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RICARDO BASBAUM

Formas do
tempo
“O tempo é o aberto, é o que muda e não

cessa de mudar de natureza a cada instante”

(Gilles Deleuze, Pourparlers, p. 80).

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arte e contemporaneidade Proporei aqui a experiência de perceber algumas

das múltiplas formas do tempo, incorporadas em várias


RICARDO BASBAUM
é artista-plástico,
pesquisador e professor
da Universidade Estadual
pequenas séries de trabalhos de arte. Veremos o trabalho do Rio de Janeiro.

de arte como um dispositivo privilegiado, uma espécie de


tecnologia de processamento sensorial, com potencialidade

de deflagração do movimento, instaurando as mais diver-


sas qualidades temporais, a partir do encontro com o

corpo/mente do espectador (para nós alguém que desfru-


ta de uma proximidade construída por ele(a) em relação

àquele(s) trabalho(s)): ao colocar as coisas em movimento


é que encontramos o tempo, pois é só aí que podemos

estabelecer relações e inter-relações.

Fazendo isso saímos da posição de observadores

neutros, testemunhas imparciais e objetivas, e nos colo-


camos também em ação. Colocar algo em movimento

é mover-se, acionar-se, como recurso de lançar-se em


combate e captura, estabelecendo ressonâncias e afini-

dades, mergulhando na corrente que passa, na


contracorrente, na correnteza transversal, etc. – expe-

riências do nado disjuntivo.

• memória • virtualidade e atualização

• processo • instantaneidade

• transformação • compactação

• metamorfose • contaminação

• fluxo e fluidez • expansão e contração

Estão registradas acima algumas palavras, indican-

do formas de apreensão do tempo, a partir da produção


de matéria em movimento. Ou melhor, palavras extra-
Texto apresentado originalmente
ídas da experiência com objetos que se colocam dentro no debate “Tempo em Transforma-
ção”, promovido pela Anpap, em
do campo da arte, escolhendo deliberadamente esta outubro/97. A segunda parte
reaproveita trechos de meu artigo
“De Fuera Hacia Adentro/De
área como terreno para o estabelecimento de séries de Dentro Hacia Afuera”, publicado
na revista LAPIZ n.134-5 ( Madri,
relações especiais e específicas – “mas não predetermi- jul.-set./97, pp.133-40).

