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JEE

Jornal de Estudos Espíritas 1, 010101 (2013) - (1 pg.) Volume 1 – 2013

Bem vindos ao Jornal de Estudos Espíritas – JEE


Alexandre Fontes da Fonseca1,a e Ademir Xavier2,b
1
Bauru, SP
2
eradoespirito.blogspot.com - Campinas, SP
e-mails: a a.f.fonseca@bol.com.br; b xavnet2@gmail.com
(Publicado em 12 de Maio de 2013)

I B OAS V INDAS os interessados, Autores e Leitores, para submissão de


artigos de pesquisa, mesmo que simples, resultados de
Gostaríamos de dar boas vindas a você Leitor ao mais
seus trabalhos de estudo.
novo projeto de periódico espírita, o Jornal de Estudos
Um propósito implícito no projeto de criação do JEE ,
Espíritas (JEE ), criado para auxiliar o Movimento Espí-
é estimular a formação de uma massa crítica de pesquisa-
rita em um dos seus mais importantes aspectos: o desen-
dores espíritas que, independente da formação acadêmica
volvimento do caráter progressivo da Espiritismo.
ou grau de instrução, sejam capazes de criar e desenvol-
O Espiritismo encontrou um terreno fértil no coração
ver uma tradição de pesquisa similar ao que ocorre em
do povo brasileiro. Aqui se desenvolveu com um destaque
todas as áreas do conhecimento humano. Os requisitos
especial para o aspecto religioso-moral que, em nossa opi-
básicos para isso são o sincero desejo de estudar e de se
nião, é de grande importância para garantir a assistência
esforçar pelo entendimento e aplicação dos conceitos e
permanente dos bons Espíritos. Consideramos que o Mo-
princípios espíritas no desenvolvimento do conhecimento
vimento Espírita no Brasil e no mundo deve permanecer
espírita.
fiel ao lema maior do Espiritismo que é fora da caridade
Nesse primeiro momento, o JEE terá também uma
não há salvação [1] o que implica em manter a chama do
seção de Artigos Reproduzidos, na qual são apresen-
aspecto religioso e moral sempre acesa.
tados artigos de pesquisa espírita previamente publicados
O Espiritismo, como todos sabem, possui tríplice as-
na literatura espírita que apresentem, em nossa opinião,
pecto (ítem VII das Conclusões em O Livro dos Espí-
resultados interessantes ou que sirvam de modelo e refe-
ritos [2]): “o das manifestações, o dos princípios e da
rência para os iniciantes e jovens pesquisadores espíritas.
filosofia que delas decorrem e o da aplicação desses prin-
Assim, é com grande satisfação que apresentamos o
cípios.” Se de um lado o aspecto religioso e moral se
Jornal de Estudos Espíritas – JEE a você Leitor e convi-
desenvolveu bem, os aspectos científico e filosófico do Es-
damos a todos os Autores em potencial (o que inclui você
piritismo requerem mais atenção.
Leitor) a desenvolverem projetos de pesquisa espírita e a
O propósito do Espiritismo é a regeneração da Huma-
submeterem os resultados desses projetos na forma de
nidade o que ocorrerá através da melhoria de cada um [3].
artigos para publicação no JEE . Essa é, sem dúvida,
Para isso, o Espiritismo propõe a fé raciocinada [1] como
mais uma forma de trabalhar pelo caráter progressivo do
elemento de fortalecimento de nossas crenças nos aspec-
Espiritismo. E, como essa tarefa não é de uma ou duas
tos religiosos e morais da vida. No capítulo XIX de
pessoas, o JEE permitirá que isso ocorra pelas mãos de
O Evangelho Segundo o Espiritismo (ESE) [1] Kardec
Todos os espíritas que na dedicação ao estudo e ao tra-
afirma que “Fé inabalável só o é a que pode encarar de
balho de pesquisa, quiserem contribuir.
frente a razão, em todas as épocas da Humanidade.” E
Que os bons Espíritos, com a permissão de Deus, ilu-
é impossível encarar a razão sem o estudo aprofundado
minem e inspirem a Todos na honrosa e responsável ta-
do Espiritismo e de todas as coisas. Por essa razão, o
refa de estudar para bem contribuir com o progresso do
Espírito de Verdade (cap. VI, ítem 5 do ESE) apresenta-
Espiritismo.
nos não somente o “amai-vos” como mandamento, mas
também, o “instruí-vos.” Se de um lado o amor e a ca- Atenciosamente,
ridade são condições necessárias ao nosso progresso, o
estudo também se faz necessário para complementar a Os Editores
nossa formação espiritual.
Segundo Kardec (ítem 55 de A Gênese [4]), o Espiri- R EFERÊNCIAS
tismo é progressista. E, em função do interesse crescente
do Movimento Espírita em desenvolver esse aspecto do [1] A. Kardec, O Evangelho Segundo o Espiritismo, Editora
FEB, Rio de Janeiro, 112a. Edição, (1996).
Espiritismo, apresentamos o presente projeto de perió- [2] A. Kardec, O Livro dos Espíritos, Editora Edições FEESP,
dico espírita em moldes acadêmicos, voltado para a pu- 9a. Edição, (1997).
blicação de artigos inéditos de pesquisa espírita, de forma [3] A. Kardec, Revista Espírita, Jornal de Estudos Psicológicos
similar aos periódicos acadêmicos ou científicos de todas 8, 219 (1865) (edição da Editora Edicel).
[4] A. Kardec, A Gênese, Ed. FEB, 34a Edição, Rio de Janeiro
as áreas do conhecimento, em todo o mundo. O JEE , (1991).
a partir da presente data, abre suas páginas para todos

Seção 01: Comentários 010101 – 1 Autor(es)


c
JEE
Jornal de Estudos Espíritas 1, 010201 (2013) - (9 pgs.) Volume 1 – 2013

Uma tradução comentada de “Como a Parapsicologia poderia se tornar


uma ciência” de P. Churchland
A. Xavier1,a
1
eradoespirito.blogspot.com - Campinas, SP
e-mail: a xavnet2@gmail.com
(Recebido em 23 Abril de 2013, publicado em 11 de Maio 2013)

R ESUMO
Apresentamos uma tradução comentada do artigo “How Parapsychology could become a science” [Inquiry: An
Interdisciplinary Journal of Philosophy, Volume 30, Issue 3, p. 305, (1987)] do filósofo Paul Churchland. Este artigo
é uma crítica epistemológica bem embasada à Parapsicologia, crítica que deveria ser seriamente considerada pelos
praticantes dessa disciplina, se eles pretendem, de fato, fazê-la avançar. Alem disso, Churchland lança dúvidas bem
fundamentadas sobre o paradigma materialista presente. Vale a pena estudar com atenção este trabalho.
Palavras-Chave: Parapsicologia; Paul Churchland.

I I NTRODUÇÃO mas nem tanto. A Parapsicologia, como praticada pre-


sentemente, não parece a mim ser uma ciência genuína
Este artigo apresenta uma tradução comentada Ou, mais precisamente, desde que essas coisas são uma
do artigo “How Parapsychology could become a sci- questão de grau, ela parece demonstrar um teor exces-
ence”(Churchland, 1987), de autoria do filósofo Paul sivamente baixo de atividade científica, o que justifica a
Churchland. Em vista de opiniões que asseveram indiferença e o ceticismo que ela encontra no resto da co-
que a Parapsicologia constituiria-se em uma disciplina munidade científica. Por outro lado, acho também que
científica e que ela seria mais adequada que o próprio ela poderia se tornar uma ciência respeitável. Pretendo
Espiritismo ao estudo e investigação científicos dos fenô- explorar aqui como isso seria possível.
menos espíritas, o presente artigo esclarece e demonstra,
respeitosamente, as deficiências dessa consideração. Por-
tanto, sua leitura e estudo é de importância para situar III O ARGUMENTO DA TOLERÂNCIA
os méritos científicos do Espiritismo como teoria capaz Minha abordagem inicial a essa questão vem do ponto
de explicar e descrever os fenômenos espíritas. de vista de um materialista. Quer dizer, sou profun-
O artigo está organizado da seguinte forma. Após damente tocado pela sucesso empírico extraordinário de
traduzir o resumo, na seção seguinte, apresento a tradu- várias ciências físicas, da física subatômica a bioquímica,
ção do artigo incluindo as subseções definidas por Chur- biologia evolucionista, neurociências, astronomia, cosmo-
chland. Os meus comentários são apresentados em for- logia e história natural. O sucesso sistemático e inter
mato itálico, seguido da palavra Comentário ao longo relacionado dessas ciências nos incita a levar muito seria-
do texto, em parágrafos localizados após o ponto ou ques- mente a hipótese de que todos os fenômenos no Universo,
tão a que eles se referem. sem exceção, se devem à articulação intricada de um a
grande quantidade de elementos físicos e relativamente
II R ESUMO pequenos que agem de acordo com um conjunto limitado
de leis puramente físicas.
Um argumento metodológico importante é desenvol-
Comentário: O argumento colocado por Churchland é ir-
vido em apoio a um desafio teórico geral ao paradigma
retocável. O materialismo ainda é a “teoria predileta” por
materialista dominante. A ideia é que as inadequações
causa de uma grande variedades de fenômenos que podem ser
empíricas da teoria dominante podem estar ocultas da
explicados de forma muito satisfatória com ele. Isso sanciona
vista por vários fatores e emergirão das sombras somente
seus princípios e permite que a ciência avance na explicação
quando vistas da perspectiva de uma alternativa concei-
de outros fenômenos.
tual sistemática. A questão que se coloca, então, é se
a Parapsicologia fornece essa alternativa conceitual ade- Em particular, parece-me bem provável que todos os
quada à tarefa. Nossa conclusão provisória é que ela não fenômenos decorrentes de criaturas que têm sentimentos
fornece. Algumas outras consequências são tiradas disso, são outro exemplo de articulação de propriedades da ma-
no que diz respeito à face experimental da tradição pa- téria governada por leis físicas. Somos evidentemente fei-
rapsicológica.1 tos de matéria. Evoluímos por uma processo puramente
O título do trabalho corre o risco de me desmascarar, físico, embora complexo, de organismos primitivos e sim-
1 Formato do resumo em itálico é do original, por isso mantido aqui.

Seção 02: Artigos Regulares 010201 – 1 Autor(es)


c
Uma tradução comentada de “Como a Parapsicologia . . .

ples, também feitos de matéria, organismos cuja linha- naquela possibilidade, ela não será procurada em lugar algum
gem nos leva a uma sopa primordial puramente química. - o que implica que os métodos de pesquisa não poderão ser
Nossas atividades sensoriais, cognitivas e motoras, tanto orientados na direção de sua demonstração.
quanto as compreendemos, são outra mistura de aconte-
Qualquer teoria de sucesso sempre ignora ou suprime
cimentos químicos, elétricos e mecânicos. A força desse
uma grande quantidade de evidências empíricas proble-
arcabouço conceitual é uma das razões principais porque
máticas e fracas, que são consideradas irrelevantes ou
a grande maioria dos cientistas consideram impossíveis
“ruído” inevitável. Nenhuma teoria jamais ajustará to-
as afirmações sobre os “fenômenos psíquicos”, pois tais
dos os dados experimentais perfeitamente, uma vez que
ocorrências são incompatíveis com o ponto de vista ma-
as situações experimentais que a testam sempre trazem
terialista bem estabelecido do Universo e do nosso lugar
consigo um horizonte de detalhes sutis além do qual não
nele.
temos nem conhecimento e nem controle.
Comentário: Churchland aponta aqui a principal razão
para o ceticismo com relação aos fenômenos anômalos, que não Comentário: Essa afirmação extremamente forte de Chur-
são completamente explicados pela teoria dominante. chland reflete a realidade de que não podemos saber tudo no
mundo: há um limite para o conhecimento humano que vai
Por outro lado, parece provável também que esse até o “horizonte” além do qual estão as aproximações e os fa-
ponto de vista pode estar errado. Seu sucesso explicativo tores incontroláveis ou desconhecidos.
até o presente, não importa o quão generalizado ele seja,
não garante sua verdade. Outros paradigmas, em ou- Além desse horizonte, estão os elementos inevitáveis que
tros momentos históricos, também gozaram de domínio são ou muito pequenos, ou muito complexos ou por de-
semelhante sobre grande parte da experiência humana e, mais inacessíveis para que se exerça domínio ou controle.
mesmo assim, se mostraram falsos. Pequenas discrepâncias entre a teoria favorita e os resul-
tados experimentais são, portanto, frequentemente con-
Comentário: Novamente a argumentação é bastante ló- siderados como atividade ruidosa produzida por fatores
gica. Ainda que esse paradigma dominante tenha experimen- além do horizonte do que é controlável.
tado um sucesso impressionante, não segue disso que ele seja Não existe erro nisso. A alternativa é tentar contro-
verdadeiro. Além da teoria aristotélica citada pelo autor, há lar a posição e o aspecto de cada partícula no Universo.
outros exemplos históricos interessantes de teorias que foram Ao invés disso, tentamos controlar o quanto acreditamos
altamente consideradas no passado e que se mostraram errô- ser necessário e prudente controlar, e deixamos todo o
neas. resto ser como é. E, aquelas áreas experimentais onde
A hegemonia organísmica de Aristóteles vem a minha não temos esperanças de exercer controle nos detalhes
mente aqui. Nesse caso, foi bem essa compreensão de que acreditamos como relevantes, simplesmente as igno-
visão de mundo abrangente que nos cegou para muitas ramos como intratáveis ou desinteressantes. A teoria fa-
particularidades que surgiram depois, sob inspeção mais vorita pode não explicá-los, mas essa deficiência não é
detalhada. Talvez o materialismo moderno nos cegue de considerada um problema sério.
igual forma. E, quem sabe, a pesquisa que é conduzida Comentário: Ainda que estejamos cientes de que nossa te-
sob a bandeira da Parapsicologia seja bem o tipo de coisa oria predileta tem limitações, não iremos jogá-la fora por causa
que nos irá libertar dele. de qualquer detalhe menor, que deve ser desprezado, para que
O quão possível isso é nós discutiremos oportuna- possamos “salvar” a grande imagem que nossa teoria é capaz
mente. Teremos que ponderar o sucesso sistemático das de demonstrar com sucesso.
ciências físicas contra as afirmações de parapsicologis-
tas que insistem que existe uma variedade de resultados Pode ser possível, porém, que os fatos empíricos im-
experimentais que não podem ser explicados em termos portantes que refletem a falsidade da teoria favorita e
dessas ciências. Evitarei essas questões empíricas em al- “de sucesso” seja encontrado justamente nas áreas expe-
gumas páginas à frente, uma vez que existe um argu- rimentais que se imaginou serem intratáveis ou além do
mento puramente metodológico que pode ser levantado horizonte dos detalhes controláveis da área considerada
em apoio à pesquisa parapsicológica, não importa o quão tratável. Nesses casos, a teoria favorita goza de uma se-
forte sejam as evidências que sustentem, por sua vez, o gurança por exercício de refutação imerecida. Os fatos
materialismo. refutantes estão lá, mas por razões complexas, eles são
O argumento vem de (Feyerabend, 1963) e não tem difíceis ou impossíveis de serem percebidas, pelo menos
nada a ver com as virtudes ou vícios da Parapsicologia. enquanto continuarmos a interpretar a situação em ter-
Feyerabend chama a atenção ao fato de que, muitas ve- nos da teoria predileta. Pois, essa é a teoria que nos
zes, a única forma de descobrir as inadequações verda- ajuda a decidir que detalhes são relevantes e quais são ir-
deiramente empíricas de uma teoria bem estabelecida é relevantes, além de separar as situações que são tratáveis
construir teorias alternativas que forneçam novas inter- daquelas que não.
pretações para dados experimentais familiares e velhos
Comentário: As ciências dos fenômenos psíquicos estão re-
conhecidos.
pletas de “razões complexas” que tornam difícil ou impossível
Comentário: Isso acontece porque é a teoria que orienta o que se percebam os novos fatos. De certa forma, a fonte dessa
processo de pesquisa científica. Se a teoria não crê nessa ou dificuldade está na própria influência do paradigma predileto

J. Est. Esp. 1, 010201 (2013). 010201 – 2 JEE


Xavier, A.

que separa claramente quais os fenômenos que merecem aten- O movimento igualmente ativo observado com partículas
ção daqueles que são apenas “ruído”. sem vida de fumaça destruíram essa hipótese, sem qual-
quer ameaça à segunda lei. Quem não poderia dizer que
A melhor maneira de sair dessa situação, sugere Feye-
nova energia estivesse continuamente a ser fornecida de
rabend, é construir uma teoria alternativa comparativa-
alguma fonte microscópica e quem seria capaz de con-
mente geral com a qual produziríamos novas interpreta-
tabilizar de forma precisa a quantidade de energia con-
ções para os dados experimentais, ou que nos diria quais
sumida por tais partículas tão pequenas, ou pelo meio
são os detalhes relevantes e quais não são, ou quais situ-
difuso em que elas estavam em suspensão, a fim de cal-
ações são tratáveis diante de outras consideradas intra-
cular se isso estava em desacordo com a teoria clássica
táveis.
do calor? Tais coisas estavam muito além da capacidade
Comentário: Trata-se do princípio da “contra-indução” de determinação experimental. E, assim, o movimento
proposto por Feyerabend. Esse filósofo buscou demonstrar que Browniano permaneceu como um problema menor para
a melhor forma de fazer avançar a ciência não seria por “indu- os teóricos clássicos, se é que ele fosse sequer notado. A
ção”, mas por “contra-indução” que, grosseiramente, implica teoria clássica dominava a paisagem como um gigante
em se construir teorias alternativas para fenômenos conheci- intocável.
dos (sem abandonar a teoria predileta), e ver se, de fato, há Mas, não por muito tempo. Uma teoria alternativa
outra maneira de se explicar os mesmos fenômenos com o ga- e razoavelmente geral do calor foi eventualmente desen-
nho adicional de tratamento de outros aspectos desprezados volvida por razões que não tinham nada a ver com o
pela teoria principal. movimento Browniano. Essa teoria - a moderna teoria
Isso tem o efeito de destacar certos detalhes que, até en- cinética - propôs que o calor nada mais é do que um
tão, tinham sido desprezados, de revelar novos sinais a tipo de energia mecânica, a saber, a energia cinética das
partir do que se considerava ruído ordinário, de se des- moléculas que formam os sólidos comuns, os líquidos e
cobrir ordem onde antes só se via o caos. Em parti- os gases. Elas também estão em movimento, vibrando
cular, essa visão reconfigurada pode revelar falhas dra- caoticamente ou oscilando no nível microscópico. A tem-
máticas na velha teoria, falhas que eram invisíveis com peratura de um corpo foi interpretada como sendo apenas
falhas desde a perspectiva anterior. Feyerabend fornece uma medida de quão vigorosamente as moléculas cons-
um exemplo interessante desse fenômeno, que vale a pena tituintes estão se movendo. E a “conversão” inevitável
sumarizar aqui. O leitor deve me perdoar se simplifico da energia cinética no nível macroscópico em calor, que
demais a física a fim de destacar esse ponto metodológico. é um tema recorrente na segunda lei clássica, nada mais
A “teoria predileta” desta história é a teoria clássica seria do que uma distribuição dessa energia do nível ma-
do calor e energia, que tem como princípio central que cro para o micro. Uma bola pulando eventualmente para
todas as interações mecânicas envolvem ao menos a con- porque as moléculas do ar ou do chão levam embora par-
versão de energia mecânica em calor. Isso significa que, tes pequenas dessa energia cinética que estava tão or-
qualquer sistema isolado de corpos em movimento deve ganizada inicialmente no movimento coerente do pular.
eventualmente “parar”, assim como ficam em repouso bo- A bola agora está em repouso, mas ligeiramente mais
las de bilhar em uma mesa de sinuca depois de uma jo- quente, assim como o chão e o ar circundante. A energia
gada. A energia (mecânica) cinética é dissipada pelo sis- original da bola agora vive na forma de um aumento da
tema como calor. Todo o ambiente, a borda da mesa, o atividade das moléculas constituintes, tanto do ar como
ar adquirem uma temperatura levemente maior do que a do chão.
que tinham antes da jogada. Mas, o que dizer sobre as próprias moléculas em mo-
O ponto importante aqui é a generalidade de um prin- vimento? Elas não dissipariam sua energia cinética, à
cípio chamado “segunda lei” da termodinâmica clássica. medida que colidem umas com as outras, assim como no
De acordo com esse princípio, qualquer sistema de inte- caso da bola? Será que elas não terminariam também
rações mecânicas, que seja fechado à entrada de energia em repouso, mas ligeiramente mais quentes? Não, assim
externa, um catavento, um pêndulo oscilante, um con- prediz a teoria cinética. As interações entre as moléculas
junto de bolas de ping-pong colidindo em um caixa, deve são perfeitamente elásticas, o que é uma outra forma de
eventualmente sempre entrar em repouso. dizer que nenhuma energia é perdida em qualquer inte-
O fenômeno importante e falsificante dessa estória é o ração entre elas. Dessa forma, as partículas permanecem
movimento Browniano, descoberto pelo botânico Robert colidindo entre si felizes para sempre. As moléculas não
Brown no começo do século 19. O movimento Browni- podem dissipar suas energias cinéticas na forma de ca-
ano é a incessante agitação de partículas microscópicas lor, porque o movimento delas já é o que se chama calor.
suspensas em água ou ar, tal como espórulos de plantas Um sistema fechado de moléculas em colisão, portanto,
ou partículas de fumaça. O movimento caótico e apa- nunca estará em repouso.
rentemente eterno de tais partículas pode ser visto, e é Essa teoria não foi bem recebida pela maioria por uma
frequentemente visto, através de um microscópio, mas razão fácil de se entender. Por um lado, ela postulava a
não foi considerado como tendo qualquer relação com a existência de partículas que, por causa de seu tamanho,
termodinâmica clássica e a segunda lei. O palpite inicial jamais seriam observadas pelos humanos. Por outro lado,
de Brown para explicar esse movimento quase indetectá- essas partículas inerentemente “tímidas” eram admitidas
vel apelou para a biologia, afinal os espórulos estão vivos. como realizando colisões elásticas entre si, em contradi-

JEE 010201 – 3 J. Est. Esp. 1, 010201 (2013).


