Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
María Laura Corvalán (Rosário, Argentina): Mestranda em Dança (PPGDança, UFBA), bolsista Capes.
Especializada em 'Estudos contemporâneos em Dança' (PPGDança, UFBA) e Licenciada em
Comunicação Social (UNR, Argentina). Professora, investigadora e artista em Danças Afro-Americanas,
através dos quais participa de projetos de criação e produção coletiva, e de divulgação e intercambio. E-
mail: danzanegralali@yahoo.com.ar
Resumo
Este artigo pretende analisar o trabalho de tradução que propõe o sociólogo português
Boaventura de Souza Santos (2002), como uma opção para traduzir as danças
baseadas na mitologia africana dos orixás, em uma cultura colonizada pelos valores e
critérios ocidentais, em busca de uma articulação recíproca e evitando uma
canibalização da cultura hegemônica. O autor sugere um trabalho de tradução
sustentado por dois procedimentos sociológicos: a sociologia das ausências e a
sociologia das emergências, os quais visam desafiar, transgressivamente, o modelo de
racionalidade imperante, que ele chama de indolente, através da dilatação do presente,
que amplia as experiências sociais disponíveis e da contração do futuro, que expande
o domínio das experiências sociais possíveis. Este trabalho de tradução se estabelece
como alternativa diante da impossibilidade de uma teoria geral, alternativa esta que,
por sua vez, assenta no modo de abordar a dança da mitologia de orixás, a qual se
afasta da ideia de “reproduzir padrões de movimentos” e pressupõe que cada corpo
estabelece um modo particular de traduzir os princípios de movimentos configurados a
partir de valores do ambiente onde surgiu tal dança. Interessa, portanto, atender aos
múltiplos processos tradutórios que ocorrem entre o universo mitológico afro-yoruba e a
dança criada por um corpo colonizado, a partir daquele universo. O trabalho de
tradução é capaz de fazer inteligível a multiplicidade de experiências disponíveis,
buscando uma relação coerente com aquelas outras que ainda são possíveis. Com o
objetivo de analisar, posteriormente, os processos de tradução experimentados nas
propostas de duas professoras e dançarinas, Tânia Bispo e Isa Soares, tentaremos
aqui, atravessar os contextos e condições específicas de nossos campos de tradução
pelos seguintes questionamentos que sugere o sociólogo Santos: O que traduzir? Entre
quê? Quem traduz? Quando traduzir? Traduzir com que objetivos?
Palavras-chaves: Tradução Cosmopolita, Danças Mitológicas dos Orixás, Corpo
Colonizado, Cultura.
Neste viés, interessa tratar aqui o trabalho de tradução que propõe o sociólogo
Boaventura de Souza Santos (2002), sustentado por dois procedimentos sociológicos:
a “sociologia das ausências e a sociologia das emergências”. Esses procedimentos
visam desafiar, transgressivamente, ao modelo de racionalidade imperante - que ele
chama de “indolente”. O autor centra-se na crítica a uma de suas formas: “a razão
metonímica”, a qual opera sempre sob uma teoria geral que pressupõe a ideia de
totalidade e a homogeneidade das suas partes. Essa totalidade se explicita,
concretamente, nas relações dicotômicas que encobrem sempre uma hierarquia e uma
verticalidade: Ocidente/Oriente; civilizado/primitivo; cultura/natureza; branco/negro;
conhecimento científico/conhecimento tradicional; etc. (SANTOS, 2002, p. 242).
