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DOIS ANOS DE PESQUISA NUM ESTUDO EM PROFUNDIDADE SOBRE A PERSONALIDADE DE CHIQUINHA GONZAGA Entrevista com EDINHA DINIZ NOTA DA REDACAO — Edinha Di- niz pesquisou durante dois anos nos ar- quives da SBAT, tudo quanto poderia ser witil num trabalho em que vai contar, num livro, a vida da compositora Chi- quinha Gonzaga, livro esse onde procu- Ta mostrar Chiquinha como mulher ¢ como artista, dentro da sociedade brasi- leira nos fins do século XIX e nas pri- meiras décadas deste século. Um panora- ma de wsos, costumes e gente. Habituamo-nos a véla durante es- ses duros dois anos, debrugada ao lon- go de dias, semanas, meses, sobre tudo aquilo que, nos arquivos da SBAT tem. verdadeira importdncia histérica no fa- to de substituir equivocos, palpites, inve- rossimilhancas e anedotas, por uma mais séria realidade, — a de mostrar cc- mo Chiquinha Gonzaga conseguiu, sozi- nha, e pela sua propria e indomdvel energia, transformar-se numa auténtica eriadora e divulgadora da nossa misicc popular. No comeco Chiquinka serviuse de tudo que era moda no seu tempo: poleas, valsas, habaneras. Mas foi Joa- quim Callado (1848-1880) quem a con- quistow para as raizes da misica brasi- leira quando (em 1869) a ela dedicou o seu primeiro choro a que deu 0 nome “Querida por todos”, titulo que, natural. mente, foi para ela uma espécie de car- ta-de-aljorria profissional. E nunca mais parou. £ certo que isso nds sabemos a- travez de conversas com Edinha, No en- tanto, é hora do leitor indagar: — Mas quem é Edinha Diniz? Isso vamos tentar definir: — Edinha € uma baiana de vinte e poucos anos, formada em Sociologia, com pés-gradua- Janeiro-Feyereiro, 1979 cao em Ciéncias Humanas, na Universi- wade da Bahia. Interessou-se entao por arte popular. Pensou em cinema. E foi exatamente com a idéia de preparar um pequeno filme sobre a carioca Chiqui- nha, que veio @ SBAT por ter sabido que @ compositora pertencera ao grupo dos seus socios funaadores. Nao tinha, € cer- to, grandes esperancas. Mas expoz 0 set caso. Nao existiria alguma coisa que ela pudesse utilizar no sew trabalho? Foi recebida por Djalma _Bitten- court, Superintenaente da SBAT e des- ta Kevista-de Teatro. Ele sori, € disse- ine: Acredite, com o material que nos vemos nao se faz um filme curto, jazem- se cem, mil, Nos possuimos um espolio riguissimo, mas nao para pequenos jil- ‘mes, mas, ao contrario, para uma obra wonga, soore toda essa época um pouco uesvunheciaa, mas de uma grande v- porvancia, Se a isso estd awsposta, creia que nos a ajudaremos com o maior des- ‘velo, orientando-a dentro do imenso .a- burinto de dados materiais que, sovre 0 assunto, temos nos nossos arquivos... . — Sim! E Edinha foi convidada a examinar com seus proprios olnos 0 ar- quivo de Chiquinha Gonzaga. Poucos was depois jd estava na ponta de uma grande mesa estabelecenao uma linha ae método, equilibrio e harmonia. Jé la vdo-wois-anos....Nesses dois anos viajou Por aquele mundo submerso de coisas ‘aparentemente mortas, mas cheias de veracidade e de vida. E é acerca desse seu exaustivo trabalho que Edinha vai falar a seguir aos leitores, entrevistada por um de nés. UM DE NOS — Muito se tem felado © es- erito sobre Chiquinka Gonzaga, De mais po: sitivo existem, ercio, dois livros, 0 de Mariz: Lira, e um outro de Geysa Boscoli que foi, de fato, sobrinhoneto dessa a quem em dezenas de artigos a imprensa considerou como a pri- meira feminista brasileira, Voe@ que pesqui sou um material Inédito, encontrou em seu trabalho qualquer coisa que justifigue esse titulo que nos parece falso de cla ser uma fe minista? Hé, de fato, na sua vida, e ma sun obra, qualquer palavra em que ela queixa apresentarse como simbolo ou participante desse feminismo em que foi precipitadamente arrolada? EDINHA — Em primeiro lugar, parece: me ingénuo supor que a sociedade imperial pudesse gerar