Você está na página 1de 11

453

Furlan, Vinicius; Alvarez, Maria Dolores. (Im)Possibilidades no trabalho com grupos de idosos em Instituições
de Longa Permanência: uma experiência em Psicologia

(Im)Possibilidades no trabalho com grupos de idosos em Instituições de


Longa Permanência: uma experiência em Psicologia

(Im)Possibilities at work with elderly groups in Long-stay Institutions:


contributions of Psychology

(Im)Posibilidades en el trabajo con la tercera edad en grupos en


Instituciones de Larga Estadía: una experiencia en Psicología

Vinicius Furlan1

Maria Dolores Alvarez2

Resumo

Este relato trata-se de um trabalho com grupos de idosos que se realizou em duas instituições, como um espaço
de escuta e interação social. Em ambos os Lares o grupo possibilitou: a interação social entre os idosos, o resgate
da imagem e da história de vida, a estimulação da comunicação verbal, bem como da coordenação motora, da
mutualidade, da imaginação, da cognição e da memória. No Lar 1, no desenrolar do trabalho, foi preciso encerrá-
lo por questões institucionais, o que implicou a mudança para o Lar 2. Pudemos ver que as (im)possibilidades no
trabalho com grupos de idosos em Instituições de Longa Permanência possuem condições e peculiaridades
distintas que configuram diferentes arranjos e modos de conduzir a prática, que é atravessada pelo poder e
cotidiano institucional, que, dependendo do modo como se configura, pode ser alienador e levar à solidão, ou
possibilitar um espaço digno de ser vivido.

Palavras-chave: Idosos; Grupo; Instituição.

Abstract

This report describes a work with elderly groups held in two institutions, as a listening and social interaction
space. Both homes enabled: social interaction among the elderly, the possibility to rescue their image and life
history, stimulation of verbal communication as well as motor coordination, mutuality, imagination, cognition
and memory. At Home 1, the work progress had to shut it by institutional issues, which involved a change to the
Home 2. We could see that the (im)possibilities in working with elderly groups in long-stay institutions have
different conditions and peculiarities that make up different arrangements and ways of leading the practice,
which is crossed by the power and institutional routine, which, depending on how it’s configured, can be
alienating and lead to loneliness, or allow a decent space to live.

Keywords: Elderly; Group; Institution.

1
Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará e graduado em Psicologia pela Universidade
Metodista de Piracicaba. Professor da Universidade Metodista de Piracicaba e membro do Paralaxe: Núcleo de
Estudos, Pesquisas e Intervenções em Psicologia Social Crítica (UFC) e do NEPEQSO (Núcleo de Estudos,
Pesquisas e Extensão em Questões Sociais, Unimep).Email: vc_furlan@hotmail.com
2
Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e graduada em Psicologia
pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Foi professora e supervisora de estágios na Universidade
Metodista de Piracicaba e psicóloga clínica.

Pesquisas e Práticas Psicossociais, 11(2), São João del-Rei, julho a dezembro 2016.
454

Furlan, Vinicius; Alvarez, Maria Dolores. (Im)Possibilidades no trabalho com grupos de idosos em Instituições
de Longa Permanência: uma experiência em Psicologia

Resumen

Este informe se está trabajando con grupos de personas de edad avanzada, celebrada en dos instituciones, como
un espacio de escucha y la interacción social. En ambos casas permitido al grupo: interacción social entre las
personas mayores, la imagen de rescate y de la historia de la vida, la estimulación de la comunicación verbal, así
como la coordinación motora, de la mutualidad, la imaginación, la cognición y la memoria. En Casa 1, el
progreso del trabajo tuvo que enfrentarse a él por cuestiones institucionales, que consistía en pasar a la Home 2.
Pudimos ver que las (im)posibilidades de trabajar con grupos de personas mayores en instituciones de larga
estadía tienen diferentes condiciones y peculiaridades que conforman diferentes arreglos y formas de llevar a la
práctica, que es atravesado por el poder y la rutina institucional, que, dependiendo de cómo se configure, puede
ser alienante y conducir a la soledad, o permitir que un espacio digno para ser vivida.

Palabras clave: Ancianos; Grupo; Institución.

