Você está na página 1de 9
F Copies 2. Gregério de Matos: glosa em cantigas no Recéncavo baiano Na vasta coleogdo de versos apégrafos a esse critico de cos- tumes ¢ desabrido forjador de ironias ¢ sarcasmos Gregério de Matos Guerra, a quem chamariam Boca do Inferno, projectam-se de forma viva, como imagens em movimento numa tela, centenas de situngdes e episédios engragados ou escatol6gicos da vida da tidade de Salvador e de outros centros urbano-rurais do Recn- ‘avo. Embora, é bem verdade, tudo mostrado segundo 0 ponto de visa contraditério do filho ‘da elite branca local, levado por jmperativo do temperamento a viver os Gltimos dez anos da sua fase madura eavolvido em pagodeiras e aventuras sexuais com a gente negra e mestiga (prineipalmente prostitutes) que preconcei- {uosamente desprezava. ‘De volta a Bahia em 1682 ou 1683 (*) (saira em 1650 pelos ‘seus quinze anos, para estudar em Coimbra) para desempenhar jnicialmente a fungao de tesoureiro do arcebispado, Gregorio de ‘Matos casa-se com uma vitiva, perde o cargo, tenia a advocacia ¢, jem 1684, inicia andancas boémias pelos engenhos do Recin- avo baiano, cujos proprielirios o abrigavam naturalmente atraidos por suas qualidades de compositor de coplas e romances — que Losé Ramos Tishorto Histria Socal da Masica Popwir Brasileira acompanhava na viola aque por suas curiosas maos fizera de] a huma dama que se ausentava»), estilo que viria a ganhar no cabaso» (") — ainda de cantor, pois chegaria a merecer do] século XVill a forma de géncro de canto sob 0 nome de «cantigas contemporineo Gongalo Soares da Fonseca a décima: ‘em despedidas» (*), De entre ay modaldades de verses cantados, 0 poets-misico Com tanto primor cantas, Gregorio. de Matos cultivava predomirantemente, 20 lado das om tanta graca target, losis cantigas, cops e chansonetas, os romances que Ie per- due as potencias suspenteis, Fritam conta, no eso ppulariradicional ds edordilhas naires, os sentidos elevais oe factos engraados ort acontecimentos variados, sempre com de ambas sortes adnirais, funda de acompantamento A viola. E nessa sua preferincis por Suspendido 0 brebo Eolo ésia forma de canto falado — acomparhado per certo no melhor mas ex vos digo sem dole, tsilo monédico vindo do séeulo anterior ~~ posta chegaria due de mui pouco se admira, inclusive ao inconveniente de pretender cantar em versos&tis- pois tocais de Orfew a lire toza de urn adarna, que estiva no interior [de sua casa) enojada €4 pluma tendes de Apolo. pola more de sun den, 0 que provocou a indignagdo deta A leitura das mais de seiscentas composigdes em versos que Agastaste-vos deveras, compoem © Cisdice Mantel Pereira Rabeio permite, de fate vendo, qe alse tongla depreender que Grogério de Matos, com suas eoplas ¢ romances fem umd casa enojada composios 2 propésito de factos do di-acdia da Sie vida, st ‘do enlutada, e senda Jnclufa ne mesma eategoria dos fihos das eumadas da lite bran. co-mestica destinadas a inaugurar novas formas de viver urbano ‘A-essa reacgao mais do que natural o poeta reagiria acusarico (€ que paradoxalmente criticava), como ele proprio percebia ef a ofendida de exagerada, para coneluir com uma meia desculpa registava a referi-se forma pel qual as fui blanasecucavarn | que nfo escondia ma eetsura: seus «morgadinhos»: 6 ndo hei de cantar mais Criam-nos com liberdade haem que 0 mande a minka amiga, nos jogos como nos vicios, chorarei vosse dureza, ermitindo-thes, que saibam chorarei minha mofina. °°) anger guitarra, ¢ machinho. ©) A variedade quantidade dos romances (alguns com estribi- se Em seu caso pessoal Gregério de Matos nfo apenas continua- | tho, verses sobre motes e décmas culalas,somadas is gloss, ad Va a tradigéo daqueles desocupados escudeiros «irovadores» | cantgas e chulas, bem como as lifes e chansonetas declarada~ quinhentistas, cultvadores de romances acomparhados a viel | mete compesas para serem cantadas com acompantamento da ‘mas