dança. Nossa hipótese é
que, graças ao umwelt (Uexkull, 1992) – mundo particular ou tradução do mundo - de
cada pessoa, é possível fazer um caminho subjetivo e criativo desta dança. Não há,
então, uma dança que possa ser reproduzida, mas há tantas danças quantos corpos e
suas possibilidades criativas na sua relação com as mitologias de orixás e os princípios
de movimento que respondem a tal cosmovisão.

A partir desta perspectiva, o presente texto pretende atender aos múltiplos


processos tradutórios que ocorrem entre o universo mitológico dos orixás e a dança
criada por um corpo colonizado, a partir daquele universo. Nesse diálogo é preciso
atender às seguintes traduções:

1. da África para a América Latina: neste estudo, focaremos, especificamente, no


Estado da Bahia, Brasil, onde diferentes etnias africanas se cruzaram e se
organizaram em diversas formas de resistências ao sistema escravista, como
ocorreu com os Candomblés (sistemas religiosos que cultuam os Orixás). Para isto,
deteremo-nos em dois grupos de nações que dançam para os orixás: Gege-Nagô e
Congo-Angola;

2. do universo mitológico dos orixás para uma dança pessoal, criativa, artística e
contemporânea. Abordaremos certas informações do mito que se manifestam na
dança, onde foram ganhando estabilidade até identificar-se como “dança de orixás”.
Interessa-nos, ainda, apresentar quais são as informações que vão sendo
traduzidas e como o corpo de cada um traduz isso de forma criativa. Para esta
etapa, selecionamos dois orixás: Omolú e Iansã, com o objetivo de analisar os

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processos de tradução experimentados nas propostas de duas professoras e


dançarinas: Tânia Bispo 1 e Isa Soares2.

Por uma razão cosmopolita

Para estudar esses processos tradutórios é preciso entrar em contato com outro
modo de compreender o mundo, alternativo à razão metonímica, que seja capaz de
pensá-lo além do mundo ocidental capitalista. Santos (2002, p. 242), propõe uma razão
cosmopolita que permita criar o “espaço-tempo necessário para conhecer e valorizar a
inesgotável experiência social que está em curso no mundo de hoje...” e assim “evitar o
gigantesco desperdício da experiência...”, expandir o presente e contrair o futuro. Nesta
razão cosmopolita, o autor procura fundamentar três procedimentos sociológicos: uma
sociologia das ausências, para expandir o presente; uma “sociologia das emergências”
para contrair o futuro, e uma teoria ou trabalho de tradução, como alternativa a uma
teoria geral, a qual pressupõe sempre a monocultura de uma dada totalidade e a
homogeneidade das suas partes... (Ibidem, p. 261\262). Portanto, para um melhor
entendimento do trabalho de tradução é indispensável entender esses dois
procedimentos anteriores.

A “sociologia das ausências” busca a ampliação do mundo e dilatação do


presente, e começa por revelar cindo modos em que a “razão metonímica” produz a
não-existência do que não cabe na sua totalidade e no tempo linear: (Idem, p. 246):

- a monocultura do saber, que toma a ciência moderna e a alta cultura como cânones
exclusivos de produção de conhecimento ou de criação artística;
- a monocultura do tempo linear, que entende a história com sentido e direção únicos: o
progresso e a modernização. Tudo o que não é declarado avançado, é residual sob a
forma de obsoleto, primitivo, tradicional, simples ou subdesenvolvido;

1
Tânia Bispo é baiana, dançarina, coreógrafa e diretora de reconhecidos espetáculos em Salvador.
Embora trabalhe como professora de dança em diversos espaços da sua cidade (UFBA, SESC)
desenvolve sua proposta sobre ‘Transmissão do Conhecimento da Cultura Afro Brasileira através da
Sensibilização’, em oficinas para grupos de estrangeiros. Não é um detalhe menor ressalvar que a
profissional integra uma comunidade da religião do Candomblé.
2
Isa Soares, baiana radicada em Buenos Aires. Além de ela ser minha mestra, que me apresentou estas
danças, foi a primeira pessoa que levou esta arte para Buenos Aires, a qual hoje está espalhada
enormemente.

