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ARTIGO ACADÊMICO

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DEBORD: ESPETÁCULO,
FETICHISMO E
ABSTRATIFICAÇÃO
POR Nildo Viana
nildoviana@ymail.com
Universidade Federal de Goiás

Resumo: O presente artigo discute a obra de Guy Debord, analisando seus elementos fundamentais, seus limites e, ainda,
seu valor e atualidade. Para realizar esse objetivo, realiza uma análise da obra A Sociedade do Espetáculo e, após isto,
discute alguns limites, principalmente a abstratificação presente nela, elemento sem o qual uma justa avaliação seria
impossibilitada, inclusive perceber seu alcance atual e valor para entender a sociedade contemporânea.

Palavras-chave: Espetáculo, Debord, Abstratificação, Mercadoria, Fetichismo.

Guy Debord nasceu em 1931 e 1957 a 1972. Debord busca na vida


suicidou-se em 1994. Apesar de ter cotidiana a base da contestação
escrito sobre sua própria vida em social de nossa época. O espetáculo
seu livro Panegírico, não nos deixou produzido pela sociedade capitalista
muitas informações sobre sua história fundamentada na mercantilização
além de alguns fatos fragmentários, de tudo e no fetichismo generalizado
tal como o seu gosto por bebidas abre caminho para sua teoria crítica
alcóolicas, as suas relações com da sociedade capitalista, da qual
criminosos comuns e políticos, trataremos no presente artigo. Após
sua recusa da sociedade moderna. isto, analisaremos a abordagem
Sabemos, porém, de sua ação política de Debord no sentido de discutir
através da Internacional Situacionista suas teses e observar se é suficiente
e de seu pensamento através de suas para explicar a realidade social
obras, em especial, A Sociedade do contemporânea.
Espetáculo. Aqui nos interessa sua
análise da sociedade capitalista, ou, A Sociedade Espetacular
como dizem outros, da sociedade
moderna, da modernidade. Além de Marx afirmou que, à primeira vista, a
alguns textos menos importantes, sociedade capitalista aparece como
a sua visão da sociedade capitalista uma “imensa coleção de mercadorias”
está expressa de forma mais acabada (Marx, 1988). Parafraseando Marx,
em A Sociedade do Espetáculo. Debord afirma que “toda a vida das
Está é também uma das principais sociedades nas quais reinam as
obras que expressam as concepções modernas condições de produção
da Internacional Situacionista, se apresenta como uma imensa
organização contestária da qual acumulação de espetáculos. Tudo o
Debord foi um dos mais destacados que era vivido diretamente tornou-se
representantes e que existiu de uma representação” (Debord, 1997,
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p. 13). que, numa economia mercantil-


