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Motivo, Tema e Forma na Ursonate de Kurt Schwitters


Flora Ferreira Holderbaum
florafh@hotmail.com

RESUMO: A proposta deste artigo é a analise do poema sonoro URSONATE (1921-1932), de Kurt Schwitters.
Utilizando o poema fonético “fmsbw” (1920) de Raoul Hausmann, Schwitters desenvolveu seu conteúdo fonético até
chegar em um texto sonoro regido sob uma forma musical estrita: a sonata. Na análise, o foco recairá sobre como o
poema sonoro foi construído, através da comparação de motivos-silábicos formadores dos temas e da estruturação do
poema sonoro formalmente, dando ênfase no primeiro movimento. O paralelo aqui é feito com algumas idéias de
Arnold Schöenberg (1984, 1993) sobre motivo, tema, forma, variação progressiva, formas-motivo, idéia básica
(Grundgestalt), forma sonata e rondó-sonata. Estes dois últimos elementos também serão debatidos através de algumas
definições de James Hepokoski e Warren Darcy (2006).

PALAVRAS-CHAVE: Ursonate, Poesia Sonora, Análise Musical, Schöenberg, Hepokoski.

ABSTRACT: This paper analyzes the sound poem URSONATE (1921-1932), by Kurt Schwitters. Using the phonetic
poem "fmsbw" (1929) by Raul Hausmann, Schwitters developed its phonetic content until achievement of a sound text
that follows a strict formal idea: the sonata form. In this analysis, the focus will be on how the sound poem was
constructed, by comparing the syllabic-motifs that generate the themes and the formal structure of the sound poem, with
emphasis on the first movement. The parallel traced here is established with a few ideas of Arnold Schöenberg (1984,
1993) such as motive, theme, form, developing variation, motive-forms, the basic idea (Grundgestalt), sonata form and
rondo-sonata. The last two elements will also be discussed through some definitions of James Hepokoski and Warren
Darcy (2006).

KEY-WORDS: Ursonate, Sound Poetry, Musical Analysis, Schöenberg, Hepokoski.

Introdução:

A proposta deste artigo1 é a analise do poema sonoro URSONATE2 (1921-1932), de Kurt

Schwitters, em paralelo com algumas idéias de Schöenberg, como motivo, tema, forma, e de Darcy

& Hepokoski, como forma sonata, forma-rondó e rondó-sonata. Estes conceitos são utilizados a

partir dos livros Fundamentos da Composição Musical (1993) e Sytle and Idea (1984) de

Schöenberg e também em Elements of Sonata Theory (2006), de Hepokoski e Darcy, e serão

expostos logo antes da análise3. Antes disso, farei uma contextualização da obra no âmbito da

1
O artigo O Uso do Som-Palavra na Ursonate de Kurt Schwitters (Quaranta 2007) é uma referência importante na
construção deste trabalho.
2
A audição das versões de Michael Schmid, Jaap Blonk e do próprio Schwitters foi o ponto de partida do processo
analítico. Disponível nos endereços: http://www.youtube.com/watch?v=PXtDkAnJx7o&feature=related,
http://www.youtube.com/watch?v=rs0yapSIRmM&feature=related e http://www.ubu.com/sound/schwitters.html,
respectivamente.
3
Este artigo é o resultado do trabalho final para a disciplina de mestrado "Análise na Teoria e na Prática", ministrada
pelo Prof. Dr. Norton Dudeque, dentro do curso de Mestrado em Música -Teoria Estética e Criação, pertencente ao
Programa de Pós Graduação em Música da UFPR- PPGMUS, no primeiro semestre de 2012.
2
poesia sonora, descreverei os temas e símbolos utilizados no poema-partitura e tratarei do

documento explicativo criado por Schwitters para a execução da peça.

Poesia Sonora

Utilizando o poema sonorista “fmsbw” (1920) de Raoul Hausmann, Schwitters4 desenvolveu

seu conteúdo fonético em motivos silábicos e temas, até chegar a um texto sonoro regido sob uma

forma musical estrita: a sonata. Dessa maneira, o compositor aplicou processos composicionais

musicais a um texto poético a-semântico, feito para ser oralizado e performado, inaugurando um

tipo de obra híbrida que transita as fronteiras entre a música e a poesia.

