Histórias da fotografia por um instantâneo da história.
Muitas vezes se lêem afirmações em tom conclusivo sobre
assuntos que, examinados mais de perto, poderiam ser relativizados. Sabemos todos que fotografar é permanentemente fazer escolhas, escolhas que serão fundamentais para a construção do nosso discurso visual – sim, porque fotografias são discursos, e mesmo quando alguns utilizam a fotografia para propor enigmas ou para não propor nada, esta será também uma forma de discursar. Em outras palavras, nós, fotógrafos, escolhemos ângulo, elegemos primeiro plano e assim damos relevância a alguma coisa em detrimento de outra. O mesmo vale para quem escreve e/ou pesquisa. Certamente não se quer aqui reforçar uma discussão já puída e eivada de senso comum – se a fotografia é arte ou não, se Cartier- Bresson ou Sebastião Salgado são artistas ou não. Mesmo porque, a maioria dos fotógrafos e, seguramente, Bresson e Salgado nunca se importaram com isso. Parece-me importante propor um viés para determinados conceitos ou afirmações, afirmações travestidas de conceito, o que é mais grave, de ordem estético/artística. Por exemplo, quando críticos e pesquisadores fazem afirmações sobre a fotografia documental, via de regra afirmam tratar-se de imagens pobres ou em desuso. Em nome da pós-modernidade nos advertem que o mundo mudou para em seguida se alinharem à vanguarda. Ou se não, leiamos duas passagens da apresentação do último livro de André Rouillé (André Rouillé, La Photographie. Entre document et art contemporain, Gallimard Collection): “...Fotografia-documento começa a perder o contato com o mundo que, ao final do século XX, tornou-se muito complexo para ela. Mas sobretudo quando mundo ele próprio é objeto de um amplo movimento de desconfiança, quando a gente não mais acredita nesse mundo. (...) A Arte dos fotógrafos e a Fotografia dos artistas são totalmente separadas. A Arte dos fotógrafos é sob todos os aspectos diferente da Arte dos artistas, assim como a Fotografia dos fotógrafos não se confunde de forma alguma com a Fotografia dos artistas.”
É de se pensar que, em nome de novos tempos, novas
tecnologias, e em nome da virtualidade anunciada, dever-se-ia reinventar a fotografia para que então, tranqüilamente, se possa fotografar sem olhar, fazer preponderar nossas subjetividades egocêntricas tendo como foco apenas as leis do mercado da arte, tudo em razão de um mundo que não mais merece nossa atenção. A história pode ter acabado, como queriam alguns, mas as ideologias não. A fotografia, a primeira das modernas técnicas de produção de imagens, surge na era das máquinas pela associação entre o campo das ciências e das artes para atender a uma demanda por modernidade num mundo em que se começa a engendrar a idéia de indivíduo. Uma vez anunciada ao público em sessão conjunta da Academia de Artes e Ciências em Paris no dia 19 de agosto de 1839, ela vai se oferecer como instrumento a serviço das mais variadas tendências e visões de mundo. Uns irão “revisitar” o mundo para mostrar o Homem ao Homem, outros farão experiências ou a conjugarão com as artes visuais. Ou seja, pessoas diferentes com ideologias diferentes vão utilizar a fotografia com propósitos diferentes, atingirão campos diversos, mídias específicas e terão retornos ou respostas não necessariamente iguais. O valor para cada uma das opções é portanto sempre relativo. Esta última afirmação parece óbvia mas não é, haja vista a confusão de termos, de imprecisões que se encontram por toda parte. As divisões que seriam da ordem da finalidade das imagens – documental, experimental, artística, etc, dão lugar aos termos moderna, modernista, pós moderna, foto-arte, arte-foto, fotografia de autor, contemporânea, atual – o que mais ? Outros termos virão. A sensação é que cada “crítico” ou auto-imbuído “arauto” do mercado vem valorizar o campo com o qual tem mais afinidade ou pelo qual tem mais gosto, sempre aproveitando para afirmar a morte ou a menor importância dos demais.
Ilustrando
Dois grandes mestres da história da fotografia mundial, Paul
Strand e Man Ray, ambos de cultura judaica, o primeiro de origem tcheca, Stransky, e o segundo de origem russa, Radnitsky, nasceram no mesmo ano de 1890 nos Estados Unidos, eram de Nova Iorque e morreram em 1976 na França - Man Ray em Paris e Strand na pequena cidade de Orgeval. Man Ray vai se aproximar das artes como estudante de desenho da escola The Ferrer Center, de inspiração anarquista. Freqüentou a Galeria 291 de Alfred Stieglitz, um dos maiores inspiradores da fotografia pictorialista americana. Admirador da obra de Marcel Duchamp, Man Ray o conhecerá no ano de 1915 em Nova Iorque. Em 1921 fixa residência em Paris onde logo vai trabalhar com os dadaístas. Ele vai experimentar, vai fazer fotografias sem câmera (técnica que chamou de rayograma), vai explorar aspectos intrínsecos ao processo de revelação tal como a solarização (acidente transformado em expressão artística), vai fotografar basicamente em estúdio e também fará experimentação em cinema. Íntimo amigo e colaborador de Duchamp, Man Ray é consagrado na Exposição Internacional do Surrealismo em 1938 como “Maître des Lumières”. Paul Strand estuda numa escola especial, inspirada por Felix Adler, a Ethical Culture School, onde será aluno do fotógrafo e sociólogo Lewis Hine (reconhecido, entre outros fatos, pela documentação que levou à revisão da lei sobre o trabalho infantil nos EUA). Por influência de Hine, Strand vai também freqüentar a Galeria 291 e tornar-se amigo de Alfred Stiegliz. Com seu trabalho das primeiras duas décadas do século XX, Strand será reconhecido como um dos fundadores do modernismo na fotografia. Com sua proposta de fotografia direta, objetiva, Strand vai levar ao fim o movimento Pictorialista americano, que já estava enfraquecido. Junto com Charles Sheeler, realizará um filme de curta metragem chamado Manhatta, considerado o primeiro dos filmes de vanguarda americanos. Na década de trinta, Strand vai juntar-se ao movimento do filme documentário, vai fazer filmes sociais no México, além de seguir também fotografando. No pós-guerra, passa a ser perseguido pelo McCartismo e decide passar aquelas que serão as últimas duas décadas de sua vida no interior da França. Tempo durante o qual se dedicou a vários trabalhos documentais pelas cidades do interior da Europa. Este é um breve recorte da história da fotografia para afirmar a existência de dois grandes artistas consagrados cujas obras se cruzam e se completam, artistas que escolheram caminhos diferentes. Paul Strand que na perspectiva da documentação, consolidou a fotografia como linguagem e Man Ray que ao romper com o real e todas as normas foi um dos que abriram caminho para a fotografia no campo das artes. Luiz Eduardo Robinson Achutti, é fotógrafo há trinta e um anos, pesquisador do campo da antropologia e professor de fotografia do I. A. da UFRGS, Doutor em antropologia pela Universidade de Paris 7 Denis – Diderot, tendo vivido em Paris entre 1998 e 2002.