Uma tradução comentada de “Como a Parapsicologia . . .

ção direta com o princípio bem estabelecido da segunda oria tenha sido desenvolvida. E, também, implica que
lei. Na aparência, essa era uma proposta metodologica- devemos sempre estar abertos a tentativas de articular e
mente suspeita e improvável como fato. explorar alternativas conceituais interessantes.
Como testar essa teoria nova sobre a natureza do ca-
lor? Há muitas formas, mas discutiremos apenas uma
delas aqui. Moléculas são muito pequenas para serem IV PARAPSICOLOGIA : O LADO TEÓRICO .
vistas, mesmo com um microscópio, então não havia es- Podemos aplicar essa moral ao caso da Parapsicolo-
perança de se ver diretamente se um gás aquecido era gia? Acredito que sim. Mas, não é minha intenção aqui
composto de moléculas em movimento incessante. Mas, fazer uma apologia fajuta das pesquisas “psíquicas” e
se suspendermos partículas em um gás, partículas tão pe- cair fora. O que tenho em mente, ao invés disso, é o
quenas que pudessem ser afetadas de todos os lados pelo seguinte: a teoria cinética do calor é um claro exemplo
movimento das próprias moléculas de gás, mas grandes de um sucesso científico que teve muita sorte; que ca-
o suficiente para serem vistas ao menos com um micros- racterísticas gerais da teoria e/ou que características de
cópio, então o movimento incessante das moléculas será metodologia de seus proponentes foram responsáveis por
revelado pela dança incessante das partículas suspensas tal sucesso? Se pudermos responder essa questão, então
nele. Ou seja, se a teoria cinética é verdadeira, o movi- poderemos enfrentar a próxima questão lógica. Será que
mento Browniano deveria existir! Além disso, a violência as teorias propostas e a metodologia usada pelos propo-
do movimento observado deve ser proporcional à tempe- nentes da Parapsicologia têm qualquer relação mostrada
ratura absoluta do gás (quanto mais rápido as moléculas pelo nosso caso de sucesso?2 Vamos ver.
se movem, tanto mais rápido se moverão as partículas).
A primeira vantagem que os teóricos cinéticos tinham
E, mais ainda, a teoria cinética fez previsões sobre a dis-
era uma alternativa sistemática e detalhada concernente
tribuição de partículas de fumaça por causa da gravidade
aos fenômenos em questão. A nova teoria especificava
e da temperatura e resultou também num bom acordo
que qualquer gás, por exemplo, era constituído de um
com a lei clássica dos gases. Mas, não precisamos de-
grande número de partículas que colidiam de forma per-
talhar isso aqui mais. É suficiente dizer que todas essas
feitamente elástica entre si, partículas que tinham massa,
predições são experimentalmente acessíveis e todas foram
volume e velocidade. Ela previa que a pressão exercida
corroboradas em detalhes.
pelo gás em um vasilhame era nada mais que o efeito da
Dessa forma, uma curiosidade menor, de relevância
colisão incessante dessas partículas em sua parede. Ela
duvidosa para qualquer coisa, surgiu como um grande
afirmava que o calor total de qualquer sistema era a soma
fenômeno que revelou um aspecto oculto tanto da ma-
da energia cinética das suas moléculas constituintes. Di-
téria como do calor e se constituiu numa refutação per-
zia ainda que a temperatura global de um sistema nada
manente da segunda lei. Mas, isso aconteceu somente
mais era que o nível de energia cinética de suas molécu-
porque uma nova teoria nos mostrou uma maneira di-
las médias. E, dado que a noção de massa, velocidade e
ferente de se pensar as coisas. Tivéssemos permanecido
energia cinética eram bem entendidas então, um grande
cristalizados nas categorias e imagens da teoria clássica,
número de eventos microscópicos poderia ser tratado com
o significado do movimento Browniano jamais teria sido
a linguagem e as leis da mecânica Newtoniana. Os pro-
compreendido.
ponentes da teoria cinética podiam tratar os desafios que
A moral dessa história é que devemos sempre ser to- os confrontavam com um número impressionante recursos
lerantes com a proliferação de pontos de vista teóricos teóricos.
diferentes. Na verdade, devemos ativamente encorajar
Naturalmente, havia ainda muitas coisas que ainda
isso, mesmo se nossas teorias prediletas presentes não so-
demandavam explicações - a massa e a velocidade dos
frerem nenhum problema empírico.
corpúsculos, a diferença entre calor específico mostrado
Comentário: Embora essa seja uma recomendação que faz por diferentes substâncias e o desaparecimento do ca-
sentido, na prática, a maior parte do tempo dos cientistas é lor latente durante os fenômenos de fusão e evaporação.
gasto no desenvolvimento do paradigma principal. O para- Mas a própria teoria fornecia abordagens teóricas e ex-
digma confere estabilidade e permite resolver problemas, que perimentais bem definidas a esses problemas, abordagens
é uma preocupação central no labor científico. A construção que deram frutos em curto tempo. Na ausência de dessa
de alternativas teóricas - embora recomendado pela proposta teoria específica, poderosa e altamente detalhada, o pro-
de Feyerabend - é, muitas vezes, não intuitiva no contexto da gresso jamais teria sido alcançado.
prática científica.
Comentário: Essa afirmação é a base para se compreen-
Isso não significa que devemos abandonar teorias de su- der a diferença entre ciência e não ciência. O que caracteriza
cesso ou programas de pesquisa produtivos a fim de se- a atividade científica, já dissemos várias vezes com base em
guir toda e qualquer ideia maluca que aparecer. Isso estudos anteriores, é a existência de uma teoria embasada em
seria demonstrar falta de espírito crítico, de irresponsa- resultados experimentais que oriente o progresso experimen-
bilidade, além de postura muito ineficiente. Ao invés tal. Sem essa teoria, simplesmente amontoar resultados não
disso, devemos estar conscientes dos problemas com o constitui ciência. Churchland aplica repetidamente esse prin-
monopólio intelectual, não importa quão bem uma te- cípio ao analisar a Parapsicologia aqui.
2 Grifo em itálico nosso.

J. Est. Esp. 1, 010201 (2013). 010201 – 4 JEE


Xavier, A.

Será que a Parapsicologia tem qualquer corpo de teo- exemplo, visão remota, telepatia, clarividência) ou a ma-
ria que descreva o que a mente não material é, uma teo- nipulação ou controle são considerados como fisicamente
ria sobre os elementos não físicos que a compõem e sobre impossíveis (psicocinesia, telepatia). Tais experimentos
quais leis não físicas governam a interação entre esses ele- são usualmente bem elaborados, utilizando os mesmos re-
mentos e deles com o mundo material? Deixo claro que cursos eletrônicos high-tech dos mais bem estabelecidos
esta questão diz respeito à existência dessa teoria e não ramos da ciência e exploram as mesmas técnicas de ava-
a sua verificação. liação estatísticas aprovadas em todo lugar. De fato, a
motivação experimental é tão bem desenvolvida que ela
Comentário: A primeira preocupação importante é sa-
pode ser aplicada a qualquer conjunto de variáveis arbi-
ber se há uma teoria. Não importa que ela não seja ainda
trárias que se suspeite terem alguma relação estatística
verificada experimentalmente.
significativa entre si.
Será que a Parapsicologia tem qualquer corpo Como resultado, a pesquisa parapsicológica se parece
significativo de teoria com a qual é possível tratar os com uma pescaria coletiva4 . Na falta de uma teoria ge-
fenômenos empíricos? O fato embaraçoso é que ela não ral que discrimine uma parte do lago da outra, o anzol
tem. experimental é lançado aqui e ali conforme o impulso mo-
mentâneo sugere fazer assim. O resultado coletivo é uma
Comentário: Note a afirmação forte e direta de Churchland
amontoado de resultados mal motivados que conduzem a
contra a Parapsicologia.
disciplina a nenhuma direção particular4 , pois eles não
Uma busca nas páginas do Journal of Parapsychology motivam nenhuma modificação no núcleo da teoria que
- um dos mais respeitáveis órgãos de comunicação parap- os guia, pois não há esse núcleo.
sicológica3 - vai mostrar muitos experimentos projetados Há outros problemas com a metodologia de se olhar
para revelar alguma capacidade surpreendente de homens para algum efeito, qualquer efeito, que não possa ser ex-
e animais. Mas o leitor não achará nada na direção de plicado em termos físicos. Pois, quando tais resultados
uma teoria bem definida, sistemática e positiva concer- são encontrados (ou melhor, alega-se que são encontra-
nente à substância mental ou às propriedades mentais e dos), eles, de fato, podem ser misteriosos do ponto de
as leis quantitativas e formais que governam sua intera- vista físico, mas são igualmente misteriosos do ponto de
ção e comportamento. vista não físico. A razão é que parapsicólogos não são
Se é que se encontra uma teoria, ela é vaga, impressi- capazes de fornecer uma explicação melhor do que qual-
onística e não quantitativa, usualmente voltada para ex- quer físico, pois a Parapsicologia não tem recursos teóri-
plicar uma classe muito restrita de fenômenos, de forma cos significativos para construir tais explicações. Se al-
que ela parece idiossincrática ao autor. guém conseguir fazer com que o resultado de uma longa
série de lançamentos de moedas tenha 100% de acurácia,
Comentário: Isto é, cada pesquisador tem a sua explicação não constitui explicação desse resultado simplesmente se
própria de um fenômeno. Como não há uma teoria dominante, afirmar que o sujeito “tem precognição”.
surge um “labirinto de hipóteses” tão variado quanto a quan-
tidade de tendências e gostos particulares de cada pesquisador. Comentário: Essa observação de Churchland descreve bem
o estado atual da pesquisa em Parapsicologia: o da explicação
em termos meramente textuais. Palavras como “retrocogni-
Não há um núcleo teórico estabelecido que tenha reu-
ção”, “precognição”, “efeito PK”, “psi-gama”, “psi-kappa”
nido a comunidade a partir de sucessos passados ou cuja
são etiologias cuja definição está ligada diretamente às ocor-
forma presente tenha se moldado em resposta a falhas
rências e que são constantemente usadas como “explicações”
experimentais anteriores, um programa que faça a disci-
para um fenômeno, em um movimento claramente suspeito.
plina seguir adiante. Tais elementos, tão caros às ciências
estabelecidas, estão sumariamente ausentes na causa em Isso é o mesmo que dizer que o amobarbital faz você dor-
questão. Para um filósofo ou historiador de ciência, a Pa- mir porque tem as “virtudes do sono”. Uma explicação
rapsicologia parece uma disciplina surpreendentemente real deveria citar os mecanismos não físicos envolvidos,
ateórica. Além da assunção vaga de que agentes consci- identificar os fatos empíricos que os refletem, apelar para
entes têm um aspecto não físico de algum tipo, que se as leis que os governam e, então, deduzir exatamente o
expressa as vezes na forma de percepção paranormal ou efeito surpreendente observado. A Parapsicologia não faz
manipulação paranormal, simplesmente não se encontra nada disso.
um núcleo aceito de uma teoria geral. Compare tudo isso com a teoria cinética do calor. A
O que se percebe na maior parte das vezes é uma pesquisa experimental conduzida pelos teóricos cinéticos
busca experimental voltada para a isolação e demonstra- não tinha como objetivo encontrar um resultado experi-
ção de efeitos que transcendem uma explicação em ter- mental contrário à teoria clássica. Seu objetivo era testar
mos das ciências físicas. Caracteristicamente, tais experi- algumas previsões específicas da teoria cinética. Quando
mentos estão preocupados em identificar casos de sucesso um resultado experimental foi encontrado, eles tiveram
na percepção de algum tipo ou de outro, onde a per- sucesso não porque desafiavam qualquer explicação clás-
cepção é considerada como fisicamente impossível (por sica, mas porque resultavam em explicações e predições
3A referência citada pode ser acessada em: http://www.parapsych.org/section/17/journal_of_parapsychology.aspx
4 Grifo em itálico nosso.

JEE 010201 – 5 J. Est. Esp. 1, 010201 (2013).


Uma tradução comentada de “Como a Parapsicologia . . .

ainda mais precisas, se colocadas em termo da teoria ci- procedem desse jeito protestarão que eles são teóricos. E,
nética corpuscular. A teoria cinética não brilhava por luz com certeza, eles são. Eles dirão que suas teorias são co-
refletida de uma falha, ela tinha luz própria. erentes e imaginativas. E, com certeza, elas podem ser.
Ao contrário, a Parapsicologia brilha por luz refletida Mas, o resultado final tem muito pouco a ver com ciência.
das falhas do materialismo, se é que ela brilha. A Pa- O vício tem um equivalente oposto, menos obser-
rapsicologia não tem sucesso explanatório por si própria, vado na prática, que é tão obtuso em seu resultado final
porque ela não tem uma teoria substancial que ela possa quanto o primeiro. Ele consiste em tentar fazer progres-
denominar como sendo sua própria. Se não há teoria sos experimentais de envergadura na ausência de uma
detalhada, não pode haver explicações detalhadas. E, teoria sistemática que guie a tradição experimental e que
se não há explicações detalhadas, então a Parapsicologia a modifique à luz dos resultados. Esses aparecem na
não pode brilhar por si. forma de um monte de correlações entre parâmetros de
A ausência de uma teoria significativa é um problema significação questionável. Os que procedem dessa forma
muito sério. Mas, ainda mais sério, eu acho, é a falta de protestarão a dizer que são experimentalistas. E, do
qualquer movimento, por parte da comunidade parapsi- mesmo modo, respondemos que eles o são. Eles protes-
cológica em toda sua história, em tentar reparar esse pro- tarão dizendo que seus testes são feitos de forma honesta
blema. A preocupação presente dos profissionais dessa e precisa. E, assim, eles podem ser. Mas, o resultado
área tem se concentrado em anedotas passadas ou presen- final terá pouco a ver com ciência. Como os aspirantes
tes em torno de maravilhas psíquicas e/ou experimentos anteriores, tais pessoas apenas brincam de fazer ciência5 .
desenhados para demonstrar um efeito parafísico. Mas, Avançando um pouco mais no exame da tradição pa-
nenhum efeito, não importa o quão impressionante ele rapsicológica representada nas páginas de seus jornais de
seja, poderá ser identificado como “parafísico”, a menos divulgação, poderíamos imaginar que ela sofre do pri-
que se encontre também uma explicação de sucesso em meiro defeito. Mas, dessas duas doenças, não é a pri-
termos de uma teoria parafísica detalhada5 . Na ausência meira, mas a segunda, eu afirmo, que descreve melhor a
de tal explicação, o efeito não representará nada. Ele fraqueza da Parapsicologia.
não passará de mais um efeito surpreendente e presen- Comentário: Esforços na direção de inserir a Parapsico-
temente inexplicável. E, em nada adiantará descrevê-lo logia como uma atividade normal em campus universitários
como “parafísico”. foram feitos, encontrando, entretanto, dificuldades enormes.
A saber, a perseguição obstinada de resultados ex- Ver:
perimentais parafísicos, dentro de um vácuo teórico ge-
nuíno, me parece algo metodologicamente estéril, ainda • What Really Happened To UCLA’s Parapsychology
que os experimentos sejam feitos com o mais meticuloso Lab: http://www.ghosttheory.com/2012/
cuidado e produzam algum resultado genuíno. O movi- 07/19/what-really-happened-to-uclas-
mento Browniano era também um resultado profunda- parapsychology-lab
mente embaraçoso e também foi encontrado por pesqui- • O PEAR (Princeton Engineering Anomalies Research)
sadores respeitáveis usando técnicas respeitáveis. Mas, foi fechado em 2007, e o que sobrou de suas ativida-
ele não serviu em nada contra a termodinâmica clássica des pode ser encontrada acessando: http://www.
e nunca serviria, apenas quando a nova teoria cinética princeton.edu/~pear/
desse a sua existência uma forma inteligível. O que a
Parapsicologia precisa, antes de tudo, é, portanto, uma
teoria específica e substancial que dê forma as suas va- V PARAPSICOLOGIA : O LADO EXPERIMEN -
gas aspirações e sirva como guia sistemático a sua ati-
TAL .
vidade experimental. Enquanto essa teoria não existir,
ela nunca será uma ciência, não importa quantos experi- Já tive a chance de expor minha principal crítica à
mentos ela acumule5 . tradição experimental da Parapsicologia. É uma crítica
metodológica e ela em nada diz contra a honestidade ou o
Comentário: A justificativa final que consagra o princípio
cuidado daqueles que conduzem os experimentos relevan-
porque a Parapsicologia não pode ser encarada como uma ciên-
tes dela. A discussão até este ponto tem sido delibera-
cia. Embora se possa fazer pesquisa aparentemente científica
damente não crítica no que diz respeito à confiabilidade
pelo uso de equipamentos, técnicas e procedimentos tecnoló-
dos resultados experimentais em Parapsicologia.
gicos considerados “avançados”, jamais se conseguirá ciência
Isso acontece porque a validade da crítica metodoló-
de verdade na ausência de uma teoria.
gica que fiz é bastante independente de quão confiáveis
Há um vício metodológico com que todos estão fami- esses resultados são. Mas, seria errôneo da minha parte
liares. Filósofos, em particular, estão acostumados com para com o leitor levá-lo a achar que quaisquer resulta-
ele e são acusados de cultivá-lo. O vício consiste em ten- dos dessa área devam ser aceitos. Certamente, nenhum
tar fazer progressos teóricos de grande envergadura na deles é amplamente aceito fora da comunidade relativa-
ausência de resultados experimentais sistemáticos para mente pequena da Parapsicologia. Não há análogo do
controlar o desenvolvimento teórico subsequente: os re- movimento Browniano em que eles, tanto quanto nós,
sultados são descritos como “castelos no ar”. Aqueles que possamos confiar.
5 Grifo em itálico nosso.

J. Est. Esp. 1, 010201 (2013). 010201 – 6 JEE


Xavier, A.