entregvse fd glosa de quadrase esibilos de caniges | viold) nda final —-a exeoplo do qe vriaaaconteczs depois Popalares do tempo sob a forma de déeimas (to conan cuzen. | com es verca de Dorsingos Caldas Burbosaenfeados nos dois tos anes depois em Portugal, com o advent da moda dos efadoss | volumes da Vila de Lereno nos sécilos XXII © XIX —, que ta segunda mete do séeulo X1X), a0 desenvlvimento de motes | também a obra de Gregorio de Matos Gueradeveria sr estidada Visivsment fonecies por fasts popuares (cone ow mex | ue (on nip camo ob poten mat coma eos de sia al, tu qués, que eu morra»),« A\compesgto de coplas para | popular urbana A prova dio estaria no facto de, de ene as - Santo de dspedias(eDespedidn cm eaiges amorose que fez | fai de seacentas Composies em versosFeclhidas com do 46 a ose Ramos Tinhorao poeta em Portugal, na Baia, em Angola e,finalmente, em Per. nambuco (onde morreu em 1695), apenas duzentas e sete consti tuem sonsios, que era o género poctico dominante na época, ¢ ‘euja forma ndo eonvidava a misiea ‘Apreciado sob este ngulo de pocta-compositor urbano neiro, em pleno século xVil — mas nfo ceramente o nico, amie ‘ez que a documentapio histércasalvaria 0 nome de pelo menos ‘outro auter-cantortecador de vols conternporaneo, 0 padre mulato baiano Lourengo Ribeiro, embora mais ligado este aos saldes da elite (°) —, Gregério dé Matos oferece em seus versos (sem importar © ue the possa ser indevidemente atributdo) as mais claras indicagbes de que o processo de urbanizagto da capital da colénia jé comesava a gerar condigSes para o aparecimento de tals tipos de anistas eriadores. Pelo que se depreende de muitas das siuapbes ¢ episédios deseritos em versos pelo posta, a populardade da cangao a solo comecava a revelar talentoscitadinos como 0 cantor Silva Ariso (Pols 0 Silva Arigo da nossa fox /Dessas sereias misicas no rar /suspende 0s cantos e erudece a voz»), 0 também cantor & tocailor de vila Chico Ferreira (pareciro de faras de Gregério de Matos, a quem, segundo olicnciado Rabelo,chamava «seu mest «de solfa, porque com ele cantava is vezes»)¢ ainda um certo Gil, assim referido por Gregéro a0 deserever uma «jomada que fez 40 Rio Vermelho»: Assim fomos caminhanda ‘sobre os dous cavalos ascuas alegres como nas pdscoas, ora rindo, ora zombando. ‘eu que esiava perguntando pela viola, ou vabil, ‘quando owvimos bradar Gil, que recostade @ guitarra ‘garganteava a bandarra Fetrithas de mil em mil. (°) No caso do proprio Gregério de Matos, a variedade mesma ddos géneros de canto acompanhado, por ele cultivados, faz supor que tocasse sua viola com certa desenvoltura, 0 que parece ficar comprovado pelo contetido de algumas imagens, expressas sob a 48 isuiria Socal da Mésica Popular Brosieira forma de trocadilhos, nos versos em que fecusa a uma amante 0 presente de uns sapatos no valor de um cruzado: Um cruzado pede 0 homem, Anica, pelos sapatos, ‘mas eu ponko isso a viola na postura do cruzado: Diz, que sao de sete pontos, mas camo eu tanjo rasgado, ‘hemi nesses pontos me meto, rem me tiro desses tratos. Inda assim se ew ndo soubera (0 como tens trasiejado nna banza dos meus sentides pondo-me a viola em cacos: Q cneade pose, ji que foi tio desgragado, ‘que buli com a escaravelha, @ toguel sobre 0 buraco. Porém como jd conheso, (que 0 teu insirumento € baizo, € so 100 falsas as cordas, ‘que quebram a cada passo, Nao te rasgo, nem ponteio nem te ato, nem desato, que pelo tom que me tanges, ‘pelo mesmo tom te dango. Busca a outro temperithos, que eu jd estou destemperado (.