Você está na página 1de 148
Dialética do Esclarecimento Be nan louse fratalhadorar Urbans Janice CAIAFA Movimento Punk na Cidade: invasio dos bandos sub LUIZ FERNANDO D. DUARTE — Francois CHATELET, O. Duhamel e E. Pisier-Kouchner Historia das Idéias Polfticas Grahame CLARK ‘A dentidade do Homem: uma exploragio arqueolégica | Maria Dulce GasPaRr } Garotas de Programa: prostituigfo em Copacabana. identidade social Roger HOLLINRAKE ‘Nietzsche, Wagner e a Filosofia do Pessimismo Jean LACOSTE ‘A Filosofia da Arte Mallanaga VATSYAYANA, Kama Sutra (segundo a verso inglesa de Richard Burton e F.F. Arbuthnot) Gilberto VELHO (org.) Desvio e Divergéncia: uma critica da patologia social, 52 ed Eduardo VIVEIROS DE CASTRO Araweté: 0 deuses canibais . lye vi nero Jorge Zahar Editor/CVPq DA VIDANERVOSA nas Classes Trabalhadoras Urbanas Pode-se dizer que existe uma produgio cientifica no Brasil? A pergunta compor- ‘ta respostas diferentes segundo o interlo- cutor. Se for um otimista, dird que sim e desfilaré uma série de argumentos e nd- meros comprobatérios, a comegar pelo papel desempenhado pelas agéncias fede- tais de fomento (CNPq, Capes, Finep), (os mais de mil bolsistas enviados ao exte- rior, 0 aumento espetacular dos cursos de pbs-graduacéo, das publicagées e arti- gos, podendo cinda afirmar que, com exceeio da India, no hé outros paises do Terceiro Mundo com ciéncia de porte semelhante a nossa; mas se for um pessi- mista, diré que embora sendo a sétima ou oitava economia do mundo, estamos muito mais atrasados do que Israel, por exemplo, que produz trés vezes mais ciéncia do que nds com apenas dois milhdes de habitantes, ou diré que a pro- dutividade (artigos cient/ficos per capita) de Trinidad-Tobago & muito maior que a nossa, isso depois de demonstrar o nau- fragio dos cursos de graduagéo e mestra- do, da pouca sintonia de nossa socieda- de com os assuntos cientificos.* Seja como for, a verdade ¢ que Da Vide Nervosa tem qualidade para ser conside- rado um livro excepcional na produgio cientifica de qualquer pafs. Trabalho pioneiro, realiza, através da discusséo da doenca de nervos, uma investigagao pro- funda e sistemética da visio de mundo de segmentos da classe trabalhadora. Ao * Dados retirados de Citncia ¢ Universidade, Cléudio Moura Castro, publicado por esta editor, ANTROPOLOGIA SOCIAL Diretor: Gilberto Velho LUIZ FERNANDO D. DUARTE Yr Vil pyoder 10 famatratalkadoron Urbaucs Jorge Zahar Editor Em co-edigdo com o CNPq COWSELHO NACIONAL DE DESENVOLVIVENTO (GenTIAco€ TEeNOLOGICO Copyright © 1986, Luiz Fernando Dias Duarte Todos ot direitos resarvador. {A reprodueio nao-outori2ade desta publicagdo, no todo ou em parte, ‘constitu violagio de copyriahs, (Lal 988) 1986 Dinstos para esta odio contretodos com Jorge Zahar Editor Ltda. ‘ua México 31 sobreioja 20031 Alo de Janeiro, Ra Produsio editorial Revisio: Renato Cavvalto, Ldele Meusinho, Cléudio Eola; Diagramapio: Jussara Bivar; Arto-final: Joss Geraldo de Lacerda: Capa: Valéria Naslausky; Composiego: ALeomp Itda Impressio: Euitora Vozes Leda. CIP Brasil, Catslogngio-na-forte. Sindicato Nacional dos Editors de Livros, RJ Duarte, Luiz Fexmando Dias. (08724 Da vida nervots nat clasts trabalhadoras urbsnss ) Luiz Fernardo Dist Duarte, ~ Rio de Janeira : Jorge Zahor Ed. + Brasflia :CNPa ~ Conselho Nacional de Desenvolvimento Ciantiticn @ Toenotbsice, 1986, {Colegdo Antropatogia Social Bibiigratia ISBN 8586001-49.9 1. Antropologie social 2, Trabalho etrabathadores ~ ‘Aspoctos psicolsgicos |. Thulo 1, Sévio 86.0172 cop — 308 SUMARIO Introdugao 9 Espaco Cultural dos Nerves e Nervosos 23 A Construgio Social da Pessoa Moderna 35 Uma Inquirigao Historica sobre a Perturbagdo Moderna 60 a, As Pistas “Letradas”” do Nervoso 60 b. As Tris "ConfiguragSes” 78 Modernidade e Classes Trabalhadoras Urbanas 119 Identidade e Perturbagéo 143 a. ONervoso ¢ @ Construgio Intrapessoal 144 b. 0 Wervoso e @ Construgao Diferenciel da Pessoa 173 6. Oervoso ea Vida Interpessoal 2/2 4d. O Mervoso coma Mediacéo “Fisico-Moral" 255 Referéncias Bibliogréficas 280 “Toda sociedade diferente da nossa é objeto; todo grupo de nossa prépria sociedade, desde que nao seja o de que saimos, é objeto; todo costume desse mesmo grupo, a0 qual ndo aderimos, é objeto. Mas esta série ilimitada de objetos, que constitui © Objeto da etnografia e que o sujeito deveria dolorosamente arrancar de si mesmo se a diversi- dade dos mores @ dos costumes no 0 colocasse em presenca de um desmembramento operado de antemio, a cicatrizagéo historica ou googritica jamais seria capez de, sob o risco de aniquilar o resultado de seus esforgos, fazé-lo esquecer que procedem dele, e que sua andiise a mais objet vamente conduzida nao pode deixar de os reintegrar na subjetividade.” Lévi-Strauss, 1973, xxix INTRODUCAO ‘Quand tu partiras pour Ithague, souhaite que le ehomin soit long, rche en, pripaties et ert emp Constantino Kasstis (verso M, Yourcensr| ‘Ao tempo em que realizave pesquisa de campo num bairra de classe traba- thadora em Niteréi, interessado em conhecer os processes de canstructio das identidades sociais face 4 diferenciago acentuada dae experiéncias no trabalho por que passava aquele grupo social, tive a atenglo despertada pelos sinis, ora densos, ora espagados, de umn campo semintico tio cheio de significagio quanto — na impresséo inicial — vago em seus contornos ¢ “invisivel” em sua manifestacio; jé que vazado através de algumas catego: rias “comuns” de nosso vorabulério sobre a pessoa, tais como nerves, ner: voso e pervasismo. E evidente que a atencdo prestada a tais categorias obedacia a um pprocesso mais intimo, de deslocemento de certas questBes sobre 0 social, @ que me tornavam mais sensivel as demarcagdes diferencisis do modelo de pessoa nos diversos segmentos de uma sociedade como a brasileira, t40 longamente exposta aos ditos processos da ““urbanizago" e da "moderni zacio", ainda que — e justamente — de forma tio complexa e especifi cante A primeira pista etnogrétiva entéo seguids foi a de um segmento lo calizaéo daquele campo semantico, que fazia muito claramente ponte entre as dimensdes analiticas mais amplas exercitaveis sobre o material © 4a questio das estratégias imediatas de reprodugdo social das classes traba- Uhadoras, sobre as quais escrevia na ocasiéo outro texto, Tratava-se do en costo no INPS por doenca dos nervos, ou seja, a obtengo do “auxilio. sauide" daquele drgio, atribufdo em funcio do que seus agentes qualifica iam come “distérbios ps(quicos”. Embora constitufsse indubitavelmente lum referente de andlise bastante rico e significative para a compreensdo de diversas questGes atinentes as “condip@es de vida’" dos trabalhadores as suas reprocemtagdes sobre “trabalho” e “‘responsabilidade", o tema do encosto no (nstituto passou a representar apenas uma das faCetas de um Universo de questies mais vasto e articulade, s6 a partir do qual parecia poder revelar seu sentido mais profunda, A propria doenes dos nervos revelou ser 0 fio inicial de um emara nhado novelo de cateyorias que, circulando dos homens as mulheres, dos 10 davido nervoso br ths 9s sod Eaten on one a eases ge asae cea joo dos bani larlers stn cones oto zon ar maton cs a Seamer ‘ier doth 0 conheimento da testa voks sponta o ete dese ctl manent ue ee le ee a a ee Fcahiede” comprensvleideomonte den de noes