De fato, não está claro que eles tenham qualquer re- falsidade. Se, durante cinco anos de pesquisa parap-
sultado positivo e replicável absolutamente. sicológica, 1000 experimentos estatísticos forem realiza-
dos com honestidade e cuidado máximo, estamos certa-
Comentário: Como Churchland segue no “vácuo teórico”
mente no caminho de se obter uma percentagem muito
da Parapsicologia, a dúvida torna-se companheira insepará-
pequena de casos que se aproximam ou excedem o nível
vel dele, o que permite questionar a existência de fenômenos
de “significância”, com base apenas em fundamentos es-
autênticos.
tatísticos. Isso significa que haverá uma pequena quan-
A história dessa área está cheia de escândalos mais ou tidade de resultados “positivos”, mesmo que isso nada
menos sérios, que vão das sessões fabricadas da década tenha a ver com o paranormal e ainda que os investi-
de 20 e 30, a manufatura deliberada de dados falsos pelo gadores tomem o máximo de cuidado com os protocolos
renomado S. G. Soal na década de 40, passando pela experimentais.
“psicofotografia” expertamente maquinada por T. Serios Comentário: Veja que o caminho seguido pela Parapsico-
na década de 60 até a os experimentos mal controlados logia acadêmica, o de se dedicar ao estudo quantitativo de ar-
de R. Targ e H. Puthoff ao redor de Uri Geller (um não ranjos “paranormais” leva inexoravelmente a essa crítica de
declarado, mas bem treinado mágico) nos anos 70. Es- Churchland. De fato, do ponto de vista puramente estatístico,
sas e outras óperas cômicas já foram bastante discutidas em lançamentos sucessivos de uma moeda, há uma chance não
em outro lugar (Randi, 1982) e, portanto, não vou me nula de que várias faces “cara” apareçam sucessivamente. Isso
ocupar com elas aqui. é um resultado meramente acidental e nada tem a ver com
Comentário: No caso de Ted Serios, não é verdade “paranormalidade” a exigir necessariamente uma explicação
que o “admirável Randi” tenha conseguido replicar as do tipo “psicocinése”. Esse “ruído” estatístico deve ser obri-
psicopictrografias dele. O caso de Ted Serios está envolvido gatoriamente suprimido ou isolado se o objetivo for expor, por
em um mistério e merece, por si, um estudo a parte. O que meio desse método particular, a realidade de eventos paranor-
Churchland questiona principalmente é o caráter de “espetá- mais. Trata-se, assim, de mais um escolho ao desenvolvimento
culo” que muitos eventos anômalos são revestidos, o que traz, da Parapsicologia, que fornece aos críticos muitos argumentos
naturalmente, suspeitas sobre sua validade e real existência na fortes.
mente dos céticos, suspeitas que são amplificadas pelo caráter Esses resultados positivos, supomos, serão publica-
comercial em que se revestem os espetáculos. dos. Mas veja só. Se 500 dos 1000 experimentos originais
Mas, elas merecem ser citadas não porque foram escân- foram esquecidos porque os investigadores desapontados
dalos. Esses casos são lições importantes porque foram decidiram seguir carreira em outra direção; e se 400 dos
tomadas em grande conta na época em que apareceram 500 remanescentes foram esquecidos porque eles também
como formando as melhores evidências para os fenôme- deram resultado negativo e os investigadores procederam
nos paranormais já obtidos. E elas merecem também ser apenas à análise dos 100 restantes e se; desses, 80, em-
comentadas porque as fragilidades que acabam revelando bora submetidos da forma mais honesta possível, nunca
são endêmicas na alma humana. são publicados porque os editores se tornaram impaci-
Por outro lado, não podemos rotular todo mundo de entes com resultados parapsicológicos ainda mais nega-
tolo, nem mesmo a maioria. Parapsicólogos frequente- tivos, então os resultados “acidentalmente significativos”
mente reportam resultados completamente negativos e de, digamos, 3 ou 4 experimento dos 1000 originais serão
que melhor testemunho de honestidade do que esse? O considerados contra uma amostra de apenas 20 experi-
que queremos saber é o que devemos fazer com aque- mentos publicados. Assim, esses últimos herdarão uma
les poucos estudos que foram aparentemente conduzidos significância imerecida.
com integridade e zelo escrupuloso e que mostram, esta- Comentário: Notamos que essa observação crítica de
tisticamente, desvios significativos em relação àquilo que Churchland também vale para qualquer outro fenômeno na-
pensamos ser fisicamente explicável? tural raro e não apenas aos de natureza parapsicológica. Ele
Não há resposta completamente geral que seja ade- representa uma crítica metodológica grave no caso da Parap-
quada a essa questão. Cada caso deve ser tratado em seu sicologia, uma vez que o caminho de “comprovação” escolhido
próprio mérito. Mas, uma coisa podemos exigir, antes envolve separar o efeito genuíno do ruído estatístico inerente
de ficarmos empolgados com qualquer um deles, é que em qualquer tipo de experimentação de múltiplas tentativas.
possam ser replicados, . . .
A única maneira de revelar esses acidentes estatísticos
Comentário: A “replicação” a que Churchland se refere (e casos reais, insistimos, são inevitáveis) é justamente re-
aqui vem na esteira da suposta necessidade da Parapsicologia petir aqueles que se mostraram significativos e ver se os
se comparar a uma ciência ordinária. No caso dessas ciên- resultados originais são reobtidos. Pelo que sei, nenhum
cias, a facilidade, simplicidade e o caráter “automático” dos resultado genuinamente anômalo sobreviveu a tal teste.
fenômenos confere facilmente a característica de reprodutibili- Há, naturalmente, muitos resultados surpreendentes que
dade. Isso não pode ser exigido dos fenômenos psíquicos, o que foram e continuam a ser replicados, frequentemente na
Churchland parece ignorar largamente. grande mídia ou em fóruns públicos. Mas, embora im-
pressionantes, eles não são parapsicológicos.
. . . preferivelmente por um laboratório independente. As
razões para isso não tem nada a ver com estupidez ou Comentário: Nessa classe estão, naturalmente, os fenôme-

JEE 010201 – 7 J. Est. Esp. 1, 010201 (2013).


Uma tradução comentada de “Como a Parapsicologia . . .

nos mediúnicos ostensivos que foram renegados pela corrente comentar algo sobre isso a fim de dar uma amostra de
acadêmica e experimental da Parapsicologia por representa- como se parece.
rem eventos anômalos difíceis de serem replicados em labora- Minha esposa e colega, Patricia Churchland, uma vez
tório. deslumbrou sua classe de filosofia lendo em voz alta e com
olhos fechados frases escritas em uma pilha de envelopes
O caminhar sobre brasas é um exemplo. Ele tem sido bege que um estudante tinha passado para ela no começo
realizado centenas de vezes em muitas culturas diferentes da aula. Em cada ocasião de “leitura clarividente” de um
e é frequentemente associado a fatos paranormais. Existe envelope ainda fechado, ela perguntava se qualquer estu-
um “instituto de autoajuda” aqui na minha comunidade dante teria submetido uma frase anunciada. Enquanto o
que mantém sessões de caminhar sobre brasas na praia estudante em questão manifestava incrível concordância,
nas primeiras horas da manhã. Tais sessões são conside- ela abria o envelope para checar casualmente a precisão
radas a culminação de seminários de autoajuda de cinco de sua leitura e, então, passava para o próximo envelope
horas de duração e o objetivo deles é mostrar ao público e à adivinhação de seu conteúdo.
pagante o que eles aprenderam sob a tutela de seus men-
tores, fazendo-os caminhar vivamente sobre uma cama Comentário: Essa simulação de leitura psíquica é, natu-
cuidadosamente preparada com carvão em brasa. Alguns ralmente, um truque que fornece combustível aos críticos da
caminhantes adquirem bolhas nos pés com a experiência, fenomenologia paranormal, mas que, obviamente, cai na classe
mas a maioria deles não e eles, naturalmente, ficam im- das explicações muito fáceis. De fato, qualquer fenômeno na-
pressionados com o espetáculo. A explicação que é pas- tural pode ser imitado por truque e não apenas os fenômenos
sada para eles é que eles aprenderam a amplificar seus psíquicos.
“campos biomagnéticos” que estão em volta de seus pés
Ela conseguia acertar tudo. O truque é bem impres-
e que serve para protegê-los do calor.
sionante e exige apenas a colaboração de um estudante
Isso é uma bobagem sem tamanho, naturalmente, mas entre o grupo, alguém que falsamente concorde com o
o carvão está, de fato, a uma temperatura bem alta. Em- sucesso da “leitura” do primeiro envelope. De fato, ela
bora já estejam bastante consumidos, eles ainda podem apenas compensava sua primeira leitura com base na
ser vistos avermelhados, pelo menos na escuridão. O confirmação explícita do estudante em quem confiava.
truque é que não há truque. Nesse estágio de combus- Enquanto abria o envelope para “checar a precisão” de
tão elevada, o carvão tem a densidade do isopor e uma sua primeira leitura, ela estava na verdade lendo o que
capacidade térmica bem baixa. Embora a temperatura outro estudante perfeitamente honesto tinha escrito no
seja alta, o carvão simplesmente não contém energia tér- primeiro envelope. Essa frase era a base para a segunda
mica suficiente e não pode conduzi-la aos pés rápido o “leitura”. Enquanto mantendo o segundo envelope mis-
suficiente para causar queimaduras sérias nos quase 1,6 teriosamente diante de si, ela anunciava o conteúdo do
segundos de contato total dos pés com o carvão (quatro então primeiro envelope. O autor do conteúdo daquele
passos de 0,4 segundos cada). As pessoas pensam que po- envelope então confirmava com admiração o “sucesso”
dem ser queimadas por qualquer coisa, mesmo que mini- da leitura e o envelope era simultaneamente aberto para
mamente incandescente, mas nem sempre isso é verdade. “checar” o acerto. Isso fornecia a base para a terceira
A camada de carvão deve se preparada com muito cui- leitura e assim por diante, até completar toda a pilha.
dado, entretanto, então eu não recomendo fazer isso por O resultado era uma classe de estudantes em completo
si mesmo, especialmente com lascas de carvão vegetal, o pandemônio. Poderes psíquicos evidentemente são mais
material mais à mão provável. Eles são mais quentes do fáceis de se obter do que se pode imaginar.
que brasas de madeira e eles se partem liberando mais Esses dois exemplos, leitura psíquica e caminhar so-
calor. Não tente sequer pisar neles. bre brasas não tem relação direta com a Parapsicologia
O que recomendo é tentar o seguinte. No escuro, de acadêmica. Mas, eles ajudam-nos a ver como fenôme-
forma que você possa melhor julgar o estado de aqueci- nos paranormais ostensivos podem ser facilmente criados
mento do carvão, pegue uma lasca quase em extinção com a partir do normal e do ordinário6 . E eles ajudam a
uma pinça de churrasco e toque-a levemente com a palma nos armar contra os predadores dessa área, que são mui-
da mão ou planta do pé. Esse tipo de experiência per- tos. Devemos ter simpatia por aqueles que tentam fazer
mite grande nível de controle e é bastante seguro. Você pesquisa paranormal responsável em relação às bobagens
ficará surpreso em ver o quão benigno é essa operação anunciadas pela mídia, práticas de culto e a atividade
com o carvão, ao menos para tempos de contato menor de exploradores inescrupulosos. É o mesmo que tentar
que meio segundo. Caminhar sobre brasas é não só real um serviço legítimo de acompanhamento numa zona de
como replicável, mas não é paranormal (ver Leikind and meretrício declarado. Qualquer policial de passagem po-
McCarthy (1985) e Churchland (1986)). deria se livrar de uma suspeita inicial, assim como de
Outro espetáculo comum é do tipo de leitura de uma segunda e terceira suspeitas.
mente clarividente que é encenado por mágicos da mí- Comecei este trabalho perguntando se a Parapsico-
dia, profissionais ou não. Aqui, não posso dar nenhum logia poderia se tornar uma ciência. Minha resposta é
resumo de quão intricadas são essas performances: mági- que ela precisa de uma teoria que a organize. E ela tam-
cos tem inúmeras maneiras de nos enganar. Mas, posso bém precisa de uma tradição experimental que objetive a
6 Ver comentário anterior.

J. Est. Esp. 1, 010201 (2013). 010201 – 8 JEE


Xavier, A.

tarefa positiva de testar e refinar uma teoria geral alter- 305.


nativa da mente, ao invés de se dedicar a tarefa negativa Churchland, P. M. 1986. “Firewalking and physics.”, The Skeptical
de encontrar buracos inexplicáveis no materialismo. Pa- Inquirer 10, 284–5.
rapsicólogos ainda não forneceram o material conceitual Feyerabend, P. K. 1963. “How to be a good empiricist-A plea for
necessário para a construção desse programa de pesquisa tolerance in matters epistemological.” In Philosophy of science:
coerente e bem motivado, mesmo admitindo que o mate- The Delaware seminar. Vol. 2, edited by B. Baumrin. New York:
rialismo é, de fato, falso. Essa é a razão porque a Parap- Interscience Publications, 3-19. Reprinted in Brody B., ed. 1970,
“Readings.” in the philosophy of science. Englewood Cliffs, N.J.:
sicologia ainda é uma pseudociência. Prentice Hall, 319–42. Also in Morick H., ed. 1972, Challenges
to empiricism. Belmont, Calif.: Wadsworth, 164-93.
Leikind, B. J., and W. J. McCarthy. 1985. “An investigation of
R EFERÊNCIAS firewalking.” The Skeptical Inquirer 10, n. 1:23-35.

Churchland,P. 1987. “How Parapsychology could become a sci- Randi, J. 1982. Flim-flam! Psychics, ESP, unicorns, and other
ence”, Inquiry: An Interdisciplinary Journal of Philosophy 30, delusions. Buffalo, N.Y.: Prometheus Books.

JEE 010201 – 9 J. Est. Esp. 1, 010201 (2013).


JEE
Jornal de Estudos Espíritas 1, 010202 (2013) - (13 pgs.) Volume 1 – 2013

Reflexões sobre a Ciência Espírita


A. Xavier1,2,a
1
eradoespirito.blogspot.com - Campinas, SP
2
Editor JEE - https://sites.google.com/site/jeespiritas/
e-mail: a xavnet2@gmail.com
(Recebido em 10 Abril de 2013, publicado em 15 de Maio 2013)

R ESUMO
Argumenta-se que a ciência espírita deve ser compreendida dentro de noções modernas de ciência, com abandono
completo de ideias indutivistas (que pregam a ciência começa com uma observação) ou de método infalível de
geração de conhecimento científico. Expõe-se uma discussão sobre o objeto da ciência espírita, que não deve ser
confundido com o objeto das ciências comuns e do escopo dessa nova ciência. Usando conceitos mais recentes
sobre a importância dos paradigmas e teorias no desenvolvimento científico, argumenta-se que apenas quando os
princípios espíritas forem aceitos em sua totalidade é que desenvolvimento dessa nova ciência poderá ser plena-
mente facultado. Um exemplo é dado de desenvolvimento em ciência espírita. Discute-se o objeto, o escopo e os
obstáculos ao desenvolvimento da ciência.
Palavras-Chave: ciência espírita, epistemologia da ciência, paradigmas, mediunidade, teorias epistemológicas.

I I NTRODUÇÃO Neste texto, nosso objetivo é esclarecer detalhes sobre


o novo método de pesquisa proposto por Kardec, a fim
de que o conhecimento espírita possa ser usado de forma
Segundo Kardec, “o Espiritismo é uma ciência que
eficiente na busca de novos fenômenos da Natureza, pro-
trata da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem
movendo, assim, o progresso de conhecimento e não a
como de suas relações com o mundo corporal” (Kardec,
sua estagnação. Para isso, é importante ressaltar que o
2008). Essa colocação identifica como objeto dessa nova
Espiritismo dispõe de um conjunto de princípios avan-
ciência o Espírito, entendido com “uma das forças da
çados que podem ser utilizados na explicação de grande
Natureza”, questão #87 de (Kardec, 1994) e que pode
quantidade de fenômenos ainda considerados anômalos.
ser analisado empiricamente por meio dos efeitos de sua
Para adquirir essa competência é necessário seriamente
atuação no chamado “mundo corporal” ou “universo ma-
assumir a teoria kardequiana, como é praxe no desen-
terial”. Nessa definição simples e concisa de ciência es-
volvimento de qualquer ciência, e não considera-la como
pírita (Chibeni, 1991, 1988a,b), a existência do espírito
“mera hipótese” ou pior, distanciar-se dela, a partir de
como elemento organizador é admitida como princípio,
um processo autorreferente de “revisão”. “Começar de
embora a inexistência de evidências diretas desse novo
novo” ou “rever” os princípios espíritas é equivalente a
elemento, por causa de sua natureza essencialmente di-
“andar de marcha ré” na pesquisa científica dos fenôme-
ferente da natureza material. Essa enorme “diferença de
nos espíritas e essa conclusão vale para qualquer tipo de
densidade” e “independência causal” entre o espírito e
conhecimento científico heuristicamente fértil.
as coisas do mundo material são a razão porque Kardec
afirmou que “a ciência propriamente dita é incompetente
para se pronunciar a respeito de questões do Espiritismo” II D EFINIÇÕES DE CIÊNCIA : O PAPEL
(ver Introdução, Parte VII de Kardec (1994)). Ao afirmar DAS TEORIAS E O MITO DO “ MÉTODO
isso, Kardec estava várias décadas à frente das concepções CIENTÍFICO ”
epistêmicas de seus contemporâneos (Chibeni, 1988a,b)
que se agarravam a noções meramente indutivistas da A ciência conhecida modernamente1 é uma constru-
ciência e que acreditavam que qualquer fenômeno obser- ção social e epistêmica complexa para a qual poucas con-
vado poderia ser reduzido a interações mecânicas entre clusões pretensamente absolutas podem ser sustentadas
átomos ou princípios materiais elementares. Portanto, só com êxito. Há um grande debate entre acadêmicos sobre
tem sentido falar em ciência espírita se as direções preli- a natureza e fundamentação da ciência, debate que ainda
minares dadas por Kardec forem seguidas, o que implica avança e cujos ecos passados no caso das ciências naturais
em ter consciência da natureza peculiar do novo objeto podem ser conhecidos ao se analisar com rigor a grande
de estudo proposto, para o qual metodologias importa- quantidade de trabalhos em epistemologia de filósofos
das diretamente das ciências ordinárias jamais levariam como Karl Popper (Popper, 2002), Imre Lakatos (Wor-
ao progresso científico sobre tais questões. rall & Currie, 1989), Thomas Kuhn (Kuhn, 1970) e mui-
1 Quando falamos em “Ciência”, referimo-nos largamente as doutrinas científicas que buscam explicações para os fenômenos da Natureza.

A fenomenologia mediúnica parece indicar claramente que o aspecto científico do Espiritismo seria mais bem apreciado ao se compará-lo
com propostas teóricas para as ciências da Natureza.

Seção 02: Artigos Regulares 010202 – 1 Autor(es)


c
Reflexões sobre a Ciência Espírita

tos outros (Losee, 1993; Chalmers, 1999). No que se- necessário que uma teoria apareça para orientar a pes-
gue, trataremos de forma resumida algumas conclusões quisa de forma satisfatória. Como e porque meios essa
desse debate que foi antevisto por Kardec na época da teoria aparecerá é algo que não pode ser enquadrado em
codificação. nenhum discurso metodológico, pois não há um método
Uma das motivações para trabalhos em epistemologia de se “gerar” teorias. Porém, falta da teoria é razão
da Ciência sempre foi a ideia de que seria possível dispor suficiente para condenar um novo objeto ao esquecimento
de um método infalível a partir do qual conhecimento ob- ou à sua marginalização3 . Na falta de uma teoria, qual-
jetivo, genuíno e verdadeiro seria extraído da Natureza. quer resultado experimental mal feito poderá ser inter-
Esse é o “método científico”, sobre o qual muito se fala pretado de forma incorreta. Por isso, é incorreto susten-
nos meios populares e laicos(Pinto, 2012), que acreditam tar que o experimento é base do conhecimento científico,
que a experiência é a origem e até mesmo o objeto do mas que o alvo da ciência é o estudo de um objeto através
conhecimento científico (Haak, 2012). Essa concepção de teorias que devem obedecer a um conjunto de caracte-
popular também descreve o trabalho científico com su- rísticas, a adequações empírica sendo apenas uma delas.
postamente “objetivo e metódico”, apenas se identificado Essa “adequação empírica”, porém, depende do objeto
com aquilo que poderia ser observável e isento de qual- em apreço, variando de objeto a objeto. Um exemplo
quer interferência em sua gênese. Tal “concepção induti- simples seria defender a adequação empírica para a exis-
vista”, ver Capítulo 4 em (Chalmers, 1999), está ligada tência de átomos que não está sujeito, por exemplo, as
a ideias arcaicas da ciência, quando seu objeto de estudo mesmas regras com que observamos fenômenos na super-
se limitava a coisas apreendidas pela observação direta fície de outros planetas.
dos sentidos. Assim, muitas vezes, essa “objetividade” é A diversidade e variedade de objetos de estudo na Na-
confundida com “evidência direta” ou “evidência dos sen- tureza é tão grande que é impossível generalizar quanto
tidos”, ver Capítulo 1 de (Chalmers, 1999). Além disso, ao grau com que se fará tal “adequação”. Assim, por
hoje é consenso entre especialistas que é difícil defender exemplo, enquanto inexistem quaisquer evidências em-
a existência de um método científico, e que nem se con- píricas sobre vida em outros planetas, a comunidade
siga eliminar do labor científico a influência de fatores científica crê na existência dessa vida e está seriamente
subjetivos como preferências pessoais, gostos, culturas e empenhada em desenvolver teorias e métodos experimen-
até mesmo inclinações religiosas (Chalmers, 1999). Tais tais4 para sua investigação (Kitchin, 2012). Seria estra-
conclusões nascem de uma análise rigorosa de fatos his- nho que apenas quando essa vida fosse efetivamente ob-
tóricos e da postura dos cientistas ao longo da história. servada é que essa comunidade se interessasse em abrir
Por outro lado, é fato que tais influências não são uma nova linha investigativa, mas essa é a conclusão na-
obstáculo para a produção de conhecimento científico. tural da ideia popular de que a ciência começa com a
Pode-se argumentar o contrário, que é justamente pela observação de um fato (relacionada por exigência de um
influência de fatores considerados “irracionais” (experi- equivocado conceito de “objetividade”) ou das vozes que
ência de vida, interpretações pessoais, tradição científica, pregam uma restrita adequação empírica, sem se obser-
memórias, etc., ver (Tatón, 1957)) que os responsáveis var inúmeros outros detalhes importantes.
por gerar o conhecimento científico conseguem um ne- Por outro lado, a teoria epistemológica em (Kuhn,
cessário nível de criatividade para garantir o pleno de- 1970), por exemplo, demonstrou com sucesso que a ati-
senvolvimento da Ciência. Afinal, a Ciência é construída vidade de pesquisa consolidada se dá por meio de um
por cientistas que são, eles mesmos, seres sociais em cons- paradigma5 que pode ser entendido como o conjunto de
tante interação e modificação com o tempo. Propostas teorias (ou a teoria) bem estruturada capaz de congre-
de explicações radicais e em total confronto com as con- gar gerações de cientistas em torno de um tema. Um
cepções estabelecidas sempre estiveram presente nas re- paradigma forma um tipo de “passaporte confiável” para
voluções científicas. solução de determinados problemas. Ele permite escolher
Hoje, há também consenso entre especialistas da área - de uma ampla gama de fenômenos e aparentes proble-
de que a ciência não começa com um experimento, mas mas científicos - quais devem ser estudados daqueles que
com uma teoria2 (Chalmers, 1999; Kuhn, 1970). São as devem ser desprezados. Na existência de um paradigma,
teorias que orientam explicitamente as propostas expe- a atividade científica se aproxima de uma “solução de
rimentais que permitem que se projetem equipamentos quebra-cabeças”, quando se tem certeza que uma solução
para observação indireta de fenômenos (sem os quais não será alcançada. O preço óbvio pago por essas vantagens
haveria a observação) e que determinam o limite das pró- é a restrição de escopo: cientistas não precisam (e nem
prias observações. Quando fatos novos são observados, é devem) se interessar por qualquer tipo de problema, mas
2 De forma resumida, uma teoria é um conjunto de princípios harmonizados em uma linguagem própria que tem como objetivo fornecer

explicações para fenômenos direta ou indiretamente “observados”. O leitor atento também notará a diferença entre o conceito de “hipótese”
e “teoria”. Uma teoria não é simplesmente uma coleção de hipóteses, embora se possa usar de uma hipótese como primeira tentativa de
explicação de um fenômeno, principalmente quando ele é descoberto de forma fortuita e inesperada.
3 Assim, fenômenos “anômalos” podem ser sumariamente varridos para debaixo do tapete por sugerirem explicações que desafiem o que

é considerado conhecimento cientificamente aceito (que é o do paradigma vigente).