}€) De saida Gregsrio de Matos informa sta disposigio de res- ponder ao pedido A viola, cantando «na postura do eruzado», ou feja, na forma de versos em que o significado resultaria do cru amento do duplo sentido das palavras. E 6 0 que realmente faz, ‘través de uma engenhosa manipulagdo da significagao das pala~ ‘ras pois, ao afirmar desde logo que nada tem a ver o tamanho dos sapatos (que eram medidos por pontos), alega nfo tocar a viola por pontos, ou de forma dedilhad, mas pelo processo popular Ge ferir as cordas todas de uma vez, que era o chamado toque 0 Lost Ramos Tinhorbo rasgado, Por essa razilo, além de ndo se meter com pontos,dizia| nfo se importar com pormenores — «nem me tito desses tr tos» —, 0 que era referéncia 3s marcagtes no brago do instrumen: to, sobre as quais se aperta a conda para variar os tons. Isso petmitia-Ibe continuar a cruzar o sentida das palavras informar: do a amante que, apesar de tudo, talvez The desse o eruzado para ‘0s sapatos se ela nao tivesse trastejado, ou perturbado sua harmo- nia de espirito (0 como tens tastejado /na banza dos meus sentidos» (")], perturbando-Ihe a rotina da vida («pondo-me viola em cacos»). Sempre cruzando os diferentes sentidos des palavras, 0 poeta reconhecia ter-se aproveitado sexualmente de Anica, nfo apenas com titlagées no bico dos seias (comparado com a eravelha, a pequena cabera de madeira que se torce para cesticar as cordas do instrumento), mas até tocando-lhe 0 buraco (que tanto tem no corpo a mulher quanto a viola). Gregorio exclusa porém a possibilidade de atender ao pedido da mulher alegando que, além de baixo (desafinado por deftito), seu instrumento sexual se revelara frouxo como se tivera afalsas as cordas / que quebramt ‘cada passo». B, assim, conclula que, por todas as razSes apon- tadas, nfo desejava mais qualquer novo contacto sexual-musieal ‘com Anica («no te rasgo, nem ponteio»), resolvendo dar-se como ago da recusa do dinheiro, pelo que nao recebera em gozos (que pelo tom que tanges, / pelo mesmo tom te dango»), reo ‘mendando-Ihe que procurasse afinar-se com outro («busca a outro temperilhos»), pois de sua parte sentia-se ineapaz (aque eu jf eslou destemperado / estou para me rasgar J [..] EE de crer, pois, ante tal demonstragdo de conhecimentos de Particularidades da misica (ao menos no que se referia ao manejo a viola), que Gregério de Matos usasse essas suas habilidades na criagdo, nao apenas de composigSes pessoais, mas no aproveite- ‘mento, sob a forma de glosas, de cantigas postas em voga no seu tempo, para valer-se da popularidade de suas melodias. Em termos de contribuicdo a historia das origens da misica das cidades no Brasil, aids, essa preocupagio parodistica sob a forma de glosas, aproveitando quadras ou versos isolados a titulo de motes, para elaboracio de décimas destinadas.ao canto com acompanhamento de sua viola, confere a Gregério de Matos 0 papel de informante da mais alta importincia, Assim, através do poeta — neste ponto ajudado pelas indica- {ges do contemporiineo recolhedior de sua obra, o licenciado Manuel 50 suri Social da Misia Popular Brasileira Pereira Rabelo — ficamos sabendo que as composigdes de pou- cos versos (geralmente quacras), até hoje denominadas generica~ mente de chulas, receberam esse nome por constituirem, na ver= dade, chularias postas em curso pelos ciulos, ou seja, a gente da ‘mais baixa condigio social. E essa denominagao de gente chula para os componenies das camadas mais humildes j4trazia implicito © preconceito de classe ante a propria escolha do termo, poi {que tudo indica, o étimo dessa palavra estaria no cigano-espat ‘hut (1) 16 ou chul (1) ti que, através do castelhano chulo, daria em portugues ndo apenas o depreciativo chulo, mas o desagradivel chulé ssa atribuiggo do termo chulo para designar as cantigas dos chulos evidenciava-se naquele final do séeulo Xvi pela forma como licenciado Rabelo, a citar —, duas eram citadas apenas pelo que tinham de ofensivas a preceltos religiosos {a primeira o estribilho «Oh disbol>, a segunda 0 praguejo «Berra a tua alma (*)), mas a terceiza envolvia um conceito mais refinado de heresia, uma vez que pimha em divide a justeza dos proprios designios do Criador, fo tentar discutir a trarsitoriedade da vida através da indignapio ‘Para que nascestes, rosa / se Uio depressi