O que é o espetáculo? Debord nos espetacular, à produção alienada
vem juntar-se o consumo alienado.
apresenta inúmeras características O pária moderno, o proletário de
do espetáculo. Ele “não é um Marx, não é já tanto o produtor
conjunto de imagens, mas uma separado do seu produto como o
relação social entre pessoas, consumidor. O valor de troca das
mediadas por imagens”; é também mercadorias acabou por dirigir o
seu uso. O consumidor tornou-se
uma cosmovisão; resultado e projeto consumidor de ilusões” (Gombim,
do capitalismo; o “modelo atual da 1972, p. 82).
vida dominante na sociedade”; a A sociedade capitalista passa a ser
“afirmação onipresente da escolha já compreendida, então, como o reino
feita na produção, e o consumo que do espetáculo, da representação
decorre desta escolha”; “a justificativa fetichizada do mundo dos objetos
total das condições e dos fins do e das mercadorias. O espetáculo,
sistema existente”; “a presença assim, consagra toda a glória ao
permanente dessa justificativa, reino da aparência. Ele domina os
como ocupação da maior parte homens a partir do momento em
do tempo vivido fora da produção que a economia desenvolveu-se por
moderna”; o sentido da prática total; si mesma, sendo o reflexo fiel da
“a principal produção da sociedade produção das coisas e a objetivação
atual”; herdeiro da filosofia baseada infiel dos produtores.
nas categorias do ver; “sonho mau”; Esta temática de Debord vai
etc., etc. Richard Gombim esclarece de encontro com as teorias da
com mais precisão o significado do sociedade de consumo. Baudrillard
espetáculo: (1991), por exemplo, irá tratar do
“A degradação e a decomposição mundo dos objetos e da esfera do
da vida cotidiana correspondem
à transformação do capitalismo consumo. Lefebvre (1990) também
moderno. Nas sociedades de não deixou de lado o problema da
produção do século XIX (cuja sociedade de consumo, qualificada
racionalidade era a acumulação por ele de “sociedade burocrática
de capital), a mercadoria tinha-se de consumo dirigido”. Arendt (1997)
tornado um fetiche na medida em que
era considerada como figurando um fez considerações sobre a sociedade
produto (objeto), e não uma relação de consumidores e assim por diante.
social. Nas sociedades modernas, Erich Fromm (1988) irá analisar a
em que o consumo é a ultima ratio, passagem da valorização do ser para
todas as relações humanas têm sido o ter. Mas a sociedade de consumo
impregnadas da racionalidade do
intercâmbio mercantil. É o motivo para Debord é a sociedade do
por que o vivido se afastou ainda espetáculo, da reificação, para utilizar
mais numa representação: tudo aí expressão lukacsiana (Lukács, 1989).
é representação. É a este fenômeno Porém, isto difere sua abordagem
que os situacionistas chamam das demais, pois aqui a passagem do
espetáculo (a concepção de Lefebvre
é mais neutra: o espetáculo moderno, ser para o ter é complementada pela
para ele, deve-se simplesmente à passagem para o parecer.
atitude contemplativa dos seus Nesta sociedade, há a produção
participantes). O espetáculo instaura- circular do isolamento (através do
se quando a mercadoria vem ocupar automóvel, da televisão, etc.). Desta
totalmente a vida social. É assim
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forma, a temática da separação e do espetáculo e por serem, elas


do isolamento assumem um papel mesmas, espetaculares. São reais
central na concepção de Debord. O pelo motivo de que expressam lutas
consumo e a imagem (representação reais entre classes ou frações de
reificada) ocupam o lugar da ação classes.
direta, do diálogo. Provocam o Segundo Debord, a resistência das
isolamento e a separação. Assim, a regiões subdesenvolvidas não difere
crítica da especialização aparece e muito disto. Tal como ele colocou:
retoma Marx (1988), Lukács (1989) e “A sociedade portadora do
Korsch (1977). espetáculo não domina as regiões
subdesenvolvidas apenas pela
Debord retoma a discussão em hegemonia econômica. Domina-as
torno do fetichismo da mercadoria. como sociedade do espetáculo. Nos
A mercadoria surge como força lugares onde a base material ainda
que ocupa a vida social e constitui está ausente, em cada continente,
a economia política, “ciência a sociedade moderna já invadiu
espetacularmente a superfície
dominante e ciência da dominação”. social. Ela define o programa de
“O espetáculo é o momento em que a uma classe dirigente e preside sua
mercadoria ocupou totalmente a vida formação. Assim como ela apresenta
social (...). A produção econômica os pseudobens a desejar, também
moderna espalha, extensa e oferece aos revolucionários locais os
falsos modelos de revolução” (p. 39).
intensivamente, sua ditadura”
(Debord, 1997, p. 31). A sociedade do espetáculo também
A abundância da produção de transforma a revolta em rebelião
mercadorias produz a preocupação puramente espetacular, através da
da classe dominante com o proletário transformação da insatisfação em
enquanto consumidor, criando mercadoria. O mesmo ocorre, com
o “humanismo da mercadoria”, algumas diferenças de pormenor,
encarregado do “lazer” do 1
no capitalismo de estado . Segundo
trabalhador. “Assim, ‘a negação total Debord,
do homem’ assumiu a totalidade da
existência humana” (Debord, p. 32). Neste contexto, Debord analisa o
Neste contexto, o consumo deve marxismo a partir da obra de Marx.
aumentar sempre, mas este Coloca em evidência a perspectiva
aumento só é possível pelo motivo revolucionária da teoria de Marx e
de que contem em si uma privação, sua transformação em ideologia,
“a privação tornada mais rica”. O tanto pela socialdemocracia quanto
consumismo derivado daí leva pelo bolchevismo. Debord faz uma
a uma “sobrevivência ampliada”, severa crítica a diversas correntes
produzindo também a produção de políticas, tais como o anarquismo, a
pseudonecessidades para garantir socialdemocracia, o kautskismo, o
esse processo de expansão da leninismo, o stalinismo, o trotskismo.
produção e do consumo. Para ele, a socialdemocracia e o
Na sociedade em que domina bolchevismo inauguram a ordem
o espetáculo, a oposição a ela de coisas que expressa o espetáculo
também é envolvida por ele. As lutas moderno: “a representação operária
“espetaculares” são ao mesmo tempo opôs-se radicalmente à classe”
falsas e reais. São falsas por não (Debord, 1997, p. 68).
colocarem em questão a sociedade Qual é a alternativa para a sociedade
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do espetáculo? Como se pode trilhar um ponto, entretanto, ela parece