4 Esse desenvolvimento avançado gera conhecimento científico genuíno mesmo quando seu objeto ainda não teve chance de se mostrar!
5 Do grego “paradeı́gma” (paradeigma), “modelo, exemplo, amostra”, do verbo “paradeı́knumi” (paradeiknumi), “exibir, representar,

expor” e de “pará” (para), “além” + “deı́knumi” (deiknumi), “mostrar, apontar”.

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Xavier, A.

apenas por aqueles garantidamente tratáveis pelos para- “objetividade” à prática científica. Porém, esse processo
digmas a que eles aderem. A atividade científica torna-se não está isento de subjetividade, uma vez que são co-
uma tarefa monótona (frequentemente envolve a busca nhecidos inúmeros exemplos em história da ciência em
ou aperfeiçoamento de soluções para problemas já resol- que trabalhos com conclusões perfeitamente corretas fo-
vidos) e são raríssimas as ocasiões em que “soluções para ram rejeitados, enquanto que trabalhos com conclusões
problemas fundamentais” são sequer procuradas. Como incorretas foram aceitos (Barber, 1961; Löwy, 2002; Tow-
ressaltado por Kuhn, para que a ciência dê resultados, nes, 2002). O processo de avaliação por pares é assim
não é possível se dedicar a qualquer tema ou problema um meio aproximado de garantir a qualidade do conheci-
que apareça, mas apenas aqueles para os quais exista um mento científico8 gerado e não um método infalível. Sua
paradigma ou teoria bem estruturada que permita que a existência está ligada à questão da qualidade de publi-
pesquisa seja organizada de forma eficiente. Isso envolve cação de resultados e relatórios científicos e não direta-
não só a escolha de uma teoria favorita, mas de uma am- mente ao processo de gênese científica.
pla gama de conceitos chave na forma de uma linguagem A compreensão do labor científico como organizado
própria. O paradigma propicia o progresso, evitando que e dirigido por teorias e paradigmas permite compreen-
sempre se tenha que começar “do zero”, quando surge a der diversos outros aspectos associados à gênese, escopo,
necessidade de dar solução a um novo problema perten- abrangência, evolução e ceticismo na Ciência. Em parti-
cente ao tema de escopo do paradigma. cular no que tange à evolução, ela não é uma construção
A noção de que ciência não se estabelece tão só pelo “linear” ou “assintótica” como sugerido por (Pinto, 2012)
conhecimento empírico foi sentida por Poincaré (1854- e imaginado ordinariamente, onde o conhecimento é acu-
1912) ao proferir que os cientistas “fazem ciência com os mulado gradativamente de um estado de não ciência para
fatos, assim como uma casa é feita de tijolos; mas uma ciência total. Essa ideia é falsa e está ligada à concep-
acumulação de fatos não é ciência, assim como um con- ção popular de ciência, fruto da crença de que a ciência
junto de tijolos não é uma casa” (Poincaré, 1908). Isso se dá por um processo objetivo, gradual e absolutamente
porque é a teoria ou paradigma que confere status de ci- isento de falhas. A história da ciência fala de épocas de
ência a um conjunto de fatos observados, é o paradigma estagnação no conhecimento científico seguida por surtos
que estipula as regras e procedimentos que devem ser se- de desenvolvimento admirável9 que são difíceis de serem
guidos para se montar experimentos, propor instâncias explicados se a ciência for entendida como um processo li-
de observação etc. E, conforme a teoria, tal é a visão que near. Ao contrário, ao se compreender a importância das
se tem dos fatos. Na grande maioria dos empreendimen- teorias é que entendemos que apenas aqueles que dispõem
tos científicos, foi a assunção preliminar de hipóteses e a da teoria tem competência para fazer a ciência avançar.
tentativa de elaboração de teorias que permitiram a cons- Como a gênese das teorias, em última análise, é um pro-
trução de novos equipamentos e métodos de investigação. cesso subjetivo (sujeito a inúmeros fatores de coincidên-
Um exemplo clássico foi o desenvolvimento da teoria atô- cia, contexto e motivação), sua evolução jamais será um
mica na química, não obstante os blocos constituintes da processo linear.
matéria - os átomos - (que são hoje os ingredientes funda-
mentais de qualquer descrição química da Natureza), não III D O OBJETO DA CIÊNCIA ESPÍRITA
tivessem sido “observados” experimentalmente até a dé-
Allan Kardec compilou e estabeleceu uma grande
cada de 1930. A doutrina do atomismo (Whyte, 1961),
quantidade de princípios e leis secundárias que fornece-
desenvolvida a partir de noções elementares de antigos
ram a base para a doutrina espírita. Essa doutrina tem
filósofos gregos, tornou-se crença científica nos séculos
três aspectos fundamentais10 : o aspecto científico (repre-
que se seguiram ao renascimento na Europa. Reações
sentado pela sua proposta de ciência espírita), o aspecto
químicas eram vistas como evidência indireta da natu-
filosófico (que diz respeito às questões morais e outras de
reza fragmentada da matéria a partir de elementos que
caráter filosófico) e o aspecto religioso.
se combinavam microscopicamente6 , embora provas dire-
Kardec compreendeu de forma admirável para o seu
tas dos átomos jamais existissem.
tempo que o escopo dessa nova ciência não se identificava
Do ponto de vista operacional, muito das publica- em nada como aquele das ciências de sua época. Por isso,
ções em pesquisa moderna é orientado por um processo escreveu este famoso parágrafo:
conhecido como “avaliação por pares” que consiste na
verificação da adequação dos resultados de uma pes- “As ciências ordinárias assentam nas propriedades da
quisa ao paradigma vigente por pessoas supostamente matéria, que se pode experimentar e manipular livre-
qualificadas7 na área de que trata a pesquisa. Seria mente; os fenômenos espíritas repousam na ação de
talvez possível argumentar que esse processo conferiria inteligências dotadas de vontade própria e que nos
6 Lembramos no número de Avogadro (1776 - 1856) que contém a quantidade dessas partículas em um mol de uma determinada subs-

tância.
7 Seriam indivíduos que tem conhecimento do paradigma. Inúmeros problemas surgem quando essa condição não acontece na prática.
8 O melhor que se pode dispor, não obstante o fato de que muitas injustiças podem ser cometidas no processo.
9 É o caso da óptica na Física, que sofreu com as preferências pessoais de Isaac Newton ao acreditar que luz era formada por corpúsculos.

É o caso também do desenvolvimento da mecânica quântica. Os princípios quânticos não são “frações de conhecimento” que se adicionaram
à física clássica.
10 Que também podem ser concebidos como “consequências”.

JEE 010202 – 3 J. Est. Esp. 1, 010202 (2013).


Reflexões sobre a Ciência Espírita

provam a cada instante não se acharem subordinadas gada à concepção de ciência que se tem. Assim, para um
aos nossos caprichos. As observações não podem, por-
indutivista extremado (que acredita que conhecimento
tanto, ser feitas da mesma forma; requerem condições
científico pode ser gerado por um método e começa com
especiais e outro ponto de partida. Querer submetê-
las aos processos comuns de investigação é estabelecer uma observação), o objeto de estudo se identifica ple-
analogias que não existem. A Ciência, propriamente namente com os fenômenos. Se esses não puderem ser
dita, é, pois, como ciência, incompetente para se pro- diretamente acessados, reproduzidos à vontade ou mani-
nunciar na questão do Espiritismo: não tem que se pulados em laboratório, haverá compreensão equivocada
ocupar com isso e qualquer que seja o seu julgamento, do status científico de qualquer disciplina que se propo-
favorável ou não, nenhum peso poderá ter.” (Kardec nha a estudar algo que não seja diretamente observável,
(1994), Introdução, VII, grifos nossos). replicável diretamente ou que não se dobre a requisitos
de laboratório11 .
Dizendo isso, não rompeu com nenhuma tradição
científica existente. Ao contrário, ao propor que os fenô- Para as teorias modernas do conhecimento, em que
menos psíquicos poderiam ser explicados com bases em uma teoria ou paradigma têm papel fundamental, não se
uma nova teoria com suporte experimental, ele fez com pode falar no objeto de estudo sem referência as constru-
que fatos até então considerados como pertencentes ao ções teóricas, o que implica perda de referência absoluta
reino do sobrenatural e da religião pudessem ser trata- com os fenômenos. Há uma simbiose entre teoria e ex-
dos como fatos científicos legítimos por razões que vere- perimento, não tem sentido falar de um aspecto sem o
mos abaixo. A nova ciência espírita já nascia em con- outro. Citemos um exemplo: qual seria o objeto de es-
sonância com ideias modernas de ciência que concluíram tudo da física quântica? Uma vez que essa ciência postula
pela inutilidade de conceitos de “método científico”, “in- a existência de partículas e átomos ou entidades micros-
dutivismo ingênuo”, e uma equivocada “objetividade”, cópicas não acessíveis à observação direta, distanciamo-
conceitos que seriam demonstrados como obsoletos por nos naturalmente da definição meramente fenomenoló-
uma plêiade de epistemologistas no século XX (Chalmers, gica na compreensão desse objeto. Assim, a física quân-
1999). A justificativa dada por Kardec na citação acima tica tem como objeto de estudo entidades postuladas em
é suficientemente concisa e clara, dispensando maiores um mundo microscópico que causam indiretamente deter-
detalhamentos. minados fenômenos. A física quântica objetiva estudar as
E, ainda hoje, se muitas pessoas pensam que o co- regras e leis que regem o comportamento dessas entidades
nhecimento científico é superior a outros tipos de conhe- microscópicas com base nas consequências fenomenológi-
cimento ou práticas (tais como a arte, a filosofia etc) cas observadas seja diretamente12 , indiretamente ou por
é porque ainda trazem concepções ultrapassadas de ci- meio de equipamentos especiais. O mesmo se pode dizer
ência, justamente aquelas que acreditam que o conheci- da genética, que postulou a existência de entidades mi-
mento científico é mais “objetivo”, “quantificável”, “in- croscópicas, os genes, e que espera inferir um conjunto
dependente de qualquer referência a interpretações sub- de previsões de observação para aspectos apreensíveis de
jetivas” como sugere (Pinto, 2012) e, portanto, mais seres vivos (objetos macroscópicos) com base na combi-
“certo” do que qualquer outro, o que seria suficiente para nação desses genes e regras ou leis específicas que regula-
caracterizá-lo como “superior” diante de outros tipos de mentam essas combinações. Assim, é plenamente possí-
conhecimento (Haak, 2012). Ao criar uma ciência já em vel que o “objeto de pesquisa” de uma ciência, por causa
conformidade com as noções epistemológicas recentes, de sua inacessibilidade direta, tenha que ser inicialmente
Kardec estabeleceu também um justo valor a esse conhe- postulado ou inferido por via indireta onde a teoria tem
cimento, o que implica na certeza da existência de limites um papel fundamental. Essa inferência indireta é mais a
para ele. Esses limites são definidos dentro do paradigma regra do que a exceção. E nem é necessário que o objeto
espírita (Chibeni, 1988a,b, 1994) que, como qualquer seja muito pequeno ou intangível. Consideremos, mais
paradigma, estabelece restrições severas ao que pode ser uma vez, a questão da existência de vida em outros pla-
pesquisado. A proposta de ciência feita por Kardec tam- netas. O fato de não se dispor de uma evidência direta
bém não fere nenhuma premissa do labor científico, uma ou observação sobre essa vida não impede que cientistas
vez que seu objeto de estudo não guarda relação com postulem sua existência e desenvolvam teorias e méto-
aqueles que são estudados pelas ciências ordinárias. dos (Kitchin, 2012) para sua futura investigação13 .
Antes, porém, de discutir essa questão, convém que Essa constatação da importância da teoria fez com
detalhemos um pouco mais a questão do “objeto” de pes- que se abandonassem radicalmente as descrições de ciên-
quisa. Em princípio, seríamos levados a pensar que o ob- cia que desprezam ou não consideram o papel das teorias
jeto de uma ciência qualquer diz respeito aos fenômenos ou paradigmas. Portanto, não se pode falar jamais que
tangíveis ou replicáveis que essa ciência pode experimen- o objeto de estudo de uma ciência seja simplesmente o
tar no laboratório. A ideia que em geral se faz do “ob- seu fenômeno. Tendo em vista essa nova concepção, po-
jeto de estudo” de uma certa ciência está fortemente li- demos compreender com novas luzes o fato de Kardec
11 Como é o caso de inúmeras ciências de observação (astronomia, cosmologia, meteorologia etc).
12 A observação do hélio superfluido, por exemplo, é uma observação acessível diretamente (pode ser vista com os olhos) que revela um
aspecto inacessível do mundo microscópico (Dugan, 2007).
13 De fato, métodos empíricos estão sendo desenvolvidos para, por exemplo, detectar a existência de certos gases na luz refletida pela

atmosfera de planetas encontrados em outras estrelas e, assim, por via indireta, inferir uma provável ação biológica.

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Xavier, A.

ter identificado no espírito o objeto de estudo da ciência insere a ciência espírita, convém que essa causa inteli-
espírita. gente seja identificada e separada das causas materiais,
Detalhamos aqui um pouco mais essa identificação. da mesma forma como separamos diversos tipos de partí-
Do ponto de vista dos tipos de manifestação dos objetos culas ou átomos nas descrições físicas da Natureza ou da
a nossa volta, podemos dividir em duas grandes classes mesma forma como separamos fenômenos autônomos da
fenomenológicas (Chibeni, 2010): Natureza daqueles provocados pelos seres humanos15 . Do
ponto de vista filosófico, pode-se argumentar (Chibeni,
1. Fenômenos materiais ordinários (causa subjacente: 2010) que a questão da separação entre “substâncias” não
constituintes da matéria) pode ser decidida por meio de argumentos lógicos ou evi-
dências experimentais16 , o que não significa que essa di-
• Cores; ferença não exista e que não se possa, pragmaticamente,
• Sons; separar essas causas, principalmente quando considera-
mos fenômenos de ordem diferente como os fenômenos
• Formas; espíritas.
• Movimentos; Assim, quando se toma como ponto de partida a exis-
• Calor ou frio; tência do espírito com causa fenomenológica indepen-
dente dos constituintes materiais e não diretamente aces-
• Odores e sabores; sível, estamos em consonância com a prática de muitas
ciências modernas que são obrigadas a postular a exis-
2. Fenômenos inteligentes (causa subjacente: espírito) tência de entidades não diretamente observáveis também
e independentes entre si a fim de que leis e regras se-
• Pensamentos; jam descobertas e tornem possível a explicação de muitos
• Vontade; fenômenos. Veja que essa inferência indireta não pode ser
• Sentimentos; confundida com falta de “objetividade”, o que é acessível
são os fenômenos e não as causas subjacentes. Logo, a
Essa divisão é geral. Não estamos aqui falando de ma- adequação empírica se dará por meio de regras específicas
nifestações mediúnicas (que abordaremos mais a frente), que dirão como os fenômenos devem estar conectados às
mas sim de efeitos quaisquer que estão publicamente dis- causas inacessíveis. Boa parte, portanto, do trabalho na
poníveis a um observador. Para um subconjunto de fenô- ciência espírita deverá elucidar em detalhes essas regras,
menos materiais14 , as manifestações exigem que lance- um trabalho que será inútil se seu objeto de estudo não
mos mão de causas materiais que serão específicas ao tipo for sustentado como causa suficiente para uma classe de
e a classe. Átomos, moléculas e partículas estão na natu- fenômenos e antes que se consiga uma “prova” direta de
reza íntima de muitas manifestações materiais, enquanto sua existência. Justificamos, assim, nossa afirmativa an-
que o espírito está ligado às manifestações inteligentes. terior de que Kardec estava adiantado na sua época ao
Assim, embora os efeitos estejam publicamente disponí- ter postulado o espírito como objeto de estudo da ciência
veis, as causas subjacentes ou origens fenomenológicas espírita.
não estão. Não temos acesso direto a átomos, partículas No que tange às manifestações espíritas, Kardec
reais, moléculas, processo de degustação, processos ínti- separou-as em duas classes:
mos de registro de imagem dentro do cérebro, vias neurais
de conexão, radiações eletromagnéticas específicas, cam- • Manifestações físicas (espíritas): movimento de ob-
pos elétricos, campos magnéticos, partículas virtuais etc; jetos, produção de sons, luzes, odores etc;
temos apenas as apreensões que são conectadas a essas • Manifestações inteligentes: produção de mensagens
causas intangíveis por meio de teorias que permitem ela- de conteúdo inteligente.
borar métodos experimentais (equipamentos) de registro.
Da mesma forma, embora possamos identificar um efeito Ambos os tipos de manifestações guardam algo em
inteligente (sei que minha mãe me liga quando ouço a sua comum: o fato de estarem relacionadas a uma causa in-
voz ao telefone ou quando recebo uma mensagem dela por visível, mas inteligente. Pois, é fato notório que todas as
e-mail), não temos acesso direto a sua causa íntima. Se manifestações espíritas sempre se caracterizaram como
me encontro com ela, os sinais de seu corpo e aparên- fenômenos de comunicação “por excelência”:
cia física não me dão nenhum direito de duvidar que não
seja ela, embora saiba, fenomenologicamente falando, que “Se os fenômenos com que nos estamos ocupando hou-
estou apenas diante de seu corpo que emite determina- vessem ficado restritos ao movimento dos objetos, te-
dos sinais etc. Dentro do arcabouço filosófico em que se riam permanecido, como dissemos, no domínio das
14 Compreende-se que há fenômenos materiais com causa inteligente. Por exemplo, ao receber um telefonema de alguém, meu ouvido

capta, no telefone, um som (fenômeno acústico), cuja origem primária é um emissor de mensagem inteligente do outro lado da linha.
15 Quando um indivíduo morre, a parte material (corpo) se decompõe e vai fazer parte de outros elementos. Sabemos, entretanto, que

sua contraparte espiritual permanece integra e consciente. Portanto, faz muito sentido separar esses dois princípios fundamentais que são
independentes entre si. Chamar tudo de “matéria” simplesmente não acrescenta nada além da perda de precisão necessária ao se empregar
termos científicos.
16 Ou seja, não se pode conclusivamente refutar ou aceitar o dualismo.

JEE 010202 – 5 J. Est. Esp. 1, 010202 (2013).