Hear oe Cac rina erace zeman Ga ous une ton bodes be ein! sul Ga tetegSo tiveeninen es seina teen porns tx depondente nunicnaee ede tear enaseeaie tes da qual surgiu e se desenvolveu). ta, bs ee naa a eres te mae nee Shae edames gue no 8 Sepa ner eae “blo prs Tentbdcis soca tone ops Tes core "Slur que se prone og dontelen dole dob nina dos grupos de classe trabalhadora com a "Grande Tradiggo” cultural do ficas de articulag#o entre essa Grande Tradicio — de que é lécus privile- dieses cots tects edel tienes a annie rarer © mpurdo lite do untewo de slie 60 ques procur invocar Introduce 11 instauradores de nossas cléncias sociais, quando as condiedes de sua emer- géncia se apresentavam, por assim dizer, mais cruas, no embate, texto o texto, com a tradigSo filosofica e as formulas ideoldgicas dominentes. A sua reinvocagéo hoje procura avivar a percepcdo de sua continuada perti néncia sob a vlaborada arquitetura do pensamente sociolégico, ao ques tionar alguns pressupostos bdsicos do utanismo interpretativo com que nos langamos ao longo do século sobre es demais culturas e sobre os miltiplos segmentos culturais de nossas préprias sociedsdes. ‘So limites porém, tanto 0 primeiro quanto o segundo, que em sua intersegio impdem uma necessidade. Este trabalho se desenvolve em torno do material do nervaso nas classes trabalhadoras porque esse parcce ser ‘um nédulo ideoldgico estratégico para a compreenstio das formas culturais especiticas em que se constituem esses grupos socials; ¢ esses grupos s0- ciais, por sua vez, parecem oferacer-se 4 interpretago Socioldgica num lu. gar de marcante ambiglidade ~ e portanto também estratégico ~ face as domarcagdes e formatos de nossa cultura dominante, A sua posigio dife- rencial face a0 modelo da Pessoa individualizada maderna, hipdtese axial dda pesquisa, poderia estar assim na raiz de muitos dos embaragos recorren: tes com que so vem as voltas tanto @ interpretago quanto a intervencéo sobre esse enigmatico sujeito. A aproximagio a estas quustdes seguiu certamente o mesmo penoso caminho entre empatia e estranhemento que qualifica toda trojetéria an. tropolégica, Minha experiéncia etnagréfics transcorreu toda ela em grupos de classe trabalhadora, A pesquisa que inicialmente conduzi no bairro de Jurujuba (Niteréi — Ry) jd se encontrava marcada por uma atengio espe- cial & “mudanga social” — para o que pareciam convergir tanto as inquieta- ‘ges vivenciais do grupo estudado quanto as minhas préprias e entko me- nos claras motivacdes de indagacao e labor sobre a candigao social Iniciava-se assim essa longa mescla de experiancias “subjativas” & investimento objetivante em que LévisStrauss via a dimensto mais plena do “fato social total” maussiano, e cuja percepedo s6 muito lentamente se desvenda ao pesquisador, ainda que nunca de forma plena ‘A “mudanes social” continuou um tema, Continuo um motivo, uma deixa para tanta viagem, Continuou, porém, tio diversa. Sob ela Perfilouse mais claro o tema da “identidade social”, daquilo que permite 205 sujaitos falarem ou sentirem “mudencas"* e “permanéncias”, ou entdo falarem ¢ sentirern “estagbes" e “idades”, momentos de uma roda mével ou imével. Em “identidade social” se enfatiza valores que instauram e fa zem perseverar ¢ que também, eventualmente, tazem dosistir, conformar- se, rebelarse ou mudar. Sempre porém a partir dali, de urn lugar que, por mais complexo o contraditério que seja, fornece significagio e, portanto, “universo” aos sujeitos. Com o que se deslocava 8 “mudanea social”, para sua plena condiedo de valor. Mas também a “identidade social" exige vigilancia. Para nostos olhos individualizantes é uma categoria muito vinculada a “identidade pessoal” ~ 35 2 partir da qusl parece poder se concober e retragar, Tudo o que con- seguimos fazer ao tentar captar inicialmonte a realidade das construgSas 12 davida nervosa socials identificatérias distintas e maiores que os “individuos” é imaging las sob 0 modo do “coletivo”, ou soja, como cantraponto a posteriori da realidad individual. 1ss0 que foi revolucionério em Durkheim é hoje po: rém insufiviente, A peccepeio de que a8 unidades ou sujeitos da significa gio So construldos levando em conta a realidad biopsicol6yica, apenas para subordind-la aos mais elaborados caprichos das culturas, é fundamen: tal para @ elaborapéo desta pesquisa. A preeminéncia essim pressuposta do. invastimento simbdlico, cultural, que faz do “real” real implica uma can: cepedo ue “identidade social” como fendmeno de classificagdo w valorag substantivedo ou reificado om formatos "sociolégicos" ou “institucio Retorna-se assim aquels intersegdo de questdes e necessidade anali tica, Supde-se haver um modo de ordenacio de valores, de construcdo das Identidades socials que é préprio de culturs que corporifica @ Modernids- de. Essa ordenago de valores construgdo de identidades se centra numa concep particular de Pessoa quo se vom chamnando “o ladividuo” e que sintetiza uma série de peculiaridades ou singularidades da cultura em que se assenta o discurso antropologica, Essa cultura ests montada ~ e essa é uma daquelas pecullaridades — sobre uma concepeo de Tempo linear, progressivo, em que, justament “mudanga social” se instaura como teina ¢ valor. Essa “mudanca social continuamente desejada e ensojada subjaz ao préprio modo hegeménico da reprodugo séclo-econdmica das sociedades “moderna” e sustenta a repre: sentagda de uma Evolugo, de um Progresso, cujas chaves jd teriam sido. encontradas © cujo acme viria assim logo a ser atingido. Entee os inimeras problemas enfrantados por esse etaacentrismo imperial estd 0 do estatuta dos grupos sotisis cuje reprodugSo subordinada é ao mesmo tempa exigida e inguirida: as classes trabalhadoras Este trabalho supde que, face a cultura dominante, sejam portadoras ~ essas “classes trabalhadoras"” — de uma outra cultura, porque ordenada, axiada, sobre valores e princ{pios préprios. Supe ainda que essa diferenca ndo seja um atributo universal, mas apenas relativo a cultura contra a qual se distingue, em dois niveis: enquan to subcultura de uma “culture maior” (uma "Grande Tradigio") em nome dda qual fala aquela outra, @ enquanta abjeto da observacao e andlise de in telectuais oriundos exatemente daquela outra cultura Esta argumentagio bastante eliptica — que merecerd um dese! vimento apropriada, com a discuss dos conceitos, sobretudo nos Ca los II e IV ~ supde ainda que, na medida em que aquela outra (e nossa) cultura se singulariza pela preeminéneia do Vator concodido 8 idéia do In dividuo, com os miltiplos corolsrios que aqui se apreciaré, a diferenca da “cultura das classes trabalhadoras urbanas" reside, comparative e situacio- | naleente, na nfo-énfase naquele Valor e no priviligio aqueles outros que |e Ihe tém oposto analiticamente: a Totalidade e a Hierarquia. Afirmada de tal forma a especificidade dessa cultura ressalta em pris rmeiro lugar 0 sou caréter “positive”: ela nfo é aquilo onde falta go, mas onde se ordens un modo alternativo de construgio do Mundo e da Pessoa, Ineodugso 13 Como essa cultura é, porém, a de grupos sociais que se encontram suborde- nados e subordinados a um formato social que é solidério em suas finhas principsis com 0 idedrio “individualista”, dela fazer parte efeitos desta re: lagdo, tanta ao nivel “sociolSgico” quanto ao nivel 