Você está na página 1de 6

Vebot~s Contemporâneos

Lukács, Gramsci e a crítica


ao "Ensaio popular" de Bukharin
Alvaro Bianchi•

Na crítica aos efeitos desastrosos do stalinismo sobre o movimento operário terialismo histórico e materialismo dia-
internacional, em geral, e sobre o marxismo, e m particular, é comum a lético, de Josef Stàlin, e a utilização de
referência ao ·•marxismo da Terceira Internacional". Em certa medida, essa decretos governamentais no debate fi.
losófico. Vale lembrar que, em 1931,
generalizaçao é o produto de uma extensão apressada do chamado "marxismo
um decreto estatal identificou o mate-
da Segunda Internacional" a um universo consideravelmente diferente.
rialismo dialético ao marxismo-leninis-
Tal generalização tem como resul- "bolcheviques" ou "internacionalistas", mo, colocando um fim à polêmica que
tado a subestimação da diversidade o grupo de ex-prisioneiros de guerra erwolvia Oeborin e Bukhárin, entre ou-
constitutiva da Terceira Internacional e na Rússia, formado, entre outros, por tros (Marcuse, 1984, p. 148-149).
dos grandes debates que, no seu inte· Béla Kun e Rudyansky, havia a corren- A comparaçao nao é desproposita-
rior, se processavam. Seu resultado te influenciada por Erwin Szabo, de da. Quando da publicação do Ensaio
nào é, senao, reduzir a importância da inspiração anarco-sindicalista e um popular (1921), Nicolai Bukharin era
ruprura que representou para a vida curioso grupo de "engenheiros socia- destacado dirigente do Partido Comu-
interna da Internacional a consolida· listas·•, liderado por Gyula Havesi "cuja nista Russo e da Internacional, aquele
ção da direção stalinista e a burocrati- ideologia era uma anOmala mistura de que lênin considerou, em seu testa·
zação dos partidos comunistas. positivismo tecnocrático e sindicalismo mento, ·•o teórico mais valioso e desta-
A contribuição de Aldo Agosti ao revolucionário" (Agosti, 1988: 52). cado do partido (...) considerado,
estudo desse tema é extremamente As diferentes reaçOes provocadas me.ecidamente, o preferido do parti-
importante. Em seu ensaio publicado pela obra de Nicolai Bukharin, Teoria do". Quando da publicação de seu
na cole~nea Historio da marxismo, do materialismo histórico. Ensaio po- Materialismo histórico e materialismo
organizada por Eric Hobsbawn, Agosti pular de sociologia marxista, ilustra, dialético, como parte de uma obra
sublinha a diversidade dos partidos de maneira muito nítida, essa diversi- chamada História do Partido comunis-
que participam do chamado â consti · dade política e trorica constitutiva da ta russo (bolchevique), em 1938, Stá·
tuição da Internacional Comunista, Internacional Comunista. Também ser- lin ocupava as posições chaves no par-
bem como os diferentes grupos que ve como baliza para avaliar os resulta· tido e na Internacional. Entre os dois
existiam no interior de cada partido. dos do processo de burocratização acontecimentos, entretanto, estavam
Um dos casos mais interessantes é o comparar as vivas polêmicas que se os expurgos e os processos que ha-
do Partido Comunista Húngaro, um seguiram à publicaçao do Ensaio popu- viam silenciado e assassinado toda a
dos signatários da carta de convocaçao lar, ao silêncio que sucedeu, no interior oposiçao.
ao 1° Congresso. Além dos chamados da Internacional, à publicação de Ma· Georg Lukâcs e Antonio Gramsci