Reflexões sobre a Ciência Espírita

ciências físicas. Assim, entretanto, não sucedeu: em um mesmo elemento, não haveria razões para não cre-
estava-lhes reservado colocar-nos na pista de fatos de
ditarmos essa origem aos constituintes da matéria. Mas,
ordem singular. Acreditaram haver descoberto, não
se são causas materiais, porque elas são irreplicáveis? As
sabemos pela iniciativa de quem, que a impulsão dada
aos objetos não era apenas o resultado de uma força respostas levam a um emaranhado de hipóteses e teses
mecânica cega; que havia nesse movimento a interven- que parece não explicarem todos os aspectos da fenome-
ção de uma causa inteligente.” (Kardec, “O Livro dos nologia psíquica. E nem poderíamos resolver o problema
Espíritos” Introdução ao estudo da doutrina espírita, ao redefinir esse elemento como sendo os próprios fenô-
VII, 1o parágrafo, grifo nosso). menos espíritas. Isso já foi feito no passado pela Metapsí-
quica20 (Richet, 1922), um campo de estudos que morreu
O fato que chamou a atenção de Kardec foi que, nas com seu fundador. A Metapsíquica é um exemplo de livro
manifestações espíritas, sempre se poderia identificar um texto do que se deve fazer com uma nova disciplina para
agente e um receptor, um meio e uma mensagem, o que transformá-la em um campo estéril e inativo em pouco
é suficiente para caracterizar tais ocorrências como um tempo. Não importa se ela conseguiu alguns resultados
processo de comunicação17 . Dessa forma, Kardec jamais momentâneos porque ela não conseguiu criar tradição de
contrariou a ciência da sua época ao explicar as mani- pesquisa. Não é difícil ver a razão para esse fracasso:
festações físicas como tendo origem íntima no espírito. seria o mesmo que dizer que à Química cabe apenas a
Pois, ao identificar a voz (fenômeno acústico tangível) de tarefa de estudar reações químicas. Nesse exercício de
minha mãe do outro lado de uma ligação telefônica, terei pensamento, o destino dessa disciplina seria igualmente
poucas chances de refutar a explicação de que se trata de o esquecimento: ela se tornaria um campo estéril, que
minha mãe de fato (e, portanto, o fenômeno tem origem talvez criasse um vocabulário próprio e excêntrico para
final em seu Espírito) do outro lado da linha. Se isso descrever as reações químicas que ela seria incapaz de
ocorre quando sei que minha mãe vive, porque não pode- prever e explicar corretamente, por rejeitar abertamente
ria ter a mesma certeza ao constatar sua manifestação, a necessidade de entidades teóricas inacessíveis direta-
mesmo sabendo que ela é falecida? Assim, nas mani- mente (os átomos) como responsáveis pelos fenômenos
festações de efeitos físicos, embora os fenômenos sejam químicos. Definitivamente, foi pela postulação de novas
tangíveis, eles se devem a causas inteligentes e devem ser causas e a descoberta das leis que regulam as interações
associados, por lógica, à causa “espírito”, que é, por isso entre essas causas ocultas que o progresso na Química foi
mesmo, o objeto de estudo da ciência espírita. feito.
Ao contrário, a falha em se aceitar essa verdadeira
causa fenomenológica é razão suficiente para entender- IV DA ORIGEM DO CONHECIMENTO ESPÍ -
mos uma enorme quantidade de aspectos das manifes-
RITA .
tações espíritas que não são aceitos pelos antagonistas18
e pelo estado lamentável em que se encontram discipli- Tendo reconhecido a importância das teorias como
nas19 que foram criadas para dar explicação para esses orientadoras e guias de qualquer disciplina que pretenda
fenômenos. Em primeiro lugar, temos a questão da não ser uma ciência, podemos reduzir grandemente a impor-
reprodutibilidade e o caráter esporádico dos fenômenos. tância de muitas querelas ou discussões em torno da ori-
É muito claro, a partir da causa postulada, que os re- gem do conhecimento espírita que qualificariam ou não
quisitos fundamentais para a reprodução dos fenômenos esse conhecimento. Nenhum cientista sério está interes-
não estão disponíveis publicamente, de forma que é im- sado em saber se uma dada explicação para um fenômeno
possível reproduzi-los à vontade. Por isso, um fenômeno natural teve como origem um sonho, uma intuição, uma
tão generalizado como o das manifestações físicas da se- sugestão de algum amigo durante uma conversa ou um
gunda metade do século 19 (que deu inicio ao Espiritu- acalorado debate entre especialistas (Tatón, 1957). A ori-
alismo nos Estados Unidos e ao Espiritismo) não pode gem pouco importa, o que realmente conta é o seu con-
ser observado ostensivamente hoje em dia: a raridade do teúdo e sua capacidade de explicação, o que é garantido
fenômeno é uma consequência de seu caráter inteligente pela sua adequação empírica e acomodação a uma teoria
e incontrolável. eficiente que é o paradigma estabelecido. Assim, apenas
Mas, suponhamos que alguém não aceite a ideia do quando não se compreende a importância e o papel de
espírito como objeto de estudo. Que tipo de objeto po- uma teoria como orientadora do trabalho de investigação
deria substituí-lo? As opções no momento caem de uma científica, é que se levantam dúvidas quanto à validade de
forma ou de outra no materialismo. Isso porque, se consi- uma hipótese ou princípio, por “herdar” esse uma carac-
derarmos todos os fenômenos como tendo origem última terística supostamente “irracional” de sua origem. Dessa
17 Enquanto isso, a imensa maioria dos outros pesquisadores (Ferreira, 2004) tratavam os fenômenos como se estivessem diante de um

gabinete de física ou laboratório de química, onde se pode experimentar à vontade. Por essa razão, Kardec foi um dos poucos pioneiros
que conseguiram tratar o problema de forma correta no século 19.
18 Onde se incluem, materialistas, ateus, pseudocéticos e, obviamente, antiespíritas.
19 Como é o caso da parapsicologia (Xavier, 2013).
20 Fundada na França por C. Richet (1850-1935). Pretendeu dar explicação “científica” (lê-se, que agradasse a cientistas da época)

aos fenômenos psíquicos eliminando a necessidade do princípio espiritual (sobrevivência) e acreditando piamente que poderia “provar” a
veracidade ou não deles pelo uso autorreferente de vocabulário excêntrico especial (o que se transformava essa “ciência” em um exercício
de retórica). A metodologia de Richet usava amplamente a hipótese da fraude para desqualificar fenômenos que não se enquadrassem na
sua visão particular dos fenômenos.

J. Est. Esp. 1, 010202 (2013). 010202 – 6 JEE


Xavier, A.

forma podemos entender porque foram aceitos os argu- res de vozes se fazem ouvir simultaneamente em todos
os recantos do planeta, proclamando os mesmos prin-
mentos oníricos de F. Kekulé (1829-1896) para o anel da
cípios e transmitindo-os aos mais ignorantes, como
molécula de Benzeno, uma estrutura que foi “sonhada”
aos mais doutos, a fim de que não haja deserdados.
por esse cientista (Rocke, 2010). Para os que sustentam É uma vantagem de que não gozara ainda nenhuma
uma visão simplória e indutivista da ciência, essas suges- das doutrinas surgidas até hoje. Se o Espiritismo,
tões são inadmissíveis, pois elas não nasceriam de uma portanto, é uma verdade, não teme o malquerer dos
aplicação rigorosa de um método supostamente objetivo homens, nem as revoluções morais, nem as subver-
e isento de “interferências subjetivas”, métodos que exi- sões físicas do globo, porque nada disso pode atingir
giriam uma “ampla comprovação” por inúmeros outros. os Espíritos. (Grifos meus).
Como não existe tal método, não importa muito como o
conhecimento é gerado21 . Naquele momento, ele estava diante de um conjunto
Assim, o fato de Kardec ter usado uma, duas ou qual- de princípios que acabavam de nascer e, embora tivesse
quer número de médiuns (Kardec, 1944b) é irrelevante empreendido uma obra admirável, Kardec não poderia
em nossa opinião e não pode ser usado para invalidar as absolutamente fazer ideia de todas as consequências ad-
consequências do trabalho final contido em “O Livro dos versas ou não que esse conhecimento teria no futuro. As-
Espíritos”. De fato, mesmo se considerássemos que seu sim, nesse sentido, a constatação da origem do conheci-
conteúdo veio da cabeça de Kardec22 (o que seria um erro mento nos próprios Espíritos foi uma importante fonte
grave), ainda assim essa questão seria pouco relevante de afirmação inicial do conhecimento espírita, diante das
hoje em dia. Por quê? A razão encontra-se na própria “milhares de vozes que se faziam ouvir simultaneamente”
maneira como os princípios espíritas (que formam os fun- em todos os lugares. Se, pela aplicação dos princípios es-
damentos da teoria espírita) estão estruturados. Como píritas na forma de paradigma vemos hoje sua excelência
dissemos, o que realmente importa é seu conteúdo e sua metodológica, isso não contraria a importância da fonte
capacidade de explicação. Essa “capacidade de expli- desse conhecimento. Como a fonte, de fato, reflete a ex-
cação” é produto de uma consistência interna entre os celência dos ensinos, tanto melhor será se ela se encontra
princípios (eles não se contradizem reciprocamente, mas identificada como nos próprios Espíritos porque, como
se complementam, ou seja, cada princípio adere de forma Kardec afirma, os homens poderiam perecer e, ainda as-
harmônica ao paradigma a que pertence) e sua habilidade sim, os ensinos continuariam.
de generalização. Os princípios espíritas tem fertilidade Por outro lado, sabemos que Kardec se preocupou
heurística, uma característica positiva que permite não em evitar a desintegração dos princípios de sua teo-
só explicar, mas prever a ocorrência de certos fenôme- ria - porque sabia que muitos deles não seriam aceitos
nos. Essas características positivas tornam atraente o em sua totalidade - e propôs23 um método especial de
campo de investigação sob orientação direta dos princí- “confirmação” para esses princípios: o critério da con-
pios dessa nova ciência que constituiriam um novo para- cordância universal. A fonte clássica que descreve esse
digma. E isso basta para justificar o valor científico de critério é:
seu conteúdo. Uma só garantia séria existe para o ensino dos Espíri-
Veja que, do fato da origem do conhecimento ser tos: a concordância que haja entre as revelações que
em um sentido irrelevante (diante, depois e em relação eles façam espontaneamente, servindo-se de grande
a um paradigma plenamente estabelecido), essa questão número de médiuns estranhos uns aos outros e em
foi tratada de forma diferente por Kardec no momento vários lugares. (Kardec (1944a), Introducão, “Auto-
da codificação: ridade da Doutrina Espírita”, 11o Parágrafo).

Se a Doutrina Espírita fosse de concepção puramente Entretanto, cumpre relembrar sempre o escopo desse cri-
humana, não ofereceria por penhor senão as luzes da- tério, que é explicitado imediatamente no parágrafo se-
quele que a houvesse concebido. Ora, ninguém, neste guinte:
mundo, poderia alimentar fundadamente a pretensão
de possuir, com exclusividade, a verdade absoluta. Vê-se bem que não se trata aqui das comunicações
(Kardec (1944a), Introducão, “Autoridade da Dou- referentes a interesses secundários, mas do que res-
trina Espírita”). peita aos princípios mesmos da doutrina. Prova a
experiência que, quando um princípio novo tem de
ou, mais a frente: ser enunciado, isso se dá espontaneamente em diver-
sos pontos ao mesmo tempo e de modo idêntico, senão
Nessa universalidade do ensino dos Espíritos reside a quanto à forma, quanto ao fundo. (Grifos meus).
força do Espiritismo e, também, a causa de sua tão
rápida propagação. Enquanto a palavra de um só Portanto, o critério da concordância foi uma proposta
homem, mesmo com o concurso da imprensa, levaria metodológica de Kardec diante do problema da autentici-
séculos para chegar ao conhecimento de todos, milha- dade das mensagens dos Espíritos no que diz respeito aos
21 É evidente que motivadores subjetivos são importantes para se atingir plena criatividade na atividade científica e de inovação de uma

forma geral. De novo, a aderência do novo conhecimento a um paradigma torna irrelevantes os detalhes sobre como esse conhecimento foi
gerado.
22 Ou, de outra forma, pouco importa também se foi Kardec o principal responsável pela sanção dos fundamentos ou ideias principais no

momento da codificação.
23 Ou seja, ele não é propriamente um princípio da doutrina.

JEE 010202 – 7 J. Est. Esp. 1, 010202 (2013).


Reflexões sobre a Ciência Espírita

fundamentos doutrinários, ou seja, ao núcleo dos ensina- V D O ESCOPO DA CIÊNCIA ESPÍRITA


mentos24 . Ele não pode ser usado para validar qualquer
Definido um objeto e uma teoria somos capazes de
tipo de conhecimento, principalmente se tangencial a tais
também avaliar o escopo de uma ciência. Por “escopo”
princípios.
entendemos um conjunto de tópicos, temas ou contextos
Um exemplo recente de má compreensão desse escopo de investigação que podem ser tratados por uma deter-
especial do critério (Aleixo, 2012) são as discussões em minada disciplina científica. Por exemplo, no caso da
torno da existência ou não de um planeta orbitando o física quântica, seu objeto de estudo são os constituin-
sistema de Capela como proposto por Emmanuel em “A tes últimos que formam a matéria. A teoria estabelecida
Caminho da Luz” (Xavier, 1990) e que se presume seja para facultar esse estudo é a mecânica quântica (Grif-
resolvido com a aplicação do critério da concordância uni- fiths, 2005). O escopo da física quântica é a elaboração de
versal. Ora, a afirmação “existe um planeta que abrigou previsões e explicações para um conjunto de fenômenos
ou abriga vida no sistema de Alfa Aurigae” não é uma físicos. Note que podemos não identificar o escopo, nova-
afirmação que pertença ao escopo da doutrina espírita. mente, com os fenômenos. Esses são peças importantes
Quando muito, poderíamos dizer que se trata de uma do “quebra-cabeças” (Kuhn, 1970) cujo objetivo último é
questão de “astronomia planetária” ou “astrobiologia” formar uma imagem consistente de como as causas (par-
para o qual um método exótico de se pedir opinião aos tículas, átomos etc) se relacionam com os fenômenos.
Espíritos poderia ser usado além de inúmeros outros. E, Uma vez que na nova ciência espírita temos um objeto
assim, encontramos quem invoque o critério da concor- (o espírito) e uma teoria (a teoria espírita), podemos nos
dância universal para validação de qualquer questão, seja perguntar sobre qual seria seu escopo. Isso é algo muito
a da existência de vida em outros planetas, da validade importante, pois o escopo definirá quais fenômenos de-
ou não de teses sobre a origem da vida, das afirmações vem ser levados em consideração e quais não devem. Por
de um Espírito sobre episódios históricos25 , etc. O que outro lado, essa definição possibilita separar que tipos de
se vê, assim, é uma dogmatização irracional em torno de estudo pertencem genuinamente à ciência espírita daque-
trechos de textos de Kardec propostos em um momento les que não pertencem. Para que possamos compreender
específico do trabalho de codificação, dogmatização que a questão do escopo, é preciso antes novamente lançar
nada tem a ver com a “lógica rigorosa” ou o “bom senso”. mão de concepções mais modernas de ciência.
No que diz respeito às revelações secundárias26 , adi- Entendendo assim o conjunto dos princípios que
antamos aqui observação à luz dos princípios que discuti- forma a teoria espírita como um candidato natural a um
mos: como afirmamos, a “validação de novos conceitos” paradigma futuro (que seria o paradigma espírita), a ci-
não pode vir exclusivamente com base em uma origem ência orientada por ele define e restringe fortemente o
supostamente isenta, por causa da aderência a um mé- escopo de aplicação. Portanto, não é tarefa dessa nova
todo considerado ideal. Não é porque um novo conheci- ciência dar explicação a tudo que escapa às ciências da
mento teve origem em um consenso é que ele seja “mais matéria. Por quê? Novamente, isso se dá porque a exis-
verdadeiro”. Um indivíduo ou um Espírito sozinho pode tência de um paradigma restringe fortemente o escopo
fazer uma descoberta genuína ou essa descoberta pode de uma ciência. Não são todos ou quaisquer problemas
ser fruto de um trabalho coletivo. A razão para isso é que devem ser resolvidos na ciência espírita, mas apenas
que a noção de “verdade” de um fato não está ligado ao aqueles que têm relação direta com seu objeto de estudo.
método através do qual esse fato é descoberto. Ou, de ou- Mas, como se sabe quais tem e quais não tem essa re-
tra forma: a única condição necessária e suficiente para lação? Nas ciências já estabelecidas, isso ocorre por conta
que uma afirmação corresponda a um fato é que haja cor- de uma tradição de pesquisa28 que é valorizada, ampla-
respondência entre esse fato e a afirmação27 . Embora o mente aceita e divulgada e que é aprendida por estudan-
truísmo dessa frase, ela é não pode ser desprezada quando tes ao longo de anos e anos de estudo (a “doutrinação” a
se considera a validade de uma determinada revelação. que nos referimos anteriormente). O paradigma estabele-
Portanto, uma nova ideia deve ser ponderada também cido se reforça e tentativas de “revisão” de seus princípios
em relação à sua aderência ao paradigma, ao seu poder não só são desprezadas como fortemente desencorajadas.
explicativo, capacidade heurística e outras características Durante esse aprendizado, o aluno tem oportunidade de
que somente o conhecimento aprofundado do paradigma resolver uma grande quantidade de problemas para os
em questão poderá facultar. quais as respostas são bem conhecidas e que exercitam o
24 “Essa a base em que nos apoiamos, quando formulamos um princípio da doutrina.” (Kardec (1944a), Introdução, Autoridade da

Doutrina Espírita, 12o paragrafo).


25 Imagine submeter ao critério da concordância universal os mínimos detalhes de obras como “Paulo e Estevão” (Xavier, 2010) ou “Há

2000 anos” (Xavier, 1939). Pelo contrário afirmamos que a pesquisa histórica pode se beneficiar do testemunho dos Espíritos, mas isso
não é gerar conhecimento espírita, mas fazer história...O critério da concordância não se aplicaria nunca nesse caso, anda mais porque os
“testemunhos” de tais eventos não foram todos os Espíritos. (Ver também a seção Do escopo da ciência espírita adiante).
26 Preferimos considerar apenas o que exploramos aqui para as revelações secundárias, pois as principais já gozam de excelência garantida

pela sua aderência ao paradigma principal. O grau de “verdade” ou não de uma dada revelação não depende obviamente do caráter
principal ou secundário dela.
27 O que corresponde ao critério de “verdade por correspondência”. Há outros critérios de verdade em temas mais difíceis como no caso

das ciências que é o da adequação de um fato ou conhecimento a um corpo teórico ou paradigma.


28 Alimentada por verbas ou recursos financeiros especiais. Pode-se viver de pesquisa acadêmica, o que é, talvez, o mais importante

elemento de estímulo à continuação da Ciência.

J. Est. Esp. 1, 010202 (2013). 010202 – 8 JEE


Xavier, A.

senso crítico e a noção de aderência de um determinado • Revelações sobre episódios históricos. Da mesma
forma, perguntamos: estariam esses informes ex-
tema ao paradigma da sua ciência. O processo pedagó-
clusivamente adstritos à abordagem mediúnica?
gico de aprendizado científico faz largamente, assim, uso
Não seria a revelação de maior interesse ao conhe-
do método de “resolução de problemas”, quando as no- cimento geral (história, antropologia etc) e, por-
ções e princípios do paradigma são inculcados na cabeça tanto, fora do escopo da ciência espírita? Portanto,
do aluno de tal forma que, após certo tempo, ele adquire processos mediúnicos são métodos futuros auxilia-
uma visão intuitiva de como proceder para dar solução a res das ciências históricas e criminalísticas e não
um novo problema que não pertence à sua lista de exer- métodos exclusivos de validação dentro do escopo
cícios. Não só isso, essa intuição permite ao candidato da nova ciência;
a cientista desprezar aqueles que não devem ser trata- • Revelações sobre novas leis da física, astronomia,
dos dentro do paradigma ou que, necessitam de “ajuda química, biologia, matemática etc. Pelas mesmas
externa29 ” para que uma solução seja tentada. razões gerais que expusemos anteriormente, não é
Não parece haver conflito em se assumir que esse co- difícil ver que não cabe a nova ciência cuidar de
nhecimento também deveria advir de um processo de problemas que não tocam diretamente ao seu ob-
aprendizado contínuo e eficiente, não só nos conceitos da jeto. No máximo, procedimentos mediúnicos se-
ciência espírita, mas, principalmente, na solução de pro- riam meios indiretos e incontroláveis de se aces-
sar a opinião dos Espíritos sobre questões que não
blemas paradigmáticos que apenas esse nova teoria con-
pertence ao escopo da ciência espírita. A opinião
segue explicar eficientemente. Mas, onde estão os que
deles, enquanto Espíritos, é difícil de ser avaliada,
a defendem e que realmente a utilizam como potencial uma vez que, muito provavelmente, farão em uma
linguagem científica para uma nova classe de fenômenos linguagem diferente e adaptada na descrição do que
naturais? O que vemos é o eterno levantar de dúvidas, o testemunham de forma limitada conforme o grau
requerimento incessante de “provas” da existência do Es- de conhecimento que eles têm e adicionalmente
pírito, de “evidências” da sobrevivência, da constatação filtrado, em maior ou menor grau, pelo médium.
inequívoca de seu objeto que não está diretamente aces-
Do fato de afirmarmos que tal tema não faz parte do es-
sível à observação direta, da mesma forma como uma sé-
copo da nova ciência não significa que não possa haver
rie de outros objetos (átomos, moléculas, vida em outros
relações interdisciplinares entre ela e as outras ciências.
planetas) também não estão. O que se vê são tentati-
Em determinados casos, podemos argumentar que a falta
vas de criação de vocabulário exótico sob a justificativa
de reconhecimento explícito de uma disciplina pelos prin-
de uma suposta necessidade de “não contaminação” com
cípios espíritas pode ser responsável pela estagnação ou
“ideias preconcebidas” dos preceitos espíritas. Nesse qua-
multiplicidade de hipóteses que se vê nessa mesma dis-
dro desolador de contestações eternas dos princípios, de
ciplina. Um exemplo que nos vem à mente é o caso da
desmonte de uma linguagem por puro preconceito, como
psicologia e psiquiatria. É fato inconteste a abundân-
a ciência espírita poderá evoluir? Não apenas a nova
cia de fenômenos anômalos, evidências de vidas anteri-
ciência, mas qualquer outra ciência material jamais po-
ores (Stevenson, 1960a,b), todos explicáveis pelos fun-
deria progredir se a “atividade científica” se limitasse a
damentos dos princípios espíritas que poderiam trazer
contestação incessante dos princípios que a estabelecem.
novas luzes ao desenvolvimento dessas disciplinas. Esses
Por outro lado, para se determinar a adequação de
são temas genuínos dessa nova ciência.
um tema dentro do escopo da ciência espírita é preciso,
antes, considerar a relação do novo conceito com o corpo
principal de ensinamentos espíritas. Assim, devemos nos VI D OS OBSTÁCULOS AO DESENVOLVI -
perguntar se o conhecimento obrigatoriamente deve ser MENTO DA CIÊNCIA ESPÍRITA
validado por um processo mediúnico. Já discutimos ante-
Já tivemos a oportunidade de discutir alguns em-
riormente que o Critério da Concordância Universal não
pecilhos ao desenvolvimento dessa nova ciência (Xavier,
pode ser invocado para sancionar esse tipo de conheci-
2012). Por completeza, reproduzimos abaixo esses obstá-
mento. Vale a pena reconsiderar os exemplos já citados
culos apontados em nosso estudo virtual para completar
no contexto do escopo da nova ciência:
com outro comentário adicional:
• Revelações sobre a existência de mundos específicos
1. Considerar a questão metafísica ou “sobrenatu-
em outros planetas. Estariam esses informes exclu-
ral”: Esse problema surge por dificuldade em se
sivamente adstritos a abordagem mediúnica? Não
compreender a viabilidade de estudo científico
seria a revelação de maior interesse ao conheci-
da questão (espíritas). Frequentemente, ou se
mento geral (astronomia planetária, exobiologia)
considera o assunto como além do que seria o
e, portanto, fora do escopo da ciência espírita? O
normal ou verificável (e, portanto, pertencente
argumento de se usar “médiuns abalizados de dife-
ao domínio da metafísica), ou, diante de uma
rentes centros ou locais” não pode ser usado aqui,
visão mística dos fatos, toda a questão é to-
pois não se trata de tema relacionado aos funda-
mada como pertencente ao “reino do sobrena-
mentos. No máximo, processos mediúnicos pode-
tural”. Assim sendo, considera-se o assunto de
riam ser encarados como “métodos não ortodoxos”
forma alienada à realidade;
de acesso à informação;
29 Essa “ajuda externa” pode ser através da consulta a um especialista de outro paradigma, da busca por soluções inovadoras ou pelo

uso de aproximações grosseiras que procurem explicar porque uma solução dentro de um paradigma não é possível.