0 estudo do nervoso — que ¢ o modo ou cédigo em que se enuncia fundamentalmente as “perturbagGes Fisico-morais" sofridas pelos membros ‘desses grupos socials — permite-nos aceder a umn nfvel analitico privilegiado para a comproensdo ndo s6 das caracter(sticas fundamentais dessa cultura {porque se rofere necessariamente 3 sua concengio de Pessoa), como do modo pelo qual se refrata e articula a raferida relaciio com os mecanismos socivlégicos e culturais dominantes nas sociedades permeades pelo “indivi- dualismo", de que fazem parte. Esse’privilégio decorre do fato de que o discurso au os saberes do nervoso hoje reinantes nas classes trabalhadoras urbanas podem ter muito nitidamente retracadas suas origens na configuragéo dos saberes eruditos sobre © nervoso desenvolvida entre os séculas XVIII e XX, em torno de re presentagées da Pessoa comprometides com a ideologia jndividualista Assim como podem ser retracadas essas origens @ reconhiecidas 3s vies do sua difusio para o interior da cultura das classes trabalhadoras, pode ser igualmente demonstreda reordenepdo radical sofrida por aqueles saberes, que — se, pelos nervos, falavam originalmente do /ndividuo — vieram aqui, esta outra cultura, @ falar dos nervos, orientados pels Pessoa. Devo esclarecer desde jd — embora vé retornar sobre isso 20 longo do! texto — que a locuséo “perturbardes fisico:morais”, em que venho subst: mindo, como uma de Sas possiveis atualizagSes, os fendmenos nervosos, procura designar da maneira a mais abrangente possivel tadas as alteragies do estado “normal” da pessoa, que se supde ser culturalmente definido, ‘Dessas alteragées digo serem “tTsico-morais" para transmitir a impressio de totwlidade, de multipresenca, de que eles freqdentemente se revestem, abrangendo ou atravessando dimensGes diferantes da vida dos sujeitos. Em bora a oposiego entre “fisico" e “ndo-fisico” possa ndo ser universal, ela & bastante recorrente no Guadio comparativo das culturas€ estd certamen- te presente por sob os diferentes sistemas de representacées ligados 8 "cul tura ocidental”. € claro, porém, que 6 que aqui analiticamente incluo nas “perturbagdes fisico-morais” pode ser eventualmente considerado ou classificado culturalmente como apenas “Fisica” ou apenas “moral (no sentido amplo deste termo} A construgdo de uma “historia” das representagBes sobre essas per: turbagdes fisico-morais na cultura madera foi uma tarefa tdo estimulante quanto penosa, por uma confluéncia de fatores: 0 absoluto desconha: manto das informages & dos recursos bisicos de informag$o que caracte rizaram meus primeiros esforgos; a dispersSo e qualidade muito dispar das fontes disponive’s (apesar da existéncia de alguns quias luminosos); @ com plexidade e abrangéncia das questdes que af se enovelavam e — last but not least — 0 fato de quo essa construeao era apenas instrumental para 0 fulero analitico da tese: a representacdo contemporanea do_nervoso nas classes trabathadoras urbanas, Creio que o resultado — que néo espelha o volume 14 davida nervors de trabstho que the subjaz — apresentari a0 leitor um modelo anatitico bastante expressivo do que parecem ser as linhas mestras dos deslosamen: 108 dos sabores fisico-morais modemos. A tripartigo proposta das “confi= gurages" {a da mefancelia, a do nervosa e a do psicolégico) e sua consecu: tividade historica — ainda que com as superposipies estudadas — nia deve- 4, para quem acompanhe a argumentagdo, suscitar qualquer idéia de “evo. lugdo”. Ha entre elas uma sucesso de modalidades, de epistames, solids: Fias de racionalidades © “historicidades" diferenciais. Foucault — como so pode ver — terd sido ef, tanto para o mais genérico quanto pata o mais es pecifico, de um britho particular entre os guias luminosos. A pesquisa especifica sobre 0 nervoso maderno exige observagses introdutérias de maltipla ordem. Creio que muito do que disser e fizer es tard balizado por alguns limiares de sensagSes que gostarie de invocar desde is Maria Manuela Carneiro da Cunha dizia, a respeito de sua pesquisa sobre 2 nocSo de pessoa entre os Krahd, que esse tema "sé pode ser indi- Fetamente buscado nas entrelinhas do primeiro [a morte], © requer, por assim dizer, tétivas sub-repticias, emboscadas que de repente surpreendam, ‘essa fugidia nopdo de pessoa" (Carneiro da Cunha, 1978, p. 1). Sensagdo semethante me acompanhiou 20 longo de toda a pesquisa, buscando o que & por si fugidio nas entrelinhas do mais fugidio: 0 nervoso. Poter Fry comentava na apresentacio de seu livro recente, a propo: sito da redag%o do capitulo sobre a construgdo histérica da homossexuali dade no Grasil, que teve “a maior dificuidade em termind-to, pols ficou ea: da vez mais evidente que discutir a sexualidade nesses termos levaria, ne- ‘cessariamente, a uma discussSo cada vez mais filosofica sobre os rumos das ‘wansformagdes da cultura brasileira como um todo” (Fry, 1982, p, 16). Esta frase ressoou varias vezes em minha cabeca ao longo da pesquisa, co- ‘mo expressiva de uma inquietagdo que tambim me acompanhava, no trato de meu objeto, eal, necessdria, mas ao mesmo tempo dificil de conciliar — como sentia Peter Fry — com o dia-adia da interpretagSo antropolégica, Pierre Bourdieu observava, a respeito da pesquisa socialégica, que © segredo, que 4 uma forma de propriedade private, juridicamente protepida an ‘quanto tal, ¢ também uma das aspeiee do segrado, proibido do desvendamonto sce lego, € indssocidvel da poder, o qua faz comm que 0 pesquiador, quer ale quia Ov ‘no, quer ele 0 sa Ou no, x enconies sempre compromatida etm ume relagso do {orga com seu objeto sera eutraescothe, o mals eqaentomente, que 4 de enganar Ou de ser enganaco (Bourdieu, 1981, p. 4. ‘Também essa observagio parece se aproximar de algumas das preacupadas sensagies de que sempre se cercou meu trabalho de campo sobre 0 nervo- s0, engatado na fronteira ou ameaga da intimidade, da privacidade, do se redo au da suspeita do segredo. Estas 11€s evocagbes aportam alquma coisa das contingéncias em que se desenrolou mou trabalho: problemas préprios do fendmeno sobre o qual eu me voltava; problemas préprias da ressonéncia grave das questes em ue implicava seu estudo; problemas, também, da minha relagdo pessoal fintrodugso 15 com 0 mundo, com a “subjetividede", com as pessoas — to numarosas — {que tente, ds vezes em vo, transmudar em “informantes” Minha pesquisa comecou, como disse, umbilieslmente prosa a0 campo" da pesquisa anterior: 0 bairo de Jirujuba, Niteroi (Rio de Ja neiro}. Minha identidade local (passivel de muitas nuangas que ndo posso explicitar ou que, em boa parte, me hio de tor oscapado) era. a de um professor interessid na vida dos trabalhadores, nas condigdes espectticas do trabalho na pescs, nas implicagGes econdmicas ou politicas da ayo dos mmaltiplos drados ¢ instituigbes que afetam sua reprodugio social, Nessas condigdes tornou-se logo claro para rim que no seria possivel construir tuma outro imagem dos meus intereses, mais voltada ~ assim to gener’ camente como 0 poderis colocar — para a sua percepeo de si masmos, sous sentimentos e mabestares, suas dooness e perturbagdes, suas crencas @ temores, E claro que isso sempre seria mais diffell de legitimar eomo 0 ine teresse “piblico” de um professor {como haveria de vaificar ne campo se uinte), mas tenho certeza de que — neste