Pesquisas e Práticas Psicossociais, 11(2), São João del-Rei, julho a dezembro 2016.
455

Furlan, Vinicius; Alvarez, Maria Dolores. (Im)Possibilidades no trabalho com grupos de idosos em Instituições
de Longa Permanência: uma experiência em Psicologia

Introdução IBGE (2012) demarca que o


envelhecimento no Brasil requer
A guisa de introdução, cabe planejamento na saúde pública, a fim de
destacar que este relato discorre acerca da atender à demanda de idosos, que poderá
experiência dos autores no chegar a mais de 30 milhões em 2025. Para
desenvolvimento de um trabalho com isso, os idosos necessitam de cuidados e
grupos de idosos em Instituições de Longa uma boa qualidade de vida, tornando-a
Permanência, vinculado ao Centro de prazerosa, digna e confortável.
Estudos Aplicados em Psicologia da Não obstante a população idosa
Universidade Metodista de Piracicaba. estar aumentando, os dados do IBGE de
Desse modo, o texto relata a experiência 2012 apontam que está havendo uma
em duas instituições do município e retrata redução significativa no número de casais
as (im)possiblidades do trabalho com com filhos, o que implica que, em um
grupos de idosos que vivenciavam o futuro próximo, os idosos não poderão
processo da institucionalização. contar com aqueles a quem provavelmente
Podemos observar, nos últimos caberia a tarefa cuidá-los: seus filhos.
anos, conforme inclusive demarcam Portanto, torna-se de suma importância a
Rozendo e Justo (2012), que houve um preocupação na construção de políticas
grande aumento na proporção da públicas dirigidas a essa população a fim
população idosa no Brasil. Isso implicou de garantir-lhes seus cuidados e o direito a
em reformas na Previdência Social e uma vida digna, e, nesse sentido, investir
modificações nas políticas públicas em melhorias e qualidade em instituições
relacionadas aos direitos humanos dessa para idosos.
população. Como destaca Groisman (1999), a
Debert (1999) destaca que a velhice inscrição da velhice como preocupação de
se tornou uma questão pública, depois de ordem pública, marca dos anos de 1960/70,
muito tempo sendo considerada como delineia-se como um processo que tem seu
própria da esfera privada e familiar, e uma advento com a inauguração do mundo
questão de previdência individual ou de moderno, em especial com entrada no
associações filantrópicas. A autora século XX, e se insere nas delimitações
demarca que essa preocupação tem se dado categoriais que diferenciaram os ciclos da
devido ao fato de aos idosos vida baseados em faixas etárias, em que o
corresponderem a uma parcela cada vez atributo “idade” passa a ser considerado
maior da população do ponto de vista também como importante para demarcar as
numérico. distinções entre os extratos sociais,
De acordo com Zimerman (2000), incluindo os indivíduos em novos papéis
esse progressivo aumento da população sociais.
idosa tem se dado principalmente por conta Sustentado nas discussões de
de dois fatores: a diminuição da natalidade autores da antropologia do
e o aumento da longevidade. envelhecimento, Groisman (1999) demarca
No Brasil, segundo dados do que, nesse processo, houve mecanismos
Instituto Brasileiro de Geografia e que redefiniram o curso de vida e
Estatística (IBGE, 2012), a população institucionalizaram a velhice como um
idosa chega a 14,5 milhões, ou seja, 9,1% estágio da vida e como grupo social e
da população brasileira já atingiu 60-65 população específica. O autor destaca que
anos (idade estabelecida para idosos em três fatores podem ser considerados
países em desenvolvimento). Essa pode ser importantes nesse processo, a saber: 1. a
considerada uma das maiores populações constituição de um discurso científico
idosas do mundo, ultrapassando a França, a acerca do envelhecimento; 2. o surgimento
Itália e o Reino Unido. Por esse motivo, o das pensões e aposentadorias, que

Pesquisas e Práticas Psicossociais, 11(2), São João del-Rei, julho a dezembro 2016.
456

Furlan, Vinicius; Alvarez, Maria Dolores. (Im)Possibilidades no trabalho com grupos de idosos em Instituições
de Longa Permanência: uma experiência em Psicologia

contribuíram para tornar o fator “idade” diferentes. Primeiro, numa instituição de