Lidar com os materiais sonoros da palavra articula um fazer artístico conectado a diversos

campos e saberes, como a literatura, a música e as artes visuais, mas principalmente entre a

literatura e a música. Nesse âmbito, a Poesia-sonora agencia a composição como um todo

fusionado, no qual o texto é articulado junto ao som, às palavras oralizadas e à presença da voz

através do corpo, pela performance.

Os poemas fonéticos podem desenvolver seu efeito especial apenas por meio do gesto
musical de expressão da voz - ou seja, no nível do som, do som mesmo, do tom, da cor, da
entonação, da velocidade da fala-. Não são uma mescla híbrida de fala e música, são tanto
fala como música ou música falada (sprachmusik) (Scholz 2004, 39).

A procura de um som da poesia - sua ligação com a música, o caráter visual das letras, a

performance e o gesto - expressa uma tendência do campo das artes de levar a obra a desprender-se

de categorias disciplinares, temas, técnicas e suportes. É uma proposta intensificada com as

vanguardas artísticas do início do século XX, como o Futurismo na Itália, com o Manifesto Paróle

in Libertá (1912), de Fillippo Tommaso Marinetti, o Cubo-Futurismo na Rússia, com a poesia

zaum5 ou trasmental de Vladimir Maiakóvski, Velimir Khlébnikov e Alexei Krutchenik, e o

Dadaísmo na França, Alemanha e Suíça, com Tristan Tzara, Raoul Hausmann, Hans Arp e Kurt
4
Schwitters foi poeta, prosador, dramaturgo, crítico, ensaísta, teórico, pintor, escultor, arquiteto, editor, publicitário e
agitador cultural. Precursor da colagem, criou quadros compostos de anúncios de jornal, poemas, peças de lixo, pedaços
de madeira, entre outras coisas. Para designar a gama variada de técnicas que ele mesmo aplicava, utilizou a palavra
MERZ , nomeando com ela todo tipo de trabalho que produzia. O nome Merz, sem significado, foi tirado de um quadro
seu, uma colagem na qual a palavra Merz aparecia ao acaso, num recorte de um anúncio do Banco do Comércio - Kom-
merzbank. (MACCHI, Fabiana, in: Kurt Schwitters, o dadaista que era Merz. Com o tempo, Schwitters passou a dizer
que ele próprio havia se tornado MERZ.
5
"A teoria transmental baseia-se na abolição da sintaxe em associação com a recuperação da dimensão fônica do
poema, onde a desordem e a ausência de significados devem conduzir a um estado psicológico que prepare o advento de
uma língua virgem." (Menezes 1997, 120)
3
Schwitters. O termo poesia sonora foi criado por Henri Chopin, nos anos 50, para designar suas

experimentações com voz e sons eletronicamente manipulados, em parceria com os músicos que

compunham música concreta ou eletrônica nos laboratórios de experimentação musical em rádios

européias. (Camacho 2004, xiii).

Os Temas e o poema-partitura

A Ursonate6 baseia-se no poema-cartaz "fmsbw" (Fig. 1), de Raoul Hausmann. Segundo

Schwitters (1927), ele era originalmente uma prova de impressão para testes de tipos. Hausmann

desenvolveu sua pronúncia em Fümms bö wö tää zäa uu pögiFF müü. Schwitters se apropria dela

e a altera ao fim para Fümms bö wö tää zää uu pögiFF Kwie. Este será o tema principal, gerador

da obra, ou motivos silábico-sonoros primordiais.

Figura 1

O poema-partitura é construído com a utilização de uma notação híbrida, entre texto verbal

e texto musical. É um poema sonoro em forma sonata composto de quatro movimentos: um Rondó,

com quatro temas principais (Fig. 2), um Largo, um Scherzo e Trio e um quarto movimento

Presto, com uma Cadência ad libitum e Coda.