caso — a dificuldade se acres: cia das expectativas anteriormente construidas sobre o meu "querer sa ber”. Alguns informantes mais intimos ouviram minhas explicagtes sobre esse deslocamento, procuraram ser amaveis ou auxiliar nessas novas tare fas, Tenho corteza porém de que nunca se convenceram muito bem ou a minha determinacio a esse respeito ov do acerto de minha decisdo. Nos casos de meior colaboragao, associava'se minha preocupagéo = um interesse, por assim dizer, "sanitarista” ou "epidamiolégica” por condicéos Ge Saide em geral [sob 6 que pulsava 0 interesse em denunciar, com toda justica, as precarissimas condigdes que cercarn sob tai aspecto a sua vide no bairro’e no trabalho posqueirol. Tenho certeza, porém, de que, em todo e5se processo, aquele citado terceiro problema {6 do mett mabestar em for cxjar-seus “ségredos") ha de ter sido vital, transmitido como ¢ inevitével, subepticiament, sob o monor de meus gestos, palavras ou silancis.! Durante um certo perfodo tateei em busca de um outro. "campo" | Ge pesquisa e acabei por me fixar no Meio da Serra (Petropolis, Rio de Janeiro), por se tratar de um bsirro de classe trabalhadora de acessa no muito dificil, com limites s6cio-geogréticos bastante precisos e com uma historia social diversa da do “campo” anterior. As dificuldades enfrentadas aqui foram de outra ordem. Tive de iniciar o contato sem qualquer media- dor (em Jurujuba jd trabalhava hd cinco ou seis anos} e — nio tendo ent muita clareza sobre como encaminhar @ observaciio e @ conversa sobre os aszuntos que me intere:savam ~ fiz incidir meu interesse sobre o bairro co- mo “documento histérico” (o que era para eles uma questdo altamente legitimal, a relaefo de seus moradores com 0 “passado" onipresente da fd brica t8xtil em toino da qual outrora florescera o bairro. Essa estratégia garantiu-me uma répida aceitacdo e legitimacdo, embora também eviden: Sobre Jurvjubs pode-s consulta uma série de trabathos meus |Duarte, 1978; 1961; 1980; 1981b; 1983). 18 davido nervose temente me associasse a um interesse de conhecimento oblique ao que eu efetivamente perseguia.? ‘A essa altura poréi eu tinha muita certeza ~ ¢ ela me acompanha até agora — a respeito das estratégias etnograficas que eu ndo queria Segui Em relago as perturbacées tisica-morais, a referencia as ciéncias, institut- cies @ agentes médico-psiquidtricos ou psicolégicos ¢ inevitével (até mes- mo, de certo modo, para as classes trabalhadoras), mas eu sabia, da expe: riéncia com a literatura, quo restrito ficaria o meu acesso ao material de- sejado, filtrado por uma instancia ou referéncia muito especifica. Descartel portanto a possibitidade — mais fécil em um certo sentido — de proceder & Pesquisa, total ou parcialmente, a partir das instituigdes de atendimento publico ‘médico-psiquistrico, que regurgitam de pacientes oriundos das classes trabalhadoras dispontveis nesse caso, para falar exatamente daquilo ‘que em tal situag Thes sustenta a identidade. Mas no me interessava co- hecer apenas a face elaborada para a interacSo com 0 mundo médica psiquidtrico desse universo social, Ala verdade, até mesmo na pesquisa con- duzida na vida quotidiana de meus observados sempre evitel a propria no menclatura médico psiquidtrica ~ que representa para eles camo que am comutador para um plano de discurso qua se poderia qualifiear até um cer to ponte como "para inglés ver". Também descartei desde o inicio a possibilidade de proceder pela via das instituigdes religiosas, j@ af nfo tanto porque houvesse um "vicio” in Irinseco a relago desse plano de vida com meus escaltiidos informantes, mas porque eu teria de optar por alguma espucitics via religiosa, dentre as muitas que recortam a sua disponibitidade, @ jd havia trabalnos a esse res peito — e mesmo tantos ~ e eu acreditava que, por tcds das to anarente. mente dispares mensagens religiosas desse mercado, algo de mais encom pastador @ generalizado pudesse dar conta até mesmo dessa perturbadora ‘multiplicidade. ‘As pesquisas conduzidas em Jurujuba ¢ no Meio da Serra transcor toram portanto sob a égide de uma opedo: a de auscultar 0 quotidiano, @ de acompanhar longamente a pratica de muitos desses sujeitos, perdendo cortamente dimensées cruciais de sua vivéncia, mas ganhando, estou cer to, em abrangéneia e acedendo a um plana de habitus que poderia ser obs. curecido pela excessiva sistematizarao sempre dopreensivel de todo e cada um dos cédigos religiosos ou — sobretudo — dos cédigos médicorpsiquidti c0s. Ocorre-me, alids, 9 esse respeito uma observacio muito clara de Lia Machida: “a escolha do dom/nio privato se deve ao fato de que, na nosia soviedade complexa, # af que se reslizam por exceléncia as praticas elabo. radas da organizac30 significativa das ‘idantidades globais’, articulando os varios referenciais de identificagao, inclusive os da esfera pitblica” (Macha: do, 1982, p. 1). Era essa também minha idéia, |A respelto do Muio da Serra, sobre que no se dispde de ums mangrafi abran gente coma a que pude eleborar sobre Juruua, hd intormacso ern Ouarto, 1983, introdugéo 17 A um procedimento de pesquisa assim dirigido autorizava-me ade mais aquilo que ja sabia a esse respelto, adi a altura: que @ drea das “per. turbagSes"” da vido no era exclusivamente “médica”, nem era exclusiva mente “religiosa", embora no fosse isenta dessas dimensdes © pudesse abarcar a referdncia ¢ recurso a8 mais diversas vias simples ou combinadas daqueles plenos. Era justamente isso o que me interessava acompanhar compreender, Ocorre porém com o quotidiana que ele seja o mais diffcl de ser pet quisedo. Em primeiro lugar porque o rompeu a presenca do pesquisador, que fez vir a sala a dona da casa, que fez interromper a sesta ao marido, que fez com que se trouxesse o caté na bandeja de plistico e que se calas. sem as criangas. O que se multiplica, 6 claro, ante gravadores ou cadernos de notas. Mas hé algo mais grave e insuperdvel — pois a longa convivEncia obvia, creio eu, alguns daqueles fisicos distirbios. Hé @ verbalizagio ne- cesséria suscitada ou incitada pelo pesquisador, mesmo quando ele pergun- ta do mais gondrico, quando, com mais delicadeza, sugere 0 intereise em fal ou qual assunto, Tambem af ha nuancas, € claro, Essas pessoas falam, falam entre si, falam sozinhas, sistematizam freqlentemente cam intensa perspicdcia areas enormes e densas do suas vidas, atualizam discursos di versos Segundo suzs préprias e diferenciadas ralevancias e planos. Padem até mesmo — como sei ter ocorrido, apesar daquele meu generalizado temor — falar de coisas tais como ndo seria préprio que falassem com ¢ maior parte dos seus, fazer confidéncias, explorar com um “estranho” dimensdes tam: berm um tanto “estranhas” de suas vidas. Nao se fala pordm justamente — mesmo nesses momentos de expan: so — a posquisadores de outra cultura camo se fala habitualmente, Até a emissao da vox pode ser alterada, 0 tom cerimonial que antropé logos ¢ li guistas Go bem conhecem arma caminhos fugidios ao quotidiano, Mais luma vez esse 6, porém, um timita inarredivel e quantas pequenos recursos rndo se apresentam para controlar efeitos que nos sfo conhecidos, e sobeja mente. Essa divisa do trabalho antropoligico que poderia ser o “fazer das tripas, corago" é particularmente aplicavel no caso do nervoso. Como vol tarei observar, esse