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ARTIGO ACADÊMICO
DEBORD: ESPETÁCULO,
FETICHISMO E
ABSTRATIFICAÇÃO
POR Nildo Viana
nildoviana@ymail.com
Universidade Federal de Goiás
Resumo: O presente artigo discute a obra de Guy Debord, analisando seus elementos fundamentais, seus limites e, ainda,
seu valor e atualidade. Para realizar esse objetivo, realiza uma análise da obra A Sociedade do Espetáculo e, após isto,
discute alguns limites, principalmente a abstratificação presente nela, elemento sem o qual uma justa avaliação seria
impossibilitada, inclusive perceber seu alcance atual e valor para entender a sociedade contemporânea.
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humana da abstração existe desde a historicidade) e suas relações (a
aurora dos tempos, quando emerge totalidade). Esse ocultamento se
a razão humana (Fromm, 1976). reproduz na obra de Debord, pois ele
Porém, segundo Fromm, a sociedade mostra a emergência e dominância
capitalista promove um processo da sociedade espetacular, da imensa
crescente de abstratificação, na acumulação de espetáculos, mas
qual a abstração como capacidade não sua produção, seu processo de
humana é substituída por uma forma constituição.
deformada da mesma4 . Segundo Ao parafrasear Marx, que aponta
Fromm: o capitalismo como imensa
acumulação de mercadorias,
“Há duas maneiras da pessoa apenas reproduz o que este afirma
relacionar-se com um objeto:
substituindo a mercadoria pela ideia
podemos relacionar-nos com
ele em sua plena constituição de imagens, de espetáculo. Em que
material; então o objeto aparece pese essas duas coisas não sejam
com todas as suas qualidades contraditórias, o problema reside que
específicas, e não há nenhum outro Marx afirma que isso é “à primeira
objeto idêntico a ele. E podemos
vista”, ou seja, numa percepção
relacionar-nos com um objeto de
um modo abstrato, isto é, levando superficial da realidade e por isso ele
em conta somente as qualidades passa a explicar o que é mercadoria,
que ele tem em comum com todos qual seu processo real de produção
os demais objetos do mesmo e relação com a totalidade da
gênero, com o que se acentuam
sociedade capitalista. Marx vai além
certas qualidades e se ignoram
outras. A relação plena e produtiva do fetichismo, pois caso contrário o
com um objeto compreende esta reproduziria.
polaridade de percebê-lo em sua Debord, ao contrário, se contenta
singularidade e, ao mesmo tempo, em descrever o espetáculo, mostrar
em sua generalidade, em sua plena
suas formas e não mostra, em seu
constituição material e, ao mesmo
tempo, em sua abstração” (Fromm, livro, o processo real de constituição
1976, p. 118). do espetáculo, que remeteria para a
produção de mais-valor e, portanto,
A tese de Debord aponta para para a questão das classes sociais
um reconhecimento correto – algo relativamente ausente em
da generalização do fetichismo sua análise. As classes aparecem e
da mercadoria, que passa a se desaparecem ao mesmo tempo. O
manifestar como fetichismo da proletariado aparece como sujeito
arte, da ciência, etc. e nesse mundo revolucionário, mas não se explicita
fetichista, tudo vira fetiche. Porém, como e por qual motivo ele o é ou como
a consciência fetichista representa continua sendo. A representação
a realidade de forma reificada. Esta reificada atinge a todos, inclusive o
representação, como diz Debord, é proletariado. Resta saber como e por
representação reificada. O acúmulo qual motivo ele pode superar isso. Os
de imagens domina a sociedade conselhos operários rompem com
capitalista. A ideia, em si, não é a representação e separação, mas
problemática e sim a forma como é como e por qual motivo eles surgem?
apresentada e o que fica oculto. Uma O oculto aqui é a produção de mais-
das características do fetichismo valor e, junto com ela, as classes
é justamente ocultar o processo fundamentais do capitalismo. Ao
de constituição do fenômeno (sua
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mesmo tempo, tudo que é derivado ele aumenta seu valor de troca,
disso (não apenas o fetichismo, mas tanto pelo acréscimo simples das
horas de trabalho dedicadas à
a reprodução ampliada do capital, formação especializada, como pela
concentração, centralização, etc.). introdução do valor simbólico que,
sob as relações espetaculares, a
Assim, ao ultrapassar o economicismo hierarquia do trabalho intelectual
e atingir a vida cotidiana e sua sempre supõe. Um livro, este livro,
é, do ponto de vista do valor de
essência mercantil-consumista há troca, uma expressão da ‘separação
um avanço, mas ao não analisar o consumada’ da qual nos fala
processo de produção e constituição Emiliano Aquino, expondo Debord”
dessa situação, separa o espetáculo, (Amaral, 2006, p. 19).
o mundo mercantil e consumista, da
produção, da história. Essa separação, Na verdade, aqui falta o concreto em
criticada mas reproduzida por favor da abstratificação da realidade.