um caminho alternativo que não dar ainda prova de ortodoxia: o
sujeito revolucionário, o portador
passe pela socialdemocracia, pelo da revolução, o emancipador,
bolchevismo ou pelo anarquismo? permanece, para a Internacional
Debord retoma a resposta dada já Situacionista, o proletariado”
na década de vinte pelos chamados (Gombin, 1972, p. 86).
“comunistas conselhistas” (Korsch,
Pannekoek, Mattick, Rühle, etc.)
2 Enfim, estas são as principais
: os conselhos operários são a colocações de Debord sobre a
forma de emancipação proletária. sociedade do espetáculo e de suas
Tais conselhos rompem com a características. A partir desta reflexão
idéia de representação, tanto inicial, podemos, agora, realizar uma
parlamentar (socialdemocracia) análise crítica da tese da sociedade
quanto a vanguardista-partidária espetacular e refletir sobre seu valor
(bolchevismo). Segundo Debord, e atualidade.

“A organização revolucionária Valor e Atualidade da análise da


só pode ser a crítica unitária da sociedade espetacular
sociedade, isto é, uma crítica que
não pactua com nenhuma forma A obra de Debord representa
de poder separado, em nenhum
ponto do mundo, e uma crítica uma determinada concepção de
formulada globalmente contra todos sociedade capitalista. Trata-se de
os aspectos da vida social alienada” uma concepção que parte de uma
(Debord, 1997, p. 85). perspectiva crítica e de oposição
a esta sociedade. Debord se filia
Assim, ele propõe os conselhos ao chamado esquerdismo, sendo
operários como alternativa global um representante da Internacional
para a alienação global: Situacionista. Porém, ele faz sua
crítica da sociedade capitalista sob
“Quando a realização sempre forma bem diferente da esquerda
mais avançada da alienação
capitalista em todos os níveis, tradicional. Os conceitos mais
ao tornar sempre mais difícil aos importantes para a esquerda
trabalhadores reconhecerem e tradicional são os de exploração,
nomearem sua própria miséria, os burguesia, imperialismo, etc., e o
coloca na alternativa de recusar a locus privilegiado de debate é a
totalidade de sua miséria, ou nada, a
organização revolucionária deve ter instância da “economia” e da “política”.
aprendido que não pode combater Isto será criticado de forma intensa
a alienação sob formas alienadas” pelos representantes da Internacional
(Debord, 1997, p. 85). Situacionista e por Debord em
particular. A separação entre
Aqui notamos um aspecto do economia e política e entre estas
situacionismo e do pensamento “esferas” da realidade e as demais.
de Debord que continua fiel ao A própria separação é questionada
pensamento de Marx: como um produto da ideologia
espetacular. A realidade foi separada,
“Vemos o que esta concepção tem mas não existe tal separação na
de radical; o corte que ela opera realidade.
com todo o movimento de esquerda
deste meio século confere-lhe um Debord focaliza sua crítica à
tom milenarista, herético. Sobre sociedade capitalista concebendo-a
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como sociedade do espetáculo e esta mesmo tempo que reflete as forças