~--
Debates Contemporâneos

triunfou na descrição conjunta de to-


dos os problemas importantes do
marxismo, dentro de um compêndio
unificado e sistemático que é mais
ou menos marxista, e, além do mais,
que a apresentação é. em geral, clara
e de Mcil compreens.lo, de modo
que o livro cumpre admiravelmente
com seu propósito enquanto ma-
nual" (Lukács. 1974: 41).
E muito embora os métodos usa-
dos por Bukhárin e os resultados por
ele atingidos precisem ser criticados.
essa crh.ica deve levar em conta de que
se trata de um manual popular e. por-
tanto, ela deve ser indulgente com o
autor. Indulgente ou não lukács marca
claramente suas diferenças. O Ensaio
popular obscurece mu~as relações, ao
invés de explicá las e acaba por pro-
mover simplificações abusivas, como
quando estabelece um paralelo rigoro-
so entre a hierarquia de poder e a es·
trutura de produção, afirmando que "a
estrutura do aparelho de estado reflete
a da economia - p. ex. as mesmas clas-
ses ocupam as mesmas posições em
forneceram as duas criticas mais co- Lukács: crítica ambas• (Apud lukács, 1974. p. 42).'
nheddas à obra de Bukharin e é sobre à falsa objetJvldade Mas, para além de problemas pon·
elas que iremos nos debruçar. Uma re- Repassemos brevemente o traba- tuais como este aqu1 apontado, a crfti.
senha da resposta dos comunistas ale- lho de Lukács publicado originalmente ca de lukács levanta algumas restri-
maes ao Ensaio popular e a compara- em 1923.' O marxista húngaro inicia ções metodológicas fundamentais ao
ç~o destas com a desenvolvida por An- seu ensaio ressaltando os méritos da texto de Bukhárin e erros que este te-
tonio Gramsci, nos Cadernos do cárce- tentativa levada a cabo por Bukhárin. ria cometido, principalmente no capí·
re, pode ser encontrada em um artigo Para lukács, o Ensaio popular preen- rulo filosófico introdutório. Nele, Bukhá-
de Aldo Zanardo. O artigo de Zanardo chia uma lacuna aberta desde o Anri- rin teria se situado perigosamente pró·
tem a vantagem sobre outros comen- DlJhring, por parte de Engels, e não ximo àquilo que Marx denominou "ma-
tadores de manejar um bibliografia preenchida pelo marxismo até então: terialismo burguês", "rejeitando todos
mais ampla, resenhando não só as in- a publicaç3o de um compêndio siste- os elementos do método marxista que
tervençOes de Gyorgy Lukács e de mático de materialismo histórico redi- derivam da filosófica clássica alemã"
Gramsci, mas também outras como a gido por um marxista. Ao identificar (Lukács, 1974: 43). Essa aproximação
de Fogarasi, publicada no número de essa laruna, procede como Fogarasi ao materialismo naturaf.cientificista
19 de fevereiro de 1922, do jornal Die que, um ano antes, ao criticar o Ensaio obsrureoe o caráter especifico do mar-
rote Fohne. e de Kurt Sauerland. em popular, lamentava que os trabalhos xismo, para o qual ·~odos os fenôme-
Die lntemationale, de fevereiro de similares levados a cabo por Plekha- nos econômicos ou 'sociológicos' deri-
1931 . Comparando exclusivamente as nov e Gorter estivessem envelhecidos.' vam das relações sociais entre os ho-
respostas de Lukács e de Gramsci, está O jufzo que lukács faz do conjunto mens. A 'ênfase' conferida a uma falsa
a obra de Christinne Buci-Giuksmann, da obra é pos~ivo: ·objetividade· na teoria conduz ao feti-
Cromsci e o Estado. "É importante dizer que Bukhárin chismo•· (Idem, p. 44).