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nadas” –, por colocarem em ação certos peça de roupa na caldeira a cada 20 segun-
mecanismos: “reconhecimento atento”, dos, eu as torno também em um Ambiente
retroalimentação, multissensorialidade, Cinético – simplesmente porque pensei
intermídia, heterogeneidade imagem/tex- nisso e o escrevi aqui. […] Arte é muito
to, simultaneidade entre real e ficção, etc. fácil de fazer hoje em dia” (1).
Mas longe aqui de pretender construir uma
totalização do campo: falamos de alguns Kaprow aponta essa “facilidade” como
conjuntos possíveis (ou impossíveis), re- um estado paradoxal da “dialética arte/não-
cortes de um eventual território arte (que arte”, marcado por uma “hiperconsciência
desde já deve ficar explícita em sua voca- [da arte-arte] em relação a si mesma e seu
ção vocabular polissêmica, abrigando sen- ambiente”: “um estado de consciência tão
tidos muito diversos, atribuídos conforme agudo como este permite que o universo
as vozes que a anunciam – “estamos falan- inteiro possa ser considerado pelos artistas
do das mesmas coisas?”, não custa nada como uma obra de arte”. Importa, para ele,
repetir a advertência). conservar os traços paradoxais desta possi-
Vivenciar um trabalho de arte e escre- bilidade, abandonando a reverência ao cir-
ver sobre ele: tarefa cercada da real impos- cuito institucional da arte. Os artistas do
sibilidade de representação da experiência, mundo são convidados a abandonar “suas
condição que carrega o texto para a região profissões” e tornarem-se “an-artistas” (al-
da criação e da invenção, em que a guém que “existe apenas por um momento
dicotomia reflexão/ficção dá lugar a um tipo […] interessado em mudar de atividade,
de escritura que, por um lado, procura ar- em modernização”). O tipo de atividade
rancar de sua própria evidência os instru- que Kaprow procura caracterizar é assim
mentos de uma experiência outra, igual- expresso:
mente singular – também insubstituível e
intransferível. Nada de pureza crítica ou “Quando alguém anônimo chamou recen-
crua análise técnica; tudo é comentário, temente nossa atenção para uma pequena
conversa, produção de relações, conexões, transformação que ele ou ela havia realiza-
maquinações que avançam por múltiplos do na escada de um edifício de apartamen-
lados, pensamentos em cadeia. Por outro, tos, e alguém mais nos sugeriu que exami-
esta construção textual também investe nássemos uma parte inalterada da Park
em uma intrincada trama por dentro da Avenue, em Nova York, esses também
imagem, sabendo-se inseparável da pre- foram atos de arte. Quem quer que sejam,
sença do trabalho de arte, enquanto for- essas pessoas transmitiram suas mensagens
ma heterogênea mas de algum modo com- a nós (artistas). Nós fizemos o resto em
plementar: texto e imagem são experiên- nossas cabeças” (grifo nosso).
cias de modalidades diversas que em al-
gum lugar se encontram de maneira com- Esta redução da arte a um instante de
pletamente desencontrada; mas ali, cada um jogo mental, professada por Kaprow,
campo fora de si produz sombras e luzes decorre, pode-se dizer, de uma possibili-
de uma dinâmica qualquer. Agora sim, dade técnica (daí sua possível banalização)
há movimento. resultante do desenvolvimento da arte
Na primeira parte de sua trilogia The moderna e contemporânea deste século, na
Education of the Un-Artist (1971), o (an-) convergência de, entre outros, Duchamp,
1 Allan Kaprow, “Educação do artista americano Allan Kaprow escreve: vanguarda soviética, e Beuys: através de
A-Artista”, in Malasartes, no 3,
Rio de Janeiro, abril-maio-ju- preocupações com o objeto comum indus-
nho/1976. A trilogia “The
Education of the Un-Artist, Parts “Digamos que eu me impressione por um trializado, com a produção de uma didática
I, II, III” pode ser encontrada destes aparelhos que se usam em lavande- deselitizante ou com a transformação de
em Allan Kaprow, Essays on the
Blurring of Art and Life (University rias para levar as roupas para o banho de todo mundo em um artista, as operações da
of California Press, 1993). O arte estenderam-se tanto para um “arran-
termo “un-artist” parece ser
vapor. Flash! Enquanto as máquinas conti-
melhor traduzido por un-artista. nuam automaticamente a introduzir uma car-signos-sensoriais-de-tudo” como para

