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Eni P. Orlandi ANALISE DE ~ DISCURSO * Principios Procedimentos Pontes INDICE Prefiicio. 9 1.0 Discurso A linguagemem Questao.. 15 Um Novo Terreno e Estudos Preliminares 17 Filiagdes Teéricas. 19 Discurso. 20 IL. Sujeito, Histéria Linguagem A Conjuntura Intelectual da Anilise de Discurso 25 Dispositivo de Interpretagio... ‘Um Caso Exemplar. Condigdes de Produgao e Interdiscurs 30 Ideologia e Sujeito.. 5 0 Sujeito e sua Forma Histéric Incompletude: Movimento, Deslocamento ¢ Ruptura... IIL. Dispositivo de Andlise O Lugar da Interpretacio....... ie Ae OD 50 As Bases da Anilise 62 ‘Uma Questo de Mét 65 Textualidade e Discursividade. 68 Autor e Sujeito: O Imaginario e 0 Real 2B Fungiio-Autor. 14 A Anillise: Dispositivo e Procedimentos.. O Dito € 0 Nao-Dit = Tipologias ¢ Relagdes entre Discursos.. Marcas, Propriedades e Caracteristicas: 0 formal, © discursivo e 0 conteudista, BIBLIOGRAFIA. 7 82 85 89 o1 95 PREFACIO [Nao penso que exista realmente uma introdugo para a andlise de discurso. Por outro lado, trata-se, em geral, para as introdugdes, de supor-se uma unidade, ou uma homogeneidade, para um texto cientifico, 0 que também € enganoso. Haver sempre, por mais estabelecida que jé seja a disciplina, muitas maneiras de apresenti-la e sempre a partir de perspectivas que mostram menos a variedade da ciéncia que a presenca da ideologia. Entdo, diante da insisténcia de solicitagdes, tanto de alunos, como de editores, de que eu deveria fazer uma introdugi0 2 andlise de discurso, resolvi escrever outra coisa. Inspirei-me em meus cursos de introdugaio ~ que mesmo que tenham no programa mais ou menos os mesmos itens so a cada ano um, enfatizando diferentes t6picos, explorando diregdes diversas — para escrever o que eu diria que é um percurso que pode compor uma série de pequenas “aulas” de andlise de discurso, sobre pontos variados que julgo interessantes na constituigio desse campo de conhecimentos, ou nesse campo de questdes sobre a linguagem, que é a anilise de discurso. Problematizar as maneiras de ler, levar 0 sujeito falante ou 0 leitor a se colocarem questdes sobre o que produzem e o que ouvem nas diferentes manifestagdes da linguagem. Perceber que ‘no poclemos niio estar sujeitos a linguagem, a seus equivocos, sua opacidade, Saber que ndo ha neutralidade nem mesmo no uso mais aparentemente cotidiano dos signos. A entrada no simbélico € irremedivel e permanente: estamos comprometidos ‘com 0s sentidos ¢ 0 politico. Nao temos como nao interpretar. Isso, que é contribuicdo da andlise de discurso, nos coloca em estado de reflexdo e, sem cairmos na ilusdo de sermos conscientes de tudo, permite-nos a0 menos sermos capazes de ‘uma relagiio menos ingénua com a linguagem. ‘Com as novas tecnologias de linguagem, & memsria carnal das Iinguas “naturais” juntam-se as varias modalidades da meméria metélica, os multi-meios, a informatica, a automagio. Apagam-se os efeitos da hist6ria, da ideologia, mas nem por isso elas esto menos presentes. Saber como os discursos funcionam é colocar-se na encruzilhada de um duplo jogo da meméria: 0 da memsria institucional que estabiliza, cristaliza, ‘€, a0 mesmo tempo, o da meméria constituida pelo esquecimento que € 0 que torna possivel o diferente, a ruptura, 0 outro. Movimento dos sentidos, errancia dos sujeitos, lugares provisérios de conjungao e dispersio, de unidade e de diversidade, de indistingao, de incerteza, de trajetos, de ancoragem ¢ de vestigios: isto € discurso, isto € o ritual da palavra. Mesmo o das que nao se dizem. De um lado, € na movéncia, na provisoriedade, que os sujeitos e os sentidos se estabelecem, de outro, eles se estabilizam, se