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- a monocultura da naturalização das diferenças. Onde as hierarquias por raça ou


gênero são imodificáveis porque naturais;
- a monocultura do universal que outorga validez a realidades independentes do seu
contexto específico: o global deixa fora ao local;
- a monocultura da produtividade capitalista. O crescimento econômico é um objetivo
racional inquestionável, critério que se aplica tanto ao trabalho humano quanto à
natureza sob a forma de exploração.

Segundo Santos, estas cinco “monoculturas” produzem cinco formas de “não-


existência”: o ignorante, o residual, o inferior, o local e o improdutivo. (Idem, p. 248).
Sob esta perspectiva, é notável que o nosso objeto de estudo seja atravessado por
todas estas categorias: é ignorante e inculto por se basear num saber oral e mitológico;
é atrasado e primitivo, por conter temporalidades cíclicas, espiraladas e conviver com
os antepassados; é inferior pela sua origem negra e escrava; é local porque sua
configuração depende diretamente do contexto e a cada novo contexto tem que se
reconfigurar; é improdutivo porque suas lógicas de produção e distribuição não se
regem pela exploração do homem e a natureza, mas sim pelo contrário, cuida da
distribuição das energias do universo com dinâmicas que inclui o homem como parte
da natureza.

A “sociologia das ausências” pretende recuperar essa multiplicidade e


diversidade de práticas que Santos chama de “desperdício de experiências” e assim
aumentar o campo das experiências credíveis existentes, sugerindo para cada
monocultura uma alternativa ecológica: a ecologia saberes, ecologia de
temporalidades, ecologia de reconhecimentos, ecologia de produções e ecologia
distribuições sociais.

A dilatação do presente ocorre pela expansão do que é considerado


contemporâneo... todas as experiências e práticas que ocorrem
simultaneamente possam ser consideradas contemporâneas, ainda que
cada uma à sua maneira. (SANTOS, 2002, p. 250)

Enquanto a “sociologia das ausências” se ocupa de dilatar o presente,


ampliando o domínio das experiências sociais já disponíveis, a “sociologia das
emergências” pretende contrair o futuro expandindo o domínio das experiências sociais
possíveis. A “sociologia das emergências” é a investigação das possibilidades e
capacidades plurais e concretas que permitam contextualizar as expectativas sociais.

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Este procedimento sociológico pretende, deste modo, equilibrar a relação entre


experiência e expectativa já que quanto mais experiências estiverem hoje disponíveis
no mundo mais experiências são possíveis no futuro.

Assim, com o fim de fazer emergir as ausências, Santos propõe realizar um


trabalho de tradução, capaz de fazer inteligível a multiplicidade de experiências
disponíveis, buscando uma relação coerente com aquelas outras que ainda são
possíveis. Portanto, “o trabalho de tradução permite criar sentidos e direções precárias,
mas concretas, de curto alcance, mas radicais nos seus objetivos, incertos, mas
partilhados” (Idem, p. 274).

O trabalho de tradução

O trabalho de tradução cosmopolita tem lugar sobre os saberes e sobre as


práticas que são saberes aplicados e materializados, e que precisam do consenso
transcultural de um pressuposto que já foi enunciado anteriormente: “a teoria geral da
impossibilidade de uma teoria geral”. Assim, este procedimento tende a explicitar os
limites e as possibilidades da articulação entre os diferentes saberes e práticas
culturais, já que, em palavras de Santos, “todas as culturas são incompletas e,
portanto, podem ser enriquecidas pelo diálogo e pelo confronto com outras culturas”
(Idem, p. 264). Daí se compreende a necessidade de buscar em outra cultura regida
por outros valores e modos de estarem no mundo, respostas para problemas e vazios
da cultura própria.

Para esclarecer as condições e procedimentos deste trabalho, o autor sugere


formular as seguintes questões: “O que traduzir?” “Entre quê?” “Quem traduz?”
“Quando traduzir?” “Traduzir com que objetivos?”