como determinante de um novo status idosos que chamaremos aqui de Lar 1 e,
econômico e social para o indivíduo; e, 3. posteriormente, noutra instituição que
o aparecimento dos asilos de velhos. chamaremos Lar 2.3 Para melhor
Nosso trabalho se insere no âmbito entendimento do processo de
dessas últimas instituições, os asilos de desenvolvimento dos estágios, os
velhos, que, em seu processo de descreveremos sequencialmente como
institucionalização, podem acelerar as ocorreram.
perdas funcionais, já que os idosos são
submetidos a rotinas estabelecidas e Primeiro momento: dificuldades no
perdem seus direitos de expressar desejos e trabalho com idosos que vivenciavam a
deveres; ou colaborar com um processo de institucionalização
envelhecimento com dignidade, visando à
independência, à autonomia e com respeito No primeiro momento, visamos
às singularidades, fatores esses, entretanto criar no Lar 1 um grupo de idosos como
– raros – encontrados em alguns poucos um espaço de escuta para que esses
asilos. Alguns idosos apresentam uma boa sujeitos pudessem se expressar.
aceitação asilar e se referem aos colegas e Houve uma longa discussão com a
ao asilo como “família”. Outros relatam o psicóloga do Lar acerca das possibilidades
ambiente asilar como “depósito de velhos”, da realização de um grupo misto, para
pois perderam o contato com os familiares, romper com a divisão sexual já
amigos e vizinhos, com o meio social e a estabelecida pela instituição, pois homens
independência, além de se sentirem e mulheres moram em pavilhões divididos
enganados com falsas promessas de por sexo e o distanciamento dos pavilhões
retorno para casa ou terem sido levados impede uma convivência próxima entre
aos asilos à revelia. eles. A psicóloga apontou que a longa
Diante desse cenário, entendemos distância entre os pavilhões não permitiria
que Zimerman (2000) nos traz uma essa formatação, por conta da dificuldade
contribuição interessante quando destaca de locomoção dos idosos para participar do
que compreende a velhice como uma grupo, caso fosse misto, bem como
questão social, enfatizando que os fatores demarcou que já havia outros trabalhos
psicológicos, sociais, culturais e com as moradoras dos pavilhões
ambientais podem qualificar ou prejudicar femininos. Desse modo, sugeriu que
o processo de envelhecimento. trabalhássemos com o pavilhão G, que é
Nesse sentido, a fim de colaborar masculino.4
com os fatores destacados por Zimerman, Após a primeira visita ao Lar, para
desenvolvemos um trabalho com grupos de conhecer os profissionais, bem como os
idosos, visando: à interação social, à
revinculação, ao resgate da história de vida
3
e da imagem, à escuta, ao estímulo da Os nomes das instituições serão preservados, bem
memória, ao estímulo da linguagem, à como dos participantes dos grupos, a fim de
resguardar suas identidades e possível
orientação espaço-temporal e à autoestima; identificação.
4
É importante destacar que no Lar 1 eles chamam
Resultados, discussões e caminhos cada casa que compõe o Lar de pavilhão. Há uma
percorridos distinção entre chalés e pavilhão. Chalés são as
casas particulares, compradas pelos moradores
que as habitam. Pavilhões são os grandes prédios
Esta experiência em Psicologia que acolhem os idosos que são institucionalizados
retrata o estágio desenvolvido com grupos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Os pavilhões
de idosos em duas instituições distintas, são enormes e acolhem grande quantidade de
que ocorreram em dois momentos idosos, bem como há excessivo número de idosos
por quarto.

Pesquisas e Práticas Psicossociais, 11(2), São João del-Rei, julho a dezembro 2016.
457

Furlan, Vinicius; Alvarez, Maria Dolores. (Im)Possibilidades no trabalho com grupos de idosos em Instituições
de Longa Permanência: uma experiência em Psicologia