cristalizam, permanecem. Paralelamente, se, de um lado, ha imprevisibilidade na relagdo do sujeito com o sentido, da Jinguagem com o mundo, toda formagao social, no entanto, tem. formas de controle da interpretacdo, que so historicamente determinadas: hé modos de se interpretar, nfo é todo mundo que pode interpretar de acordo com sua vontade, hi especialistas, hd um corpo social a quem se delegam poderes de interpretar (logo de “atribuir” sentidos), tais como 0 juiz, 0 professor, 0 advogado, 0 padre, etc. Os sentidos estio sempre “administrados”, nao estio soltos, Diante de qualquer fato, de qualquer objeto simbélico somos instados a interpretar, havendo uma injunco a interpretar. Ao falar, interpretamos. Mas, ao mesmo tempo, os sentidos parecem jé estar sempre Id. Cabe entdo perguntarmos como nos relacionamos com a linguagem em nosso cotidiano, enquanto sujeitos falantes que somos (pai, mie, amigo, colega, cidadaos etc), enquanto profissionais, enquanto professores, enquanto autores e leitores. E sobre isso que pretendemos falar nos capitulos que formam este livro. Que, como todo discurso, fica ineompleto, sem inicio 10 absoluto nem ponto final definitivo, Uma proposta de reflexaio. Sobrea linguagem, sobre osujeito, sobre ahistériac a ideologia. Que tampouco tem a pretensdo de fazer de todo mundo especialistas em andlise de discurso, mas que, através do contato com os principios e os procedimentos analiticos que aqui expomos, podertio se situar melhor quando confrontados com a linguagem ¢, por ela, com 0 mundo, com os outros sujeitos, com os sentidos, com a histéria. I I. 0 DISCURSO A Linguagem em Questo Ha muitas maneiras de se estudar a linguagem: concentrando nossa atengio sobre a lingua enquanto sistema de signos ou como sistema de regras formais, e temos entio a Lingifstica; ‘oucomo normas de bem dizer, por exemplo, e temos a Gramética normativa, Além disso, a propria palavra gramética como a palavra lingua podem significar coisas muito diferentes, por isso as graméticas e a maneira de se estudar a lingua sio diferentes em diferentes épocas, em distintas tendéncias e em autores diversos. Pois & justamente pensando que hé muitas maneiras de se significar que os estudiosos comegaram a se interessar pela linguagem de uma maneira particular que é a que deu origem & Anilise de Discurso. A Anilise de Discurso, como seu préprio nome indica, nao trata da lingua, nfo trata da gramatica, embora tadasessas coisas Ihe interessem. Ela trata do discurso. E a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a idéia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prética de linguagem: com 0 estudo do discurso observa-se © homem falando. Na anilise de discurso, procura-se compreencer a lingua fazendo sentido, enquanto trabalho simb6lico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua histéria. Por esse tipo de estudo se pode conhecer melho: aquilo que faz do homem um ser especial com sua capacidade de significar € significarse. A Andlise de Discurso concebe a linguagem ia entre o homem e a realidade natural e social. Essa mediagao, que € 0 discurso, torna possivel tanto a permanéncia e a continuidade quanto o deslocamento e a transformagio do homem e da realidade em que ele vive. O trabalho simbélico do discurso est na base da produgao da existéncia humana. Assim, a primeira coisa a se observar & que a Andlise de Discurso nio trabalha com a lingua enquanto um sistema 15 abstrato, mas com a lingua no mundo, com maneiras de significar, com homens falando, considerando a produgao de sentidos enquanto parte de suas vidas, seja enquanto sujeitos seja enquanto membros de uma determinada forma de sociedade. Levando em