acabaste?». ‘Nutio Marques Pereira lembra os dois primeiros versos do stono, que se usava naquele tempo» — «Para que nascestes, Rosa | se tio depressa acabasie?» — para ilustar 0 caso do cas tigo divino a um Jogo Furtado, «famoso misico © grande tocador de viola destas miodas protanas, assistente na freguesia de Nossa ‘Senhora do Socorro, no Recéncavo da cidade da Bahiao, que teria morrido aps interpretar a herética cantiga. E embora deixasse impreciso 0 «naquele tempo», pela citacao se ficaria sabendo que suas lembrangas moralistas da segunda década do século XVII 3 José Ramos Tinordo remontavam aos fins do século anterior, uma vez que 0s versos do «para que nascestes rosa?» jé figuravam na quadra tomada ‘como mote por Gregério de Matos para uma glosa em décimas Para que nascestes, ros, se to depressa acabaste, hasces na manhd triunfante, morres despojo da tarde. (°) A preocupagio da Igreja e dos educadores e moralistas catlicas ‘com a pureza de sua doutrina, como era o caso do leigo Nuno ‘Marques Pereira, estava em que 0s versos das cangOes urbanas herdeiras de rua dos antigos trovares palacianos estavam fazendo recrudescer o desrespeito a uma antiga proibigao religiosa da Idade Média, que incluia a sedugio pelos «cantares vios» na categoria dos «pecados das arelhas» (4), Acostumadas a0 controlo (aliss nunca tranquilo, como se veritica pela proliferagao das penitén- cias) do comportamento de sua freguesia (os paroguianos eram filhos da Igreja ou filiis Eclesiae, de onde fregués), as autoridades eclesidsticas viam como um desvio — desde logo atribuldo & acgo do Deménio — a crescente atracsio dos moradores das cidades pelas letras de cantigas que ndo apenas se imiscuam em temas da Doutrina Sagrada, mas valiam por verdadeiros convites as aproximagdes amorosas consideradas lascivas. E essa preo: ‘cupagao era fal que se dava o proprio Deménio como compositor tocador de viola, tal como fazia 0 mesmo Nuno Marques Pereir, alias apoiado em autores da Tgreja: ‘«Porém, eu me persuado, que a maior parte destas modas thas, ensina o Deménio; porque é ele grande Poeta, contrapontiste, iisico € tocador de viola e sabe inventar modas profanas, para as ensinar Aqueles que avio temem a Deus. Conta 0 Padre Bento Remigio no seu livid Pratica Moral de Curas e Confissées (pigi- ‘na 9) e no outro livro intitulado Deus Momo, que entrando 0 ‘Deménio em uma mulher nistica, foi um Sacerdote a fazer-Ihe os cexorcismos de uma igreja,e entrando-Ihe a curiosidade perguntou a0 Deménio 0 que sabia? Respondev-lhe, que era musico. E logo The mandou vir uma viola, e de tal maneira a tocou, e com tanta estreza, que parecia ser tocada por um famoso tocador.» (*) Pelo_que demonstram certas imagens encontradas em versos cantados por Gregério de Matos Guerra, a preocupacio dos res- 4 Hinérta Socal da Masice Popular Brasileira ponséveis pela preservasio da bos moral ndo deixava de ter muitas vvezes 0 scu fundamento, como seria o caso de sua glosa a uma ‘antiga popular daquele fim dos anos de Seiscentos que, desde Jogo, ao tomar como mote, 0 poeta ajudava a salvar do esqueci- ‘mento: Pobre de ti, borboleta, jmitagdo do meu mal, ‘que em chegando ao fogo morres, Porque mortes por chegar. Abrasado de descjos por uma mulsta prostituia chamada Barbora, que por qualquer motivo consentia a dar-se a todos, menos # ele, Gregorio de Matos aproveita a sugesto do tema da ‘antiga — 0 destino das mariposas nocturnas, que atrafdas pelas Iuzes do fogo se apressam a correr para elas, pagando com a morte 0 prego da illistio — ¢ elabora em décimas sobre cada um 48 versos da quadra uma requintada confissao amorosa, repleta de segundas intenges. A luz ou fogo a que se vai referir em sua sglosa é 0 desejo Sexual, ¢ quando esereve que a essa chama a Inulher «morre por chegar», estar querendo dizer que ela se apressa, louca de desejo, na ansiedade de entregar-se por volipia essa espécie de morle que 0 orgasmo provoca. Toda a