Figura 2 - Os quatro temas principais

A partitura é repleta de indicações, tais como: 1) nome dos movimentos (Rondó, Largo,

etc); 2) o caráter de cada movimento (através de um cabeçalho que explica ao performer como

interpretá-lo); 3) as divisões dos movimentos em seções (através de linhas grossas ou tracejadas); e

6
Schwitters publicou a versão definitiva da Ursonate em 1932, na revista Merz, de sua própria editoração.
4
4) numa coluna vertical, à direita na página, o número do tema que está sendo executado (Tema 1,

2, 3, 4 etc.), ou o que chamarei de temas variados (através da adição das letras 'a' e 'ü', como por

exemplo em 3a ou ü1). Num documento explicativo sobre a obra, uma espécie de bula, com o título

Meine Sonate in Urlauten (1927)7, Schwitters oferece instruções de como ler a partitura, a origem

de alguns fonemas a partir dos quais compôs os temas principais, esclarece as dinâmicas sugeridas a

partir das diferentes cores e grossuras das letras (vermelhas e grossas são ff, finas e pretas, são pp), e

a duração possível das sílabas e fonemas (ex.: vogais grafadas juntas - aa, têm som contínuo;

quando separadas por espaço - a a; devem ser articuladas em sons destacados).

Os temas variados

Na notação da coluna à direita na partitura constam as adições ''a" e "ü" aos números dos

temas. O adendo "a" parece indicar uma variação, redução e transposição de um motivo de outro

tema, como no Tema 3a (Fig.3), que seria a variação dos motivos Rinnzekete bee bee, do Tema 3,

para rakete bee bee, formando este novo tema a partir daquele. O adendo 'ü' indicaria

retrogradação (no caso, do Tema ü1-Fig. 5), mas também parece indicar redução e repetição

(multiplicação). Isso acontece no Tema ü3 -Ziiuu ennzee ziiuu nnzkrmüü, (Fig. 4), que utiliza a

segunda metade do Tema 3, repetindo-a.

Figura 3, 4 e 5

Há ainda os adendos misturados ü +a, como no Tema ü3a (Fig. 4). Este, seria uma

repetição do Tema 3a -rakete bee bee, com transposição do último motivo para rakete bee zee

(Fig.4). Schwitters também indica o tema fusionado "ü3 + 3a" (Figs. 5 e 6), que é formado pela

condensação das formas-motivo do Tema 3 "Rinnzekete", com as do Tema variado 3a- "rakete".

Além de fusionado, ü3+3a é repetido (multiplicado) sucessivamente 6 vezes (Fig. 6). Este tema

7
Publicada pela primeira vez na Revista Merz, no dia 11 de novembro de 1927. Disponível em:
http://www.merzmail.net/ivan2ursonate.htm
5
recorre ao longo das primeiras páginas entre as aparições do Tema 1, e assim parece fazer o papel

de um elemento distanciador entre as partes, ou o que Schöenberg chama de episódio de transição;

por isso, irei chamá-lo Tema de Transição, ou Tema-Tr (ü3 + 3a).

Partindo da descrição da obra feita acima, farei a seguir uma relação dos seus aspectos com

os conceitos de idéia básica, motivo, formas-motivos, variação progressiva e forma, descritos mais

detalhadamente a seguir.

Motivo e Tema gerando Forma na Ursonate

Para Schöenberg, o motivo é o "germe" ou "idéia básica" de uma peça musical, e contém os

elementos primordiais de todas as figuras musicais subseqüentes. Pela repetição e variação, ele é

desenvolvido em formas-motivo, num processo denominado variação progressiva da idéia básica,

gerando agrupamentos maiores, ou os chamados temas, tais como frases, períodos, sentenças ou

híbridos, que apresentem unidade e variedade em pequena escala. Estes temas por sua vez, ganham

lógica e coerência em estruturas maiores como partes ou seções, e estas últimas articulam pequenas

e grandes formas, como o pequeno ternário, o rondó, a forma- sonata, entre outros. O processo

ocorre por repetição, que precisa ser variada para evitar monotonia, e envolve basicamente 3 tipos:

repetição literal, modificada ou desenvolvida (Schöenberg 1993, 37).

Ao longo do poema-sonata, acontecem variações silábico-motívicas das três maneiras dadas

por Schöenberg. Esses processos são estruturados através de procedimentos como adição,

subtração, multiplicação, fragmentação, variação por condensação e redução. Este último também

ocorre em sua forma extrema, num processo similar ao que Schöenberg chama de liquidação, usado

com função de fechamento, antecipação ou transição dos temas principais.