conta 0 homem na sua hist6ria, considera os Processos e as condigdes de produciio da linguagem, pela andlis da relagdo estabelecida pela lingua com ca eujeltos a0 A fn € as sitagdes em que se produz o dizer. Desse modo, para encontrar as regularidades da linguagem em sua produgao, 0 analista de discurso relaciona a linguagem a sua exterioridade. Tendo em vista esta finalidade, ele articula de modo particular conhecimentos do campo das Ciencias Sociais e do dominio da Lingiistica. Fundando-se em uma reflexiio sobre a histéria da epistemologia e da filosofia do conhecimento empitico, essa articulagéo objetiva a transformagio da prética das ciéncias sociais e também a dos estudos da linguagem, Em uma proposta em que 0 politico € o simbélico se confrontam, essa nova forma de conhecimento coloca questies para a LingUifstica, interpelando-a pela historicidade que ela apaga, do mesmo modo que coloca questdes para as Cigncias Sociais, interrogando a transparéncia da linguagem sobre a qual elas se assentam. Dessa maneira, os estudos discursivos visam pensar o sentido dimensionado no tempo e no espago das priticas do homem, descentrando a nogio de sujeito e relativizando a autonomia do objeto da Lingiifstica. Em conseqiiéncia, ndo se trabalha, como na Lingiifstica, com a lingua fechada nela mesma mas com o discurso, ae um objeto s6cio-hist6rico em que o lingiistico intervém como pressuposto, Neme trabalha, por outro lado, com a hist6ria ea sociedade como se elas fossem independentes do fato de que elas significam, Nessa confluéncia, a Anilise de Discurso critica a pratica das Ciencias Sociais ¢ a da Lingiifstica, refletindo sobre a maneira como a linguagem est materializada na ideologia e como a ideologia se manifesta na lingua. 16 Partindo da idéia de que a materialidade especifica da ideologia € 0 discurso e a materialidade especifica do discurso éa lingua, trabalha a relagio Iingua-discurso-ideologia. Essa relagao se complementa com o fato de que, como diz M. Pécheux (1975), néo ha discurso sem sujeito e nao hé sujeito sem ideologia: o individuo € interpelado em sujeito pela ideologia ¢ € assim que a lingua faz sentido. Conseqiientemente, o discurso € 0 lugar em que se pode observar essa relagio entre lingua ¢ idcologia, compreendendo-se como a lingua produz sentidos por! para os sujeitos. Um Novo Terreno e Estudos Preliminares Embora a Anilise de Discurso, que toma o discurso como seu objeto préprio, tenha seu inicio nos anos 60 do século XX, Oestudo do que interessa a ela - 0 da lingua funcionando para a produgdo de sentidos e que permite analisar unidades além da frase, ou seja, o texto - jd se apresentara de forma nfo sistematica em diferentes épocas e segundo diferentes perspectivas. ‘Sem pensarmos na Antigiiidade e nos estudos retéricos, temos estudos do texto, em sua materialidade lingiistica, em M.Bréal, por exemplo, no século XIX, com sua semantica hist6rica. Situando-nos no século XX, temos os estudos dos formalistas russos (anos 20/30), que j4 pressentiam no texto uma estrutura, Embora 0 interesse dos formalistas fosse sobretudo literdrio, os seus trabalhos, buscando uma I6gica interna do texto, prenunciavam uma anélise que nao era a anéilise de contetido, maneira tradicional de abordagem. A aniilise de contetido, como sabemos, procura extrair sentidos dos textos, respondendo a questio: o que este texto quer dizer? Diferentemente da andlise de contetido, a Andlise de Discurso considera que a linguagem nao é transparente. Desse modo ela no procura atravessar o texto para encontrar um sentido do outro lado. ‘A questo que ela coloca é: como este texto significa? 1

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