as condigdes objetivas para 0 surgimento de um movimento feminista. So- bemos que essas condigdes surgem historica- mente do recrutamento efetivo e macigo da mao-deobra feminisia assalariada. E ¢ bom lembrar que Chiquinha Gonzaga (1847-1935) comecou a se profissionalizar em milsicn a partir do 1870, Feminista foi a Bertha Lutz. Sem divida Chiquinha fol uma mulher her ca pela posigéio que assumiu diante de mori mentos sociais e politicos do pais no seu tem. po. Mas estou. mais. inclinada-a acreditar que ela fol um vulto isolado, explicavel sobretudo por qualidades que lhe eram intrinsecas. Até 9 momento néo encontrel nas minhas invest gagies nenhum indicio de que fosse preocx ante a Chiquinha Gonzaga a desigualdade en tre os sexos. Claro que no Ihe foi s8eil, como mulher, quebrar as barrelras sociais impost.s pela nossa sociedade pairiarcel. Mas daf a admitir que ela teria sido a primeira feminis- ta brasileira, acho no minimo imprecisa. Acre dito Ihe caber melhor a posic&o de mulher emancipada, sobretudo se considerarmos 3 coragem de conquistar essa emancipagso atra- vés do trabalho com miisica popular, ativida- de considerada com desdém pelas elites colo- nizadas de entdo, E nesse sentido que eu en tendo 0 reeado do Abre Alas... (... que eu quero passar, eu sou da lira, fifio posso ne- gar. UM DE NOS — Explique uma coisa: de fato Chiguinha fot vitima_ em menina de uma sociedade de tradigdes seculares, num tempo fem que as filhas casavam com maridos des- tinados pelos pals. Nao foi assim que Chiqui nha casou? EDINHA — De fato, Chiquinha campria, até o casamento, 0 destino que estava reser 4 vado a toda moca de seu meio social. Apreti cer (em casa) a ler, escrever © contar, € es: ar que no momento indicado the fosse spresentado 0 senhor grave de bigode a quem iria dever obediéncia pelo resto da vida; este era o destino mexordvel da mulher de entio. Um provérbio portugués, muito em yoga ro Brasil no alvorecer da segunds metade do ‘século passado, dizia textualmente: “Uma mu- Iher 44 € bastante instruida quando 16 corre- tamente as suas oragdes e sabe escrever a receita da goiabada. Mais do que isso seria ‘um perigo para o lar”. Acs 16 anos de idade, no 13 como afirmam seus bidgrafos, Chi quinha casavase com um filho de comenda dor do Império, tendo como testemunha da solenidade o entio Marqués de Caxias. 0 ma- rido era comandanto da Marinha Mereante proprietario de navios em sociedade com 0 Bardo de Maué, Sem duvida, um casamento conveniente & familia Gonzaga. UM DE NOS — Mas nfo também ver. dade que depois de casada ela reagiu abando- nando 0 marido no desejo de tentar sozinha ‘a sua independéncia através daquele sonho por quem sempre estivera apaixonada: — 2 miisica? EDINHA — & verdade, nio gostava de muisiea o marido, e isso era grave para 0 es pirito de Chiquinha. Embora com 3 filhos, ela ndo hesitou em abandonar o marido e en- Retrato a bico de pena por Rafael Bordallo Finhelro. Chiquinha tem entio as suas prime ras musicas editadas com o nome de familia, REVISTA DE TEATRO frentar a vida sozinha, Porém, entre essa se ‘paragio © a sua profissionalizagio em musica, ‘ocorreu alnda uma ligagio fortuita de que nasceu mais um filho, e logo um novo rompimento. Decididamente, ao contririo do ‘que a sociedade preconizava, sua vocacio nio estava na tranguilidade de um lar. Ensi naramlhe, ainda mening, a tocar piano, Tal- ‘ver ai residisse 0 “perigo para o lar” profett ado no provérbio tao em voga. O piano era a epoca um instrumento de enorme aceitacio — um viajante francés chegou a constatar uma verdadeira praga de pianos no Rio de Je neiro da segunda metade do século XIX. Mas quando Chiquinta comecou a trabathar, pri meiro como professora de piano, depois pis nista, compositora e maestrina, a familia Gon- ‘zaga, segundo depoimentos que tenho recolbi do de seus descendentes, passou a amaldicoar ‘0 Maestro Labo, sou antigo