Após a apresentação dos Temas 1, 2, 3, 4 e Temas Variados, ocorre a aparição do

retrógrado ü1 (Fig.5), seguido pelo Tema de Transição ü3+3a (Fig.6). Depois disso, percebemos

que o Tema 1 é retomado pela chamada de um fragmento variado: fö (Fig. 7), antecipado por bö

(Fig. 6). O motivo fö seria o resultado da modificação por fusão ou condensação dos motivos do

Tema 1: füms + bö=fö (Quaranta 2007, 6). Este episódio é então desenvolvido no que podemos
6
chamar de formas-motivo a duas vozes, indicadas pelo espaçamento e pela alternância dos motivos-

silábicos (Figs.7 e 8).

Figura 6, 7 e 8 - Tema 'Tr' para Tema 1

É importante ressaltar a relevância do Tema Tr: a seqüência Tema 1 + Tema Tr se

configura como uma dupla ou copla, e é repetida quatro vezes na exposição, gerando o padrão (ü1-

Tr)+(1-Tr)+(1-Tr)+(1'-Tr'). A primeira é uma apresentação do tema retrógrado, a terceira vez

repete exatamente a segunda, e na quarta ocorre um desenvolvimento mais extenso, por isso vamos

chamá-la de 1'. O desenvolvimento do Tema 1' vai prolongar-se na construção de cada forma-

motivo adicionada e repetida seis (6) vezes, até alcançar o tema completo ao final da seção. O

Tema 1' é dissolvido ao final em Tema Tr' (diferente do ü3+3a padrão), caracterizando uma

transição ao Tema 2. Essa transição se evidencia pela liquidação de 1' através da repetição

(multiplicação) do motivo que o encerra: "kwiee" (Fig. 9). Notamos que após esta seção construída

sobre o Tema 1, ocorre o desenvolvimento do primeiro tema subordinado, o Tema 2 (Fig. 10),

iniciando uma seção de temas secundários:

Figura 9 - Liquidação do Tema 1 Figura 10- Liquidação Tema 1e Tema 2

A partir deste ponto do Rondó, serão apresentados os outros temas subordinados 3 e 4 (cada

um deles desenvolvido por adição, multiplicação, redução, condensação) num processo de

condução até a re-exposição do Tema 1'', na página 7. Todavia, diferentemente do que ocorre entre

a apresentação do Tema 1 e sua 'copla de transição' (Tr ü3+3a), os Temas 2, 3 e 4 serão

acompanhados pelo que nomeei de Grupo Temático ou GT (Fig. 11), que substitui o Tr ü3a + 3a
7
na preparação ou transição dos temas. O GT é justamente a apresentação de todos os quatro temas

agrupados, formando um episódio diferenciado.

Figura 11 - Fim do desenvolvimento do tema 2 e GT

O Tema 4 apresenta variação do motivo "Rrummpf", por diminuição, repetição e adição

com os temas ü3 e ü3a (Fig.12), além de mostrar um ganho de energia considerável, numa espécie

de preparação para o retorno de Tema1; porém, antes de efetivar a reexposição, há uma recorrência

do GT e repetição do Tema 4, com intensificação dinâmica, no que nomeei de 4'.

Figura 12-Tema 4 e GT

De caráter contrastante e acentuado, o Tema 4' (Fig.13) atinge o ápice da obra com a

indicação "gritando", também presente no Tema 4, mas aqui de forma mais acentuada pelo

contexto dinâmico: o caráter ruidoso do motivo "Rrrrrrr" agora é indicado em maiúsculo-

"RrRrRrRrRr". 8O Tema 4' anuncia a re-exposição de 1''; ele reafirma todos as variações

motívicas do Tema 4, mas não recorre ao GT no seu final, e sim ao tema Tr ü3+3a, revelando

outra seção de transição ou, como poderíamos chamar, de retransição, que seria "o retorno do tema

secundário ao tema principal nos rondós (...)". (Schöenberg 1993, 219). Deste modo, teremos o

seguinte esquema de temas secundários e GT's, até a reexposição: (2GT-3GT-4GT-4'Tr--

1'').Verificamos nesta seção uma estrutura semelhante ao que ocorre nos Rondós em cinco partes,

tipo AB-AC-AD-D'--A'.