JEE 010202 – 9 J. Est. Esp. 1, 010202 (2013).


Reflexões sobre a Ciência Espírita

2. Considerar que o assunto já foi analisado e a 8. Tratar o assunto de forma puramente expe-
conclusão foi negativa: esse é o erro mais co- rimental, sem preocupação com o desenvolvi-
mum entre os céticos. É comum também entre mento de uma teoria que explique os fatos:
os que se satisfazem com uma visão superficial Esse é um empecilho típico da parapsicolo-
baseada em supostas pesquisas que não aten- gia (Xavier, 2013). Em toda a história da ci-
tam para o rigor e o detalhe que o assunto exige. ência, jamais se fez ciência de verdade sem teo-
A respeito disso, vale um comentário de Kar- rias. Entretanto, alguns pesquisadores das "ci-
dec apresentado abaixo (“O ceticismo, no to- ências psi"pretendem resolver a questão tão só
cante à doutrina espírita, quando não resulta de apelando-se para o experimento. Para esses
uma oposição sistemática por interesse, origina- pesquisadores, invocar “explicações” tiraria a
se quase sempre do conhecimento incompleto “neutralidade” e o “rigor” que o tema de pes-
dos fatos, o que não impede que alguns dêem a quisa exige. Entretanto, isso está errado, pois
questão por encerrada, como se a conhecessem "rigor"nada tem a ver com “neutralidade” e o
a fundo.” (Introdução, Kardec (1994)); desenvolvimento científico normal exige que se
3. Considerar que o que há de importante sobre proponham experimentos baseados em hipóte-
o espírito já é investigado pela psicologia etc, ses ou teorias;
dentro de um referencial materialista: isso é 9. Trabalhar com fragmentos teóricos (hipóteses
uma variante algo mais sofisticada do empe- isoladas): Por outro lado, quando explicações
cilho anterior. Como uma teoria determina em são dadas, elas são produzidas uma para cada
último grau quais os fatos e ocorrências devem fenômeno e não conseguem dar conta de to-
ser considerados, então ao se assumir o materi- dos os fatos. Não se procura correlacionar um
alismo como arcabouço teórico de investigação, fenômeno com outro. Fatos psíquicos diferen-
está se restringindo severamente o universo de tes, que se manifestam fenomenologicamente de
fatos. A “prova” obtida a favor de determinado forma diversa, são explicados por hipóteses di-
ponto de vista não é válida; ferentes ou mesmo totalmente antagônicas en-
4. Considerar que esse referencial materialista tre si;
foi “provado” pela ciência: Ciência entendida 10. Adotar enfoque dogmático ou preconceituoso:
como “conhecimento” nada tem a dizer sobre dogmatismo e preconceito são regras no com-
a questão da sobrevivência. Outra coisa bem portamento humano e não exceções. A com-
diferente é a opinião dos cientistas. Mas essa preensível “neutralidade” não deve ser anulada
opinião não constitui ciência, principalmente se até o ponto em que se adote uma visão clara-
ela versa sobre assunto que não diretamente re- mente radical da questão. Há que se reconhecer
lacionado a suas pesquisas de fato; que ninguém é dono da verdade;
5. Tentar “detectar” o espírito por meios diretos: 11. Misturar ou conivir com o misticismo: de novo,
há uma quantidade enorme de pessoas que acre- isso ocorre por falha na compreensão do cará-
ditam que manifestações físicas (efeitos físicos) ter científico do assunto a ser estudado. Para o
são “manifestações espirituais”. Outros dizem misticismo, não há necessidade de se envolver
que, se o Espírito existe, ele necessariamente a Ciência, pois ele se considera uma fonte in-
deve deixar rastros mensuráveis. Aqui, a fa- dependente de conhecimento. Trata-se de um
lha é na compreensão do objeto de estudo: a obstáculo, pois o misticismo oblitera ou impede
matéria se deixa apreender por determinados essa compreensão científica;
tipos de sinais (cores, sons, formas, gostos etc). 12. Descuidar do rigor: quando se fala na aplicação
O Espírito tem pensamento, vontade e senti- de um método (não necessariamente extraído
mentos, todos atributos inacessíveis do ponto ou importado das ciências ordinárias) há que
de vista sensorial (Chibeni, 2010). Não é di- se tratar do rigor sem o que é impossível che-
fícil perceber que a questão não pode também gar a conclusões válidas.
ser decidida apelando-se para uma amplificação
no nível de acuidade ou “precisão” do equipa- Muitos desses obstáculos estão inter-relacionados de
mento; alguma forma. É fácil ver que a falta de rigor possibi-
6. Tentar “mensurar” o espírito: uma variante do lita a pesquisa orientada por “fragmentos teóricos”, assim
erro anterior; como as abordagens puramente experimentais implicam
7. Só considerar válida a evidência “reprodutível”: em tentativas de se “mensurar” o Espírito, quando, de
aqui temos um ponto para muitas discussões. fato, se reconhece sua existência como causa fenomeno-
Mas a essência é muito simples: como os fenô- lógica irredutível. Por isso, a eliminação desses doze obs-
menos dependem de inteligências que são inde- táculos somente será conseguida se pesquisadores da ciên-
pendentes, insistir na reprodutibilidade é con- cia espírita assumirem definitivamente o escopo e objeto
denar o estudo do assunto desde o princípio. de estudo dessa ciência tal qual eles se apresentam, se-
A fonte dos fenômenos espirituais necessaria- gundo os métodos e processo modernos apontados por te-
mente não pode ser controlada, pois é indepen-
orias epistemológicas maduras, em suma, sem equívocos
dente, logo não está sujeita a reprodução;
e ideias preconcebidas como aquelas descritas em (Pinto,
2012).

J. Est. Esp. 1, 010202 (2013). 010202 – 10 JEE


Xavier, A.

VII EM SUMA : DA IMPOSSIBILIDADE DE É preciso considerar a propriedade e excelência do


UMA CIÊNCIA ESPÍRITA sem K ARDEC objeto proposto: o espírito. Tanto quanto nas ciências
ordinárias considera-se a ocorrência de fenômenos obser-
A ciência espírita proposta por Kardec já possui um váveis como produto de causas inacessíveis, o espírito é
objeto e um método adequado de investigação que ainda a grande causa subjacente nos fenômenos onde ocorre
não brilha em sua plenitude em parte por causa da visão manifestação de inteligência, sejam eles espíritas ou não.
de mundo presente, que é manifestadamente contrária a Assim, por meio de investigação acurada assumindo por
visão espiritualista do ser. Porém, ela detém todos os princípio sua existência, a ciência espírita consegue fa-
requisitos iniciais de um campo investigativo futuro pro- zer falar esse princípio, que é percebido nas entrelinhas
missor, em que pese as pouquíssimas instâncias em que das manifestações, no conteúdo de mensagem transpor-
ela foi, de fato, aplicada no passado. Isso acontece porque tado, na diversidade e quantidade de informações, nas
não há “massa crítica” de pesquisadores que a levem a peculiaridades ocultas que passam despercebidas e que
sério com o comprometimento e a dedicação que qualquer permitem entender porque o fenômeno ocorreu desta e
atividade (seja científica ou não) necessita. Ao contrário, não daquela forma.
a imensa maioria dos trabalhos pretensamente científicos Jamais será possível desenvolver qualquer tipo de ci-
feitos na área dos fenômenos psíquicos ou aplicam hipó- ência limitando o seu objeto de estudo ao que é “palpá-
teses de fraude para invalidar os fenômenos ou propõem vel” ou a sua parte fenomenológica. Dessa forma, qual-
explicações bastante elaboradas para desconstruir a tese quer tentativa de reduzir o objeto de estudo proposto
espírita da sobrevivência. Para qualquer dessas alter- por Kardec à fenomenologia mediúnica está fadada ao
nativas, nunca houve preocupação por uma construção fracasso, como atestam provas históricas bem conheci-
teórica sólida, uma teoria, que não só justificasse meia das30 . Por outro lado, o espírito tem grande afinidade
dúzia de fenômenos, mas que conseguisse explicá-los to- com outras áreas de investigação como a psicologia e a
dos por meio de princípios simples e abrangente. Por essa psiquiatria, a antropologia e a sociologia, além do im-
razão, não se pode falar ainda em termos práticos na exis- portante ramo das ciências da comunicação (linguística,
tência de um “paradigma espírita” plenamente operante análise de conteúdo etc). De fato, a ciência espírita po-
em nossos dias. Para tanto, seria necessário que a teo- derá se beneficiar de um intercâmbio entre métodos de
ria fosse largamente utilizada na orientação de trabalhos investigação, por exemplo, com as áreas de comunicação,
de investigação, constituindo-se em uma nova tradição aplicando processos bem estabelecidos de análise de texto
de pesquisa. Por isso, também, seja possível afirmar que e conteúdo às manifestações inteligentes (Berelson, 1971).
a ciência espírita, tal como antevista por Kardec, seja Até mesmo métodos da criminalística (Mena, 2003) pode-
o maior caso de prematuridade científica já ocorrido e rão ser futuramente usados na investigação espírita, uma
ainda não totalmente compreendido (Hook, 2002). vez que, quando se trata da elucidação de um crime, a
“causa inteligente” frequentemente está oculta e se mani-
Devemos reconhecer que as noções de fraude sempre
festa através de inúmeras pistas espalhadas ao acaso, em
estiveram fortemente arraigadas na mente da maioria dos
quantidade limitada, que não se pode escolher ou repro-
pesquisadores das ciências psíquicas, por causa do vácuo
duzir à vontade. Seria ridículo duvidar da existência do
teórico existente. Como não se acredita na explicação
assassino nesses casos, só porque ele não é diretamente
correta para a questão (a próprio princípio subjacente à
acessível . . .
teoria), a ideia da fraude será sempre a hipótese mais
fácil. Seria como se, na ocorrência de um crime e da
impossibilidade de se acusar o verdadeiro assassino, a VIII D ISCUSSÃO FINAL
investigação permanecesse no pesadelo eterno de se acu-
mular fatos e provas e desenvolver explicações elabora- Imagine que fosse possível propor uma revisão radical
das que nunca chegarão à conclusão verdadeira. Assim, no conteúdo de qualquer ciência estabelecida, em extir-
diante do caráter extraordinário de um fenômeno, a pri- par princípios e fundamentos com base em dúvidas su-
meira explicação “de prateleira” disponível é considera-lo postamente embasadas em nome de uma necessária “atu-
como fraude. Usando de uma comparação, vemos que vá- alização” dessas disciplinas. Imagine atualizar trabalhos
rios grupos modernos se empenham em demonstrar, por de cientistas como Newton, Einstein na Física, Lavoisier
exemplo, que a descida do homem na lua (pelo caráter e Berzelius na Química, ou revisar totalmente obras de
extraordinário e ocorrência única na história) tratou-se filósofos famosos de outrora como Platão, Aristóteles, To-
também de uma farsa. Aqui estão envolvidas as mes- mas de Aquino e muitos outros. Qualquer tentativa de se
mas forças psicológicas e limitações internas que levam interpolar ou modificar trabalhos no passado sob a ban-
a negar a fenomenologia psíquica passada. Por que não deira de uma suposta atualização seria vista como um
dançam novamente as mesas como elas fizeram no século ato ridículo pela comunidade acadêmica, que não poupa-
19? Por que o homem nunca mais voltou à Lua depois ria esforços para sua marginalização.
da década de 1970? A explicação mais fácil sempre será: Em vão os pretensos revisores acusariam os acadê-
porque foi tudo uma farsa . . . micos de “dogmáticos”, pois a história da ciência está
30 Como foi, de novo, o caso da Metapsíquica de Richet (1922). É bem verdade que a França ainda guarda um centro com nome fóssil

daquela época, o Institut Métapsychique International, porém a pesquisa psíquica presente praticados nele se fundamenta largamente na
Parapsicologia e não nas teorias de Richet. Ver: http://www.metapsychique.org/

JEE 010202 – 11 J. Est. Esp. 1, 010202 (2013).


Reflexões sobre a Ciência Espírita

repleta de casos de maior inclemência por parte dos Chalmers, A. 1999. What is this thing called Science, 3rd Edition.
acadêmicos contra inovadores muito melhor intenciona- Hackett Publishing Company, Inc., Cambridge.
dos (Barber, 1961). Somente uma visão estreita e in- Chibeni, S. S. 1991. “Ciência Espírita”, Revista Internacional de
gênua da maneira como se relacionam cientistas e pes- Espiritismo Março, 45. Edição digital de uma apresentação en-
contrada em: http://www.geeu.net.br/artigos/ciespi.
quisadores poderia achar que esse tipo de “dogmatismo” html (acesso em Abril de 2013).
não faz parte da comunidade acadêmica e da ativi-
Chibeni, S. S. 1994. “O Paradigma Espírita”, Reformador
dade científica (Hook, 2002; Löwy, 2002; Stent, 1972a,b).
Junho, 176. Edição digital de uma apresentação encon-
Afinal, qualquer candidato a cientista sério é obrigado a trada em: http://www.geeu.net.br/artigos/paresp.
cumprir uma rígida disciplina de anos de estudos para html (acesso em Abril de 2013).
se tornar apto a exercer a atividade de investigação Chibeni, S. S. 1988a. “A Excelência Metodológica do Espiritismo -
científica. Cientistas são “doutrinados” a fazer uma ci- I”, Reformador Novembro, 328.
ência em particular e “revisores revolucionários” são mal Chibeni, S. S. 1988b. “A Excelência Metodológica do Espiri-
vistos (Townes, 2002). tismo - II”, Reformador Dezembro, 373. Edição digital de
Portanto, querer corrigir Kardec, em nome de uma uma apresentação encontrada em: http://www.geeu.net.
br/artigos/exemet.html (acesso em Abril de 2013).
pretensa “atualização” e acusar os espíritas modernos de
“dogmatismo” não deixa de ser uma posição igualmente Chibeni, S. S. 2010. A Pesquisa Científica do Espírito. Edi-
ção digital de uma apresentação encontrada em: http://
ridícula. E nem adiantaria dizer que os livros texto mo-
www.geeu.net.br/artigos/espirito-fcm2010.pdf (aces-
dernos apresentam “revisões” dos autores antigos. O con- sado em Abril de 2013).
teúdo doutrinário é rigidamente o mesmo, o que muda é
Dugan, D. 2007. Absolute Zero. Documentário BBC. Versão online:
a maneira de se apresentar esse conteúdo (usa-se cores, http://www.youtube.com/watch?v=2Z6UJbwxBZI
apresentação gráfica e técnicas pedagógicas especiais) ou
Ferreira, J. M. H. 2004. Estudando o Invisível. Coleção Hipóteses,
aplicações diferentes. Também, pouco efeito faz conside- Educ/Fapest.
rar o saber científico “mais exato” ou “estabelecido” do
Griffiths, D. J. 2005. Introduction to Quantum Mechanics, 2a Edi-
que o conhecimento espírita. Isso só pode advir de uma ção. Pearson Prentice Hall.
visão estreita do conhecimento.
Haak, S. 2012. “Seis Sinais de Cientificismo”, Logos & Epis-
Portanto, concluímos pela necessidade dos pesquisa- teme III, 75. Edição digital de uma apresentação encontrada
dores do psiquismo humano moderno (o que inclui psi- em: http://lihs.org.br/artigos/Haack_Seis_Sinais_
cólogos, psiquiatras, analistas etc, ver (Moreira-Almeida, de_Cientificismo_LiHS_2012.pdf (acesso em Abril de
2008, 2009)) levar em consideração os princípios de Kar- 2013).
dec em suas pesquisas e investigações para fazer avançar Hook, E. B. 2002. “A Background to Prematurity and Resistance
realmente essa nova ciência. Isso porque são pesquisa- to "Discovery".” In: Prematurity in Scientific Discovery. Ed. by
E. B. Hook, Univ. Of California Press.
dores dessas áreas os que primeiro têm contato com essa
nova força da Natureza, que é o princípio espiritual, tão Kardec, A. 1944a. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Federação
Espírita Brasileira, 104a Edição, Brasília.
antiga e tão mal compreendida.
Ciente da prematuridade das ideias que havia desco- Kardec, A. 1944b. Obras Póstumas. Federação Espírita Brasileira,
Rio de Janeiro.
berto, não obstante sua presença em todas as culturas
religiosas humanas, Kardec soube ponderar o justo va- Kardec, A. 1994. O Livro dos Espíritos.Federação Espírita Brasi-
leira, 71a Edição, Brasília.
lor que elas deveriam receber no futuro, não a partir do
interesse de cientistas, mas quando esses, pressionados Kardec, A. 2002. Obras póstumas. CELD, Rio de Janeiro.
pela opinião pública, seriam obrigados a reconhecer sua Kardec, A. 2008. O que é o Espiritismo. Instituto de Divusão Es-
importância. Cabe a nós, pelo estudo aprofundado dos pírita, 73a Edição, Araras.
mecanismos e processos que operam o desenvolvimento Kitchin, C. 2012. Exoplanets: Finding, Exploring and Understan-
das ciências, tornar explícita essa prematuridade, a fim ding Alien Worlds. Springer, New York.
de que ela possa ser mais bem apreciada. Fazendo as- Kuhn, T. 1970. The Structure of Scientific Revolutions. Internatio-
sim, nos distanciamos das vozes que pretendem tolher o nal Encyclopedia of Unified Science, 2nd Edition. The University
desenvolvimento dessa nova ciência, reinterpretando de of Chicago Press, Chicago.
forma recordada os princípios espíritas, vozes que se es- Losee, J. 1993. A Historical Introduction to the Philosophy of Sci-
coram em ideias populares e mal informadas e que fazem ence. Oxford University Press, Oxford.
coro com o ceticismo radical e dogmático que ainda pa- Löwy, I. 2002. “Fleck, Kuhn and Stent: loose reflections on the no-
rece reinar em nossos dias. tion of prematurity.”; In: Prematurity in Scientific Discovery.
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JEE 010202 – 13 J. Est. Esp. 1, 010202 (2013).


JEE
Jornal de Estudos Espíritas 1, 010301 (2013) - (5 pgs.) Volume 1 – 2013

Caos, complexidade e a influência dos espíritos sobre os fenômenos da


natureza
Alexandre Fontes da Fonseca1,a
1
Bauru, SP
e-mail: a a.f.fonseca@bol.com.br
(Republicado em 11 de Maio de 2013)
Artigo reproduzido da revista FidelidadESPÍRITA 12, pp.20–26 (2003)

R ESUMO
Analisamos, à luz dos conhecimentos atuais da Ciência e da Doutrina Espírita, a questão sobre a ação dos espíritos
nos fenômenos da natureza. Apesar dos espíritos confirmarem tal influência esse assunto foi pouco discutido pelo
codificador em razão dos poucos conhecimentos científicos, existentes à época, a respeito de tais fenômenos. Graças
ao desenvolvimento das disciplinas científicas conhecidas como Teoria do Caos e Complexidade podemos retomar
a questão. Neste artigo, argumentamos que a influência ou ação dos espíritos num fenômeno natural de larga escala
como, por exemplo, uma tempestade, não requer, do ponto de vista físico, uma grande quantidade de energia, em
comparação com a magnitude do fenômeno em si. Em termos espíritas isto significa que não há necessidade de uma
grande quantidade de fluido animalizado para realizar-se tal influência, o que a torna um evento perfeitamente
possível. Utilizamos os conceitos de Caos e Complexidade para entender como isso pode ser possível.
Palavras-Chave: Caos; Complexidade; Influência dos espíritos na natureza; fenômenos atmosféricos; efeitos físicos;
fenômenos físicos.