se caracteriza pela generalização do dominantes da sua época, é também
e já o projeto de sua ultrapassagem.
fetichismo da mercadoria que invade Os grandes artistas foram também
a vida cotidiana. A crítica da vida grandes profetas revolucionários:
cotidiana torna-se o fundamento Latréamont, Rimbaud, que
da crítica à sociedade capitalista. ultrapassaram a sua época na e pela
O espaço (e juntamente com ele sua obra. Trata-se de retomar esse
fio que, depois, se perdeu (pois que a
o urbanismo, a arquitetura, etc.), obra de arte moderna se tornou uma
o tempo, o lazer, a cultura, a arte, mercadoria como qualquer outra).
a comunicação e tudo o mais é Trata-se de recriar uma linguagem
perpassado por esta alienação de comunicação na comunidade do
3 diálogo: a contestação será também
generalizada da sociedade moderna .
a procura dessa linguagem, é o
motivo por que será antes de mais
Tendo em vista que a alienação uma revolução cultural. O dadaísmo
é total, então Debord propõe a e o surrealismo começaram a destruir
contestação total do capitalismo a linguagem (alienada) antiga: mas
moderno (Debord, 1961). Segundo não souberam encontrar um novo
estilo de vida. O seu fracasso explica-
Gombin, se pela imobilização do assalto
revolucionário desse primeiro quarto
“Esta consiste numa multidão de atos de século. (...). Parafraseando os
espontâneos tendentes a modificar esquerdistas, poderíamos dizer que
radicalmente o espaço-tempo os homens serão felizes no dia em
atribuído pela classe dominante. A que forem todos artistas” (Gombin,
nova revolução não poderia, pois, 1972, p. 92-94).
aspirar à simples tomada de poder,
a uma renovação da equipe ou da
classe dirigente: é o próprio poder Desta forma, a modernidade é a
que é necessário suprimir para sociedade do espetáculo. O reino
realizar a arte, que é o objetivo do fetichismo e do consumo. Um
último. A realização da poesia, que mundo fragmentado, separado. A
será também a sua ultrapassagem, modernidade, tal como Lefebvre já
exige, evidentemente, um
reconhecimento dos seus próprios havia colocado, é a última estratégia
desejos (asfixiados pela sociedade da dominação burguesa (1969).
do espetáculo e rebaixados a Neste sentido, para Debord, a
pseudonecessidades): a palavra sociedade capitalista é a negação
livre, a comunicação verdadeira (e da humanidade e somente a
não mais unilateral e manipulada),
a recusa do trabalho produtivo recuperação desta poderá promover
como trabalho produtivo, a recusa a negação da sociedade capitalista.
igualmente da hierarquia, de toda a Enfim, trata-se de uma crítica da
autoridade e de toda especialização. sociedade capitalista. Uma acusação
O homem libertado não será mais o do seu caráter alienante, fetichista,
homo faber, mas o artista, quer dizer,
o criador das suas próprias obras. espetacular.
A revolução, será, portanto, um A crítica da sociedade do espetáculo,
ato de afirmação da subjetividade no entanto, compartilha com
de cada um no terreno da cultura, ela alguns problemas básicos.
que é o terreno mais vulnerável Alguns destes problemas foram
da civilização moderna. Porque é a
arte que revela em primeiro lugar o denunciados pelo próprio Debord.
estado de decomposição dos valores: O primeiro ponto problemático
o que Marx e Engels não viram ou da abordagem debordiana é o
não quiseram ver; ora, a cultura, ao seu abstracionismo. A capacidade
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humana da abstração existe desde a historicidade) e suas relações (a
aurora dos tempos, quando emerge totalidade). Esse ocultamento se
a razão humana (Fromm, 1976). reproduz na obra de Debord, pois ele
Porém, segundo Fromm, a sociedade mostra a emergência e dominância
capitalista promove um processo da sociedade espetacular, da imensa
crescente de abstratificação, na acumulação de espetáculos, mas
qual a abstração como capacidade não sua produção, seu processo de
humana é substituída por uma forma constituição.