“O que traduzir?” A razão cosmopolita propõe construir “zonas de contacto”, que


se definem como campos sociais onde se encontram, chocam e interagem diferentes
práticas e conhecimentos. Esta “zona de contato” é sempre seletiva, cada saber ou
prática decide o que é posto em contacto com quem, contudo, tais saberes e práticas
excedem a zona de contato selecionada (Idem, p. 268). Para nosso trabalho de
tradução, pretende-se colocar como “zona de contato cosmopolita” a ‘dança’. Cada
dança mitológica dos orixás se configura por múltiplas informações: um orixá, um mito,

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um elemento da natureza, um ritmo, um canto e um corpo que dança – em interação


com o ambiente – e, as relações efetivas destas informações se organizam de certo
modo que determinam suas técnicas corporais específicas. Portanto, o que singulariza
e define a técnica corporal de uma dança não é somente o conjunto de informações,
mas é a lógica de organização das informações. Assim, embora foquemos a tradução
num aspecto desta “zona de contato”, como ser um mito ou um elemento da natureza,
necessariamente, os outros aspectos estarão presentes para dar coerência à
organização da dança no corpo.

“Entre quê traduzir?” A seleção dos saberes e práticas para realizar o trabalho
de tradução resulta de uma convergência de sensações de carência, de
inconformismo, e da motivação para superá-las de uma forma específica (Idem, p.
270). Esta sensação de carência e motivação faz parte fundamental das condições
necessárias para que a dança surja e se desenvolva num certo contexto. A cada novo
contexto a dança cobra um novo sentido de acordo com as adaptações às condições
particulares.

Propomo-nos, então, traduzir entre diferentes contextos onde ocorre esta dança
mitológica dos orixás. Um deles é o contexto do universo mitológico dos orixás, na
passagem da África a Bahia, onde em condições da escravidão, o culto aos orixás era
a motivação para superar as experiências do desarraigo e as vivências mais inumanas.
Aqui, a dança era uma forma de comunicar-se com os ancestrais, com sua terra do
outro lado do oceano e também entre eles, já que nem todos compartilhavam o mesmo
dialeto. Como ilustra Verger:

... Disso resultou, no Novo Mundo, uma multidão de cativos que não
falava a mesma língua, possuindo hábitos de vida diferentes e religiões
distintas. Em comum, não tinham senão a infelicidade de
estarem, todos eles, reduzidos à escravidão, longe das suas terras de
origem. (VERGER, 2003, p. 22)
No contexto, aqui analisado, da dança como expressão artística contemporânea,
de corpos colonizados pelos valores ocidentais e capitalistas, privados de escolherem
outras formas de viverem e se relacionarem com o mundo, além do mundo capitalista,
a dança cobra um sentido singular em cada pessoa, de acordo com as possibilidades
interativas entre o corpo, o ambiente e as características selecionadas desta dança.
Esta relação corpo-ambiente-orixás vai ser atravessada pela idéia de umwelt
(UEXKULL, 1992), traduzida como “mundo à volta”, “mundo entorno”, ou “mundo
particular”. O “umwelt seleciona e filtra informações provindas do ambiente e as

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internaliza de forma codificada”, estabelecendo “uma ponte entre a realidade objetiva e


o mundo representacional de um sistema cognitivo”. (UEXKULL, apud VIEIRA, 2006,
p.79)

Neste sentido, podemos afirmar que as conexões musculares dos corpos de


uma técnica de dança correspondem a uma determinada lógica de cognição e essa
lógica obedece a valores de um certo contexto. Assim, cada corpo vai criando regras
para compor a dança, isto é, seleciona uma possibilidade de composição. Britto
explica:

Toda dança resulta do modo particular de um corpo organizar, com


movimentos, o seu conjunto de referências informativas (biológicas e
culturais). Do mesmo modo, o contexto cultural corresponde ao
ambiente do corpo, no sentido de que o conjunto de informações que
caracterizam os modos de pensar e operar vigentes na sociedade em
que está inserido delineia seu campo particular de possibilidades
interativas. (BRITTO: 2008, p. 72)

“Quando traduzir”? Nas zonas de contacto multiculturais, tem de se confluir uma


constelação de tempos, ritmos e oportunidades que a “sociologia das ausências” se
encarregou de revelar, em contraposição à lógica da monocultura do tempo linear.
(Idem, p. 271)