discurso ¢ tio importante quanta inexplicito em sua sistematicidade. E necessdrio compreendi-lo como uma “linguagem’: ele Serve a0 pensamento, 3 comunicagio, & expresso; no é deles um abjeto regular Reduplicava-se assim a conveniéncia de uma estratégia etnogrifica de ausculta e observacio, a paciente espreita da emergéncia da referéncia ex- plicita, da deixa ao pastoreio discreto da conversa. Esse procedimento foi frutitero. A linguagem do nervoso é em si rica e recorrente, Sus incidéncia porém, nas auto-atribuigSes, depende em boa parte da intimidade da rela Glo, A longo prazo, a paciéncia frutifica assim tanto em termos absolutos quanto relativos; além de se obter um material nuangado por condigdes de emissio, contextos seménticos e situagdes estruturais sobre cuja riqueza se monta 8 andlise do Capitulo V. 18 davids nervosa” Esse foi assim 0 modo como se processou fundamentalmente minha pesquisa direta de campo em Jurujuba e no Meio da Serra. € claro que, da ddas as condigSes de mais longa convivéncia e de mais sistemético conheci mento das dreas ditas “objativas” da vida de seus moradores, a densidade do material oriundo do primeiso campo é muito superior 8 do sequnda, Este foi, pordm, fundamental para garantir um certo revigoramento da comparatividade, da capacidade de surpresa e divida, do controle de sen sagiies, estratégias e informacdes, de que a pralongada convivéncia com um ‘mesmo grupo comega s exigir duvidar. E pena que no possa neste momen: to ~ por irrelevante para os objetivos presentes — evacar também a intens dade da diferenca de sensagdes e de apercepcéo socioidgica que me prop ciaram esses dois pequenos mundos de gente das classes trabalhadoras. Eu (05 aproximei analiticamente em um outro texto a que farei referéncia, Serd necessério um die vir a explorar o que 0s fez, v continua fazendo, tio dis pares om “estilo” ante meus olhos A partir de um certo momento fui convidado a prestar orientagio antopoligica a una pesquisa que ui grupo de psicélogos, que vinham tendo seu trabalho profissional supervisianado por uma psicanalista, pre ‘tendia desenvolver num grande bairro de classe trabalhadora da periferia do Rio de Janeiro: Acari Essas pessoas — a que se fard aormalmente referéncia colativa como ‘0 Grupo ou @ equipe de Acari — haviam enfrentado uma série de situagées dificeis, pessoais e profissionais, em sua tontativa de trabalhar no local, que ‘hes sugerira a convenisneia de melhor comproender a¢ diferencas culturais que se impunham nessa relagao © — particularmente — as ciferengas de concepedo e construggo da nordo da Pessoa w de suas perturbag&es. Pelo interesso, dedicagio ¢ carinho com que sempre se empenharam em suas ta refas @ se dispuseram, penosamente, a enfrentar 0 exercicio do olhar an tropolégico, habilitaram noses regulares reunifes semanais (durante cerca de dois anos) 2 uma intensidade analitica cartamente rara em grupos de estudo e pesquisa intesdisciplinares. O volume e qualidade da informagzo. ethogrdfica obtida cresceram com a adagao das técnives de observaro par- Xioipante, de registros em caderna du campo e de concontragao do contato visando ao estabelecimento de relagiies continuadas com alguns informan: tws e suas familias. Por se tratar de vévias pesquisadoras, por terem umas ou ‘utras mais acentuados certos detalhes de sua identidade no campo \traba: Iharam, por exemplo, em um centro de atendimento médico-psicolégico ¢ fem ums creche, no local, durante algum perfodo} e por no terem estabe: lecido sous contatos nocessariamente de forma coletiva, construiram uma rede diferenciada @ intensa de trabalho, prapicia a obtengao de um mate- Fial rico, estimulante e complexo. Embora cada pesquisadora tenha infle xionado ligeiramente, a0 sabor das caracteristicas proprias de identidada e interesse, 2 sua experiéncia de campo, 0 foco coletivo permaneceu sendo o dda nopao de Pessoa e 0 das represenitagGes sobre o que, a uma certa altura, se chemava no Grupo de "sofrimento psiquico”. 0 discurso do nervoso, de cuja importancia jé se haviam apercebido antes do inicio de minha colabo: ragdo, mereceu sempre uma atengSo etnogréfica analitica especial. Nos Inurodugso 19 sas reiteradas discusses e trocas do informagies subjazem 2 boa parte de minha analise, Podese dizer, de uma maneira geral, que o material sobre 3 contigurago do nervoso também fol af obtido de uma maneira néo-direth va, com a possivel excacio da série de entrovistas realizadas com as mies ¢ pals-de-santo dos centros de umbanda lacais, a quem se dirigiram bem no comego de seu trabalho, com um roteiro que incluta perquntes sobre & di- ferenga entie dooncss de cabepa, de nerves ou "espicituais™ A treqiténcia multipla © continuada @ um bairro tio populoso per: mitiu que fossem acompanhados alguns casos fascinantes de perturbagio {isico-morel, com © registio das multiplas avaliagbes e compartamento das 1pess02s envalvidas ou de algum modo cireunstantes, A propria experiéncia de tentativa de atendimento psicolégico no referido Centro de servigos — ocorrida antes de iniciada a pesquisa — pode ser eventualmente levads em conta. © programa de leitures & discussbes inclulu desde 0 inicio elgumas pesquisas disponiveis sobro as perturbagSes fisico morais entre as classes ‘rabalhadoras no Brasil, Foi no contexto dessas discusséas triangularet en tre a minha experigncia propria, ado Grupo de Acari e a da literatura, que s2 tornou clara para mim a conveniéncia de néo restringir este livio 4 reile- xdo sobre 0 meu exclusive material, mas a de amplid-la tanto quanto pos vel sobre 0 conjunto da informacao dispontvel na etnogratia, ada essa intengdo generalizante explicita de que passou a se revestir meu trabalho, acoplada a graves restrigdes de tempo e espago, e mesmo a ecestidade de uma maior agilidade no estabelecimento da multiplicidade de conexdes nacessirias, impés-se uma grande economia de transerigdes do discursos dos informantes, A existéncia hoje de um material etnogrdtico pur blicado hastante vasto, pertinente para a discussdo das perturbagdes fisico- ‘morais das classes trabalhadoras urbanas {de que lancarei mio ao longo de toda a anélise), também a tal procedimento pareceu autorizar-me. Hd, portanto, neste trabalho a assuneSo explicita de um cardter ge- nérico ou generalizante ~ que o projeta para ald das experiéncias etno- {graticas que 0 autorizam, mas no 0 constrangem. Creio que ele seja neste Momento — com formato tao temerdrio — mais dil do que poderia ser 2 digo de mais um estude de caso ou monografia sobre “trabathadores” e “doenga mental”, Por um lado isso se justifica — como disse — pelo volu- me consideravel, ainda que bestante cactico, de informages sobre esse uuniverso ji disponivel em nossa literatura clentifica, Por outro lado, essa justificativa tende a se reforgar pela percepgto de que exses temas estdo sendo e virgo a ser felizmente cada vez mais estudados, tanto por antrops. logos, quanto por psiquiatras, psicélogos e psicanalistas atraidos e treing- > Agua informapia etnogrdtica sobre Acari se encontea em trabalho que publi ‘quei em eoiaborapgo com Ropa wi af, 1984. Pode-se consultar também Casta, 198 20 dovida nervosa dos pela metodologia antropolégica. Suponho que em tal contexto ume proposta analitica abrangente, por mais imprecisoes ou bias que possa ter ou talvez até mesmo