moradores, o estagiário começou a entre eles, facilitando o rompimento com o


desenvolver seu trabalho, procurando isolamento e solidão vividos por pelos
estabelecer um vínculo com os idosos e idosos.
formar o grupo. O grupo passou a ser construído
A proposta de se trabalhar com um pelo estabelecimento do vínculo do
grupo se deu pelo fato de que isso estagiário com os idosos, sendo
permitiria que seus membros pudessem explicitados os objetivos do grupo,
reconhecer a si mesmos e uns aos outros, fortalecendo, dia a dia, o convite para
relatando suas histórias, bem como participação. Os encontros eram realizados
possibilitaria alcançar os objetivos duas vezes por semana, no período da
propostos para o trabalho e, tarde, devido a atividades e programações
principalmente, favorecer a socialização que preenchiam os horários matinais. O
entre os moradores, fator esse que foi grupo foi realizado com homens
observado, ao longo do processo, pois, em moradores do pavilhão G e foi possível
sua convivência cotidiana, os idosos não se trabalhar a interação social entre os
interagiam. participantes e os demais objetivos.
Era explícito no Lar 1que os idosos Foram utilizados recursos tais
não se relacionavam entre si na como: a fotografia para se trabalhar a
convivência do dia a dia. A interação entre imagem; relógio e calendários individuais
eles era pífia, ou, quando ocorria, era a e personalizados com foto e assinatura,
mínima possível. Isso não corresponde, mês a mês, para a orientação espaço-
todavia, a uma condição individual que se temporal e a técnica do desenho individual
baseia na falta de predisposição interna de e compartilhado.
cada morador em interagir com os demais, Participaram do grupo alguns
mas devido ao modo de organização da idosos que viviam no pavilhão G. Todavia,
instituição, que segregava os pavilhões por a presença dos participantes oscilava e era
sexo e longa distância entre eles, bem inconstante, pois, por não terem estímulos
como pela falta de atividades que que propiciassem a convivência em grupo
estimulassem tal interação, em especial entre os idosos pela instituição, a vontade
atividades que estivessem ligadas às suas de participar das atividades grupais se
histórias de vida. apresentava, num primeiro momento, pela
Foi possível observar que esses desmotivação. Constatou-se que a
idosos viviam um sentimento de solidão construção de um espaço grupal numa
devido ao isolamento, que era hegemônico instituição como essa requer tempo,
nos pavilhões e não estabeleciam contato dedicação, empenho e paciência, e,
entre si, bem como apresentavam uma principalmente, o estabelecimento e
aparência de quem experienciava uma fortalecimento do vínculo e da confiança
forma de morte simbólica antes mesmo da entre profissional e moradores, uma vez
morte biológica, fenômeno bem ilustrado que esses sujeitos já possuem um histórico
por Goffman (2001) no discorrer de sua de vínculos que foram rompidos, e talvez
análise acerca das instituições totais. reviver a desvinculação devido à
Isso, por sua vez, justificou a rotatividade de profissionais e estagiários
criação do grupo, que, de acordo com seja algo que busquem evitar.
Reboredo (1994), possibilita que seus Entretanto, os idosos sempre foram
membros rompam com a alienação e com a receptivos com o estagiário. Este, antes de
cristalização de suas atitudes, além de qualquer coisa, procurava ouvir o que eles
perceber que juntos podem superar as tinham a dizer, ouvir suas histórias, e após
dificuldades presentes em seu contexto a construção de um vínculo, que poderia
social. Acreditávamos, portanto, que a levar dias ou semanas, eram feitos os
criação do grupo permitiria a interação convites para a participação no grupo. O

Pesquisas e Práticas Psicossociais, 11(2), São João del-Rei, julho a dezembro 2016.
458

Furlan, Vinicius; Alvarez, Maria Dolores. (Im)Possibilidades no trabalho com grupos de idosos em Instituições
de Longa Permanência: uma experiência em Psicologia

grupo, após longo processo, se constituiu e entende por estigmatização, em que se


permitiu aos idosos se expressarem e imprime no sujeito
serem ouvidos, e ainda possibilitou o
resgate e ressignificação de suas histórias [...] um atributo que o torna diferente de
de vida, bem como os relatos do cotidiano outros que se encontram numa categoria em
que pudesse ser incluído, sendo, até, de uma
de suas vidas na instituição. espécie menos desejável (...). Assim
A fotografia permitiu o deixamos de considerá-la criatura comum e
desenvolvimento do olhar entre eles e de si total, reduzindo-a a uma pessoa estragada e
mesmos. Consequentemente, puderam ver diminuída. Tal característica é o estigma,
e serem vistos, assim como fazer o resgate especialmente quando o seu efeito de
descrédito é muito grande [...]
da imagem com aspectos de
transformações corporais ocorridas com o
Não consideramos que os termos
transcorrer do tempo, evidenciando uma
“vozinho” ou “tiozinho” tenham sentido
ferida narcísica no que tange ao “belo” sob
pejorativo, mas o fato de observarmos que
o ponto de vista estético, pois, como
os profissionais e aqueles que lidam com
pudemos ouvir nos grupos, não se sentiam
esses idosos – podemos entender aqui
mais objeto de desejo do outro.
aqueles que se entendem por normais,
Ouviu-se sobre as muitas rupturas
conforme Goffman – os chamarem-nos
anteriores nos vínculos familiares e com a
assim, o tempo todo, imputa um caráter
sociedade, uma vez que muitos deles
acerca daquilo que os idosos devem ser,
foram abandonados pelas próprias
afirmado por um atributo depreciativo.
famílias, fato que, conforme assinala Elias
Embora possamos observar que o
(2001), é comum na admissão em um asilo
trabalho com esse grupo pôde contribuir
e normalmente significa que os laços
com os fatores destacados por Zimerman e
afetivos e com a vida comunitária podem
possibilitar a interação social entre alguns
levar os indivíduos à solidão. O fato de,
dos moradores da instituição em que se
nesse lar, os idosos serem proibidos de sair
vivenciava o isolamento e a solidão da
sem companhia fere sua autonomia e
institucionalização, ainda identificamos
acentua essas rupturas e sua solidão. O
situações em que foi possível observar que
estímulo da linguagem verbal, neste
as condições de vida dos idosos eram
trabalho, incentivou a socialização, a
problemáticas, deixando a desejar do ponto
mutualidade e a possibilidade de
de vista da dignidade. Notou-se que tais
revinculação,
condições estavam naturalizadas.
A técnica do desenho empregada
Percebemos, então, juntamente com outros
no grupo estimulou a imaginação, a
estágios de Psicologia que vinham sendo
cognição, a coordenação motora, a
desenvolvidos na instituição, que também
comunicação verbal, a memória, bem
era necessária uma ação social e política
como a interação entre eles.
no Conselho Municipal dos Idosos a fim
O fato de nos dirigirmos a eles
de poder dialogar sobre as possibilidades
pelos nomes permitiu a reafirmação de
de melhoria dessas condições.
suas identidades, visto que, na instituição,
Entretanto, no desenrolar de todo
há uma tendência a designarem os idosos
esse processo, encerrava-se o primeiro
por “vozinho”, “tiozinho”, e não pelo
semestre do estágio e a diretoria do Lar 1
próprio nome. Embora o nome não designe
solicitou que os estágios do curso de
nossa identidade, para Ciampa (2009), o
Psicologia fossem encerrados e retirados
nome nos representa e por meio dele
do Lar, justificando que este passaria por
também nos identificamos. Podemos
reformas nas estruturas dos prédios.
entender que a categorização desses
Conforme destaca Bleger (2003), as
sujeitos como “vozinho”, “tiozinho”,
instituições podem ser criadas com certos
expressa aquilo que Goffman (1975, p. 12)
objetivos que podem atender às