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a atividade complementar de “sobrepor-às- rio da visibilidade e acionam potencialmen-
coisas-signos-verbais” – ações realizáveis te outras esferas da vida e do conhecimen-
por todos: o mundo e a vida estão repletos to. É a partir da possibilidade do estabele-
de possibilidades sensoriais e narrativas cimento destas cadeias de relações múlti-
jamais imaginadas e realizadas pelo cam- plas junto às coisas que reside uma primei-
po convencional da arte. Kaprow avança ra presença do tempo como condição da
dentro desta possibilidade, elaborando cin- prática contemporânea da arte, em sua
co modelos de “arte experimental” de acor- tecnologia de produção de metamorfoses.
do com “tipos básicos encontrados no dia- Gilles Deleuze, ao criar o conceito de
a-dia, nas profissões não-artísticas e na imagem-tempo (3), mostra como o cinema
natureza” (2): modelos situacionais (ambi- do pós-guerra conduz a imagem “para além
entes, costumes e ocorrências comuns, do movimento”, estabelecendo conexões
muitas vezes encontrados prontos, ready- com o pensamento: faz-se “do movimento
made); modelos operacionais (como coi- a perspectiva do tempo”, busca-se os “ele-
sas e hábitos funcionam e o que fazem); mentos e relações internos que tendem a
modelos estruturais (ciclos naturais e eco- substituir o objeto, a suprimi-lo à medida
lógicos, formas das coisas, lugares e acon- que aparece, deslocando-o sempre” (ope-
tecimentos humanos); modelos auto-refe- rações que conduzem à transformação des-
rentes ou de feedback (coisas ou eventos crita no parágrafo anterior). Este processo
que falam ou refletem sobre si próprios); de temporalização da imagem só ocorre na
modelos de aprendizagem (investigações história do cinema, para Deleuze, a partir
filosóficas, rituais de treinamento sensori- do neo-realismo italiano, quando emergem
al, manifestações educativas). Esses mo- “situações puramente óticas e sonoras” que
delos ambicionam fornecer possibilidades estabelecem um “espaço qualquer”, outro,
de compreensão de certos trabalhos de arte de passagens. São traçados novos tipos de
antes em suas ligações com o “mundo real” signos sensoriais “puros”, que “tornam
do que em relação ao mundo da arte. Um visíveis e sonoros o tempo e o pensamen-
jogo ou processo que se constrói em “nos- to”: “opsignos” e “sonsignos” “entram em
sas cabeças”, escreve Kaprow, como um relação com outras forças […] abrindo-se
“fluxo” que substitui a obra de arte, direta- para as revelações da imagem-tempo, da
mente relacionado à vida. imagem-legível e da imagem-pensante,
Devemos perceber o pensamento e as […] remetendo a crono-signos, lekto-sig-
proposições de Allan Kaprow como o de- nos e noo-signos”. Deleuze propõe aqui
senvolvimento de uma modalidade de uma operação de extração de signos senso-
temporalização que está na raiz das possi- riais como parte fundamental da tempora-
bilidades da arte contemporânea. A mano- lização da imagem e produção de relações
bra duchampiana de enquadramento e iso- mentais, de pensamento. Isso nos interessa
lamento de um objeto, deslocando-o de seu enquanto possibilidade de reinterpretar as
contexto original para o mundo da constru- colocações de Kaprow, em sua concepção
ção de um discurso ou narrativa – recupe- de atividades experimentais an-artísticas,
rado através do campo da arte –, é uma vez que estas – para Kaprow – estão
repotencializada a ponto de incorporar a sempre baseadas em modelos da natureza
esfera da natureza e dos rituais e relaciona- que reverberam por todos os lugares: “Arte,
mentos humanos, todos “objetificáveis”, que copia a sociedade copiando a si pró-
transformáveis em um conjunto autônomo pria, não é simplesmente o espelho da vida.
conectado a outros conjuntos: surge a pos- Ambas são construídas. A natureza é um
sibilidade de este novo conjunto estabele- ecossistema”. Pode-se dizer que Kaprow
cer séries de relações antes anestesiadas procura extrair sensorialidade pura de even- 2 A. Kaprow, “The Education of
the Un-Artist, Part III”, p. 130.
(como propõe Cildo Meireles em suas In- tos quaisquer da natureza e da vida, para
deste modo lançar estes eventos em uma 3 Gilles Deleuze, Cinema 2: A
serções em Circuitos Ideológicos) ou invi- Imagem-Tempo , Brasiliense,
síveis, mas que agora percorrem o territó- cadeia de pensamento que os ultrapassa, 1990, pp. 9-36.