em funcdo deles —, permite um adensamento das discussdes e uma concentrago dos osforgos analiticos. A histéria de uma pesquisa no pode prescindir da meng aos mean- dros paralelos em quo no vingou e das perspectivas e dividas que projeta adiante de si. De uma maneira geral creio que minhas decisbes e iniciativas etnogiéficas foram adequadas © bem-sucedidas. Antes, porém, de decidir descartar a possibilidade de manter um foco etnagrdfico a partir de um re: Corte religioso, iniciei uma exploragio em torno do culto catélico a Nossa Senhora da Cabegs, que me sugerira Lucy Manso. As visitas a capela, que fem torno dessa imagem concentra o culto na antiga Catedral Metropolita na, e também & Igreja da Pena, onde ele se ramifica, no me instigou ao pprosseguimento da pesquisa por essa via, sobretudo pelo fato da clientela Ser composta, a meu ver, por figis oriundos das mais diversas classes e seg ‘mentos socials que — em torno daquele culto ~ faziam se atualizar repre- sentagdes e crengas da mais mdltipla ordem. € certo, porém, que paderia ser um investimento comparativo precioso no tocante 2s perturbagées fi sico-morais, que em torno da idéia de cabepa ai se tematizem. ‘A insténcias do um precioso informante e amigo de Jurujuba, fui de ‘certo modo conduzido a investigar as possibilidades de praceder a um estu- do de caso paralelo, centrado sobre os ex-combatentes e suas perturbages fisico-morais ("neurdticos de guerra” ote,). Uma série de circunstincias formais, decorrentes em parte ~ vejo agora — de ume manipulacio instru- mental muito hébil mas infelizmente falhada de meu amigo; a par dos pro- blemas politicos que envoluem a “Associago dos Ex-Combatantes" e dos problemas politicos e burocrdticos em que se enovel a LBA (que esté li- gada 8 Associagio no tocante aos aspectos assistenciais); fizeram com que esistisse de insistir nessa via, Alguma informago pertinente transpareceu desses poucos pequenos contatos — e seré incorporada oportunamente & discussdo. Também haveria de ser, porém, um foco extremamente interes- sante de pesquisa comparativa — rica e urgente. ‘A mengdo 9 esses dois pequenos desvios paralelos possivels poderia servir de epigrate a uma longa demonstraciio da necessidade e dos mados posstveis de organizac3o de um programa comparativo bastante ambi: Cioso: nacional, entre modelo aqui estudedo pars as classes trabalhadoras Urbanas e os das demais classes e grupos sociais; internacional, entre 0 caso aqui estudado e o dos grupos de classe trabalhadora ligados @ outras sub: culturas nacionais. Isso se faré depreender, porém, espero, da prépria and lise aqul desenvalvida em torno de tal ov qual possivel pequeno ponto comparativo. NNesse sentido, 0 Capitulo Ill apresenta certamente uma proposta analitica abrangente, que poderia servir de guia a um plano de estorcos ‘mais sisteméticos sobre nlicleos presentes e passados des representagSes da Pessoa nos diferentes segmentos e dominios das sociedades modernas. Introaugio. 27 Foram acrescentadas ao texto algumas llustragdes. Redigh para estas Jiltimas legendas encaminhadoras de um sentido que s6 pode porém pens mente evolar da atenedo a0 conjunto da andiise. A consecucto da pesquisa dependeu — como s6i acontecer concurso Unico de circunstancias, instituigdes e pessoas. A primeira mengio, nesse sentido, deve reeair como um todo sabre 0 Programa de Pos-Graduagio em Antropologia Social do Museu Nacional/ UFAU; sobre seus protessores, alunos, funcionirios, biblioteca; estado de espirito, enfim, 20 qual se hi de atribuir o que de melhor posse haver neste pequeno éragmento de suas atividades. Dentro dole, Gilberto Velho, meu crientador, tove evidentemente uum pape! especial, cuja importincia extravasa de muito aquela sus funcio festa minha prestacSo. Nossa convivio intelectual e pessoal neste Gltimo perfodo foi uma das melhores trips de minha vida. Para com Otdvio Velho, Luiz de Castro Faria e Luis Tarlel de Aragio tenho débitos diferentes mas’ igualmente intensos no que toca a conducso do meu pensamento ea articulacio de um certo desempenho subjacente @ este trabalho. A amizade © o trabalho intelectual Conjunto com Ovidio de Abreu Fitho foram uma cara experiéncia e preciosa ajuda, Creio que idénticas pe lavras poderia aplicar 20 que representou 0 contato ~ no entanto recente — com Peter Fry. José Sérgio Leite Lopes e Marla Rosilene Barbosa Alvim, meus bons vizinhos de “cela” e de tema, sempre foram estimulantes e prestimosos, ‘0 Grupo de Trabalho sobre “Cultura Popular e Idealogia Politica” da Associac3o Nacional dos Programas de Pés-Graduaco ¢ Pesquisa em Cisncias Socials (ANPOCS), coordenado inicialmente por Ruth Cardoso & Gilberto Velho e, no tiltimo ano, por Eunice Durham, representou um foro de estimulante ¢ continuada discussfo dos problemas com que me vi is voltas nesse periods, desde que, no seu Ill Encontro, af apresentei meu primeiro pequeno texto sobre 0 nervoso (cf. Duarte, 1982} Ainda no espaco académnico, cabe registrar conversas ou informagées possoais que foram utels diretamenta pare este trabslho. Devo-as a Gigi de Abreu, Siglia Doria, lane Strozemberg, Parry Scott, Mauricio Lougon, Lucy Manso, Maria Noemi Castilhos Brito, Roberto Kant de Lima, Renato Seidl e Sérgio Carrara .Jé me referi & importincia da experiéncia no Grupo de Acari. Nao me referi & gratiddo e carinho que devo a Elizabeth Paim Santos, Maria Rebello Terra, Rosingola de Castro Goncalves, Maria de Fatima Lago Gar cia e Daniela Ropa, Foram companheiras admiraveis de trabalho. Pude me beneficiar, 30 longo de parte deste periodo de trabalho, do convivio com Marguerite Labrunie, profissiona responsével por uma “dé ‘marcha en interiorité” que me foi certamente de grande vala. apoio financeiro do CNPq, da FINEP e da Fundagio Ford garantiu 4 realizago deste trabaltio ao longo de suas miltiplas fase de um 22 davidanerosa Marisa Colnago Coetho, com sua eficiéncia e bom humor, sempre me dou 8 tranqililidade de que tantas massas sucestivas de manuscritos pudes sein se transformar afinal em um texto legivel.! “Garde sans cesse Ithaque présente 4 ton Constantino Kavatis * Este trabalho € ume versio redueide de uma Tese de Ooutorade apresantada co Programa de Pbs-Graduario em Antropalagia Social da Museu Nacional, UFR. Aos yradecimantos origins dove-s aerercantar o que € ayora davico 8 Uance Examing- ora, composta por Ruth Cardoso, Sérvulo Figueira, Petar Fry e Otévio Velho, som 4 presidéncia de Gilberto Velho. © trabalho de redugio da Tose para este Formate ievou parciaimente em consideragdo eugest@er da Ganca 0 ESPAGO CULTURAL DOS NERVOS E NERVOSOS previo ter nervoe de apo, / ter sangue nas weiss, / bo ter corset. Lupicinio Rodrigues D. Laura ~ preciosa informante ao longo de sito anos de conversa e obser vaego mdtus — mostrou-me uma vez como Se preparava uma siinpatia para (0s nervos. Ein um copo ao lado de sua came isolada de vellia doente estava mergulhada de caboga para baixo uma rosa banca. Depois de um dia € uma noite 2 rosa, jd despetalada, devia ser jogada fora, sobre um vaso de plantas, e a égua, assim tratada, bebida com devogdo para alivio de um de seus muitos malas: 0 nervoso. Nao dispunha de ura interpratagdo direta e explicita sobre a relago que essa terapla guardava com o mal impertinen- te, No verdade, obtivera a receita em um programa de radio