()I .'of',:t XII, '\J> ..1). 111n~o :ie 2003 · I e3


I Debates Contemporâneos

lukács esclarece o problema dessa


falsa "objetividade'', ao analisar o A fetichização da técnica e o eliminação das mediações, na relação
papel determinante que Bukhárin atri-
entre base e superestrutura, são a consequêncía substantiva
bui à tecnologia. Para o marxista russo,
a técnica é a ''determinante básica" da transformação do marxismo em uma sociologia geral.
das "forças produtivas da sociedade" e
a sociedade depende, "em última ins- dependentes; seu dominio é o pro- kilcs, Ben Brewster afirma que a im-
tancia", de seu desenvolvimento: ''ca- cesso histórico como um todo, cu- pressão de abstração provocada por
da sistema dado de técnica social de- jos momentos individuais, concre- História e conscil!nda de classe é dis-
termina, por sua vez. o sistema de rela- tos, irrepetlveis, revelam sua essên- sipada pela sua crítica a Bukhárin:
ções de trabalho entre os homens" cia dialética, precisamente nas dife- ''Lukács não se limita a fazer uma criti-
(Bukhilrin, 1974, p. 223). O determinis- renças qualitativas entre eles e a ca puramente filosófica, e sim examina
mo chega às raias do insólito quando contínua transformação de sua os pontos crfticos da interpretação
afirma que "a técnica da música de- estrutura objetiva. A totalidade é o marxista da história para demonstrar
pende, em primeiro lugar, da técnica território da dialética." (Lukács, quão pouco consistente é a obra de
da produção material'', o que o leva a 1974, p. 48.) Bukhárin" (Brevvster, 1974: 38). De
afirmar que ''a distribuição dos mem- O objetivo dessa sociologia de Bu- fato, Lukács mostra as inconsistências
bros de uma orquestra está determi- khárin é a previsão dos acontecimen- do Ensaio popular, mas o faz, ao con-
nada, da mesma forma que em uma tos sociais, da mesma maneira como trário do afirmado por Brevvster, privi-
fábrica, pelos instrumentos ou grupos são previsiveis os acontecimentos na legiando a critica metodológica. Ao in-
de instrumentos. Em outras palavras, natureza. Se não é possivel essa predi- vés de afastar-se do marco teórico de
sua disposição e organização está con- ção é porque ainda não estamos o su- sua obra de adesão ao marxismo, lu-
dicionada pela técnica musical, e atra- ficientemente informados sobre as leis kács preserva aqueles temas funda-
vés desta última se encontra ligada à do desenvolvimento social. De qual- mentais de seu ensaio O que é o mar-
própria base do desenvolvimento so- quer modo, embora não seja possivel xismo ortodoxo? A afirmação de que a
cial, à produção material" (Bukharin, antecipar a velocidade dos processos ortodoxia marxista refere-se exclusiva-
1974, p. 275). sociais, é posslvel prever a direção des- mente ao método e a totalidade con-
Ora, afirma Lukács, esta identifica- tes. Mas, adverte Lukács, nosso conhe- creta como a categoria fundamental
ção entre técnica e forças produtivas cimento das tendências não é o resul- da realidade:
nao é nem válida, nem marxista. A téc- tado da diferença entre o que eletiva- "Marxismo ortodoxo não signifi-
nica deve ser concebida não como a mente sabemos e do que seria neces- ca, pois, uma adesão sem crítica aos
força produtiva por excelência, como o sário saber, e, sim, o resultado da dife- resultados da pesquisa de Marx, não
fundamento auto-suficiente do desen- rença qualitativa e objetiva do próprio significa uma 'fé' numa ou noutra te-
volvimento, mas como um momento objeto. se, nem a exegese de um livro 'sagra·
do sistema de produção existente, cujo Os temas selecionados por Lukács, do'. A ortodoxia em matéria de mar-
desenvolvimento é explicado pelo em sua crítica, bem como a aborda- xismo refere-se pelo contrário, e ex-
desenvolvimento das forças sociais de gem destes deixam daro seu objetivo: clusivamente, ao método. Implica a
produção. contrapor-se a uma falsa objetividade convicção científica de que, com o
Feita essa ressalva metodológica, o que conduz c\ transformação das ciên- marxismo dialético, se encontrou o
marxista húngaro aborda a principal cias naturais c\ ciência por antonomá- método de investigação justo, de que
conseqüência dessa falsa objetividade, sia, criando, na análise dos processos este método só pode ser desenvolvi-
na obra de Bukhárin: sua concepção sociais, uma falsa objetividade assen- do, aperfeiçoado, aprofundado no
do marxismo como "sociologia geral". tada na reificação de relações sociais. sentido dos seus fundadores; mas
Sua sociologia, impregnada pelo enfo- A fetichização da técnica e a elimina- que todas as tentativas para superar
que natural-cientificista, se desenvolve ção das mediações, na relação entre ou 'melhorar' levaram apenas à sua
como ciência independente com seus base e superestrutura, são a conse- vulgarização, a fazer dele um ecletis-
próprios objetivos substantivos. Mas quência substantiva da transformação mo - e tinha necessariamente que le-
"a dialética nao requer tais do marxismo em uma sociologia geral. var ai" (Lukács, 1989, p. t5).
acontecimentos substantivos e in- Em sua introdução ao texto de Lu-