professor. Porque fol o piano que Ihe deu 2 condic&o necessiria para que pudesse sobreviver e ostentar ums real emancipagio através do trabalho. ‘UM DE NOS — Mas, ha provas, de que ela passou a sentir, por essa independéncia, ‘que era uma defensora da liberdade das mu- Theres, ou apenas obedeceu a0 seu caso pes- soal de querer ser artista, através de tudo? EDINHA — Nao, ndo ha provas de que ela tivesse se tornado uma defensora da liber- ‘dade das mulheres, la apenas trabalhava com muita garra, H& registros do que els. ti- ‘nha uma facilidade enorme para compor. Che- gava a preparer toda uma partitura para pecs teatral (média de 2 miimeros musicais) em uma semana, Dela Viriato Corréa declarou que ... “foi a mais surpreendente capacidade de trabalho que Deus criou no Brasil, para dignificar uma sala”. Agora parece-me ingénuo ‘admitir que uma mulher isolada, morena, bot mia, compondo miisica popular, pudesse Aque- ta época representar um modelo de compor- tamento a ser imitado. Antes que encorajar, creio que apenas escandalizava. Acredito que fa sua personalidade independente, a sta pos: tura de afronta mesmo aos padrdes socials vi gentes sfio melhor explicados 20 nivel pessoal ‘Seu talento e stia coragem eram qualidades jneramente individuals, Bla trabathou, Tutow, ‘amou e soffeu. Ndo crelo que o seu exemplo z sepresenta® wine-soiugad alternativs is mulheres no interior da estrutura social de entfo. Multa agua deveria ainda rolar para ‘que outra mulher no Brasil Ihe seguisse as pe gadas. Por tudo isso, acho que ela foi ums precursora da emancipacio feminina, nio ma feminista. Janeiro-Fevereiro, 1879 AS POMBAS = LETRA DE Raymundo Corrés Na época o eélebre soneto de Raimundo Cor- rela era recitade em todos os saraus da socie- Gade carioea, Chiquinba compos entéo, uma fnclodia que passou a acompanhar a declama- eo de As Pombas. ‘UM DE NoS — Com quem esteve Chiqui- nha mais ligada em toda a sua vida: — com homens ou mulheres? Voct que tantos docu mentos tem encontrado, o que pode responder fa esse respeito? EDINHA — Sem dtivida ela esteve mais Ti gada aos homens, Digamos que ela se movia muito mais num universo masculino. Afinal de contas, o univers de bordados, doves, cafuné ¢ igreja era incompativel comt a personalidade de Chiquinha, Tenho encontrado farta docu: mentacao reveladora de um extenso sistema de zelagSes de amizade, mantido por ela, qua- se exclusivamente de homens, e sempre com vinculagSes profissionais. UM DE NOS — Pode dizernos se conse- guin, sozinha, no séeulo XIX, no Rio de Janei- ro, que a aceitassem como artisia, nfo sO ‘compondo miisiea, mas assumindo mesmo, na frente de uma orquestra, a fungio destinads ~aa_Macstro? 1ss0-s¢radour xo Brastl? Ou cat sou Teparos € censuras? EDINHA — Chiquinha afrontou de uma forma muito eorajosa a sociedade preconce! tuosa da sua epoca. Acredito que a hostilidade de que foi vitima no infcio da carreira nao se devia necessariamente ao fato de ser artista, ——— Se fosse cantora Ifrlea, por exemplo, ou com: positora erudita, talvez nao tivesse tido maio: tes aborrecimentos. Mas pareceme que 0 ca- Hater problemstico da sua profissionalizagio e, em decorréncia, da sua aceitagao social, pro- vinha do fato de fazer musica popular, género considerado menor, marginal, numa sociedade eminentemente colonizada. Quanto ao seu pio- neirismo como maestrina, hi um episédio in- teressante. Foi em janeiro de 1885, e um jor- nalista ao registrar a sua estréla, usou a pa- Tavra maestra, chamando a atencao para 0 fa- fo de nfo saber se era licito afeminar o ter- mo. Claro que sta confusio com 0 verndculo tradus uma preocupagio em afeminer a pro- fissio, até entio feudo exclusive dos homens. UM DE NOS — Chiquinha esteve varios anos em Fortugal nessa situacio profissional. Acha que os preconceitos da sociedade brasi- leira de entéo a perseguiram também em Lis: ‘boa? Ou Portugal a aceitou como