deformada da mesma4 . Segundo Ao parafrasear Marx, que aponta
Fromm: o capitalismo como imensa
acumulação de mercadorias,
“Há duas maneiras da pessoa apenas reproduz o que este afirma
relacionar-se com um objeto:
substituindo a mercadoria pela ideia
podemos relacionar-nos com
ele em sua plena constituição de imagens, de espetáculo. Em que
material; então o objeto aparece pese essas duas coisas não sejam
com todas as suas qualidades contraditórias, o problema reside que
específicas, e não há nenhum outro Marx afirma que isso é “à primeira
objeto idêntico a ele. E podemos
vista”, ou seja, numa percepção
relacionar-nos com um objeto de
um modo abstrato, isto é, levando superficial da realidade e por isso ele
em conta somente as qualidades passa a explicar o que é mercadoria,
que ele tem em comum com todos qual seu processo real de produção
os demais objetos do mesmo e relação com a totalidade da
gênero, com o que se acentuam
sociedade capitalista. Marx vai além
certas qualidades e se ignoram
outras. A relação plena e produtiva do fetichismo, pois caso contrário o
com um objeto compreende esta reproduziria.
polaridade de percebê-lo em sua Debord, ao contrário, se contenta
singularidade e, ao mesmo tempo, em descrever o espetáculo, mostrar
em sua generalidade, em sua plena
suas formas e não mostra, em seu
constituição material e, ao mesmo
tempo, em sua abstração” (Fromm, livro, o processo real de constituição
1976, p. 118). do espetáculo, que remeteria para a
produção de mais-valor e, portanto,
A tese de Debord aponta para para a questão das classes sociais
um reconhecimento correto – algo relativamente ausente em
da generalização do fetichismo sua análise. As classes aparecem e
da mercadoria, que passa a se desaparecem ao mesmo tempo. O
manifestar como fetichismo da proletariado aparece como sujeito
arte, da ciência, etc. e nesse mundo revolucionário, mas não se explicita
fetichista, tudo vira fetiche. Porém, como e por qual motivo ele o é ou como
a consciência fetichista representa continua sendo. A representação
a realidade de forma reificada. Esta reificada atinge a todos, inclusive o
representação, como diz Debord, é proletariado. Resta saber como e por
representação reificada. O acúmulo qual motivo ele pode superar isso. Os
de imagens domina a sociedade conselhos operários rompem com
capitalista. A ideia, em si, não é a representação e separação, mas
problemática e sim a forma como é como e por qual motivo eles surgem?
apresentada e o que fica oculto. Uma O oculto aqui é a produção de mais-
das características do fetichismo valor e, junto com ela, as classes
é justamente ocultar o processo fundamentais do capitalismo. Ao
de constituição do fenômeno (sua
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mesmo tempo, tudo que é derivado ele aumenta seu valor de troca,
disso (não apenas o fetichismo, mas tanto pelo acréscimo simples das
horas de trabalho dedicadas à
a reprodução ampliada do capital, formação especializada, como pela
concentração, centralização, etc.). introdução do valor simbólico que,
sob as relações espetaculares, a
Assim, ao ultrapassar o economicismo hierarquia do trabalho intelectual
e atingir a vida cotidiana e sua sempre supõe. Um livro, este livro,
é, do ponto de vista do valor de
essência mercantil-consumista há troca, uma expressão da ‘separação
um avanço, mas ao não analisar o consumada’ da qual nos fala
processo de produção e constituição Emiliano Aquino, expondo Debord”
dessa situação, separa o espetáculo, (Amaral, 2006, p. 19).
o mundo mercantil e consumista, da
produção, da história. Essa separação, Na verdade, aqui falta o concreto em
criticada mas reproduzida por favor da abstratificação da realidade.
Debord, cria uma autonomização. O O valor de troca de um livro não
modo de produção capitalista e sua aumenta devido financiamento
dinâmica de reprodução ampliada estatal. Somente uma análise
que produz a necessidade de concreta pode resolver isso, mas a