Para a cultura africana, “o tempo é uma composição dos eventos que já


aconteceram ou que estão para acontecer imediatamente” (MBITI1990, apud. PRANDI,
2001, p. 7). Longe de pensar o tempo independente do ser humano, como algo a ser
consumido ou vendido, para o africano, o tempo tem que ser criado, “ele faz tanto
tempo quanto queira” (Idem, p. 4). No Brasil, em comunidades religiosas regidas por
tradições africanas, o tempo, até hoje, é pensado e descrito de um modo muito
diferente ao tempo linear do capitalismo. Em palavras de Prandi (2001, p. 4): “o tempo
será sempre definido pela conclusão das tarefas consideradas necessárias no entender
do grupo, ou seja, por meio da fórmula: quando estiver pronto”.

Na cosmovisão africana, o tempo é circular, é o tempo da natureza, onde os


eventos do presente são repetições de um passado distante que se “transmite”
oralmente pelo mito. Porém, na mitologia, os eventos também não se ajustam a um
tempo contínuo e linear. Os mitos são narrativas parciais, onde fatos que são narrados
como acontecimentos de uma mesma época, ocorreram em momentos muito distantes.

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“O tempo do mito é o tempo das origens, e parece existir um tempo vazio entre o fato
contado pelo mito e o tempo do narrador.” (Idem, p. 7)

Na zona de contato cosmopolita da dança mitológica dos orixás, o tempo da


tradução será de uma contemporaneidade que permita abranger este pensamento de
tempo. Ou seja, contemporaneizar esta prática e este saber, pelo simples fato de estar
acontecendo nesta época, mas atendendo sobretudo às suas lógicas de tempo. Neste
caso, se a tradução é contemporânea, a dança também pode ser tratada como
contemporânea.

“Quem traduz?” A tradução é um trabalho intelectual, geralmente exercido por


líderes de grupos sociais. Esses tradutores cosmopolitas precisam estar “fortemente
enraizados nas práticas e saberes que representam, tendo de uns e de outras uma
compreensão profunda e crítica” (SANTOS, 2002, p. 271). Para explicar esta ideia,
Santos remete-se à filosofia da sageza da África tradicional. Os sages eram poetas,
contadores de histórias, músicos ou médicos tradicionais de sabedoria, que
transmitiam o modo de pensar e de explicar o mundo de uma comunidade através de
uma “sabedoria didática” que se caracterizava pela sua dimensão crítica frente ao
senso comum. Só que muito dessa filosofia da sageza não esta escrita e tem se
perdido (ODERA ORUKA, 1990-1998, apud SANTOS, 2001, p. 263).

Pela mesma via, o saber popular das cosmovisões africanas transmitida pela
oralidade, foi perdendo importância sob a forma de ignorante ou inculta, ficando
legitimado somente o que os cientistas e intelectuais europeus conseguiram escrever
nos seus livros. Porém, muitas informações tiverem continuidade através da mitologia,
dos cânticos e das danças.

Para este estudo, as tradutoras são as professoras Isa Soares e Tânia Bispo,
como já apresentamos. Bispo desenvolve o seu trabalho em Salvador/ BA, a partir do
contato com a simbologia ritualística dos orixás e sua relação com o elemento da
natureza correspondente, energias, características, arquétipos e leituras simbólicas dos
fundamentos ligados ao orixá. O trabalho busca explorar a criação de sequências
individuais e composições coletivas em relação com o “mito pessoal” e retratos das
memórias ancestrais. Bispo conta que a pesquisa começou com ela mesma, quando

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na sua formação na Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia 3 encontrou


com a dificuldade de improvisar com ‘uma linguagem própria’, por conta de ter
incorporado tantas informações da dança moderna, do balé clássico e demais técnicas
“importadas” desenvolvidas na Escola de Dança naquela época. A dançarina relata que
sentia que tinha perdido a sua língua matriz, a sua ancestralidade. Foi a partir da
percepção da carência de uma oferta de dança que contemplasse a sua história
pessoal, que decidiu “pesquisar com o núcleo Odundê, os princípios básicos da postura
de um corpo negro, a postura de um corpo que dança matriz sagrada” (comunicação
oral, 2011).