constru- ‘glo da glosa constitui, realmente, um verdadeiro achado criativo pois, sendo o nome da moga Barbora, o poeta aproveita a seme= thang sonora com boboleta prs chara Barboeta,o uc sida ‘a aproximar ainda mais a imagem do insecto que’ morre pela atracgdo da chama a0 da mulher que se apressa («morte> de pressa) em atirar-se zo fogo do sexo para chegar ao prazer: «porque Torres por chegars. Aliés, essa chave para a compreensio da ‘glosa & cantiga-mote «Pobre de ti, borboleta», é fornecida pelo copilador dos versos, licenciado Rabelo, a0 consignar em sua didascélia 0 facto de Gregorio de Matos nao esconder ele mesmo sua clara motivagdo sexual: «Esta cantiga acomoda o poeta com proporgao & Barbora, pelo nome ¢ trato, nfo deixando de Fora os Seus-amantes desejas» Mote Pobre de ti, Barboleta 55 José Ramos Tinhordo imitasao do mew mal, que em chegando ao fogo morres, Porque morres, por chegar. Glosa Passeias em giro a chama simples Barbolera, em kora, (que se a chama te enamora, few mesmo estrago te cham se 0 seu precipicio ama, quem o seu mal ixguieta, € tu simples, ¢ indiscreta tens por formosura grata luz, que traidora te mata, Pobre de ti, Barboleta Ow w imitas meu ser, ow ew tua natureza, pois na luz de una beleza, ‘ando ardendo por arder: se d luz, que vejo acender, te arrojas tio cega, e tal, que imitas ao natural, com que arder por ti me vés, ime obrigas a dizer, que és Imitagaa do meu mal Es, Barboleta, comua, pois a tOda luz te botas, © eu cego, se bent 0 notas, sou 6, Barboleta, tua: qualquer segue a esiréla sua, mas tu orelhor te socorres, ‘quando em fogo algum te torres, Porque eu nunca ao fogo chego, @ tw logras tal sosségo, Que em chegando ao fogo marres. Tu mais feliz, ao que entendo, inda qué pereas a vida, 56 iuiria Social da Mice Popular Brasileira porque a dé por bem perdida, quem vive dé andar morrendo: eu ndo morro, e 0 pertendo, porque falta a meu pesar 4 fortuna de acabar: ui morres, € tu sossegas, € vais morta, quando cegas, Porque morres por chegar. ©) Gragas no apenas essa sua qualidade de autor de versos feitos para cantar & viola mas também devido & sua condigdo de partcipante e animador de jomadas ou passeios boémios a ponos Pitorescos afastados da cidade (como era o caso do Rio Verme- lho, & época), © em que 0 espirito dos excursionistas era o da bandarra, ou seja, o da vadiagio alegre, Gregério de Matos visia contribuir ademais, em muitos de seus versos, com infomagdes tinicas sobre os mais diferentes tipos de diversdes ¢ dangas da gente dos primeiros nucleos de vida urbana do Brasil. Nacleos testes, por sinal, anda estreitamente ligades a érea rural nfo apecas pela proximidade dos limites, mas pela sobrevivéncia, na propria Cidade, de rogas, granjas, clidcaras, hortas de quintal e até de ‘engenos, como era 0 caso do existente entre 0 perimetro urbano ea peninsula de ltapagipe (). Em uma «egunda fungdo que teve com alguns sujeytos na roga de hum amigo junto ao dique» — conforme anota 0 licen- ciado Rabelo — o poeta tomaria conhecimento por aquela segun- dda metade do século XVit de uma danga que entio devia estar sendo introduzida na Bahia, pois o tom expresso nos versos & de surpresa ante a novidade do som julgado «excelente Cantou-se galhardamente tais solos que eu disse, 6 que canta 0 passaro 84, © os mais gritam na semente: focou-se um som excelente, ‘que Arromba the vi chamar. Sai Temudo a bailar, ¢ Pedro lirmdo do poetal, que é folgaztio bailow cont pé, © com mao, € 0 cx sermpre'no lugar. () ST eit Romcs Tnkorao Tal como a boa interpretagio dos primeiros versos indica, Gregorio de Matos comesa por um protesto contra o facto de os ‘idsicos participantes do passeio estarem entoando apenes cant £5 a solo, o que deixava os demais na condigao passiva de meros uvintes («que canta o péssaro 86, /¢ os mais gritam na semente») Passa-se enti as dangas com a novidade do arromba, na coreo- ‘grafia da qual © poeta aponta desde logo a