194 UI-, /V"!O >'JII, ~~~ 30, !L "lhO de 2003 l iNIVt::RSIPADE E SOCI&lADE
Debates Contemporâneos

Gramsci: filosofia como política vilização". Os dois autores tratam de


Muitos desses temas tratados por problemas diferentes. Um ressalta as
• Lukács encontram-se na crítica desen- complicações metodológicas decor-
' volvida por Antonio Gramsci, no cérce- rentes da incorporação de teorias ex-
re. A critica à redução das forças pro- trlnsecas ao marxismo, o outro preocu-
dutivas aos instrumentos técnicos, que pa-se com os desdobramentos práti-
já se encontrava em Achille loria, é cos dessa incorporação. ''Correntes'',
provavelmente o caso mais evidente. "seguidores da filosofia da práxis" e
Retomando observações de Benedetto "organização prática" s~o palavras for-
Croce sobre loria e os "instrumentos tes, o resultado de sua utilização é
técnicos", Gramsci destaca que, no uma definição de ortodoxia forjada pa-
"Prefácio de I 859" à Contribuição à ra o combate ideológico. Ao contrário,
crftico do economia polltica, Marx utili- lismo natural-cientificista, como do a crítica levada a cabo por Lukács, a
za expressões tais como "grau de de- senso comum ao qual ele se associa. que Gramsci promove "ultrapassa uma
~envolvimento das forças materiais de Gramsci formula, assim, uma definição crítica intrafilosófica a Bukhárin, para
produção'', "modo de produção da vi- de ortodoxia diferente daquela de atingir a questão da hegemonia na
da material'', "condições econômicas lukács. O que define o marxismo orto- construção do socialismo" (Buci-Giu-
da produção", mas estas expressões doxo não é, para Gramsci, o seu grau ksmann, 1990, p. 271).
não pennitem reduzir as chamadas de pureza metodológica. A ortodoxia A noção de "combate ideológico"
condições materiais à simples meta- assenta-se num critério fundamental- encontrada já no Lênin de Que fazer?
morfose do ''instrumento técnico" (Q. mente prático: é esmiuçada e revalorizada por eram-
p. 1440-1441). "A ortodoxia não deve ser procu- sei nos Cadernos do cárcere.' Já em
Sim, o tema é o mesmo desenvol- rada neste ou naquele seguidor da 1925, em sua lntroduzione a/ primo
vido por Luk~cs, mas as abordagens e filosofia da práxis, nesta ou naquela corso del/a scuolo interno di portito, o
os objetivos dessa polêmica são dife- tendência vinculada a correntes dirigente comunista italiano afirmava:
rentes. A critica apresentada por estranhas a doutrina original, e sim "Sabemos que a luta do proletariado
Gramsd tem, também, um caráter no conceito fundamental de que a contra o capitalismo de desenvolve em
• metodológico. É, também, a critica ao filosofia da práxis basta a si mesma, três frentes: á econômica, a política e a
reducionismo, próprio da corrente re- contém todos os elementos funda- ideológica" (Gramsci, 1978, p. 52).
visionista que hegemonizou a Segun- mentais para cons-truir uma concep· Frentes estas que se reduzem a uma
da Internacional. E não é de se estra· ção de mundo total e integral, uma ónica através do partido da classe ope-
nhar que tanto o marxista húngaro, filosofia e teoria das ciências naturais, rária, que condensa, em sua atividade,
quanto o italiano, comparem as afir- e não somente isso. mas sim, tam- todas as exigências da luta geral.
mações de Bukhárin com aqueles que bém para vivificar uma organização Nilo seria correto, adverte Gramsci,
levaram ao extremo esse revisionismo, prática integral da sociedade, ou seja, exigir de um operário comum uma
Cunow e Loria, respectivamente. Mas a converter-se em uma total, integral consciência completa das funções que
'
preocupação central de Gramsci não civilização" (Q, p. 1434). sua classe é chamada a desenvolver
se reduz à perda de eficácia interpreta· As diferenças entre Lukács e no processo histórico. Antes da con-