I I NTRODUÇÃO estudar e entender tais fenômenos. Galileu, em Diálo-


gos Sobre os Dois Sistemas de Mundo e, de modo mais
Em “A Gênese”, capítulo XV ítem 45, Kardec apre- formal, Isaac Newton, em Principia Mathematica Phi-
senta uma passagem evangélica intitulada “Tempestade losophiae Naturalis, inauguraram uma nova maneira de
Acalmada” [1]. Nesta passagem Jesus e os discípulos es- se fazer Ciência ao descreverem, matematicamente, os
tavam passando de uma margem à outra de um lago, em fenômenos mecânicos da natureza. Esta se desenvolveu
um barco, quando fortes ventos surgiram e os discípu- rapidamente trazendo luz e progresso a toda a humani-
los, assustados, pediram ajuda ao Mestre. Este, segundo dade.
a narrativa evangélica, se dirigiu aos ventos e às ondas Os conhecimentos científicos consistem na forma pela
apaziguando-os. Jesus, então, aproveita a oportunidade qual se entende as leis naturais que regem os fenômenos
para falar-lhes sobre a fé. Kardec, no ítem 46 da refe- materiais. Por isso, o uso que vamos fazer de conceitos
rência acima e Caibar Schutel [2] comentam a passagem. modernos da Ciência (Teoria do Caos e Complexidade),
Kardec, neste ítem, admite que não se conhece os "segre- na tentativa de entender como os espíritos podem atuar
dos da Natureza para afirmar se há, ou não, inteligên- em um determinado fenômeno natural, não diminuem em
cias ocultas que presidem à ação dos elementos". Caibar nada o carácter natural tanto dos fenômenos quanto das
Schutel vai mais além afirmando que “todos os fenôme- leis.
nos sísmicos e atmosféricos são dirigidos por seres inteli- Neste artigo, portanto, apresentaremos uma forma
gentes encarregados das manifestações da Natureza” [2]. pela qual os espíritos poderiam exercer uma ação sobre os
Em ambas as citações os autores afirmam a possibilidade fenômenos da Natureza de larga escala, como uma tem-
da atuação dos espíritos sobre o fenômeno de uma tem- pestade, baseando-se nos conceitos de Teoria do Caos e
pestade mas, conforme veremos adiante, não existe na Complexidade.
literatura espírita nenhuma explicação sobre como seria É sabido que os fenômenos da atmosfera, em torno
tal atuação. dos quais trabalharemos, são sistemas caóticos e com-
De todos os fenômenos conhecidos pelo ser humano, plexos [3]. Um sistema é dito caótico [4] quando ex-
de uma maçã que cai ao chão, até os mais belos fenôme- tremamente sensível a pequenas perturbações1 . Como
nos luminosos observados no Universo, temos que lem- exemplo, considere um jogo de bilhar com a mesa cheia
brar que as leis que estão por trás de cada um deles são de bolas. Se o jogador, ao dar uma tacada, errar um
leis naturais e, portanto, de origem divina. Ao longo pouco a direção desejada, o resultado final, que é o mo-
da história, o ser humano tentou compreendê-las atra- vimento das bolas, será completamente diferente da-
vés da observação e estudo dos fenômenos naturais que quele previsto se a tacada fosse correta, e não apenas
ocorriam. Em 1687, um salto ocorreu na maneira como um pouco diferente, como se poderia pensar. Este tipo
1 A palavra "perturbação"aqui deve ser entendida como alguma pequena influência que gera uma pequena alteração num determinado

sistema.

Seção 03: Artigos Reproduzidos 010301 – 1 Autor(es)


c
Caos, Complexidade e a Influência dos Espíritos . . .

de dinâmica, sensível às condições iniciais, é chamada de


caótica. Como consequência, perde-se, efetivamente, o
poder de prever o que vai acontecer após a tacada se o
jogador não tiver total certeza de qual será a sua direção.

Um sistema é dito complexo [5] quando o seu


comportamento é rico em possibilidades inesperadas e
diversificadas, mesmo que sua estrutura não seja compli-
cada, isto é, composta de muitas partes interligadas entre
si. A vida é um dos melhores exemplos de complexidade.
As características do ser vivo mais simples, como uma
ameba, exibem qualidades inesperadas e diversificadas.
Apesar da vantagem da velocidade, nossos computado- Figura 1: Atrator estranho ou borboleta de Lorenz obtida
res, por exemplo, são menos complexos do que o ’cérebro’ resolvendo-se as equações diferenciais do modelo de Lorenz. x,
de uma minhoca [6]. Se considerarmos que os gases que y e z representam grandezas físicas como temperatura, pressão e
velocidade das partículas.
compõem a atmosfera são formados por partículas, apro-
ximadamente, esféricas, podemos imaginar que milhares
delas estão a todo momento se chocando como no jogo Este artigo está organizado da seguinte forma. Na
de bilhar acima exemplificado. A atmosfera, portanto, é seção II exporemos tudo o que encontramos nas obras
um sistema que apresenta comportamento caótico e com- básicas de Allan Kardec sobre a ação dos espíritos sobre
plexo por ser extremamente sensível a relativamente pe- os fenômenos da Natureza. Lembraremos algumas idéias
quenas perturbações e por se manifestar em uma grande básicas sobre fenômenos de efeitos físicos, já que qualquer
variedade de situações conhecidas como tempestades, tu- atuação dos espíritos sobre os fenômenos da Natureza
fões, ventos, frentes frias e quentes, etc. O grande físico pertence a esta classe de efeitos. Na seção III, mostrare-
Stephen Hawking, em seu mais novo livro entitulado O mos que esta atuação é perfeitamente plausível e requer
Universo numa Casca de Noz [6], expõe de forma poé- pouco fluido animalizado. Finalmente, na seção IV nós
tica este fato ao dizer que: "Uma borboleta batendo as resumimos os resultados apresentando as principais con-
asas em Tóquio pode causar chuva no Central Park de clusões.
Nova Yorque". Como ele mesmo explica, não é o bater
das asas, pura e simplesmente, que gerará a chuva mas a II O QUE DIZ O E SPIRITISMO
influência deste pequeno movimento sobre outros eventos
em outros lugares é que pode levar, por fim, a influenciar Além das citações feitas do livro A Gênese e do livro
o clima. É por esta razão que a atmosfera é um sistema de Caibar Schutel a respeito de uma passagem evangé-
de difícil previsão e faz com que, pelo menos uma vez por lica onde Jesus “"controla” uma tempestade, as questões
semana, consultemos a Meteorologia sobre as condições de 536 a 540 de O Livro dos Espíritos [9] falam sobre o
do tempo2 . assunto. Existe, ainda, uma pequena mencão ao tema na
Revista Espírita de setembro de 1859 [10], intitulada “As
tempestades” que não acrescenta em nada o conteúdo pre-
Para realizar previsões no tempo, a Meteorologia se
sente nas questões de 536 a 540 acima citadas. Por isso,
utiliza de ferramentas teóricas para calcular, com alguma
vamos nos ater, apenas, ao Livro dos Espíritos. Trans-
precisão, o comportamento do clima a partir de um dado
creveremos algumas destas questões, grifando aquilo que
conjunto de medidas atmosféricas obtidas experimental-
acharmos importante para a discussão proposta neste ar-
mente. Edward N. Lorenz propôs o primeiro modelo teó-
tigo. A primeira questão que nos interessa é a de número
rico [7] para a dinâmica da atmosfera, conhecido como o
536-a:
Modelo de Lorenz. A figura 1 mostra um exemplo do
chamado atrator estranho ou borboleta de Lorenz que é “536-a Esses fenômenos (da Natureza) sempre visam ao
uma solução das equações obtidas com o seu modelo. homem ?
- Algumas vezes têm uma razão de ser diretamente relaci-
onada ao homem, mas frequentemente não tem outro objetivo
Lorenz também demonstrou, em um artigo de 1982 [8] que o restabelecimento do equilíbrio e da harmonia das forças
que existe um limite para a previsibilidade de sistemas físicas da Natureza.”
atmosféricos em largas escalas, que é em torno de 2 se-
“536-b Concebemos perfeitamente que a vontade de Deus
manas. Isto quer dizer que não podemos confiar nas pre-
seja a causa primária, (...); mas como sabemos que os espí-
visões do tempo feitas após este intervalo. Enfatizamos, ritos podem agir sobre a matéria e que eles são os agentes
portanto, que existe um limite para o conhecimento que da vontade de Deus, perguntamos se alguns dentre eles não
o ser humano atingiu com relação a este problema. Essa exerceriam uma influência sobre os elementos para os agitar,
informação será importante na discussão sobre a capaci- acalmar ou dirigir.
dade dos espíritos de realizarem melhores cálculos e pre- - Mas é evidente; isso não pode ser de outra maneira. Deus
visões. não se entrega a uma ação direta sobre a Natureza, mas tem
2 Ainda sim, nos surpreendemos com as variações!.

J. Est. Esp. 1, 010301 (2013). 010301 – 2 JEE


da Fonseca, A. F.

seus agentes dedicados, em todos os graus da escala dos mun- • Um espírito só pode mover um corpo sólido se ele
dos.” combinar uma porção do fluido universal com o
“537-a (...), poderia então haver Espíritos habitando o in- fluido que se desprende do médium apropriado a
terior da Terra e presidindo aos fenômenos geológicos ? esses efeitos.
- Esses espíritos não habitam precisamente a Terra, mas
presidem e dirigem os fenômenos, segundo as suas atribui-
• Um espírito pode agir sem que o médium, doador
ções. Um dia tereis a explicação de todos esses fenômenos e do fluido animalizado, perceba.
os compreendereis melhor.”
• Um espírito pode agir tanto sobre a matéria mais
“538 Os espíritos que presidem aos fenômenos da Natu- densa quanto sobre o ar ou algum líquido.
reza formam uma categoria especial no mundo espírita, são
seres à parte ou espíritos que foram encarnados, como nós ? De posse destes princípios básicos da Doutrina Espí-
- Que o serão, ou que o foram.” rita podemos analisar a influência dos espíritos sobre os
“538-a Esses espíritos pertencem às ordens superiores ou fenômenos da Natureza sabendo que esses fenômenos são
inferiores da hierarquia espírita ? caóticos e complexos.
- Segundo o seu papel for mais ou menos material ou
inteligente: uns mandam, outros executam; os que exe-
cutam as ações materiais são sempre de uma ordem inferior,
III I NFLUÊNCIA DOS ESPÍRITOS SOBRE A
entre os espíritos como entre os homens.” NATUREZA
“539 Na produção de certos fenômenos, das tempestades, Como vimos anteriormente, os espíritos superiores en-
por exemplo, é somente um espírito que age ou se reúnem em
sinam que são os próprios espíritos os agentes de Deus nos
massa ?
- Em massas inumeráveis.”
fenômenos da Natureza. Vimos também que espíritos su-
periores (os que dirigem) e inferiores (os que executam)
“540 Os espíritos que agem sobre os fenômenos da Natu- se unem na execução dos designios divinos. Vamos, nesta
reza agem com conhecimento de causa, em virtude de seu livre seção mostrar que, diante de um fenômeno de larga es-
arbítrio, ou por um impulso instintivo e irrefletido ? cala, como uma tempestade, não é necessário que os es-
- Uns sim; outros não. (...) (sobre os espíritos mais atra- píritos atuem em cada porção do espaço onde ocorre o
sados) ... Primeiro, executam; mais tarde, quando sua inteli- fenômeno. Faremos uma estimativa da ordem de gran-
gência estiver mais desenvolvida, comandarão e dirigirão as deza do volume de uma tempestade em uma região do
coisas do mundo material; (...)” tamanho de uma pequena cidade de modo a perceber-
mos a inviabilidade de se atuar em todo o espaço. Em
Estas questões juntamente com o que nós assinalamos
seguida discutiremos, com base nos conhecimentos atuais
e grifamos, servirão de base para a nossa discussão. De
da ciência, uma proposta sobre como os espíritos pode-
modo a organizarmos os argumentos, vamos enumerar os
riam influenciar um fenômeno destes atuando em uma
pontos principais:
região espacial bem menor.
1. Os espíritos são os agentes de Deus na execução de Consideremos uma cidade que ocupe uma área de
seus desígnios. Portanto são os espíritos que agem 100km2 (uma área quadrada de lado igual a 10km). Con-
sobre os fenômenos da Natureza quando isso é ne- sideremos um conjunto de nuvens de tempestades que se
cessário. formem a uma altura3 de 5km. Basta multiplicarmos
pela área para obtermos uma estimativa do volume de
2. Os agentes (os espíritos) existem em todos os graus espaço onde a tempestade ocorrerá: 100 × 5 = 500km3 .
da escala evolutiva. Existem, então, os que diri- Um metro cúbico (1m3 ) é o volume de uma caixa d’agua
gem, mandam e comandam; e os que executam a de 1000 litros. Uma unidade de kilômetro cúbico (1km3 )
ação sobre os fenômenos. Isso significa que os que equivale a um volume de 1.000.000.000 de metros cúbicos
mandam e dirigem, devem ter capacidade de coor- (1 bilhão m3 ) que equivale a mesma quantidade de caixas
denar, calcular, prever as consequências da atitude d’água de 1000 litros. São 1000 bilhões, ou 1 trilhão de
a ser tomada pelos que executam a tarefa. litros de volume para cada km3 de espaço. Imaginemos
que um espírito deseja influenciar ou atuar sobre um litro
3. Os espíritos se reúnem em massas para a realização de água ou ar de modo a produzir, por exemplo, algum
do fenômeno. movimento. Um litro é um volume de espaço considerá-
vel quando pensamos neste tipo de fenômeno. Suponha
Antes de passarmos para a seção onde explicaremos que um médium seria suficiente para fornecer fluidos ne-
como os espíritos podem controlar os fenômenos da Na- cessários para produzir-se tal efeito físico. Imaginemos,
tureza, vamos rever alguns princípios básicos necessários agora, que para influenciar uma tempestade inteira se-
para que ocorram efeitos físicos. Do capítulo IV da se- ria preciso atuar em mais de 1 trilhão de litros de uma
gunda parte do Livro dos Médiuns [11], retiramos os se- mistura de ar, vapor de água e água líquida. Quantos
guintes princípios: médiuns seriam necessários para produzir-se um efeito,
3 Nuvens de tempestades possuem uma base a 2 ou 3km de altitude e o topo em até 20km [12]. Em nossas estimativas tomamos um

valor hipotético de 5km, mas se considerarmos o limite superior de 20km a questão da inviabilidade da influência dos espíritos fica, apenas,
mais evidente.

JEE 010301 – 3 J. Est. Esp. 1, 010301 (2013).


Caos, Complexidade e a Influência dos Espíritos . . .

mesmo que pequenino, em todo este volume ? Imagi- espíritos sobre os fenômenos da Natureza passa a ser algo
nemos, ainda, que uma tempestade pode estar ocorrendo perfeitamente viável.
em milhares de cidades espalhadas pelo mundo ao mesmo
tempo. Lembremos também que para afastar uma tem- IV C ONCLUSÕES
pestade, por exemplo, é preciso não só atuar na região
onde ela ocorre mas, nas regiões vizinhas pois elas podem Na questão número 536 (não transcrita na seção II)
estar enviando frentes frias ou úmidas ou algo do tipo, Kardec pergunta aos espíritos se os grandes fenômenos
e é preciso, portanto, atuar nestas regiões também. A da Natureza, como terremotos e tempestades, possuem
figura 2 abaixo nos dá uma idéia da ordem de grandeza um fim providencial e os espíritos respondem que "Tudo
de um fenômeno de uma tempestade. tem uma razão de ser e nada acontece sem a permissão de
Deus". Não foi nosso objetivo, neste artigo, discutir os as-
pectos morais que levariam aos espíritos a influenciarem
tais fenômenos. No entanto, cabe refletirmos que deter-
minados acontecimentos desta natureza influenciam de
maneira muito significativa na evolução dos povos le-
vando ao desenvolvimento tanto moral quanto intelectual
de seus indivíduos.
No artigo da referência [3], o Dr. Ross N. Hoffman
afirma ser possível, num futuro, relativamente, próximo,
controlar-se os fenômenos da atmosfera terrestre. Com
base nas teorias do caos e no desenvolvimento do que se
chama "Controle do Caos" [3] ele propõe um esquema si-
milar ao que expomos aqui, para o que poderia ser um
controle de tais fenômenos. Se a ciência humana já cogita
Figura 2: Um exemplo de tempestade se aproximando de uma
cidade. Compare o tamanho do conjunto formado por núvens e esta possibilidade, podemos dizer que tais conhecimentos
chuva com o tamanho dos prédios. já estão desenvolvidos nos planos espirituais superiores.
Como vimos na seção 3, a união do avanço intelec-
Tudo isso nos leva a crer na inviabilidade de se re-
tual dos espíritos superiores com a natureza caótica e
alizar tal influência da maneira descrita acima. Mesmo
complexa da dinâmica dos fenômenos da natureza per-
uma massa inumerável de espíritos, conforme o ponto
mite que entendamos, de modo mais plausível, como a
número 3, atuando sobre todo o espaço seria insuficiente
influência dos espíritos sobre os fenômenos da natureza
para realizar-se uma influência que culminasse num efeito
pode ocorrer. Esta proposta está de acordo com o que os
preciso. Porém, a história é outra se levarmos em con-
espíritos disseram na questão de número 537-a, a respeito
sideração a dinâmica dos sistemas formados pela atmos-
sobre a explicação e a compreensão destes fenômenos.
fera. Sabemos que esta dinâmica é caótica o que significa
Ainda resta um ponto que devemos comentar. É
que tais sistemas são extremamente sensíveis à pequenas
sobre a questão do número de espíritos necessários à
perturbações em algumas de suas partes. Isso nos leva
influenciação (ponto 3). Este ponto diz que os espíri-
a imaginar que, se pudéssemos calcular com precisão o
tos que atuam nos fenômenos da natureza o fazem em
efeito de cada perturbação imposta numa pequena região
grupos numerosos. Apesar de que, conforme demonstra-
do espaço (ou em mais de uma, porém poucas, regiões do
mos, não é necessário agir sobre toda a região do espaço
espaço), poderíamos controlar e até conduzir o fenômeno
para influenciar uma tempestade, isto não significa que
total a um resultado desejado. Vimos na seção anterior
tal influência seja simples e que apenas um espírito seja
que os espíritos superiores comandam a influência sobre
necessário. Conforme descrito em Missionários da Luz,
os fenômenos. O princípio 2 nos leva crer na capaci-
Cap. 10 [13], um efeito físico como a materialização de
dade destes espíritos de calcularem e decidirem a melhor
uma garganta requer a colaboração de uma grande equipe
atuação. Na introdução nós comentamos sobre o pro-
de espíritos. Portanto, para se efetuar uma ação numa
gresso que a ciência humana já fez neste campo e seus
porção do espaço com grande precisão não é de se estra-
limites. Acreditamos que seja perfeitamente possível aos
nhar que se necessite movimentar um grande número de
espíritos superiores calcular com muito maior precisão os
colaboradores desencarnados.
efeitos de uma dada perturbação em uma dada região do
Por fim, lembramos que este trabalho apresenta uma
espaço. Assim, desde que o sistema é caótico, bastaria
forma pela qual os espíritos poderiam influenciar os fenô-
aos espíritos atuarem numa porção de espaço muito pe-
menos da natureza. Não pretendemos que ela seja a única
quena, possivelmente bem menor do que 1% do volume
solução ou a solução final para a questão. Apesar de
total. Apesar de não podermos estimar qual seria esse
não ser comum pensarmos na Mecânica Quântica como
tamanho (lembremos que a nossa Ciência ainda não con-
modelo teórico para tais fenômenos, um estudo sobre as
segue fazer isso), podemos afirmar, com toda a certeza,
possibilidades de sua aplicação ao problema exposto aqui
que não seria necessário atuar-se sobre toda a região do
merece atenção. Isso será considerado em uma futura pu-
espaço. Desta forma, não seria necessário uma grande
blicação.
quantidade de fluido animalizado para que a atuação es-
piritual ocorra. Isso, enfim, significa que a influência dos

J. Est. Esp. 1, 010301 (2013). 010301 – 4 JEE


da Fonseca, A. F.

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JEE
Jornal de Estudos Espíritas 1, 010302 (2013) - (4 pgs.) Volume 1 – 2013

O Fluido Cósmico Universal e as Teorias Cosmológicas


Alexandre Fontes da Fonseca1,a
1
Bauru, SP
e-mail: a a.f.fonseca@bol.com.br
(Republicado em 11 de Maio de 2013)
Artigo reproduzido da revista FidelidadESPÍRITA 14, pp.16–24 (2003)

R ESUMO
Recentemente, algumas observações astronômicas têm chamado a atenção dos cientistas para o comportamento do
Universo. Os modelos teóricos não explicam tais evidências o que tem levado ao surgimento de novas teorias. Neste
artigo comparamos algumas destas evidências experimentais com uma afirmativa, feita pelos espíritos, na questão
número 27 do Livro dos Espíritos. Os espíritos, ao caracterizarem o princípio material elementar do Universo,
ou o Fluido Cósmico Universal (FCU), mencionam uma de suas propriedades que poderia, ao nosso ver, trazer
luz ao referido problema que, nas últimas duas décadas, tem preocupado os cientistas. Apresentaremos um breve
histórico sobre a origem dos modelos cosmológicos modernos mencionando os fatos que chamaram a atenção para
o problema, e discutiremos a afirmativa dos espíritos.
Palavras-Chave: Fluido Cósmico Universal; Elemento material; Cosmologia; Constante Cosmológica; Efeito Ca-
simir.