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Na página contaminando-os com outras esferas de na direção da conjugação corpo/natureza,
sentido. Estabelece-se uma qualidade di- sem perder de vista a questão da indivi-
seguinte, João
versa de relações, recuperáveis através do duação. Um percurso que combina auto-
Modé, campo da arte (ou an-arte) em todas as suas questionamento, transformação, corpo e
Mergulho no múltiplas interfaces transdisciplinares. identidade. Mergulho no Reflexo/Ritos de
Relações que se efetivam na costura de uma Passagem é composto de duas seções, in-
Reflexo/Ritos narratividade entretecida junto à materia- terligadas por um pequeno corredor, sendo
de Passagem, lidade dos eventos propostos, realizando a tudo articulado através de uma estrutura de
presença de um pensamento verdadeira- madeira. Desse modo, o espaço da galeria
1996.
mente verbivisual, composto pelo binô- é dividido em três áreas, iniciado por uma
Instalação no mio matéria-pensamento. apresentação de si – onde o artista lança
Espaço A intensidade de agrupamentos senso- pelo chão cabelos e pêlos de seu próprio
riais permite o reencadeamento das mais corpo –, e concluído em uma sala repleta de
Cultural Sérgio diferentes matérias e eventos no fluxo de terra, contendo plantas e insetos vivos. O
Porto, Rio de pensamento da arte contemporânea. ambiente apresenta, ainda, largas superfí-
Temporalidade instantânea a percorrer su- cies compostas de casca de cipó, espinhos,
Janeiro;
cessivos corpos enquanto mediações, cris- casulos e raízes, matérias em si carregadas
abaixo, talizando-se no artista (EU) ou nos espec- por um sentido bruto de natureza, ao qual o
Brígida Baltar, tadores (VOCÊ) e revertendo estas posi- visitante não fica imune. Aqueles que en-
ções (VOCÊ torna-se EU e vice-versa) tram na instalação são conduzidos, de uma
A Coleta da
quando a fruição da obra torna-se possível área a outra, através do corredor de passa-
Neblina, 1998 apenas a partir de um paradigma de inven- gem, onde, momentaneamente, são “aban-
ção/criação: as sucessivas recepções do donados pela obra” (5), até enfim atingi-
trabalho constituem novos jogos de rela- rem a segunda sala, mais ampla, em que o
ções mentais, novos conjuntos de signos percurso é resolvido nos termos de um
sensoriais agregados à narrativa, nós de um ambiente fechado, de total imersão. Não se
rizoma que redesenha a cada vez a existên- trata aqui de uma mera ilustração da passa-
cia da coisa ou evento enquanto possível gem entre cultura e natureza, uma vez que
jogo da arte. o movimento desta instalação procura avan-
Gostaria agora, sem perder de vista o çar sobre tal dicotomia, propondo antes a
horizonte delineado até aqui, de tecer al- inexistência de qualquer paraíso primordi-
guns comentários a respeito de seis artistas al, ao apresentar um mundo arrancado a
brasileiros (incluindo-me nesta lista), des- partir de fragmentos de um corpo – o pró-
tacando o uso que fazem, em suas obras, de prio: nada aqui fala de uma proporcio-
diferentes formas do tempo. nalidade ideal ou de um equilíbrio ser hu-
mano/natureza, sob a regência de uma teo-
ria unificadora qualquer a atravessar am-
bos. As paisagens exteriores não mais im-
METAMORFOSE, TRANSFORMAÇÃO portam – se é que existem ainda, ou existi-
ram algum dia – quando a construção obje-
Quando, em fins de 1996, João Modé tivamente exteriorizante nos fala de um
construiu seu ambiente-labirinto Mergulho mundo interno hiperdilatado, recém-che-
no Reflexo/Ritos de Passagem (Espaço gado ao momento de confrontação quase
Cultural Sérgio Porto, Rio de Janeiro), creio absoluta com o vazio deserto das próprias
que poucos deram-se conta da importância paisagens. Trazer insetos, plantar uma ár-
4 Natureza Animal (Galeria do
IBEU) e Cama (Centro de Artes da montagem proposta, coroamento de uma vore, interligar o teto ao chão com raízes:
Calouste Gulbenkian), ambas seqüência de outras duas exposições indi- Modé não gesticula por uma ecologia poli-
em galerias do Rio de Janeiro.
viduais, realizadas alguns meses antes (4). ticamente correta, mas procura – vamos
5 A sugestão é de Marco Veloso,
na crônica “Instalações de João A partir deste conjunto de obras, Modé assim dizer – “plantar-se”, “colonizar-se”,
Modé”, publicada pelo Jornal “fertilizar” as colinas que deslizam por
opera um deslocamento de foco em seu
do Commercio, Rio de Janeiro,
2/2/97. próprio trabalho, adotando preocupações dentro, derivam dos processos da vida e da