tiva de uma concepção reducionista. Gramsci s3o sutis mas importantes. Lu- quista do estado, é impossível modifi-

Ela visa impedir que uma interpreta- kács fala que a ortodoxia não reside na car completamente a consciência de
ção reducionista conduza a assimila- fé em uma ·~ese, nem a exegese de toda a classe operária. Gramsci retoma

•'
ção de correntes estranhas ao marxis· um livro 'sagrado'". Gramsci, por sua aqui problem~tica já desenvolvida por
' mo, o que tem como conseqüência a vez, refere-se a correntes e indivíduos. Trotsky em Uteroturo e revolução : a
assimilação do marxismo por outras O húngaro abomina a transfonnação consciência só se modifica completa-
• correntes, ou seja, a subaltemização do marxismo em um "ecletismo"; j~ o mente no totalidade da classe quando
da filosofia da pr<lxis. sardo teme que o marxismo perca seu o proletariado se transfonnou em clas-
Para impedir essa subaltemização, poder de ''vivificar uma organização se dominante, controlando os apare·
é preciso demarcar a distancia que prática integral da sociedade, ou seja, lhos de produção e o poder estatal
separa o marxismo tanto do materia- converter-se em uma total, integral ci- (Idem, p. 54).' A exigência de uma

DF. Ar;~ :-:J,J. N~ :\0. 1unho dE! 2.:'.0~ · 1es


Debates Cantempotôneos

consciência completa pode, entretan· cia de uma nova consciência, pela uni- de menor resistência para estar em
to, ser exigida de um membro do par- dade entre teoria e prática: condições de atacar nos ponto mais
tido, operário ou nao. O partido pode ''A comprecnsllo critica de si mes- forte, com o máximo de forças dispo-
e deve representar essa consciência mo se produz, pois através de uma nlveis precisamente por ter eliminado
superior. Para isso, deve assimilar o luta de 'hegemonias' políticas, de d~ os auxiliares mais débeis'. Mas no
marxismo em sua forma atual. o leni· reçOes contrastantes, primeiro no fronte ideológico •·a detrota dos auxi-
nismo. camJ>O da ética, a seguir da política, liares e dos seguidores menores tem
Em toda sua critica a Bukhárin. para achegar a uma elaboraçao su- uma importAncia quase desprezível;
Gramsci desenvolve o tema da luta perior da própria conccpcAo do real. neste é necessário combater contra os
ideológica. É preciso libertar as massas A consciência de ser parte d~ uma mais eminentes''. Uma nova ciência, e
de suas antigas concepções de mun· determinada força hegemõnica (ou esse é o caso do marxismo, "alcança a
do. O homem ativo, diz o marxista ita· seja, a consciência polltica) é a pri- prova de sua eficiência e vitalidade fe-
liano, não tem uma clara consciência meira fase para uma uherior e pro- cunda quando demonstra saber afron-
teórica de seu agir e é possível, até gressiva autoconsciência na qual tar aos grandes campeões de tendên-
mesmo, que sua consciência esteja teoria e prática finalmente se unifi- cias opostas. quando resolve com seus
em contraste e oposiçao com sua cam" (Q. p. 1386}. próprios meios as questões vitais que
ação. É possível. de certa maneira, afir· A unidade entre teoria e prática, aqueles colocaram ou demonstra pe·