Por sua vez, Soares, baiana radicada em Buenos Aires/Argentina há mais de


trinta anos, desenvolve sua proposta de ‘recriações das danças de orixás’ a partir do
trabalho do ‘Xiré’, isto é, uma ordem de aparição dos orixás, na qual eles representam
‘diferentes instâncias mediadoras, dentro dos ciclos vitais’… “Os gestos, nessa
recriação, relatam o recorrido do corpo por instâncias da vida...” (Soares, 2006). A
professora conta que seu trabalho de dança partiu da necessidade de se incluir na
sociedade porteña (de Buenos Aires) onde mora, porque foi ela que decidiu se instalar
ali, sendo negra, sem família e com um filho. Ela precisava dialogar com as pessoas
por meio da dança, de dizer como era ela, como gostaria que a tratassem e como ela
gostaria que fosse o mundo. Na hora de partilhar o seu trabalho, Soares sublinhava
sobre lugar ela tinha recriado cada movimento: “aconteceu-me isto, eu o reproduzo
assim, entrego-lhes dessa maneira, vocês façam com ele o que quiseram. Contudo,
observem sempre, desde a sua necessidade de fazer. Não da repetição porque sim.”
(Comunicação oral, 2005)

Nos dois casos, o trabalho de tradução da dança se reconfigura a partir de uma


dimensão crítica de cada professora em relação com o seu ambiente e com o universo
mitológico da dança. Porém, vemos que desta atitude crítica surge um sentimento de
incompletude “e a motivação para encontrar noutros saberes ou noutras práticas as
respostas que não se encontram dentro dos limites de um dado saber ou de uma dada
prática” (SANTOS, 2002, p. 271).

3
A Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, uma das pioneiras em Brasil, vem formando
professionais desde a década de 50, trabalhando também na capacitação de estudantes para ampliar o
seu repertório intelectual, social e cultural.
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Esta ideia de carência e a motivação para superá-la, segundo Santos, podem


ser melhores entendidas com o questionamento do sociólogo indiano Vishvanatran
(2000, apud, SANTOS, 2002, p. 264): “o meu problema é como ir buscar o melhor que
tem a civilização indiana e, ao mesmo tempo, manter viva a minha imaginação
moderna e democrática”. Neste questionamento é interessante notar a convergência de
motivações fundadas em diferentes culturas, muito similar à de nosso problema: como
tomar certos valores e princípios da cosmovisão africana para transformar modos de
relacionarmo-nos e criar mundos possíveis, a partir de nossa história pessoal?

“Como traduzir?” Santos explica que o trabalho de tradução é um trabalho


argumentativo, o qual confirma a “emoção cosmopolita de partilhar o mundo com quem
não partilha o nosso saber ou a nossa experiência” (SANTOS, 2002, p. 272). Assim, o
autor apresenta três principais dificuldades do trabalho de tradução:

A primeira dificuldade são as premissas de argumentação. Cada cultura ou


saber, conta com um consenso de regras, postulados e ideias, nomeadas como ‘lugar
comum’ ou ‘topoi’, nas quais assentam as premissas de argumentação. Porém esses
topoi por ser próprios de uma cultura, não são aceites como óbvios por outra cultura ou
saber. Por tanto, para o trabalho de tradução, cada saber ou prática leva para a zona
de contacto, certos topoi que deixam de ser ‘premissas da argumentação’ e tornam-se
‘argumentos’ da tradução. No processo do trabalho de tradução, vão se construindo
“topois adequados à zona de contacto e à situação de tradução” (Idem, p. 272). A
escolha do trabalho das professoras Isa Soares e Tânia Bispo para este estudo
relaciona-se com a particular capacidade delas para construir topois ou ‘lugares
comuns’ adequados à zona de contacto da dança da mitologia afro-yoruba, que
argumentam de forma coerente o processo de tradução de cada trabalho. Porém, como
afirma o sociólogo, este “é um trabalho exigente, sem seguros contra riscos e sempre à
beira de colapsar”.