escutado atery tamente a cada dia, como uma fonte inesgotdvel de campanhia, consolo e explicargo de mundo. Seu fillho, Roberto ~ 0 dono da casa ~, reclamava porém freqdente- mente da audiedo do pragrama, que tornava D. Laura, segundo ele, sempre mais nervosa, Sua mulher & as muitas filhas, que a essa época ainda com- ppartilhavam com eles do espayo exiguo da casa em Jurujuba, eram da mes: ‘ma opinifia: nfo 86 0 programs deixava-a mais nervoso, como Ihe ensinava ‘mais receitas para essas sujairas, que a muito custo toleravam na alcava a0 lado da cozinha. Como meexplicava D. Laura, custare a obtera rosa, traziés por um dos netos cuja dedicagao Ihe era cara. “Afinal de contas” ~ dizia ela — "tenho ‘uma veia do coragio atravessada sobre um dos rins. Quando fico nervosa ou ‘tenho aborrecimentos, isso provoca muitas problemas", Seu primeira bis: eto, segundo ela, também era muito nervoso (o menina a esse momento relutava em almogar no colo da tia, pouco mais velha que ele, na cazinha 20 lado} e ela havia visto isso logo que nesceu, porque o pai tinha 0 yénio muito atravessado e fazia sofrer a mulher com suas exigencias e seus cid ‘mes, Tinha sido 0 primeiro parto de sua neta, apés uma gravidee chela des- sas amofinapées. No caderno de campo, préximo &s anotagées desse dia, reencontra a palavta amofinardes, também na boca de D. Laura, Referiase & sua irm mais nova, vizinha da casa om frente, uma velhinha dgil com quem pude Conversar. ‘Diz que ela tem o f7gado opilado pelo que sofreu com 0 marido, 23 24 da vide nervora homem muito rvim, ¢ depois com os filhos. Alguém da casa, owvindo-e esfiar tantas historias atrazes de espancamentos e hebida, afirma que nBo sabe como D. Quetinha pode conservar 0 equilibria mental, sotrendo ten. to. Lembro-me que, a0 ouvir gritos uma ve2, disseram-me que era uma de suas filhas, que era maluca e estava tendo uma de su crises. No entanto, neste dia agora, nio se faz referéncia & oucura da fill, mas 8 sua ruinda de ¢ a de todos os irmfos. E acruscontase que, nervosa como é, 0. Qui nha nio pode parar de trabalhar: par Isso ndo conversa quase com nin gue, No entanto, encontro o registro em outra época, da informacso de ue Joana de Deraldo, a mulher do outro filho de D. Laura, que mora no alto do morro, no trabatha mais na fébrica porque est4 encostada por nor voso devido 20 barulho excessivo qui id havia suportado, Ela nao é bem vista pele familia com que more O. Laura e Roberto diz que seu iro Deraldo ¢ maluco, quando comento com ele algum detalhe de sua vida aci- dentada e dificil. Roberto muitas vezes me falou de seu préprio nervoso, das muitas lutas e sotrimentos, da experincia de participacso na guerra (serviu na Marinha, nos patrulhamentos costeiros) que produziu tentos euréticos de guerra com quem convive regularmente na Asrociacdo das Ex-Combatentes. Discorre com sisteindtica reprovacso sobre 0s hespicios, de cuja violéncia teria sido vitima no Hospital do Exército. Certa vee per- guntowme de sopetéo se eu também tinha “problemas de. ., de, .. ner vos” e como eu respondesse que sim, disse que também ele, acrescentando: "acho que é uma psicose". Recomendame expressamente que nio tome drogas; que ele préprio quando se sente com uma alterapa, "assim de vez lm quando. ..”, trabalha intensamente, para cair na cama de cansado. Em muitos momentos lamentou que sues intengées de mobilizar em torno de reivindicagbes trabalhistas seus coleges de pesca exbarrassem em parte na representagdo comum de que ele era maluco ~ e eu mesmo pude perceber 1m diversos momentos que este estiga muito forte convivia amplamente com sua legitimidade de hamem que tinha Jertura, que sabia falar @ que de- tinhe uma posi¢go eminente no baitro em diversas situagées “rituals” (por exemple, como leiloeiro da Festa de So Pedro). Pude perceber recentemente, a0 reler parte de minhas notas sobre essa familia, que 0 periode to abscuro e angustiado em que Roberto esta: ve sendo aposontado nos Correios » Tolégrafos (onde trabalhara longamen: fe) correspondia & expresso de parte de um drama muita complexe que me foi explicitado sob apenas um de seus angulos ~ talvez o mais consen: aneo com a identidade que me conferiam ¢ contra a qual sempre cioss mente se recortavam. Roberto afirmavase vitima de uma perseguicio de cerdter politico — tanto politico-institucional quanta politico-ideol6g) na qual se via impotentemente arrestado. Sua familia calava-te sobre o cur so dos eventos e ndo eta fécil conduzir a conversa sobre o tema, carregado de conotagGes dolorosas. Anos depois, essa aposentadoria era vista como uum beneficio importante, que garantira a Roberto o tempo @ 0 gosto de retornar & pesca num pequano barco mal e mal caracterizador da identida- de legitima de dono de pescaria, A rememoragiio dos perfodos de encasto © erpare culturaldor nervor a nervosos 26 € interneeSo por nervoso que antecederam a esse evento fazem-me hoje supor, por analogia com tantos outros casos depois conhecidos, que Rober- to estivesse finaimente obtendo essa spesentadoria por doonca das nervos por que “almejam” sempre os manipuladores do encasto. Apenas, contra: Fiamente a0s que observaram © fendmeno do panto de vista da passagem pola instituigo psiquidtrica (de que é exemplo a experiéncia de Simone Soares {1980] oportunamente analisada), eu estava assistindo a vers8o do méstica de uma crise cheia de ambigitidade. Bo prépria cunhado de Roberto se dizia estar encostado no INPS por doencs mental desde a feléncia da firma em que trabalhara durante vinte anos © que se esperava pudesse logo obter sua aposentadoria para poder dedicarse plenamente ao sou pequeno comércio, A irma deste, Aurélia de Roberto, com sua imensa pachorra, era poupada do muitos ¢s- forgot domésticos por causa dos sous nerves, embora Laura, sua Sagra, me dissesse entre dentes que ela era muito ruim mesma; que no ere maluce ndo, e que a persequia de propdsite. Uma vez encontrei D. Aurélig com a quatta filha (na alta adolescéncia) parada no panto de énibus do bairro. Em casa, um dos rapazes disse um pouco a contragosto que tiniham ido 20 médico porque @ irmd estava muito nervosa, Embora houvesse uma nitida intengo de ndo me por a par do que se passava, vim a saber na vizinhanga que a moga estava muito triste, sem disposiedo para nada, e que isso certa- mente tinha @ ver com algum caso amoroso mal conduzido — talvez até mesmo alguma coisa grave {0 que era dito com esse arquear cdmplica das sobrancelhas que parece sugerir a possibilidade da perca da virgindade) Desde que a conhecera, D, Laura tinha na boca um tinico dente, bem 3 frente, que the fazia sibilar a voz aguda nos relatos emocionarlos de uma longa e cdlida experiéncia de vida. Uma vez, encontrei-a deitada, recupe randose da extrago do dente que, segundo ela, Ihe teria estado atacando © nervoso. Mais adiante, pouco antes de pedir desculpas por interromper @ entrevista, reclamava do médico do posto de saude local, que, ante suas ‘queixas de dores ne peito, dizia ser o seu problema “apenas” de nervose, Gurante essa conversa, comentara ainda que Maria Gdete, uma vizinha que ccansiderava de algum modo como “herdeira” de suas antigas e muito inti mas e prezadas releges com a umbanda (estes assuntos nunca se tornaram muito claros para mim, porque D. Laura os comentava em vor desesperan temente imperceptivel, de modo a ndo ser ouvida pelas netas), estava mal 9, meio alucinade e "'néo sabia 0 que fazia"; o que parecia temer atribuir @ alguma infragdo ritual, Isso também a deixava nervose, mas nio pude pre cisar se devido @ uma simples solidariedade vicinal, & sua responsabilidade como "imentora” de Maria Odete ou & participagio num intimo parentesco espiritual que as afetava, ‘Nesse mesmo dia visitel Otelo, casado cam uma sobrinha de Laure, © que também se encontrava acamado, abatido pela tuberculose que Ihe tiraris @ vida duas semanas depois. Era vor corrente que estava hd muito tempo encostado por nervoso, motivo pelo qual sua mulher era das pow: cas locais a trabalhar na fébrica vizinha de eniatamento de sardinha — a ‘mesma onde Otelo perdera a sade, segundo seu relate, ao enfrentar a al 26 davide nervora ternancia brusca de frio e calor e ao suportar longamente 0 ru(do 8 0 che 0 excessivos. Falamos sobre muitas coisas ¢ cortamente sobre as lembran. 