mar que possuem duas consciências, too alardeada e tão pouco compreen· remptoriamente que tais questões são
''uma implicita em seu agir que real· dida, é assim, para Gramsci, um devir falsos problemas" (Q. p. 1423).
mente a une a todos seus colaborado- histórico e não um fato mecânico de- Ao marxismo não é dado o direito
res na transformação pr~tica da reali· duzido da ação das massas. A insistên· de escolher os adversários no fronte
dade". Mas além desta, há outra •su· cia, no elemento "prático" deste todo ideológico. Eles são previamente defi-
perficialmente explícita ou verbal que unitário, "significa que se atravessa nidos. Da mesma forma, ao marxismo,
herdou do passado e acolhe sem criti· uma fase histórica relativamente primi· se quiser se converter em substrato de
ca" (Q. p. 1385}. tiva, uma fase ainda econOmico-wrpo- uma nova e integral civilização, deverá
Everbal no sentido de que é a que rativa, na qual se transforma quantita- se apresentar como superação do mo-
afirma com palavras e a que acredita tivamente o quadro geral da 'estrutura' do de pensar precedente e do pensa-
seguir, "porque a segue em 'tempos e a qualidade superestrutura adequa- mento concreto existente. Para isso, ao
normais', ou seja, quando a conduta da está em vias de surgir. mas ainda contrário de B~khárin, Gramsci afirma
não é independente e autônoma e. não esta organicamente formada'' (Q. que o marxismo deve se apresentar,
sim, precisamente submissa e subordi· p. 1386-1387}. ''acima de tudo, como critica ao senso
nada" (Q. p. 1379). Não se pense, en- Como, então, proceder nesse com- comum" (Q, p. 1383).
tretanto, alerta o marxista italiano, que plexo terreno da ''luta de hegemoni-
essa concepção verbal e superficial as''. O marxista italiano ressalta a espe· Conclusão
não influi no comportamento huma- cilicidade do combate ideológico. Na As criticas levadas a cabo por lu-
no. Ela o "amarra a um grupo social luta polftica e militar, pode ser conve- kâcs e Gramsci ao Manual de Bukharin
determinado, influi na conduta moral. niente ·•a tática de atacar nos pontos podem nos ajudar a evidenciar um
na orientação da vontade, de modo conjunto de fraturas que se estabele-
mais ou menos enérgico, que pode ceu no interior do próprio pensamen-
chegar até o ponto em que a contradi- to marxista. Em primeiro lugar, fratura
toriedade da consciência nAo permite entre filosofia, história e política. Fra-
nenhuma ação, nenhuma decisão, ne tura esta que se justifica com a autori-
nhuma escolha e produz um estado dade do lênin de As três fontes e os
de passividade moral e polltica" (Q. p. trés portes constitutivos do monâsmo.
1386}. Há, assim, uma tensão perma- Aquilo que, para lênin, era uma inves-
nente entre o agir e a consciência e a tigação das fontes históricas do marxis-
resoluç3o dessa situação só pode mo- a filosofia classica alemã, a econo-
ocorrer pela superação da consciência mia política inglesa e a prática e a ciên
vinculada ao passado e pela emergên· cia política francesas ·, entendido este
Debates Contemporâneos