filha de um mundo novo? EDINHA — Estou convencida de que Por- tugal a seeitou muito bem pelo iato dela se apresentar como representante de uma ilustre e nobre familia do Império. Quanto a esse pe riodo da vida de Chiquinha, a unica fonte de que disponho so os regisiros da imprensa isboeta, E € interessante observar que pela primeira vez a impronsa chama a atencso pa. za o-seu parentesco como Duque dé Caxias € com bardes do Império, numa preocupacio flagrante de darthe um toque de classe. Esta parece ter sido a condic&o indispensavel & sua, integragdo na sociedade portuguesa. ‘UM DE NOS — Chiquinha, como artista, no era uma mulher de letras, uma escrito: a, Por isso todas as suas obras, ou quase to- das, vinham’ das mios de poetas ou homens de teatro. Nao fol, portanto, com esses ho- mens que Chiquinha trabalhou durante mais de 50 anos? Ou teve colaboradoras femininas? Pode lembrar eles, ou elas, se existiram? EDINHA — Claro, ela sempre esteve mui- to ligada as letras através de amigos e par- ceiros. Fez parte das rodas boémias com Bi: tae, Guimaries Passos outros. Embora fos- se também autora de versos para algumas de suas mulsicas, a maior parte de sua obra para canto recebia vorsos de poetas amigos: José do. Patrocinio" Filho, Raimundo Correfa, Atber- to de Oliveira, Luiz Murat, Filinto de Almet da, Artur de Azevedo, etc. Hm teatro teve co- mo companhelros, entre outros, Furtado Coc Tho, Viriato Corréa, Valentim Magalhaes, Vi cente Reis, os irméos Quintiliano, Raul Peder nelres, Osério Duque Estrada, Luiz Peixoto, Carlos Bettencourt, Frederico Cardoso de Me- nezes. Quanto As colaboradoras femininas, num total de quase 2.000 muisicas, essa cola poracdo néo chega a mela diizia, portanto in- significant. UM DE NOS — 0 tema do amor foi uma constante na obra artistica de Chiguina? EDINHA — Na obra musical eu diria que sim, Ressalvo porém a sua obra para teatro musicado porque estava condicionada a tema tica escolhida pelo autor do breto, elemento inclusive anterior A partitura, Porém, quanto as pecas musieais avulsas, podemos observar ‘a frequéncia co amor,cpmo tema, quer nos titulos das pecas para plano, quer nos versos das pecas para piano e canto. Nao podemos, no entanto, esquecer que Chiquinha compos com regularidade um género muito apreciado ate as primeiras décadas desie século, as can: gonetas comicis, parle integrante do repert6: Tio da dupa Os Geraldos ¢ de Pldeida dos Santos. Convivendo com 0 romantismo.literé- Tio, ela no eseapou & moda poética. Acho po- rém que 0 mais expressivo da sua obra mu- sical no é constituida pelas cangdes roman: tieas e langorosas, ¢ sim pelas poleas salti tantes, 08 tangos brejeiros © os maxixes bulk 0808. UM DE NOS — Mais tarde, nos ditimos anos da sua vida, cremos-que se-comsiderava uma gldria nacional, isto 6 verdade? Mas isso nao interessa aqui. O que desejamos com este disloge que voc? nos conte, como, € durante a maior parte da sua vida, ela viven como ar- tisia e como mulher. Pode? Ou € ainda cedo para dizilo? EDINHA — A “festejada compositora pa tricia”, como a imprensa da época costumava chaméla, chegou & velhioe consagrada, respei- tada e admirada; uma verdadetra gldria na- cional, alias, como artista mio The poupavamn confetes, Seu talento foi devidamente reconhe: cido, Como mulher, aqueles que avian velhi- nha, apoiada numa bengala, j4 nfo identifica vam nela a “cabocla estonteante” de tempos dos, ou faziam por néo lembrar. Ha multo a contar, reavaliar e corrigir sobre a artista ¢ a mulher Chiquinha Gonzage, mas ainda 6 ce- do... E que o meu livro é uma longa histéria tue deve. ter.pelo. menos. trezentas_péginas, “WEN DE NOS — Quando deve ser publ cade? EDINHA —Ele esta construido, estabele cido, Agora s6 falta aquilo a que podemos chamar de arte final. Mas acredito que em 1080, j& estar nas livrarias. REVISTA DE TEATRO

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