Pesquisas e Práticas Psicossociais, 11(2), São João del-Rei, julho a dezembro 2016.
459

Furlan, Vinicius; Alvarez, Maria Dolores. (Im)Possibilidades no trabalho com grupos de idosos em Instituições
de Longa Permanência: uma experiência em Psicologia

necessidades de seus usuários, todavia, em manhã, enquanto o sol ainda estava mais
determinados momentos, as instituições, fresco. Embora a frequência na
para sua manutenção, entram em conflito participação oscilasse, participaram do
com os objetivos pelos quais foram grupo cerca de 10 moradores do Lar, sendo
criadas. E, da mesma forma, os objetivos que ainda tivemos a participação de
do trabalho com grupos pode entrar em moradores que faziam uso de cadeira de
conflito com os objetivos da instituição e, rodas.
assim, sua relevância e significado serem Nesse Lar, diferentemente do
entendidos como não mais necessários, anterior, o grupo pôde ser misto, incluindo
como vimos em nossa experiência. homens e mulheres, pois, devido à
instituição ser pequena, a convivência
Segundo momento: uma experiência entre eles é mais próxima e significativa.
diferenciada com grupos de idosos que Pelo fato de a instituição possibilitar maior
vivem em instituição contato entre homens e mulheres,
presenciamos alguns casos de namoro e
Nesta parte discorreremos acerca paquera entre os idosos, fato que não é
do segundo momento do estágio, que foi comum nessa população por conta do
desenvolvido no Lar 2. estereótipo que perdura no imaginário
Como vimos, não foi possível a social de que idoso não pode expressar sua
continuidade do estágio no Lar 1, assim sexualidade.
migramos para o Lar 2, onde coube ao Diferentemente da instituição
estagiário dar continuidade a um trabalho anterior, em que os idosos vivenciavam a
iniciado por outra estagiária. O estágio solidão e o isolamento, pudemos observar
desenvolvido pela estagiária anterior que no Lar 2, por ser menor e possibilitar
facilitou nosso trabalho, haja vista já haver espaços em que podiam interagir, os idosos
um grupo formado (o processo de funcionavam e viviam como grupo.
formação de um grupo numa instituição de Observamos que todos se conheciam e se
idosos é sempre uma labuta minuciosa e dirigiam uns aos outros pelo próprio nome,
demanda tempo). No primeiro encontro bem como conheciam particularidades uns
com a instituição e com os idosos, a dos outros. Isso também foi observado
estagiária nos acompanhou e, em seguida, com relação aos profissionais do Lar 2 e a
assumimos o trabalho. interação entre eles e os idosos.
Os objetivos continuaram como os Ao contrário da outra instituição,
do estágio na instituição anterior, bem em que os profissionais se dirigiam aos
como os materiais e técnicas. Todavia, por idosos por “vozinho”, “tiozinho”, no Lar 2
ter sido identificado que muitos dos todos aqueles que por ali conviviam se
moradores do Lar 2 vinham do contexto dirigiam aos idosos pelo próprio nome,
rural, foi criada uma horta, dispositivo para permitindo assim a afirmação da
trabalhar oficinas com os idosos como um identidade a partir da identificação pelo
meio terapêutico e de produção de vida, nome.
pois, como destaca Afonso (2006), as Outro fator que julgamos
oficinas podem trabalhar significados importante e que contribuía positivamente
afetivos e vivências relacionadas aos temas com a vida dos idosos foi o fato de que,
a serem discutidos. nesse lar, eles podiam sair de dentro da
Os encontros do grupo aconteceram instituição. Rotineiramente eles saem pra ir
semanalmente nas tardes das segundas- a um mercado próximo para comprar
feiras. Nas situações em que as oficinas coisas de seus interesses; vão até uma feira
ocorriam na própria horta, devido a esta de frutas, legumes e verduras, que também
ficar em um espaço onde os raios do sol fica próxima; e ainda fazem caminhada
eram fortes, agendávamos o período da pelo bairro toda manhã acompanhados pela