I I NTRODUÇÃO nos fornecer uma idéia melhor sobre o Universo. Os li-


vros da referência [7] e [8] trazem uma discussão acessí-
Quem poderia imaginar que uma despretensiosa vel sobre os atuais modelos cosmológicos. Sabemos, por
afirmativa dos espíritos, feita a quase 150 anos atrás, exemplo, que o nosso planeta não é nada mais que um
pudesse ser considerada como uma chave para soluci- minúsculo grão de areia e que o nosso sistema solar é dos
onar um problema atual da Cosmologia. Estamos fa- mais simples. Existem milhares de milhares de galáxias,
lando da questão número 27 do Livro dos Espíritos cada uma contendo milhares de sistemas solares, cada um
[1, 2]. Nesta questão, Kardec pergunta se haveriam dois contendo seus planetas. Conforme discutido no Evange-
elementos gerais no Universo ao que os espíritos res- lho Segundo Espiritismo [9] no capítulo III “Há muitas
pondem afirmativamente, acrescentando-se “. . . acima de moradas na casa de meu Pai”, a grandeza do Universo
tudo Deus, o criador, o pai de todas as coisas” [2]. A não deixa dúvida quanto a existência de humanidades
afirmativa que nos chamou atenção para este artigo é a irmãs habitando outros orbes. Segundo a Ciência, o Uni-
última frase desta resposta: “Esse fluido universal, ou verso teria em torno de 12 a 15 bilhões de anos, mas isto
primitivo, ou elementar, sendo o agente que o espírito se ainda não é uma informação definitiva conforme veremos
utiliza, é o princípio sem o qual a matéria estaria a seguir.
em perpétuo estado de divisão e nunca adquiriria A Ciência, ao contrário do que se imagina, às vezes,
as qualidades que a gravidade lhe dá” [2]1 . Volta- não tem a palavra final sobre um determinado assunto.
remos a ela após apresentarmos o problema atual que a Vemos todos os dias novos medicamentos e tratamentos
Cosmologia ainda não resolveu. sendo utilizados em lugar de antigos que foram conside-
Hoje em dia a concepção que fazemos do Universo rados ultrapassados. Vemos ainda, novos experimentos
é bem diferente da de séculos atrás. Acreditava-se ser levando a Ciência a novos paradigmas sobre a realidade,
a Terra o centro do Universo e que os astros, fixos em como aconteceu com o surgimento da Física Quântica. E,
um abóbada rígida, o firmamento, se moviam de acordo apesar do conhecimento que temos do Universo que nos
com o movimento deste. Inclusive os gregos acreditavam rodeia, existem questões em aberto que desafiam os ci-
que havia um quinto elemento2 que os mantinha presos entistas nos dias de hoje. Pretendemos discutir algumas
ao céu [4]. Muitos astrônomos, cuja função básica era a que nos parecem estar ligadas a afirmativa feita pelos
de observar e mapear estes objetos celestes, começaram espíritos na questão número 27, citada no primeiro pará-
a perceber que este modelo de descrição da realidade fa- grafo. Antecipando as conclusões, desejamos estimular e
lhava em sua principal função: explicar os dados obtidos incentivar aos espíritas que, porventura, estudem Cosmo-
pela observação. Para uma revisão histórica dos concei- logia a pensarem na hipótese, formulada pelos espíritos,
tos e mitos antigos sobre a criação e o Universo citamos como um caminho para encontrar-se uma teoria que re-
o livro da referência [6]. solvesse tais problemas.
A Ciência, hoje, desenvolveu-se bastante a ponto de Assim sendo, este artigo discutirá a questão na se-
1 Grifos nossos.
2 Os quatro primeiros seriam terra, ar, fogo e água.

Seção 03: Artigos Reproduzidos 010302 – 1 Autor(es)


c
O Fluido Cósmico Universal e as Teorias . . .

guinte ordem. Na seção II pretendemos fazer um breve Einstein, chegaram a conclusão de que ela representaria
histórico sobre a origem do problema que incomoda os algum tipo de matéria ou energia, presente no Universo,
cientistas na atualidade, bem como mencionar as evidên- que teria como efeito causar uma repulsão gravitacional.
cias experimentais que o suportam. Na seção III rescre- Isto nunca foi observado na natureza. Todos os objetos
veremos as questões número 27, 29 e 36 do Livro dos materiais conhecidos se atraem devido a força gravitaci-
Espíritos mostrando como elas se ligam ao problema. Na onal.
seção IV nós discutiremos o valor científico da afirmativa Mas, a discussão fica ainda mais complicada com a
dos espíritos e o cuidado que nós espíritas devemos ter descoberta do chamado Vácuo Quântico. Segundo a Fí-
na divulgação destas idéias. Na seção V nós resumiremos sica Quântica, o aparente vácuo ou vazio de matéria, na
as principais conclusões. verdade, não existe absolutamente. O chamado Princípio
de Incerteza de Heisenberg prevê que, a todo o momento,
partículas sejam criadas, do nada, e sejam destruídas logo
II U M BREVE HISTÓRICO em seguida após um intervalo de tempo muito curto. Os
hojO ponto inicial do problema que a Ciência está cientistas, então, resolveram calcular a energia total des-
tentando resolver é a chamada equação de Einstein para tes fenômenos que ocorrem no vácuo. Eles chegaram a
todo o Universo. Não é importante para nós, aqui, anali- duas conclusões [10] surpreendentes: 1) que esta ener-
sarmos esta equação3 , mas apenas um termo que Einstein gia é de uma intensidade quase infinita, isto é, muito
teve que adicionar a ela, a chamada Constante Cosmoló- maior que toda a quantidade de energia e matéria usuais,
gica. Einstein assim o fez porque percebeu que sua equa- quando somada a sua contribuição em todo o Universo;
ção tinha como solução um Universo que não era estático, 2) O seu efeito seria repulsivo, isto é, ela agiria como
sendo esta a idéia aceita na época (entre as décadas de se fosse algo que repelisse a matéria gravitacionalmente.
10 e 20). Porém, anos depois, um pesquisador chamado A segunda conclusão satisfaz a necessidade de algo que
Hubble descobriu, através de observações astronômicas, tivesse o efeito de repulsão gravitacional da matéria. Po-
que o Universo estava se expandindo, e não era estático rém, a primeira conclusão diz que, se isso for verdade e se
como se pensava. Einstein, então, resolveu jogar fora sua não existir nenhum outro fator, o Universo iria se expan-
constante cosmológica das equações num sentimento de dir tão rapidamente que, por exemplo, jamais o núcleo de
desapontamento consigo mesmo por tê-la proposto antes. um átomo se formaria pois esta expansão levaria as partí-
O que Einstein não poderia imaginar era que a sua cons- culas que o constituiria a distâncias muito grandes, muito
tante cosmológica teria que ser, novamente, considerada mais rápido do que a atuação da força forte que normal-
para dar conta de explicar as posteriores observações as- mente as mantém juntas. Esta discrepância entre teoria
tronômicas. e realidade é a maior conhecida até hoje. Em termos
Que o Universo está se expandindo, isto já é do co- da constante cosmológica, os efeitos do vácuo quântico
nhecimento de todos os cientistas desde há muito tempo. levariam-na a um valor 120 ordens de grandeza maior (o
Porém ainda não se sabia a que taxa isto está aconte- número 1 seguido de 120 zeros) do que os cientistas esti-
cendo. Esta informação é importante, por exemplo, para maram segundo as observações astronômicas. De modo
se estimar a idade do Universo. Um problema conhe- a percebermos o objetivo deste artigo, vamos rescrever
cido como A Crise da Idade [4, 10], surgido na década este problema da seguinte forma: o efeito da energia
de 1990, se refere aos primeiros cálculos e estimativas do vácuo quântico seria o de fazer com que a ma-
da sua idade. Os melhores cálculos, usando-se as equa- téria estivesse num perpétuo estado de separação.
ções de Einstein sem a constante cosmológica, resulta- Esta expressão não nos é familiar ?
vam num Universo com, aproximadamente, 10 bilhões de Kardec dizia no ítem VII da Introdução do Livro dos
anos. Isto estava em franco desacordo com as observa- Espíritos [1] que “Na ausência dos fatos, a dúvida é a
ções astronômicas que detectaram objetos a 15 bilhões de opinião do homem prudente”. Isto mostra o valor que
anos-luz4 de distância da Terra. No entanto, foi uma ou- Kardec atribuiu aos fatos, valor este que a Ciência consi-
tra evidência recente que veio colocar mais dúvida nesta dera como princípio básico. Constituem, portanto, fatos
questão [11]. Alguns pesquisadores chegaram a conclu- os seguintes eventos:
são de que o nosso Universo estaria se expandindo numa • É fato comprovado que o Universo está se expandindo
taxa maior do que no passado. Isso complica a situação a uma taxa maior agora do que no passado [11]. Isto é,
da teoria necessitando, ainda mais, a presença da cons- a expansão do Universo está se acelerando.
tante cosmológica nas equações de Einstein para poder-se
• É fato, comprovado experimentalmente, um efeito
explicar estes dados. A quantidade de matéria que existe
cientificamente conhecido como efeito Casimir [12]:
no Universo não é, portanto, suficiente para explicar nem quando se aproxima duas placas metálicas muito perto
a sua idade nem, muito menos, a sua taxa de expansão. uma da outra, no vácuo, surge entre elas uma força
A questão seguinte foi descobrir o que significaria, de atração que só é explicada devido ao fenômeno de
em termos físicos, ou reais, a existência desta constante criação e destruição de partículas no vácuo, conforme
cosmológica. Os cientistas, analisando as equações de explicado acima.
3O
artigo da referência [3] contém uma revisão bastante técnica do assunto, caso seja de interesse do leitor.
4 Um
ano-luz corresponde a distância percorrida por um raio de luz no intervalo de tempo de um ano. Isto corresponde a uma distância
de 9460.8 bilhões de km.

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da Fonseca, A. F.

Portanto, os efeitos do vácuo quântico são reais. Po- III S OLUÇÃO ESPÍRITA
rém, os cientistas tentam explicar o problema sugerindo
Nesta seção pretendemos transcrever os principais
que o cálculo da energia total do vácuo tenha sido feito
trechos de algumas questões do Livro dos Espíritos [2]
de maneira errada e que alguma propriedade natural do
que consideramos relevantes neste estudo e, em seguida
Universo, ainda não descoberta, poderia anular ou com-
comentá-las em relação ao que foi exposto até aqui.
pensar o seu valor. É aí que entraria a hipótese espírita.
“27. Há então dois elementos gerais do Universo: a ma-
Voltaremos nela adiante. Existe, também, uma proposta téria e o Espírito ?
teórica da existência de uma energia sutil chamada Ener- - Sim e acima de tudo Deus, o criador, o pai de todas
gia Escura. A palavra “escura” aqui não tem conotação as coisas. Deus, espírito e matéria constituem o princípio de
moral como, em Espiritismo, estamos acostumados a en- tudo o que existe, a trindade universal. Mas ao elemento ma-
tender quando lemos ou ouvimos esta expressão. Por terial se tem que juntar o fluido universal, que desempenha
“escura” os cientistas querem dizer sobre tudo o que não o papel de intermediário entre o espírito e a matéria propri-
interage com a luz ou com outra radiação eletromagné- amente dita, por demais grosseira para que o espírito possa
tica, de modo que não se pode perceber a sua existência exercer ação sobre ela. Embora, de certo ponto de vista, seja
simplesmente olhando-se para o céu com os telescópios. lícito classificá-lo com o elemento material, ele se distingue
deste por propriedades especias. Se o fluido universal fosse
Como exemplo, os cientistas chegaram a conclusão, por
positivamente matéria, razão não haveria para que o espí-
vias indiretas, de que existe uma matéria, que eles con-
rito também não o fosse. Está colocado entre o Espírito e
sideram “escura”, que tem natureza diferente da matéria a matéria; é fluido, como a matéria, e susceptível, pelas suas
usual que conhecemos. Neste caso, a diferença entre essa inumeráveis combinações com esta e sob a ação do espírito, de
matéria escura e a referida energia escura é o fato de que produzir a infinita variedade de coisas de que apenas conhe-
a primeira se comporta como a matéria comum com rela- ceis uma parte mínima. Esse fluido universal, ou primitivo,
ção a força gravitacional, isto é, a matéria escura é atraída ou elementar, sendo o agente de que o espírito se utiliza, é o
pela matéria em geral. Já a energia escura teria um com- princípio sem o qual a matéria estaria em perpétuo estado de
portamento contrário repelindo a matéria. Ela, portanto, divisão e nunca adquiriria as qualidades que a gravidade lhe
segundo os cientistas, seria responsável pelo efeito de ex- dá.”
pansão do Universo. Alguns pesquisadores propuseram “29. A ponderabilidade é um atributo essencial da maté-
ria ?
que ela forme um campo quântico batizado de quintes-
- Da matéria como a entendeis, sim; não, porém, da maté-
sência [4] devido a sua pequena densidade. Na figura
ria considerada como fluido universal. A matéria etérea e sutil
1 mostramos a percentagem de cada tipo de energia e que constitui esse fluido lhe é imponderável. Nem por isso,
matéria do Universo necessária para que as observações entretanto, deixa de ser o princípio da vossa matéria pesada.”
astronômicas possam ser entendidas. “36. O vácuo absoluto existe em alguma parte no Espaço
É importante enfatizar que apesar de ser o principal Universal ?
ingrediente do Universo, a energia escura, por ter densi- - Não, não há o vácuo. O que te parece vazio está ocupado
dade bem pequena, é extremamente rarefeita. Por esta por matéria que te escapa aos sentidos e aos instrumentos.”
razão, recentemente, Thielsen [5] propôs que este campo As questões de número 29 e 36 mostram concordân-
de quintessência ou energia escura seja algo próximo ao cia com relação a questão da energia escura e do vácuo
Fluido Cósmico Universal (FCU). Discordamos da pro- quântico, respectivamente.
posta pela simples razão de que a energia escura tem Para que fique bem claro que a afirmativa dos espí-
como efeito repelir, afastar, fazer com que a matéria se ritos representaria uma proposta viável de solução para
divida mais e mais. Segundo os espíritos, na questão nú- os problemas em cosmologia vamos rescrever, uma sobre
mero 27 do Livro dos Espíritos, conforme citado acima a outra as afirmativas espírita e do problema do vácuo
e transcrito logo abaixo, um dos efeitos do FCU é fazer quântico, respectivamente:
com que a matéria não esteja em estado de divisão.
Esse fluido universal, ou primitivo, ou ele-
mentar, sendo o agente de que o espírito se uti-
liza, é o princípio sem o qual a matéria estaria
em perpétuo estado de divisão e nunca adquiriria
as qualidades que a gravidade lhe dá.
O efeito da energia do vácuo seria o de fa-
zer com que a matéria estivesse num perpétuo
estado de separação.

IV C UIDADOS NA DIVULGAÇÃO
Figura 1: Os ingredientes do Universo em sua cons- hojVimos como uma afirmativa feita pelos espíritos
tituição aproximada. O principal deles é a energia escura. na questão número 27 do Livro dos Espíritos pode levar
Figura adaptada da referência [4] a uma grande contribuição científica na área de Cosmolo-
gia. Nesta seção gostaríamos de tecer alguns comentários

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O Fluido Cósmico Universal e as Teorias . . .

sobre o cuidado que nós espíritas devemos ter quando re- científicos de modo a trazer uma efetiva contribuição a
lacionamos os ensinos espíritas aos resultados da Ciência este campo do conhecimento.
ou vice-versa. Discutimos os valores científicos desta proposta cha-
Primeiramente é importante dizer que o presente mando a atenção do leitor espírita para a maneira de
estudo não se trata de afirmar que “a Ciência está encará-la de modo a evitar-se precipitações que tragam
confirmando o Espiritismo”. Na verdade ela não está pre- descrédito para o movimento espírita.
ocupada com a nossa doutrina, mas sim em tentar des- É importante lembrar que existem outras teorias que
cobrir as leis que estão por trás de todos os fenômenos tentam descrever o Universo. Os livros das referências
naturais. Neste artigo, descrevemos alguns destes fenô- [7, 8] falam sobre isso. Por exemplo existe a chamada te-
menos, de magnitude cosmológica, que ainda não foram oria das supercordas e variações desta teoria que foram
completamente explicados. Nosso esforço foi o de mos- demonstradas serem equivalentes e pertencentes a uma
trar que uma afirmativa dos espíritos pode levar a uma única teoria maior, ainda não descoberta, que os cien-
solução deste problema. Apesar disto ter um grande va- tistas batizaram de Teoria M. Talvez esta teoria, consi-
lor científico, cabe aos físicos e astrônomos que, porven- derada como a teoria de tudo, possa resolver os proble-
tura, sejam espíritas desenvolverem a idéia para dizer, mas expostos neste artigo através de outras explicações.
finalmente, se esta hipótese realmente contribui para a Um exemplo mais concreto é o recente artigo intitulado
questão. “Holografy Stabilizes the Vacuum Energy” (Holografia
O problema não se resolve ao, meramente, comparar estabiliza a energia do vácuo) [13] que propõe que uma
a afirmativa dos espíritos com a problemática da cosmo- dada propriedade chamada Holografia Gravitacional te-
logia moderna. Estamos, na verdade, criando uma forte ria como consequência a diminuição do efeito de divisão
motivação para que isto seja pesquisado de maneira séria da matéria que o vácuo quântico geraria.
por quem entende do assunto, isto é, um pesquisador com Por tudo isso consideramos que os pesquisadores da
experiência na área de Física e Cosmologia, que seja espí- área são os únicos a poderem avaliar de modo mais se-
rita ou, pelo menos, simpatizante de nossa doutrina. Isto guro a hipótese do FCU como solução para os problemas
pois, quando tratamos de Ciência, todo o rigor é mais cosmológicos.
do que necessário para que tenhamos um resultado Por fim, manifestamos nosso entusiasmo devido ao
amplamente aceito pela comunidade científica. A análise fato de que este ensinamento dos espíritos foi publicado
deste assunto por parte de um especialista é de extrema a quase 150 anos atrás, bem antes de Einstein(que é o pai
importância pois ele será o único capaz de traduzir a das teorias cosmológicas modernas) nascer. Isso mostra a
idéia espírita na linguagem técnica da Ciência. sabedoria dos espíritos que trouxeram ao mundo os seus
Cabe, ainda, ressaltar que a referida afirmativa dos ensinamentos e nos enche de fé e confiança nesta doutrina
espíritos possui um outro valor científico que, infeliz- que adotamos por filosofia de vida.
mente, apenas nós espíritas podemos reconhecer. É o
fato de que uma afirmativa publicada a quase 150 anos
atrás poder estar ligada a um problema que somente nas
últimas duas décadas tem preocupado os cientistas. Isso R EFERÊNCIAS
mostra, simplesmente, a superioridade dos espíritos que
trabalharam com Allan Kardec na codificação da Dou- [1] A. Kardec, O Livro dos Espíritos, Editora Edições FEESP,
9a. Edição, (1997).
trina Espírita o que nos faz sentir mais fé e confiança nos
[2] A. Kardec, O Livro dos Espíritos, Editora FEB, 76a. edição,
seus ensinamentos. (1995).
[3] S. Weinberg, Reviews of Modern Physics, 61, p. 1 (1989).
V C ONCLUSÕES [4] J. P. Ostriker e P. J. Steinhardt, Scientific American, 284
(Janeiro), p. 46 (2001).
Neste artigo comparamos uma afirmativa feita pelos [5] S. Thielsen, O Reformador, 2082(setembro), p.11 (2002).
espíritos na questão número 27 do Livro dos Espíritos [6] M. Gleiser, A Dança do Universo: Dos Mitos da Criação ao
Big–Bang, Editora Companhia das Letras, (1997).
com um problema que os físicos e astrônomos ainda não [7] S. Hawking, O Universo Numa Casca de Nóz, Editora Man-
encontraram solução. Os espíritos afirmaram que o FCU darim, 2a. edição, (2002).
seria responsável por não permitir que a matéria estivesse [8] M. Kaku, Hiperespaço, Editora Rocco LTDA, 1a. edição,
num perpétuo estado de divisão. Explicamos que a ener- (2000).
gia do vácuo quântico seria responsável por tal compor- [9] A. Kardec, O Evangelho Segundo o Espiritismo, Editora
EME, 1a. reedição, (1996).
tamento e propomos, diferente dos cientistas e de acordo [10] L. M. Krauss, Scientific American, 280(Janeiro), p. 35 (1999).
com os espíritos, a existência de um campo ou energia no [11] C. J. Hogan, R. P. Kirshner e N. B. Suntzeff, Scientific Ame-
Universo que anule ou compense este efeito. Esta pro- rican, 280(Janeiro), p. 28 (1999).
posta nada mais é do que a influência do FCU sobre o [12] G. J. Maclay, H. Fearn e P. W. Milanni, European Journal
efeito de divisão que o vácuo quântico geraria sobre toda of Physics, 22, p. 463 (2001). Para uma revisão histórica do
efeito Casimir o leitor é referido à: D. L. Andrews e L. C. D.
a matéria. Romero, European Journal of Physics, 22, p. 447 (2001).
Incentivamos o pesquisador espírita, especialmente o [13] S. Thomas, Physical Review Letters, 89, 081301 (2002).
que possua formação profissional nas áreas em questão, a
investigar esta hipótese dentro dos métodos e linguagem

J. Est. Esp. 1, 010302 (2013). 010302 – 4 JEE

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