como um coroamento e uma supera· bltrio que não só retira à teoria sua história e. ~m. na tP.Oria em geral da SClONia·
ção da dência das nações mais avança- possibilidade de afirmar-se como força de e das ll!is de 'ua evolucao. qurr dizer, na
das da época, transformou-se em um material, como c, de fato. uma sujei- soci<:>logia " (Bokh.l<in, 1974, p. 114.)
8... N.\o t verdade qt•e a filusofia da práxi.s
esquema defin~ivo. Assim, cada um t;Ao ã realidade presente; ou o praticis·
's.ttpara'" estrutUfll das ~•perestruturas quan-
desses movimentos, tomado isolada· mo, expressão de uma fase econõmi· do. pelo rontráuo, con<.tbe seu desenvnl~­
mente, é apresentado como antecipa· co-corporativa em que a possibilidade mento como intimamente vinculado e neces--
ção da filosofia, da economia c da poli· da passagem da estrutura às superes· S.1riame:nle inter.r~acion.ldo e ft'dpfoco'" (Q
tica marxistas (Q p. 1246 e 1448). truturas complexas é afastada, ou seja, p. noo).
Em segundo lugar, a fratura entre onde a condição de subalternidade po-
Referê ncias Bibliográfica s
materialismo histórico e materialismo lítica e intelectual é aceita (Q p. 1386- AGOSTI, Aldo. As w rrente.s constitutivas do
dialético que é possivel encontrar no 1387; 1580 e 1588). movimento comunista internaetona;l". In:
Ensaio popular de Nicolai Bukhárin, A superação dessas fraturas deve IIOBSBAWN, Eric. (org. }. Historio do marxis-