reprodução ampliada do mercado tendência é justamente o contrário.
consumidor é fundamental e não Quando há financiamento estatal,
pode ser deixado de lado em o livro – e em muitos casos é isso
qualquer análise do capitalismo. que ocorre – pode ser distribuído
Assim, caímos na possibilidade até gratuitamente. Vários livros são
de interpretações equivocadas de distribuídos gratuitamente e a razão
Debord, sob várias formas, algumas disso, ausente na análise acima, é
aproveitando da abstração e falta de que quando o Estado financia uma
precisão conceitual para conquistá- publicação ocorre uma transferência
lo para suas teses, deformando de mais-valor (produzida na
sua análise (Jappe, 2008) e outros produção material de mercadorias e
ficando no reino da abstratificação drenada pelo Estado sob a forma de
denunciada por Fromm (1976). Isso imposto, etc.) dele para quem produz
tanto é verdade que alguns chegam o livro (uma gráfica ou editora) que,
ao ponto de pensar que as ideias por sua vez, retira daí os seus gastos
criam valor (de troca): com capital fixo e variável (meios
de produção e matérias-primas, por
“Tal crítica supõe em Debord, um lado, e salários, por outro), e
como já antes supusera em Marx, a entrega a mercadoria para o Estado
assunção da natureza contraditória ou qualquer outra instituição estatal,
das relações fetichistas como que não terá que recuperar (parcial
determinação central do mundo
moderno, contradição nucleada na ou total) o que foi gasto. Da mesma
relação entre valor de uso e valor de forma, a formação especializada
troca inscrita na forma-mercadoria. e o “valor simbólico” da hierarquia
Deste modo, e segundo as reflexões do trabalho intelectual não fazem
por ele mesmo apresentadas, aumentar o valor de troca de um
um livro e este livro, nas atuais
condições sociais de produção, é livro. Na verdade, o livro é uma
necessariamente uma mercadoria. mercadoria, algo material, e seu valor
Se este livro se origina do é medido não pelas ideias ou tempo
financiamento estatal e da aprovação para produzir as ideias presentes
das instituições universitárias, nele, e sim pelo tempo de trabalho
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socialmente necessário para produzir a totalidade que ele apresenta
o objeto material que é o livro e é abstrata e sua linguagem é
quem produz tal objeto é o proletário igualmente abstrata e por isso a
que é explorado nesse processo, já dificuldade de leitura de sua obra e
que seu trabalho excedente não é ampla possibilidade das mais variadas
remunerado. interpretações. E, apesar da recusa
Assim, é o trabalho incorporado que total e da retomada da totalidade,
determina o valor da mercadoria e é ele focaliza o consumo, o valor de
por isso que, quando uma gráfica faz troca, a imagem, o espetáculo, ao
orçamento de um livro, não pergunta invés de trabalhar a produção do
a titulação do autor e nem quanto “espetáculo” e tudo o mais que
tempo demorou para escrever aborda. É o que Kosik denominou
um livro e sim quantas páginas “totalidade abstrata” (Kosik, 1986).
(matéria-prima, que entra no custo Assim, o que é relativo em Debord
de produção, significando trabalho se torna absoluto em alguns de seus
morto, materializado em meios de intérpretes, que trocam a análise da
produção), quantos exemplares, etc. realidade concreta por um mundo
serão impressos. Esse exemplo acima aparente e fenomênico, o “mundo da
é para mostrar como a abstratificacao pseudoconcreticidade” (Kosik, 1986).
pode significar um abandono da Em Debord o modo de produção fica
realidade concreta em favor do subentendido (e, de qualquer forma,
mundo das ideias, do fetichismo, que secundarizado), e nos seus intérpretes
aparenta ser gerador de valor. é abandonado ou reduzido ao
A ideia de que a representação momento do mercado, onde Marx é
reificada é o grande problema a substituído por Adam Smith e a “mão
ser combatido e que ocorre uma invisível do mercado”. A superação