A segunda dificuldade está na língua. A dificuldade aparece especialmente


quando a “zona de contacto cosmopolita” é multicultural e a argumentação é conduzida
pela língua colonial, a qual muitas vezes torna impronunciáveis aspectos centrais dos
saberes e práticas oprimidos na zona colonial (Idem, p. 272). Neste trabalho de
tradução, a linguagem é corporal. O risco está em que para poder fazer algum tipo de
tradução desta dança afro-yoruba, é indispensável partir de outra noção de corpo,
diferente daquela que marca o corpo colonizado, organizado por lógicas e valores da

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cultura ocidental. A tradução é um trabalho paralelo ao processo de aprendizagem de


uma nova linguagem corporal, com outros conceitos de corpo, de estética, de técnica
corporal, de tempo; que implica estabelecer uma relação mais íntima e horizontal com
a natureza, a partir do entendimento de que o corpo é composto por uma multiplicidade
de energias possíveis de serem desenvolvidas. É um processo lento e complexo.

A terceira dificuldade está nos silêncios. A tradução do silêncio é uma das


tarefas mais complexas, já que cada saber e prática outorgam um significado diferente
ao silêncio, assim como um ritmo específico na articulação com as palavras. (Idem, p.
273). Podemos dizer que na linguagem corporal desta dança mitológica, o silêncio é
marcado pelos diferentes toques percussivos de cada dança. O ritmo sugere uma
energia particular que, para atingi-la é indispensável silenciar certas partes do corpo
para que outras possam se movimentar.

“Para que traduzir?” O trabalho de tradução cosmopolita contribui para apontar


resposta à primeira pergunta deste estudo: de que modo é possível realizar um
trabalho de tradução de danças africanas e ancestrais para uma cultura colonizada
pelos valores e critérios ocidentais, buscando uma articulação recíproca e evitando
uma tradução hegemônica?

A razão cosmopolita reconhece uma América Latina cheia de experiências além


do seu colonizador ocidental. Nesta dilatação do presente, diferentes culturas não
hegemônicas podem buscar respostas ao inconformismo que produz o mundo
ocidental, num diálogo transcultural com diversos tipos de tradução que habilita a uma
inteligibilidade recíproca. Retomando as palavras de Santos, o trabalho de tradução
entre práticas não hegemônicas é uma condição da conversão das práticas não-
hegemônicas em práticas contra-hegemônicas (Idem, p. 265).

Para o trabalho de tradução cosmopolita, é urgente, ante todo, reconhecer nossa


condição de inexistentes, e entender que essa invisibilidade é produzida pela cultura
hegemônica ocidental, a qual só legitima as monoculturas que cabem no seu
raciocínio. É a partir de reconhecermo-nos colonizados, de registrar o sentimento de
incompletude que nos incomoda e da vontade de transformá-lo, que podemos
estabelecer um diálogo de reciprocidade com uma outra cultura não hegemônica. A
dança da mitologia de orixás pode converter-se em uma prática contra-hegemônica,
“somente” se o trabalho de tradução consegue atender à diversidade de experiências,

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ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA
Comitê Memória e Devires em Linguagens de Dança – Julho/2012

valores e cosmovisões que, num trabalho intelectual, político e emocional, desafie à


razão ocidental capitalista.

Referências

ABNT: Associação Brasileira de Normas técnicas. NBR 14724, Rio de Janeiro 2011.

BRITTO, F. D. Temporalidade em dança: parâmetros para uma história


contemporânea. Belo Horizonte: FID Editorial, 2008.

SANTOS, B. de S. Para uma Sociologia das ausências e uma sociologia das


emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 63, Outubro 2002. p. 237-238.

PRANDI, R. O candomblé e o tempo. Revista Brasileira de Ciências Sociais-RBCS,


n. 47, outubro 2001.

VERGER, P. Orixás. São Paulo: Corrupio, 2003.

VIEIRA, J. A. Teoria do conhecimento e arte: formas de conhecimento – arte e


ciência uma visão a partir da complexidade. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora,
2006.

http://portalanda.org.br/index.php/anais 13

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