Pesquisas e Práticas Psicossociais, 11(2), São João del-Rei, julho a dezembro 2016.
460

Furlan, Vinicius; Alvarez, Maria Dolores. (Im)Possibilidades no trabalho com grupos de idosos em Instituições
de Longa Permanência: uma experiência em Psicologia

fisioterapeuta – é possível observar que tempo de estágio, material para o cuidado,


essa convivência com a comunidade faz não apenas das hortaliças, mas da própria
com que as pessoas do bairro os conheçam vida, o desejo de cuidar da própria vida,
e sempre parem pra conversar com eles na como diz a letra “conhecer os desejos da
instituição ou em suas saídas. terra”, conhecer os desejos da vida e de si.
No Lar 2, observamos situações e Sempre que o estagiário chegava ao
condições bem distintas do Lar 1, que lar, eles já vinham falar da horta, contar do
embora muito maior que o Lar 2, não cuidado que estavam tendo com a horta e
apresentava condições tão adequadas como queriam que o estagiário fosse com eles
nesse último. No Lar, observamos: cuidado ver como as hortaliças estavam crescendo
e zelo intenso com os idosos; espaços pra bonitas e bem cuidadas. Falas como “olha
se resguardar a singularidade; poucas como nossa horta está linda”, “olha como a
pessoas vivendo no lar; poucos moradores horta está bonita”, “as plantas cresceram
em cada quarto; guarda-roupas e cômodas fortes e bonitas”, “olha como estão
individuais para cada um; manejo com os verdes”, eram frequentes. Tais falas,
idosos orientados pelo respeito e, na inclusive, eram emitidas não apenas por
maioria das vezes, carinho e afeto; e nunca aqueles que estavam envolvidos no grupo,
presenciamos situações de mas por muitos outros moradores, pois
constrangimento. Esses elementos no Lar também passaram a admirar a horta e as
1, entretanto, não estavam colocados. plantas. Alguns moradores, mesmo não
Embora os dois Lares apresentem participando do grupo, prestavam o
condições e peculiaridades bem distintas, cuidado à horta: regavam as plantas,
focaremos nossa discussão a partir de limpavam as ervas daninhas, afagavam a
agora no trabalho com a horta, pois foi o terra, etc.
mais significativo para os idosos desse Lar. O fato de a horta ter se tornado tão
A construção da horta e foi feita significativa pode ser entendido porque
com o grupo para que eles pudessem muitos deles viveram quase toda a vida no
plantar, cuidar, colher e se alimentar contexto rural e em grande parte de suas
daquilo que produziam. Observamos que a vidas terem cuidado de hortaliças e
horta contribuiu com um processo grandes plantações, o que permitiu o
terapêutico, com o resgate da história de resgate de suas histórias de vida e daquilo
vida e da memória, bem como percebemos que fizeram no passado.
que a horta era “a menina dos olhos dos Isso também pode ser entendido
idosos”, pois ela passou a configurar pela possibilidade de se produzir vida e de
objeto de afeto dos idosos, carregada de cuidar da vida, pois eles fecundavam a
sentido para eles. Desse modo, o trabalho terra, tornavam-na propícia para a
com a horta foi um dos objetivos centrais germinação das hortaliças, seu
do desenvolvimento do estágio, haja vista desenvolvimento e colheita: fertilizavam a
a importância que esse dispositivo terra, semeavam-na, cuidavam para que
significou para os moradores. germinasse a semente, cuidavam das
Nas supervisões de estágio, pelo plantas já germinadas e em crescimento,
fato de observarmos o encantamento e o depois eles mesmos colhiam e ajudavam
cuidado que os idosos revelavam pela na preparação das saladas e dos pratos para
horta, fizemos a relação desse trabalho servir os colegas. Ou seja, eles
com a bela música de autoria de Milton participavam de todo o processo de
Santos e Chico Buarque, Cio da Terra, em produção dos alimentos, desde a
que cantam que “Afagar a terra” é germinação das plantas até o momento de
“Conhecer os desejos da terra”, o “Cio da comer, bem como forneciam aos colegas
terra”, a “Propícia estação, De fecundar o moradores do Lar o que comerem, isto é,
chão”, visto a terra ter sido para eles, nesse aquilo que plantavam e cuidavam, depois