autonomização do valor de troca é do economicismo não se dá pela
uma ideologia, no sentido marxista do desconsideração ou secundarização
termo (falsa consciência sistemática), do modo de produção e sim pelo
pois deixa de lado um elemento reconhecimento do real significado
fundamental da mercadoria: ela é deste termo e de seu significado na
produto do trabalho humano e o totalidade da sociedade em questão
“trabalho abstrato” é apenas uma (Viana, 2007b).
parte de sua realidade e a parte A questão da abstratificacao está
fundamental, ocultada por ele, é presente em Debord e é exagerada
que em toda mercadoria há trabalho em seus intérpretes a tal ponto que o
incorporado nela, o que determina concreto desaparece e o fetichismo se
seu valor. Obviamente que Debord torna a realidade. Nesse último caso,
dá margem para estas interpretações, temos um fetichismo do fetichismo.
mas ele não afirmou exatamente A consciência fetichista deixa de
isto. Porém, a possibilidade de ser consciência para ser realidade
apropriação, de forma relativamente e logo, deixa de ser representação
convincente, do seu pensamento ilusória para ser verdadeira e assim
por estas interpretações, mostra representação e realidade se fundem.
um problema real em sua análise, a O fetichismo não é mais – nessa
abstratificacao. ideologia – uma inversão da realidade
A separação é criticada por Debord e sim sua expressão e, sendo assim,
e a vida cotidiana, a totalidade o dinheiro, a mercadoria, o valor de
reaparece, o que é um mérito. Porém, troca é o essencial e é isso que tem
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que ser combatido. O modo de produção que gera tudo isso não
tem mais importância, as classes sociais e suas lutas deixam de ser
o motor da história, e Marx é substituído por Adam Smith.
Esse retrocesso intelectual, porém, não é gratuito, tem seu
próprio processo de produção, que não poderemos nos ocupar
dele no presente artigo. A consciência fetichista se funde com
a realidade tornada fetichista e assim, se ainda permanece o
desejo de transformação social, o combate é ao fetichismo e a
produção do fetichismo foi esquecida. Este é o procedimento
típico da consciência fetichista e, portanto, transforma-se, mais
uma vez, o marxismo em ideologia. A concepção teórica do
fetichismo é substituída pela concepção ideológica e os críticos
do fetichismo fetichizado são apenas outros fetichistas a mais, se
dizendo “esquerdistas” e “revolucionários”. A crítica do fetichismo
se tornou fetichista e abandonou seu caráter crítico, tornando-se
um superficialismo abstratificante.
Porém, independentemente disso, a obra de Debord assume uma
radicalidade e potencial crítico que é uma das melhores análises do
capitalismo que emergiu após a Segunda Guerra Mundial. Assim, a
obra A Sociedade do Espetáculo mantém seu valor e atualidade. O
seu valor reside em focalizar em sua análise um derivado do modo
de produção capitalista que é a expansão do consumo e das formas
como ele assume e das imagens criadas por ele, o que denominou
espetáculo (sem analisar o processo histórico que engendra essa
situação, mas por questão de foco analítico). Isso, por sua vez,
tem ressonância na análise do processo comunicacional, pois no
próprio cerne de sua análise do espetáculo se encontra o problema
da comunicação, da separação e do isolamento. A comunicação
cotidiana é atingida pela separação e fim do diálogo, a comunicação
via meios tecnológicos é cada vez mais espetacular.
A sua atualidade reside em que tal análise se mantém válida, pois
o desenvolvimento do capitalismo reproduz essa situação, embora
trazendo novos elementos a partir da década de 1980 e esboçada
nos anos 1970, quando emerge o regime de acumulação integral
(Viana, 2009). A crítica abre espaço para a ação, e, na época em
que o espetáculo e o fetichismo invadem tudo, inclusive a obra de
Debord, este reconhecimento é fundamental. Daí a importância de
Debord na atualidade e seu valor.