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Foto: Vicente de Mello

Foto: (colaboração) Juliana Rocha

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existência. Por isso essas manobras têm construir um local dentro do fora, desapa-
obrigatoriamente que se afirmar pelo recendo e ao mesmo tempo fundindo-se
transpessoal, exibindo o quanto somos com o entorno; todo o espaço de moradia
pouco de nós mesmos e muito de todo o transforma-se em uma extensão de seu
resto, habitados por coletividades orgâni- corpo. A ação de pensar-se no fora, no es-
cas, culturais, minerais, etc. paço, nos objetos, avança para além do gesto
Sem qualquer dúvida, a exploração do expressivo, pois não se trata da manifesta-
“mundo interior” foi uma das fronteiras da ção de subjetividades ou individualidades
era moderna, que multiplicou em todas as sobre a matéria mas sim da configuração
direções os confrontos entre o universo objetiva do gesto plástico enquanto passa-
individual, privado, e os princípios da esfe- gem, reordenação do mundo das coisas em
ra pública – afinal a potência individual, direção a um repovoamento – a posteriori
irreverente, explosiva, esquizofrênica, – interiorizante. Brígida Baltar assimilou a
iconoclasta, sempre foi o pólo subversivo lição de Waltércio Caldas – que poderia ser
da modernidade. Somente a segunda meta- enunciada como “a clareza ofuscante do
de deste século conheceu os resultados da objeto de arte produz um efeito de suspen-
progressiva “interiorização” da política e são que remete ao vazio, construindo uma
da ciência, conduzindo ao que Allen impessoalidade enquanto pura superfície à
Ginsberg chamou de “Solidão Pública” (6), deriva” – conectando-a àquela de Félix
e à conseqüente expansão multissensorial Guattari, de modo a acrescentar um papel
dos anos 60, que efetivamente resulta da de “produtor de subjetividade” (7) ao com-
implosão produtiva do desregramento ponente plástico, enfatizando o objeto como
rimbaudiano de todos os sentidos. Tanto “composto heterogêneo”, realizando uma
Lygia Clark como Hélio Oiticica marcam experiência de “subjetivação do espaço” –
esta passagem de modo fundamental, ao e não um gesto expressivo subjetivo qual-
realizarem obras de caráter intensamente quer sobre a matéria. O resultado final dos
prospectivo, co-fundadoras desta região da trabalhos revela um interesse pela imagem,
interno/exterioridade, colaborando na cria- sem dúvida a interface multiplicadora com
ção de uma nova forma de espaço caracte- maior poder de sedução, que aqui funciona
rizado pela fluência möebiana do fora/den- enquanto registro e produto final, ainda que
tro: por isso são artistas fundamentais nes- pouco permeável ao impacto da experiên-
te final de milênio pós-moderno, quando a cia: a objetiva assume a opção de mostrar
crise passa pela difícil administração das com clareza, para que não haja dúvida na
superfícies muito amplas de uma reconstrução documental da cena – como
interioridade nunca vista assim tão gran- em Coleta de Neblina (1997), onde os ele-
de… e tão vazia. mentos são exibidos em toda a sua nitidez.