Pesquisas e Práticas Psicossociais, 11(2), São João del-Rei, julho a dezembro 2016.
461

Furlan, Vinicius; Alvarez, Maria Dolores. (Im)Possibilidades no trabalho com grupos de idosos em Instituições
de Longa Permanência: uma experiência em Psicologia

de colhido, partilhavam com os demais. transformadores.


Além disso, podiam se reconhecer naquilo
que estavam fazendo, pois podiam fazer Considerações finais
usufruto daquilo que produziam, bem
como serem reconhecidos pelos outros Em ambos os Lares, o grupo
moradores. Entendemos que o cuidado permitiu a interação entre os idosos, que se
com as hortaliças e todo o processo de olhassem e fossem olhados, o resgate de
fertilização e cultivo, desde a germinação e imagem e da história de vida, a
crescimento até a colheita, revela não estimulação da comunicação verbal, bem
apenas a preocupação com a horta, mas, como a estimulação da coordenação
acima de tudo, o cuidado e o desejo de motora, da socialização, da mutualidade,
cuidar da própria vida. Dito de outro da imaginação, da cognição e da memória.
modo, a oficina da horta conformou o No Lar 1, embora o trabalho
desejo e cuidado pela própria vida estivesse sendo construído de modo a
expresso no cuidado e cultivo da vida das colaborar com a vida dos idosos, pudemos
hortaliças. ver que as instituições podem entrar em
Em nossa experiência, foi possível conflito com os objetivos pelos quais
aos idosos expressarem questões de sua foram criadas a fim de perpetuar sua
singularidade, inclusive aquelas manutenção e, assim, encontrar resistência
angustiantes: a horta permitiu um espaço quanto à relevância e significado de alguns
de convivência, criação e reinvenção do trabalhos, entendidos como não mais
cotidiano, não apenas durante as oficinas, necessários.
mas também no dia a dia, além de ter sido No Lar 2, vimos que foi possível o
um disparador para contarem e narrarem desenvolvimento do trabalho como grupo
acerca de suas histórias de vida. Como de idosos, em que a construção da horta –
destaca Zimerman (2000), possibilitou um que estava relacionada à vida e ao contexto
espaço diferenciado do costumeiramente que os membros do grupo viveram – pôde
confinado às paredes de uma sala, às contribuir para o desenvolvimento do
paredes de seus quartos e permitiu um trabalho, configurando-se como um
ambiente prazeroso de atividades sociais. dispositivo terapêutico e de produção de
O desejo por cuidar da horta foi pulsão de vida e de desejo, revelando o
visivelmente observável. E essa atividade cuidado de si no cuidado das hortaliças.
lhes abriu um novo leque de opções e de Consequentemente, configurou uma saída
motivação na realização de novas tarefas e para o cotidiano repetitivo da
atividades. Tanto que eles pensavam outras institucionalização e possibilitou mais um
formas de estratégia para melhorar a horta espaço de convivência para garantir uma
e faziam várias coisas por conta própria vida digna para essa população.
para o benefício da horta em horários No Lar 1, mesmo com uma grande
extras aos encontros formais. estrutura e espaços para atender aos idosos,
A horta ainda possibilitou o o modelo arquitetônico não propiciava as
exercício de atividades mentais e físicas, melhores condições para os moradores
uma vez que eles mesmos preparavam a viverem, levando-os ao isolamento e à
terra, plantavam, cuidavam das plantas, solidão e a experienciarem um tipo de
colhiam. Era-lhes possível pensar o que morte simbólica antes mesmo da biológica.
fazer com a horta e decidir sobre o que Além disso, o tipo de relação estabelecida
plantar, sempre tendo voz e direito de entre funcionários e idosos era pautada,
decisão. A horta funcionou como um muitas vezes, não pelo respeito, mas pelo
dispositivo que possibilitou a produção do lugar institucional de poder e pelo
desejo, da pulsão de vida, do novo, constrangimento.
gerando acontecimentos insólitos e

Pesquisas e Práticas Psicossociais, 11(2), São João del-Rei, julho a dezembro 2016.
462