http://portalanda.org.br/index.php/anais 2
ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA
Comitê Memória e Devires em Linguagens de Dança – Julho/2012
Assim, na crítica a esta teoria geral da ciência moderna, o autor parte de outro
pressuposto: ‘a teoria geral da impossibilidade de uma teoria geral’(Ibidem, p. 268),
para o qual sugere um trabalho de tradução que permita “criar inteligibilidade recíproca,
coerência e articulação num mundo enriquecido por uma multiplicidade e diversidade
de experiências disponíveis e possíveis” (Ibidem, p. 268). Este pressuposto também
sustenta nosso entendimento a respeito da dança da mitologia de orixás, para a qual,
longe de pretender ‘reproduzir padrões’ de movimentos que representam um dado
orixá, busca-se uma dança na qual cada corpo contemporâneo e colonizado
estabelece um modo de tradução daqueles princípios de movimentos que foram
configurados a partir de valores do ambiente onde surgiu tal dança. Nossa hipótese é
que, graças ao umwelt (Uexkull, 1992) – mundo particular ou tradução do mundo - de
cada pessoa, é possível fazer um caminho subjetivo e criativo desta dança. Não há,
então, uma dança que possa ser reproduzida, mas há tantas danças quantos corpos e
suas possibilidades criativas na sua relação com as mitologias de orixás e os princípios
de movimento que respondem a tal cosmovisão.
2. do universo mitológico dos orixás para uma dança pessoal, criativa, artística e
contemporânea. Abordaremos certas informações do mito que se manifestam na
dança, onde foram ganhando estabilidade até identificar-se como “dança de orixás”.
Interessa-nos, ainda, apresentar quais são as informações que vão sendo
traduzidas e como o corpo de cada um traduz isso de forma criativa. Para esta
etapa, selecionamos dois orixás: Omolú e Iansã, com o objetivo de analisar os
http://portalanda.org.br/index.php/anais 3
ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA
Comitê Memória e Devires em Linguagens de Dança – Julho/2012
Para estudar esses processos tradutórios é preciso entrar em contato com outro
modo de compreender o mundo, alternativo à razão metonímica, que seja capaz de
pensá-lo além do mundo ocidental capitalista. Santos (2002, p. 242), propõe uma razão
cosmopolita que permita criar o “espaço-tempo necessário para conhecer e valorizar a
inesgotável experiência social que está em curso no mundo de hoje...” e assim “evitar o
gigantesco desperdício da experiência...”, expandir o presente e contrair o futuro. Nesta
razão cosmopolita, o autor procura fundamentar três procedimentos sociológicos: uma
sociologia das ausências, para expandir o presente; uma “sociologia das emergências”
para contrair o futuro, e uma teoria ou trabalho de tradução, como alternativa a uma
teoria geral, a qual pressupõe sempre a monocultura de uma dada totalidade e a
homogeneidade das suas partes... (Ibidem, p. 261\262). Portanto, para um melhor
entendimento do trabalho de tradução é indispensável entender esses dois
procedimentos anteriores.
- a monocultura do saber, que toma a ciência moderna e a alta cultura como cânones
exclusivos de produção de conhecimento ou de criação artística;
- a monocultura do tempo linear, que entende a história com sentido e direção únicos: o
progresso e a modernização. Tudo o que não é declarado avançado, é residual sob a
forma de obsoleto, primitivo, tradicional, simples ou subdesenvolvido;
1
Tânia Bispo é baiana, dançarina, coreógrafa e diretora de reconhecidos espetáculos em Salvador.
Embora trabalhe como professora de dança em diversos espaços da sua cidade (UFBA, SESC)
desenvolve sua proposta sobre ‘Transmissão do Conhecimento da Cultura Afro Brasileira através da
Sensibilização’, em oficinas para grupos de estrangeiros. Não é um detalhe menor ressalvar que a
profissional integra uma comunidade da religião do Candomblé.
2
Isa Soares, baiana radicada em Buenos Aires. Além de ela ser minha mestra, que me apresentou estas
danças, foi a primeira pessoa que levou esta arte para Buenos Aires, a qual hoje está espalhada
enormemente.
http://portalanda.org.br/index.php/anais 4
ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA
Comitê Memória e Devires em Linguagens de Dança – Julho/2012
http://portalanda.org.br/index.php/anais 5
ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA
Comitê Memória e Devires em Linguagens de Dança – Julho/2012
O trabalho de tradução
http://portalanda.org.br/index.php/anais 6
ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA
Comitê Memória e Devires em Linguagens de Dança – Julho/2012
“Entre quê traduzir?” A seleção dos saberes e práticas para realizar o trabalho
de tradução resulta de uma convergência de sensações de carência, de
inconformismo, e da motivação para superá-las de uma forma específica (Idem, p.