EXPANSÃO, MULTIPLICAÇÃO CIRCULAÇÃO, FLUXO


Uma operação similar é realizada pela É através da associação de cadeias de
artista Brígida Baltar, no sentido de traba- imagens e objetos que Eduardo Coimbra
lhar o espaço em torno numa relação direta aponta a importância do que constitui a
6 Conferência pronunciada por
Ginsberg em 12 de novembro consigo própria, envolvendo uma incorpo- “circulação de energia” de uma instalação,
de 1966, em Arlington Church,
em que se refere à “revisão das ração da natureza, seguida, na mesma me- tornando claro o aspecto de fluxo que apro-
normas públicas”, “o que é pri- dida, por uma expansão de si no ambiente. xima matéria, vida e pensamento. Em
vado é público” e à “educação
no espaço interior”. Introjeção e expansão estão especialmente Fatias de Memória / 1. Nascimento; 2.
7 Félix Guattari, “Espaço e presentes na obra Abrigo (1996), em que Formação do Corpo; 3. Movimento; 4.
Corporeidade”, in Caosmose, Baltar escava o molde de seu corpo na pa- Repouso; 5. Morte (1995), instalação de
Rio de Janeiro, editora 34,
1992, p. 160. rede de sua casa, revelando o desejo de grande impacto apresentada no Paço Im-

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perial (Rio de Janeiro), Coimbra justapõe ços, um vivido multissensorialmente, mo-
os mais diversos elementos, considerados bilizando a totalidade do corpo, e outro vi-
por ele enquanto objetos ou materiais em sualmente, provocando apenas o olhar. Com
estado bruto: assim, somos confrontados a construção de um muro de tijolos, ocu-
com dois grandes montes de terra – sendo pando a área de entrada, Carla Guagliardi
que um deles ergue-se a partir do lado ex- bloqueou efetivamente o acesso do públi-
terior da galeria –, um tronco de madeira, co à sala de exposição, permitindo entre-
duas bacias de metal, uma peça escultórica tanto, por meio de alguns pequenos orifíci-
em madeira no formato de uma cama cor- os deixados em aberto no muro, que o es-
tada pela metade, uma muleta construída paço fosse acessado através da visão. Atrás
em vidro e uma cadeira de rodas sem os dessa parede estavam colocados uma série
pneus e o assento. Todos esses diferentes de vasos de plantas, cada um deles
elementos são interligados por séries de conectado ao muro através de linhas de
linhas, materializadas através de barbantes algodão, tensionadas em sentido descen-
ou tubos de plástico – por onde circula ar – dente, do muro para as plantas. Incrustrados
de modo a construir uma extensa costura, a no muro, entre os tijolos, recipientes de
partir da qual os elementos individualiza- vidro cheios de água, com diferentes tama-
dos perfazem um todo, ainda que fragmen- nhos e formatos, recebiam a extremidade
tário. Aí reside, a meu ver, o momento superior dos fios: assim, por meio de um
decisivo desta instalação: diante de coisas efeito de capilaridade, a água contida nos
tão díspares, conduzidas à realização de recipientes de vidro era conduzida às plan-
pontuações físicas e literais, mas também tas, junto ao chão da galeria. Ocorre que, ao
alegóricas e metafóricas, como apreender obrigar o espectador a posicionar o olhar
uma possibilidade de sentido perceptivo que segundo os pequenos orifícios do muro, a
corresponda a tal deslizamento vertigino- artista limita e direciona a visão, construin-
so? Eduardo Coimbra coloca em funciona- do uma visibilidade parcial, fragmentária:
mento um jogo narrativo, construído a par- a estratégia implica num controle parcial
tir de cadeias de imagens, que equivale à do corpo (Lygia Clark, em suas experiên-
instauração de um fluxo de energia próprio cias sensoriais, muitas vezes procura blo-
à invenção e produção de pensamento. Seria quear um sentido para intensificar ou
inviável conectar tantas situações hetero- desreprimir outros), de modo a potencializar
gêneas – é o que o trabalho de Coimbra nos um olhar multiplicado nos inúmeros frag-
propõe – sem a construção de uma rede de mentos de imagem pelo qual o visitante
interconexões e passagens como articula- tenta compreender o espaço oferecido à con-
ção de fluidez, a partir da qual o sentido templação. Este olhar, à medida que se
emerge como derivado do processo mes- multiplica, acaba por agir retroativamente,
mo de encadeamento de pensamento, sua duplicado sobre si mesmo, acionando um
multiplicação e espacialização. jogo mnemônico movido pelo confronto
entre diferentes formas de experimentação
do espaço: a ação de lembrar é ativada aqui,
tanto como associação de fragmentos
MEMÓRIA dispersos no tempo e no espaço, quanto em
termos de permanência, retenção, acumu-
Carla Guagliardi vem conduzindo seu lação. As mesmas linhas que conduzem
trabalho em torno de questões que envol- água para as plantas alimentam-se da ener-
vem tempo e memória, utilizando-se gia do olhar, terminando por subjugá-lo,
freqüentemente de materiais de naturezas imobilizá-lo – mas apenas para libertá-lo
contrastantes, que se interagem. Na insta- mais adiante, já em velocidade de acelera-
lação Memória Líquida (1996, Galeria do ção, através de um outro espaço,
IBEU, Rio de Janeiro), nos convida a uma interfaceando, por dentro e por fora, o cor-
experiência de disjunção entre dois espa- po do espectador. Memória Líquida con-