8 do periodo em que fui seu vizinho contiguo. Como uma voz na subi da do morro reclamasse do peso das latas d’gua Com que duas vezes 20 dia se tem de abastecer 0s barracos, velo @ baila o retorna de Deraldo a0 tapo do morro, para mais longe de onde saire meses atrds & cata de outro pou: 50, Otelo comenta que Joans de Deraldo, assim como ele préprio, eram abobados — 0 que tanto complicava a vida de suas familias, Um relato como este, que fosse encaminhando meu material etnogt fico pelo fio das categorias fIsico-morais em torno do norvoso, acsbaria arrebanhando, como 0 mapa de Borges, a rede completa dos intormantes ©, 8 partir deles, a rede total de relagdes registradas, ¢ toda a pritica obser vada e valores ressaltados. A famnlia de D. Laura, que usei como foco de um exemplo impressionista, no é nenhum antra de desatino ou desvio, E uma familia forte, com sinais de ume reprodurSo eltamente legitima para os pa dies locais, admirada @ invejada por diversos motivos. Face a tantas casat ensombrecidas pela ruina econdmica e moral, ela se erige como exemplo de vitéria na /ut2 permanente em nome dos valores do trabalho, da obriga 0 © do respeito, autorizando 2 seus membros uma dignidade quate aris- tocratica, Ela compartitha, porém, com todos seus vizinhos ~ e com um amplo segmento da sociedade nacional ~ de um eSdigo especitico para falar dot infinitos embaragos de sua pritica de vida, do embate quotidiano entre valores e situagdes, valores e valores, situagées e situagias. Esse eédigo muito complexo, 6 que the permite ser eficaz, é muito embutido nas re- presentagGes gerais, o que Ihe permite ser Intenso; € muito Tlexivel, o que the permite ser abrangente. E 6 assim como 0 6 toda linguagern: abrangen te, intensa e eficaz; 20 mesmo tempo instaurando e conduzindo a signifi ego e sustentando os sujeitos em sua prética social. Como toda lingua: gem também, quarda solidariedade com uma cultura especifica @ tem fron- teiras de permanéncia e sentido que lhe so homé logas, Nosso foco analitico se centra na linguagem do neryoso ¢ em sue re laglo com uma “cultura das classes trabalhadoras urbanas". Outros eapitu los se ocupardo de discutir os indmeros problemas mais te6ricos que enval ve um tal recorte, Aqui exponho o campo etnogrsfico em que me pude ‘mover, ndo 6 para suscitar o interesse do leitar — 0 que jd seria um bom ‘motivo — mas para permitir perceber a linha viva dos cortes, 0 trago das in: tervengdes diferenciantes na massa multiforme de informagSes oriundas de uum garimpo eivado de intuiggo e divide De uma maneira introdutoriamente imprecisa, poderia dizer que me voltei sobre tudo o que expressava nesses espacos culturais a drea das “per turbagSes” ~ de todas as categorias com que se designava os sinais do que indo vai bem” com a5 pessoas; e para onde tais sinals apontavam, de onde pareciam fluir e como se entrelacavam e se interdefiniam. E evidente que isso nao inclufa, em principio, os males alocaiveis uni vocamente ao mundo das causalidades fisicas, assim como todas o$ outros alocéveis, também univocamente, 8 ago genérica de grandes princ/pios re- ‘© espaga cultural dos nervos e nervoros 27 ligiosos, cosmolégicos ou sécio-econémicos. A “perturbacio” procure de- signar Um ponto de permeago ou passagem entre esses polos da visdo de mundo dos sujeitos, por mais que, 20 final de contas, ele possa avancar se- bre eles, interligé-los e —~ possivelinente para nossos oihos — emberalha-los e investi-los de uma significacdo bem outra. No sentido tentativo em que nos aproximamos dessas questées € que pude chami-lo espaga "“fisico- moral”. Como expliquei na Introdugdo, 0 materlal derivou de tocos de pes quisa direta e indireta, assim como do um amplo espectto de informagdes culturais, etnogréficas ou no. O exemplo da familiade D. Laura extraise da ‘ios intense dessas fontes, equela que, em boa medida, pela vigor intrinse: co da experiéneia longa v intensa pSde, em tantos santidos, propiciar at chaves de aproximada compreensio que aqui se faré exnor e discutir. Nosse breve relato apereceram, grifadas, indmeras dessas categorias de “perturbacéo” 2 que me referia. Passada a batela entre todas aquelas fontes de material relevante e abstraindo neste momento todos os recortes de origem, plano de relevancia e contextualidade, encontrase um quadro muito amplo de referéncias desse tipo que apresento em seguida de mani a propositadamente formal, para s6 em seguida ir procedenda, pouco @ pouco, as primeiras especificagdes que lhe fornecem sentido. Este quadro procura sqrupar as expressGes imediatas das “perturbacées", sem se ocupar portanto ndo apenas da contextualizagSo, mas também das supostas “cat salidades” — dimensdo das mais delicadas a que se sterd oportunemente @ dliscussdo? Evidentemente ~ e como poderd ser facilmente percebido — a des: contextualizacdo e agrupamento formal implicam uma recontextualizacio operada de acordo com alguns de nossos principios comuns de classifica Glo formal, Tratarseia de um recurso inconveniente em qualquer caso em Que a apresentagio do universo de pesquisa nio exigisse uma aproximacdo ‘do delicada e tateante © primeiro sinal desse quadro formal 6 0 de que a expresso das “perturbacSee™ langa mio de uma série de metéfores mecinicas e organi: cas especificas no grupo em que prevalece a explicita mengZo aos narvos & 80 nervoso, Podemos assim organizar um quado tentative em que da colu- nna da esquerda 3 da direita passamos do mals estitico ao mais dindmico ¢ do mais dindmico ao "distuncional": " ceto que seia conveniente ressaltar, no tocente 20 uso da palvra “pertubacio" ‘que, @ par da acepeso genérica em quo setou utilizande, na forme definido, ela tary ‘bem aparece como uma categoria dos informantes, entre as multas outras que com pom justamenta os quadros samdaticos rocensoads nest eapitule, A perturbarso &, este sentido, uma das formes locas de referencia “perturbaglo" fisico-moral, Hé xempias daste uso, por exempla, nos discursos umbandistas transesitor em Guedes, 1974, as fontes paralles cle etnogratia do nervoso so muito numerosss de qualidade & Dertingncia muito iepares. As roforéncias mais importantes slo es de Soares, 1080; ‘Alws, 1962 e Loyola et af, 1977. Utilize! ainda, na tacante 20 Baill, Montero, 1883; Queiroz, 1978; Brand36, 1976 0 1981; Figuoiredo, 1979; Belt, 1979; Ibe

Você também pode gostar