NOTAS

1- Debord é um dos teóricos que defendem que o regime da antiga União Soviética, Leste Europeu, China,
Albânia, etc., era um capitalismo de estado, não tendo nada a ver com uma sociedade autenticamente
socialista. Os primeiros defensores desta tese foram os esquerdistas russos de oposição ao bolchevismo
e os esquerdistas alemães, holandeses e italianos, duramente criticados por Lênin, em O Esquerdismo,
A Doença Infantil do Comunismo (1986).

2 - Os comunistas conselhistas também foram chamados de “comunistas de esquerda”, de “comunistas


de princípios”, de “esquerdistas” e de “comunistas internacionalistas”. Fizeram feroz oposição ao regime
soviético e ao leninismo, tanto do nível metodológico como político (sobre tal corrente e sua influência
sobre a Internacional Situacionista, cf. o livro citado de Gombin). A grande síntese da teoria dos
conselhos operários foi realizada por Anton Pannekoek (1977).

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3- A obra de Debord foi interpretada de forma equivocada por diversos autores. Anselm Jappe
chama a atenção para isso ao colocar o exemplo daqueles que colocaram a obra de Debord
como sendo uma crítica aos meios de comunicação – a mídia, sendo que se trata de algo bem
mais amplo (Jappe, 2008). Assim, Debord seria um dos poucos que teria sua obra “aproveitada
de modo tão deformado” (Jappe, 2008, p. 12). Tragicamente, a interpretação de Jappe é também
uma deformação, pois ao invés de compreender o autor através da análise do processo genético
e totalidade de sua exposição, mistura o que o autor diz com o que ele – o intérprete – acredita e
assim mescla a ideologia de Robert Kurz e do grupo Krisis com as teses de Debord, transformando-o
no que não é. Uma crítica moderada e com alguns equívocos à interpretação de Jappe pode ser
vista em Aquino (2006)

4- Marx não desenvolveu nenhuma análise aprofundada sobre isso, mas sempre distinguiu a
abstração dialética, a que ele propunha em seu método dialético (Marx, 1983) e a abstração
metafísica, que ele criticava. No seu texto sobre método dialético, ele coloca a necessidade da
abstração (dialética) e, ao mesmo tempo, coloca o problema da abstração (metafísica), tal como
no seu exemplo sobre a “população”, analisada sem divisão social do trabalho, classes sociais, etc.

REFERÊNCIAS

AMARAL, Ilana. Para Além do Espetáculo (Ou: dos possíveis valores dessa obra). In: AQUINO,
João Emiliano. Reificação e Linguagem em Guy Debord. Fortaleza: EdUECE/Unifor, 2006.

AQUINO, João Emiliano. Reificação e Linguagem em Guy Debord. Fortaleza: EdUECE/Unifor,


2006.

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NILDO VIANA é Professor da Faculdade de Ciências Sociais/


UFG; Graduado em Ciências Sociais/UFG; Especialista
em Filosofia/UCB; Mestre em Filosofia/UFG; Mestre em
Sociologia/UnB; Doutor em Sociologia/UnB; Autor de
diversos livros, entre os quais Introdução à Sociologia (2ª
edição, Belo Horizonte, Autêntica, 2011); A Esfera Artística
– Marx, Weber, Bourdieu e a Sociologia da Arte (2ª edição,
Porto Alegre, Zouk, 2011); A Consciência da História (2ª
edição, Rio de Janeiro, Achiamé, 2007), entre outros.
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agosto - 2011

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