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Fotos: Vicente de Mello

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siste em uma operação de enfrentamento cessual indica etapas de uma constante Na página
de duas formas fechadas de espacialidade metamorfose, a afirmar afinidades não
anterior,
– corpo vs. espaço bloqueado –, para desse só entre arte e transformação, como tam-
modo obrigar ambos a uma violenta exte- bém entre arte e transmutação, pela Eduardo
riorização, construindo entre eles passagens interconexão de diferentes estados e pela Coimbra,
e fluxos transformadores. facilidade em reformalizar-se nas condi-
ções mais diversas e adversas. Colocar
Fatias de
em movimento o objeto de arte será Memória,
PROCESSO, ATUALIZAÇÃO refazê-lo novamente, escutar seu conjun-
1995.
to rítmico e deixar-se constituir por seu
A proposição Pássaros Migratórios devir – experimentá-lo, experimentar-se. Instalação com
(1992), de Sonia Labouriau, também pro- diversos
cura trabalhar um conjunto de questões
materiais, Paço
inter-relacionadas com experiência, pro-
cesso, fluxo e memória. Misturando
CONTAMINAÇÃO, IRRADIAÇÃO Imperial, Rio
coloral (composto comestível que com- de Janeiro;
bina extrato de urucum e fubá) com cola Diante da experiência de adversida-
de metil-celulose, a artista obtém uma de, característica do ambiente brasileiro, abaixo, Carla
massa moldável de cor vermelho- e frente a um meio de arte de institu- Guagliardi,
alaranjada, dotada de organicidade pró- cionalização precária, conduzi meu pró-
Memória
pria. Labouriau, então, elabora um pro- prio trabalho plástico para preocupações
cedimento para a produção de pequenos com a articulação dos campos verbal e vi- Líquida, 1996.
“pássaros”, a partir de “quatro movimen- sual – e suas interfaces comunicativas –, Instalação com
tos de mão”, de modo a obter o resultado desenvolvendo um projeto em torno da
não a partir de determinações formais, “materialidade” e “espacialidade do pen-
diversos
mas em decorrência de um método ope- samento”, caracterizando a obra em sua pre- materiais,
ratório, processual: “procuro criar pro- sença visível e invisível e propondo um
Galeria do
cedimentos que possam, como uma par- campo sensorial também ocupado pela
titura, ser executados incorporando as “fenomenologia do conceito”. Desde 1989 Ibeu, Rio de
circunstâncias” (8). Cada um dos pássa- desenvolvo o projeto NBP – Novas Bases Janeiro
ros assim produzidos é conservado den- para a Personalidade, a partir de objetos,
tro de um vidro convexo, protegido con- desenhos, textos, instalações, diagramas,
tra secagem e deterioração; ao mesmo etc.: a preocupação é de estabelecer uma
tempo, um deles é escolhido e colocado conexão direta com o espectador, transfor-
dentro de um vidro côncavo, cheio mando-o em veículo e suporte do jogo da
d’água: agora, em um espaço de tempo arte, uma vez que sua presença aciona os
de algumas horas até dois dias, o pássaro maquinismos da obra, colocando-a em
vermelho-alaranjado irá dissolver-se, funcionamento. A proposta Você gosta-
“migrar para a água”, desfazendo sua ria de participar de uma experiência ar-
transitória formalização, puro processo. tística?, por exemplo, iniciada em 1994,
É o próprio devir do objeto de arte que oferece ao participante um objeto para
Pássaros Migratórios torna visível, ao ser utilizado em sua casa, por um mês; o
assinalar um percurso de desmate- próprio participante registra suas ações,
rialização que reconduz qualquer crista- deixando-se (ou não) contaminar pelo
lização em direção a um estado de fluxo, projeto NBP – mas, de qualquer modo,
que inevitavelmente irá adquirir nova envolvido em uma experiência de trans-
substância ao combinar-se com o fruidor/ formação, em que o objeto gradualmente
experimentador, suporte de possível re- se metamorfoseia, em função das ativi- 8 Sonia S. Labouriau, Colunata,
folder de exposição no Centro
cepção e repotencialização contínua. Dei- dades desenvolvidas. Trata-se de enfati- Cultural São Paulo, texto de
xando traços de uma verdadeira memó- zar conexões possíveis de serem estabe- Paulo Sérgio Duarte (“A Escul-
tura Impossível”), abril-maio/
ria líquida, cada estado de seu vôo pro- lecidas entre corpo/indivíduo e objeto de 1997.