\ tentativa de divisão do marxismo e m


uma "sooologia" e em uma filosofia
se constituir no programa de pesquisa
de um intelectual coletivo socialista. O
mo. Rio de l.lneiro: Paz e T<tra. 1988, v. 6.
BREWST'ER, Ben. lntJoducción ai traboio de
Luckacs sob1e ef 'Manual' dE' Buiarin. In· BU~
sistemática.' Fratura que é levada ao estudo e o resgate da tradição teórica
KHARIN, Nkolai. Teoria dei materialismo hi<·
paroxismo em Materialismo dialérico e e política e m sua plena diversidade da
tórico. M~dri: Sigla XXI, 1974, pp. 37·40.
materialismo histórico, de Jose! Stálin Internacional Comunista, antes de seu 8UCI-Gt.UI(SMANN, Chnstinne. Gtoms<r • o
(1985). Nesse pequeno livreto de Stá· processo de stalinizat;Ao, pode forne- Estada. Rio de Janeiro: Paz c Terra. 1990.
lin, o materialismo histórico é apresen· cer a chave para tal, cola borando para IIUKHARIN, Nicol.li. Tcc110 de/ mat&ialismo
tado como uma cxtens3o do materia· a construção de uma teoria man<ista histQrico. l:nsoyo populor de sociologia mar·
lismo dialético ''ao estudo da vida so· adogmátíca e anti--dogmática. <8] Jdsta. Madoi: Sigfo XXI, 1974.
ENGUS, fíredrich. "Pto!âóo de 1874 • A
àal". O materialismo histórico torna·
gu<'rra C{)mponesu na Alemanha". In: MARX.
se, assim, uma colateral do sistema fi. Notas
Katl e ENGElS, firedrich. Obras escolhidos.
losófi<o do marxismo. A história é a 1. Em 19'\1, o grupo que anln\ilva a revista
SAo Paulo: Alfa-Omega. s.d ..
Dit• lntemationole, já se cnconttav~ fora dd In~
grande vftima dessa transformação, o GRM1SCI, Antonio. Quodemi del ca«cre
t•rn«ionol Comunista. Edizioni artü:o o cuw di VOitmtino Gerratana.
lugar da mera realizaç.'jo daquelas nor·
2. O texto original foi publicado em Archiv f. lUrim: {inoudi, 1CJ77.
mas atemporais codificadas nas "feis Gcschichte des SoLi<olismus u. der Arbeitetbe- GAAMSCI, 1\ntonio. lo costruziOnl! dei parti·
da dialética" e, de preferênda, transfor· weg.mg. XI: 1923. Ubf1zamos aqui a tradu~ao to mmonlsto. 192.S·1926. Turim: Einaudi, 1978.
madas em decretos governamentais. esp.nhola (Lukács, 1974).
LtNIN. V. I. Que I<Izer? Problemas conder>res
Em terceiro lugar, fratura entre es· 3. Codonnc Zanardo (1974, p. 12). de nosso movimento. Moscou: Progresso, 1981.
4. No texto de Bukhárin, a traduç.\o espanhu- LUKÁCS, Georg. Tecnologia y relaciones so-
trutura e superestrutura, o que tem le·
la dfoi.xou a friiSe incompt~~! •Aqui tum- ciales.ln: BUKHARIN, Nic.olai. Tcono del mate-
vado a considerar a segunda como um
b~m se pOde obsctvor que a estrutura do tloli.<>mo historico. Madri: Siglo XXI, 1974. pp.
mero reflexo da primeira ou a tornar oporolho d< C$t0do ,.~ o ">lnAUrD econó- 41·S1.
completamente independentl! uma da m;co dn sociedade, ocupando em ambus MARCUSE. Herbert. El marxismo soviético.
outra.• Se, no primeiro caso, somos vi· clanes posiçô~ relativamente similares" Madri: AkaC, 1984.
ti mas de um total economicismo obje- (Bokh.lrin, 1974: 238). PAGCI, Leonardo. "La teoria general del mar-
tivista, perdendo de vista as possibili· S. Ver, a esse respeito, o atpltulo 1-d o, em par xismo". In: GRAMSq Antonio. Escritos pollrí·
dades de a superffirutura reagir sobre !kul.lr • CXJnheOda ci1açao qu<> Ltnon la< do cos (1917-<933). México: Sigla XXI, 1981.
prefácio de Engeb, a A guerra compone$0 no TELÓ, Mario. "Bukhárin: economia • polltlca
e moldar a própria estrutura, no se·
~nha: · a luta se d~ de forma na consiJução do sociali<mo". In: HOBSBAWN,
gundo, somos reféns do ideologismo metódica tm suas trt!s direÇÕeS t.ombinadas e Eric J. (org.) Historia do marxismo. Rio de Ja-
subjetivista, do descolamento das su· rcla<ionad1.1s entre~: teórica, polftíca e econ~ neiro: Paz e Terra. 1988. v. 7.
pere<truturas ideológicas e políticas moc:o-prábco resostênóa aos capit.llostas). N..• ZANARDO. Aldo. "EI 'Manual" de Buiarin visto
daquelas forças materiais e sociais que se 11taque c.onccntrado, por assim dizer, rt!si· por los comtmis.tas ctlemanes y por Gramsci".
lhes dao substân<ia. dem p<ecisamenre o fooça o a iiM!nóbiid.lde 1n: Bukhann, Nic:olai. Teona del materialismo
do movimento alernõo" (Engel,s, ~d. p. 202. hi>torico. Madri: Sigla XXI, 1974, pp. 1·36.
Em quarto lugar, fratura entre teo
Citado por Lênin, 1981, p. 32).
ria e prática, que implica a afirmação •Atvoro 8/onch/ é prole!o.o;or do UníversidCI-
6. A respeito da relaçao de Gramsci com essa
do predomínio de um termo sobre da MPtodisto de São Paulo.
obra de Trotsky, ver P•ggi (1981, p ~4) .
outro. Temos_entdo, ou o teoricismo, a 7...A teona 6n materidli:smo histórico tem ~·
afirma~o de um reduto para o livre ar· lugar definido não na economia polltka ou na

I,.!NI\> IRSiO,\DI 1: dOC"IIU"IiE UF..~·• XII!. C\.:,=., _.J"'ho Ir.: 2:lO.S '6/

Você também pode gostar