8
Segundo Schwitters, as letras maiúsculas devem lidas mais fortes que as minúsculas.
8

Figura 13-Retransição = Tema 4' + Tr (ü3+3a) para Tema 1''

Verificou-se também que a reexposição do Tema 1'' é a condensação das idéias de

desenvolvimento do Tema 1, ou seja, da primeira e segunda aparições dele (pág.2) com a terceira

(pág.3). Terminando a reexposição, acontece outra liquidação do Tema 1'' (Fig. 14), que agora leva

ao GT e logo para o Tema 1 retrógrado (ü1); este último aparece mais desenvolvido do que quando

apresentado no início da exposição, caracterizando outra seção de transição para a o final (Coda),

ou mesmo uma nova retransição, pois há material do Tema 1 no tema retrógrado ü1. O final

apresenta material do primeiro tema e também material inédito.

Figura 14 = Liquidação de 1''-GT-ü1 e final

Resumindo o percurso, temos o desenvolvimento e apresentação de cada tema e sua 'copla'

de transição: Tema de Transição (Tr) para repetições do Tema 1 e um Grupo Temático (GT)

entre os temas secundários 2-3-4 e 4'. A re-exposição do Tema 1'' acontece depois do Tema 4',

com retransição (RT) realizada pelo Tema Tr -ü3+ü3a. A seguir, temos: Reexposição do Tema

1'' + transição Tr' (kwiiee liquidado) + GT + ü1 desenvolvidos em retransição (RT) para Coda

(Cf. partitura).
9
Forma do primeiro movimento da Ursonate : Rondó versus Rondó-Sonata

Segundo Hepokoski e Darcy, a forma-sonata articula uma forma binária circular, com

1.exposição e 2.desenvolvimento e recapitulação, numa forma A\\BA'. (Darcy e Hepokoski 2006,

17, tradução nossa). Já as formas rondó "são caracterizadas pela repetição de um ou mais temas

contrastantes". (Schöenberg 1993, 227). Diferentemente do Rondeau, o "Rondó é marcado por

elaborações retransitivas (RT), com episódio finalizando em uma preparação dominante que

estabelece a reexposição do refrão na tônica, sinalizando ao ouvinte algo como: veja, lá vem de

novo!" (Hepokoski, op. cit., 398).

Evidenciamos as características de Rondó do primeiro movimento da Ursonate: quatro

temas contrastantes, a estruturação de suas coplas e uma retransição para o tema principal. Todavia,

podemos perceber também uma semelhança com a forma allegro de sonata9, que articula uma

forma binária circular desenvolvida: há uma seção delineada em torno do Tema 1, uma segunda

seção com os temas secundários e uma nítica recapitulação com uma seção de fechamento. O

Rondó da Ursonate revela então um tipo especial, chamado de Rondó-Sonata, que realiza uma

mistura entre a "forma ternária sucessiva, ABACADA, com uma forma binária desenvolvida,

ABACAB'A." (Bent 1987, 88). Hepokoski e Darcy nos dão as ferramentas para identificar o

Rondó-Sonata, por eles designado como Sonata Tipo 4:

Uma peça ou movimento não deveria ser classificada como um rondó-sonata (em grande
escala), ou Sonata Tipo 4, a não ser que sua primeira rotação seja estruturada como a
exposição de uma sonata (P TR ’ S / C), e uma rotação posterior recapitule esse padrão
exposicional (a norma estrita) ou recomponha o padrão no que ainda possa ser
razoavelmente (e com flexibilidade) considerado um espaço recapitulatório (2006 p. 404).

Seguindo este modelo, haveria uma seção exposicional construída através da recorrência do

Tema 1+ coplas (seção P), e uma transição do Tema 1' ao Tema 2 realizada pelo Tema Tr'

dissolvido em uma liquidação, o que marcaria uma cesura medial (MC) levando ao

desenvolvimento dos temas subordinados 2, 3, 4 e 4'. Esta seção secundária (S) passa pelo Tema