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Ricardo
Basbaum, NPB
– Novas Bases
para a
Personalidade,
1993. Ferro
pintado

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arte, produzindo ao mesmo tempo conti- projetivas. Mas o que particulariza esta Sonia
nuidades – no sentido de uma hibridização produção é a exigência em não abando-
corpo/obra e descontinuidades – enquanto nar o confronto com um rico campo sen-
Labouriau,
estranhamento de si e análise da experi- sorial, assinalando a imprescindível im- Pássaros
ência. Existe uma agressividade invaso- portância da experiência. É necessário
Migratórios,
ra que ambiciona, como João Modé ou provocar e envolver o espectador em uma
Brígida Baltar, uma colonização do es- rede de estímulos múltiplos – de qual- 1992. Coloral,
paço da interioridade, mas a partir de quer espécie – de modo a interferir em água, vidro
uma estratégia compacta, em que o tra- seu movimento perceptivo, e assim ocu-
balho de arte é veículo para uma altera- par, colonizar aquele corpo que é tam-
ção quase genética – operação de im- bém pura espacialidade em sua pulsão
plante, no espectador/participador (9), contínua dentro/fora: um corpo que é
de um dispositivo gerador do fluxo arte- veículo, palco de combates, superfície
pensamento. projetiva. Diversas formas de condução
do tempo foram apresentadas, indicando
••• a força de aceleração própria de cada ex-
perimentação, em seu lançar-se sobre o
Os trabalhos aqui discutidos enfati- outro – fruidor ativo, participante. Na 9 Tunga declarou certa vez que
o melhor lugar para mostrar seus
zaram a exploração de uma espacialidade rede de produção de pensamento, os tra- trabalhos seria no cérebro, en-
em estreito contato com as dimensões balhos de arte constituem nós de rara tre os hemisférios direito e es-
querdo. Melhor ainda se o in-
interiorizadoras – sejam receptivas ou potencialidade. divíduo for disrítmico.

REVISTA USP, São Paulo, n.40, p. 46-57, dezembro/fevereiro 1998-99 57

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