novidade de vé-la dangada sem movimento dos.quadris, quando o rebolado de influéncia negro-africana j4 era caracteristica das danas popula. res da época: Pasmei eu da habilidade ‘do nova, tao elegante, Porque o cu sempre é dancante nos bailes desta cidade, (*) Eni as outras dangas cultivadas nfo apenas nos wbatles desta Cidade», ou seja, da dren da capital, Salvador, mas dos distros ¢ vilas existent nas eas agro-ndustriis dos engenhos, Gregétio dde Matos ia referir-se ainda a0 gandu (que viu cangar fo distro 4 Pernamirim, junto ao engenino do RecOncavo figurado no mapa levantado por Wanderley de Pinho como Perna Mirim) —- «eu tenho grande desejo de /ver bailar o gandu 0 que nao deinava e ser curioso, pois uma danga com esse nome ia aparcecr ctada no século seguinte em Portugal pelo também saitico frei Lucas de Santa Catarina em um de sous folhetos de cordel da série Anatémico Jocoso: Junto & Cruz (referéncia a um velho eruzeiro de Lisboa, ainda existente em 1753 na esquina da Rua de Sdo Bento, no birro do mesmo nome], andavéo os mochilas [empregados domésticos) ao soeaizo [2 solta?} com o seu gendum por pom tos.» 0°) considerando que esse ganchim portugués oitocentisia, sendo danga das classes baixas de Lisboa, em grande parte formadas pot negros ¢ mestigos (0 proprio autor do folhetoafirma gue na {unga0 ev vi mulato, que de cantar 2 amorosa [eénero de canta da época], sem tomar folgo, esteve com a caléa na mon), é bem © caso de imaginar se nfo seria a mesma danga do gandu baiano eitado por Gregério de Matos, 0 que antec:paria 0 interedmbio de 38 Histria Socal da Misice Poputar Brasitera influéncias coreogrifico-musicais comprovadamente verificado entre © Brasil e Portugal no século xvi, Infelizmente, para o melhor conitecimento das particularida: des em tomo das primeiras dangas urbanas, nem Gregério de Matos na Babia, nem frei Lucas de Santa Catarina em Portugal fornecem no caso do gandw quaisquer pormenores sobre seu rit- ‘mo ou coreogratia, mas em outras passagens 0 satirico baiano se revelaria mais informativo, como ao referir-se em uma chansone- 1a 8 existéncia de uma danga chamada paturis Ao som de uma guitarritha, ue tocava unt colomim (curamin, menino indio] W bailar na Agua Brusca As Mulatas do Brasil Que bem bailam as Mularas, que bem bailam o Paturi} Néo usam de castanhetas, por que cos dedos gentis Jazen ial estropeada, que de ouvi-las me esirugi Que bem bailam az Malatas, que bem bailam o Paturi. (*) Pela descrigio dessa danga de mulatas (que em Seiscentos comeyavam a formar 0 contingents das mestigas foras ¢ lives destin no sul ezine ae um peso io grade na con formagio éinico-psicol6gics da maioria das baixas eamadas s0- Gil, Ha clase media, Gregorio de Matos faz saber qu por aquela década de 1680-1690 jf se dangava na area popular cas- {anholando com os dedos. Ora, se a essa caracteristica do estalar de dedos propria do fandangoibssco, aqui apontada no pati, somar ouiraindicagao fornecida pelo proprio poeta, sobre umbi- ‘gidas vistas em festes de pardos de Salvador em homenagem & Nossa Senhora do Amparo («e como sobre 0 moinha /levoi ‘antas embigadas[..), pode coneluirse jd exisitem em seu tempo —emborsisoladamente — os dois elementos qu, reunidos, fariam no séeulo xVit surgiro lund Essa impressio, als, ¢reforgada por outros pormenores que Gregério de Matos ajunta ainda & sua descrigao da wjocozidace, 9 José Ramos Tirhoro com que as mulatas do Brasil baylio o paturi». Assim, quando, apés referit-se & westropeaday prodiuzida pelo castanholar dos dedos ddas dangadeiras, acrescenta 0 detalhe: Atadas pelas vitithas cuma cinta carmesim, de ver td0 grandes barvigas Ihe tremiam os quads. Que bem bailam as Mulatas, que bent bailam 0 Paturi. (*) Ora, quando se recorda que, menos de um século depois dessa Gescrigdo de Gregorio de Matos na Bahia, o poeta Tomas Antonio, Gonzaga descreveria em suas Cartas Chilenas como, em Minas, «

Você também pode gostar