9
De acordo com Darcy e Hepokoski, a exposição em duas partes revelaria uma Cesura Medial (MC=Medial Caesura)
que separa a 1a da 2a parte. A 1a Parte é construída em torno do Tema Primário e estabelece a tônica, direcionando
energeticamente para a MC e à transição (TR). A 2a Parte é o Tema Secundário (S) + Fechamento Estrutural Essencial
(ESC=Essential Structural Closure) + Zona de Fechamento (C=Closure) e afirmação cadencial na nova tonalidade.
Este seria o padrão do conhecido allegro de sonata, comumente usado em primeiros movimentos em Sinfonias,
Concertos ou Sonatas para instrumento solo (Darcy e Hepokoski 2006, 17).
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4, que é repetido com contraste em 4', o qual chega no ápice do movimento e conduz por

retransição (RT=Tema "Tr ü3+3a") para a reexposição (Tema 1''). O Tema 1'' é desenvolvido

de forma mais extensa, liquida novamente em Tr' (kwiiee) - como na primeira aparição da

exposição - e realiza retransição (RT) para a Coda através do GT e do ü1 desenvolvido (Coda com

material do Tema 1 mais material novo). Esta seção de recapitulação de 1'' até o final seria o

padrão exposicional recomposto numa nova rotação, embora de forma reduzida. Entre o fim do

Tema 1'' até final (Coda), podemos delinear algo similar a um Fechamento Essencial Estrutural

(ESC = \ , supostamente entre GT e ü1 desenvolvido) e à Seção de Fechamento (C).

Temos assim, o seguinte esquema formal, que indica tanto a opção Rondo quanto a opção

Rondó-Sonata:

Conclusão:

Schwitters anuncia uma obra paradigmática e contestadora quanto aos fundamentos

ocidentais da linguagem e da composição musical. O autor-compositor parece fazer uma paródia da

forma (rondó, sonata) e do significado linguístico, gerando um jogo entre significado (conteúdo,

notas, motivos, sílabas) e formalidade (continente-forma). Talvez essa irreverência indique uma

reflexão profunda quanto à necessidade de estruturação a partir de uma idéia lógica: uma

contestação do logocentrismo ocidental e do formalismo como produto da racionalidade. Sob a

ótica analítica de Schöenberg e Hepokoski, a tarefa formal de Schwitters revela um paradoxo ainda

mais nítido, a partir do momento que constatamos que sua idéia básica é esvaziada de significado e

tonalidade precisa ou harmonia intrínseca, elementos próprios ao conceito de "forma". Se

Schwitters utiliza da forma, não é para estabelecer uma compreensibilidade, mas para contestá-la

através da idéia básica. A análise da Ursonate com as ferramentas clássicas de Schöenberg pode
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apoiar-se também no uso da palavra "UR" (primordial) no título, sugerindo uma idéia organicista

para a composição, relacionada à Urpflanz de Goethe - uma espécie de holismo gerativo. Essa

relação sinalizaria um possível cruzamento da idéia básica (Grundgestalt) de Schöenberg com os

'sons primordiais' geradores de forma, na Ursonata. Por fim, o próprio uso do termo sonata, para

designar um poema sonoro, convida à uma análise musical da forma que Schwitters estruturou, ao

desenvolver motívos-silábicos como sons primordiais num todo organicista: uma coalisão paradoxal

entre música e poesia, entre conteúdo a-semântico literário e forma musical organizada.

Referências:

Bent, Ian e William Drabkin. 1987. Analysis; The New Grove Handbooks in Music. NY: W.W.
Norton & Company.

Camacho, Lidia. 2004. Prólogo para Homo Sonorus; Una antologia internacional de Poesia Sonora,
curado por BULATOV, Dimitry, x-xv. México: Ríos e Raíces.

Caplin, William E. 1998. Classical Form; A Theory of Formal Functions for the Instrumental Music
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Scholz, Christian. 2004. "Una revisión história de la poesia sonora alemana". In Homo Sonorus;
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Ríos e Raíces.

Hepokoski, James e Warren Darcy. 2006. Elements of Sonata Theory; Norms, Types and
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Quaranta, Daniel. 2007. “Poema sonoro/música poética; entre a música e a poesia sonora: uma arte
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Réti, Rudolph Richard. 1978. The Tematic Process in Music. Conecticut: Greenwood Press,
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Schöenberg, Arnold. 1993. Fundamentos da Composição Musical. Organizado por Gerald Strang,
colaboração de Leonard Stein, tradução de Eduardo Seincman. São Paulo: EDUSP.

____________________. “Brahms the Progressive (1947)”. 1984. In: Style and Idea, Schöenberg,
Arnold, 398-441. California: University of California Press.

Sites:
http://www.sibila.com.br/index.php/poemas/475-kurt-schwitters-o-dadaista-que-era-merz
http://www.merzmail.net/ivan2ursonate.htm

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