270). Esta sensação de carência e motivação faz parte fundamental das condições
necessárias para que a dança surja e se desenvolva num certo contexto. A cada novo
contexto a dança cobra um novo sentido de acordo com as adaptações às condições
particulares.
Propomo-nos, então, traduzir entre diferentes contextos onde ocorre esta dança
mitológica dos orixás. Um deles é o contexto do universo mitológico dos orixás, na
passagem da África a Bahia, onde em condições da escravidão, o culto aos orixás era
a motivação para superar as experiências do desarraigo e as vivências mais inumanas.
Aqui, a dança era uma forma de comunicar-se com os ancestrais, com sua terra do
outro lado do oceano e também entre eles, já que nem todos compartilhavam o mesmo
dialeto. Como ilustra Verger:
... Disso resultou, no Novo Mundo, uma multidão de cativos que não
falava a mesma língua, possuindo hábitos de vida diferentes e religiões
distintas. Em comum, não tinham senão a infelicidade de
estarem, todos eles, reduzidos à escravidão, longe das suas terras de
origem. (VERGER, 2003, p. 22)
No contexto, aqui analisado, da dança como expressão artística contemporânea,
de corpos colonizados pelos valores ocidentais e capitalistas, privados de escolherem
outras formas de viverem e se relacionarem com o mundo, além do mundo capitalista,
a dança cobra um sentido singular em cada pessoa, de acordo com as possibilidades
interativas entre o corpo, o ambiente e as características selecionadas desta dança.
Esta relação corpo-ambiente-orixás vai ser atravessada pela idéia de umwelt
(UEXKULL, 1992), traduzida como “mundo à volta”, “mundo entorno”, ou “mundo
particular”. O “umwelt seleciona e filtra informações provindas do ambiente e as
http://portalanda.org.br/index.php/anais 7
ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA
Comitê Memória e Devires em Linguagens de Dança – Julho/2012
http://portalanda.org.br/index.php/anais 8
ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA
Comitê Memória e Devires em Linguagens de Dança – Julho/2012
“O tempo do mito é o tempo das origens, e parece existir um tempo vazio entre o fato
contado pelo mito e o tempo do narrador.” (Idem, p. 7)
Pela mesma via, o saber popular das cosmovisões africanas transmitida pela
oralidade, foi perdendo importância sob a forma de ignorante ou inculta, ficando
legitimado somente o que os cientistas e intelectuais europeus conseguiram escrever
nos seus livros. Porém, muitas informações tiverem continuidade através da mitologia,
dos cânticos e das danças.
Para este estudo, as tradutoras são as professoras Isa Soares e Tânia Bispo,
como já apresentamos. Bispo desenvolve o seu trabalho em Salvador/ BA, a partir do
contato com a simbologia ritualística dos orixás e sua relação com o elemento da
natureza correspondente, energias, características, arquétipos e leituras simbólicas dos
fundamentos ligados ao orixá. O trabalho busca explorar a criação de sequências
individuais e composições coletivas em relação com o “mito pessoal” e retratos das
memórias ancestrais. Bispo conta que a pesquisa começou com ela mesma, quando
http://portalanda.org.br/index.php/anais 9
ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA
Comitê Memória e Devires em Linguagens de Dança – Julho/2012
3
A Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, uma das pioneiras em Brasil, vem formando
professionais desde a década de 50, trabalhando também na capacitação de estudantes para ampliar o
seu repertório intelectual, social e cultural.
http://portalanda.org.br/index.php/anais 10
ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA
Comitê Memória e Devires em Linguagens de Dança – Julho/2012
http://portalanda.org.br/index.php/anais 11
ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA
Comitê Memória e Devires em Linguagens de Dança – Julho/2012
http://portalanda.org.br/index.php/anais 12
ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA
Comitê Memória e Devires em Linguagens de Dança – Julho/2012
Referências
ABNT: Associação Brasileira de Normas técnicas. NBR 14724, Rio de Janeiro 2011.
http://portalanda.org.br/index.php/anais 13