Furlan, Vinicius; Alvarez, Maria Dolores. (Im)Possibilidades no trabalho com grupos de idosos em Instituições
de Longa Permanência: uma experiência em Psicologia

No Lar 2, embora com espaço e para garantir um possível espaço digno de


estrutura menor, isso propiciava maior ser vivido.
interação entre os moradores e uma
convivência mais significativa e calorosa, Referências
o que os fazia se sentirem vivos. Ao
contrário do Lar 1, em que se transpirava Ciampa, A. C. (2009). A estória de
um ar de espera da morte, no Lar 2 a Severino e a história de Severina.
aragem era de vida. A relação estabelecida Um ensaio de Psicologia Social. São
no Lar 2 entre funcionários e moradores Paulo: Brasiliense. 11ª impressão.
era pautada pelo respeito, carinho e afeto, Originalmente publicado em 1987.
buscava-se garantir os direitos dos idosos e Brasil. (2012). Instituto Brasileiro de
observava-se um espaço potencialmente e Geografia e Estatística. Síntese de
empiricamente digno de ser vivido. indicadores sociais: Uma análise
Podemos ver que as das condições de vida da população
(im)possibilidades no trabalho com grupos brasileira. Rio de Janeiro: IBGE.
de idosos em Instituições de Longa Debert, G. G. (1999). Velhice e o curso da
Permanência possuem condições e vida pós-moderno. Revista USP, 42,
peculiaridades distintas que configuram 70-83.
diferentes arranjos e modos de conduzir a Elias, N. (2001). A solidão do moribundo.
prática, que é atravessada não apenas pelo Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
cotidiano institucional, pois, dependendo Goffman, E. (1975). Estigma – notas sobre
do modo como se configura, empreendida a manipulação da identidade
pelo poder institucional que está colocado deteriorada. Rio de Janeiro: LTC.
nas mãos daqueles que dirigem a Goffman, E. (2001). Manicômios, prisões
instituição e seus profissionais, pode ser e conventos. (7ª Ed.).São Paulo:
fator de alienação e levar à solidão e ao Perspectiva.
isolamento. O poder e o cotidiano Groisman, D. (1999). Asilos de velhos:
institucional podem naturalizar práticas passado e presente. Estudos
indignas que violam os direitos dos Interdisciplinares sobre o
cidadãos e passam a ser entendidas como Envelhecimento, 2, 67-89.
corriqueiras e necessárias para a Reboredo, L. A. (1994). De eu e tu a nós:
manutenção da ordem. o grupo em movimento como espaço
Nessas situações, a condição de de transformação das relações
cidadania dos humanos-idosos é deixada sociais. Piracicaba-SP: Unimep.
de lado, revitimizando esses sujeitos e os Rozendo, A., Justo, J. S. (2012). “Fundo
colocando numa situação de excluídos, Nacional do Idoso” e as políticas de
depositados e abandonados em distintas gestão do envelhecimento da
instituições. Entretanto, se o poder e o população brasileira. Psicologia
cotidiano institucional forem organizados Política. 12(24), 283-296.
de modo a incluir aqueles que vivenciam o Zimerman, G. I. (2000). Velhice: aspectos
contexto da instituição, por meio do biopsicossociais. Porto Alegre:
respeito e responsabilidade com esses Artmed.
sujeitos, se for garantida a inclusão destes
nas decisões a serem tomadas acerca de Recebido em 09/12/2014
suas vidas, reconhecendo-os como sujeitos Aprovado em 19/04/2016
de direitos, se houver um espaço no qual
possam se relacionar de forma mais Nota: O autor, Vinícius Furlan, informa
significativa e calorosa, como pudemos que Maria Dolores Alvarez, coautora no
ver, têm-se assim uma melhor condição trabalho e na elaboração deste artigo,
faleceu em abril de 2015. Destaca que

Pesquisas e Práticas Psicossociais, 11(2), São João del-Rei, julho a dezembro 2016.
463

Furlan, Vinicius; Alvarez, Maria Dolores. (Im)Possibilidades no trabalho com grupos de idosos em Instituições
de Longa Permanência: uma experiência em Psicologia

Dolores foi sua professora e colega de


trabalho e que esta publicação é motivo de
alegria para os (ex)alunos que com ela
estudaram e desenvolveram estágio da
Unimep, pois marca a memória de uma
professora e psicóloga que muito se
dedicou à formação dos estudantes da
universidade, sendo notáveis a implicação
e o compromisso que ela teve com a
população idosa por anos a fio.

Pesquisas e Práticas Psicossociais, 11(2), São João del-Rei, julho a dezembro 2016.

Você também pode gostar