Debord, cria uma autonomização. O O valor de troca de um livro não
modo de produção capitalista e sua aumenta devido financiamento
dinâmica de reprodução ampliada estatal. Somente uma análise
que produz a necessidade de concreta pode resolver isso, mas a
reprodução ampliada do mercado tendência é justamente o contrário.
consumidor é fundamental e não Quando há financiamento estatal,
pode ser deixado de lado em o livro – e em muitos casos é isso
qualquer análise do capitalismo. que ocorre – pode ser distribuído
Assim, caímos na possibilidade até gratuitamente. Vários livros são
de interpretações equivocadas de distribuídos gratuitamente e a razão
Debord, sob várias formas, algumas disso, ausente na análise acima, é
aproveitando da abstração e falta de que quando o Estado financia uma
precisão conceitual para conquistá- publicação ocorre uma transferência
lo para suas teses, deformando de mais-valor (produzida na
sua análise (Jappe, 2008) e outros produção material de mercadorias e
ficando no reino da abstratificação drenada pelo Estado sob a forma de
denunciada por Fromm (1976). Isso imposto, etc.) dele para quem produz
tanto é verdade que alguns chegam o livro (uma gráfica ou editora) que,
ao ponto de pensar que as ideias por sua vez, retira daí os seus gastos
criam valor (de troca): com capital fixo e variável (meios
de produção e matérias-primas, por
“Tal crítica supõe em Debord, um lado, e salários, por outro), e
como já antes supusera em Marx, a entrega a mercadoria para o Estado
assunção da natureza contraditória ou qualquer outra instituição estatal,
das relações fetichistas como que não terá que recuperar (parcial
determinação central do mundo
moderno, contradição nucleada na ou total) o que foi gasto. Da mesma
relação entre valor de uso e valor de forma, a formação especializada
troca inscrita na forma-mercadoria. e o “valor simbólico” da hierarquia
Deste modo, e segundo as reflexões do trabalho intelectual não fazem
por ele mesmo apresentadas, aumentar o valor de troca de um
um livro e este livro, nas atuais
condições sociais de produção, é livro. Na verdade, o livro é uma
necessariamente uma mercadoria. mercadoria, algo material, e seu valor
Se este livro se origina do é medido não pelas ideias ou tempo
financiamento estatal e da aprovação para produzir as ideias presentes
das instituições universitárias, nele, e sim pelo tempo de trabalho
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socialmente necessário para produzir a totalidade que ele apresenta
o objeto material que é o livro e é abstrata e sua linguagem é
quem produz tal objeto é o proletário igualmente abstrata e por isso a
que é explorado nesse processo, já dificuldade de leitura de sua obra e
que seu trabalho excedente não é ampla possibilidade das mais variadas
remunerado. interpretações. E, apesar da recusa
Assim, é o trabalho incorporado que total e da retomada da totalidade,
determina o valor da mercadoria e é ele focaliza o consumo, o valor de
por isso que, quando uma gráfica faz troca, a imagem, o espetáculo, ao
orçamento de um livro, não pergunta invés de trabalhar a produção do
a titulação do autor e nem quanto “espetáculo” e tudo o mais que
tempo demorou para escrever aborda. É o que Kosik denominou
um livro e sim quantas páginas “totalidade abstrata” (Kosik, 1986).
(matéria-prima, que entra no custo Assim, o que é relativo em Debord
de produção, significando trabalho se torna absoluto em alguns de seus
morto, materializado em meios de intérpretes, que trocam a análise da
produção), quantos exemplares, etc. realidade concreta por um mundo
serão impressos. Esse exemplo acima aparente e fenomênico, o “mundo da
é para mostrar como a abstratificacao pseudoconcreticidade” (Kosik, 1986).
pode significar um abandono da Em Debord o modo de produção fica
realidade concreta em favor do subentendido (e, de qualquer forma,
mundo das ideias, do fetichismo, que secundarizado), e nos seus intérpretes
aparenta ser gerador de valor. é abandonado ou reduzido ao
A ideia de que a representação momento do mercado, onde Marx é
reificada é o grande problema a substituído por Adam Smith e a “mão
ser combatido e que ocorre uma invisível do mercado”. A superação
autonomização do valor de troca é do economicismo não se dá pela
uma ideologia, no sentido marxista do desconsideração ou secundarização
termo (falsa consciência sistemática), do modo de produção e sim pelo
pois deixa de lado um elemento reconhecimento do real significado
fundamental da mercadoria: ela é deste termo e de seu significado na
produto do trabalho humano e o totalidade da sociedade em questão
“trabalho abstrato” é apenas uma (Viana, 2007b).
parte de sua realidade e a parte A questão da abstratificacao está
fundamental, ocultada por ele, é presente em Debord e é exagerada
que em toda mercadoria há trabalho em seus intérpretes a tal ponto que o
incorporado nela, o que determina concreto desaparece e o fetichismo se
seu valor. Obviamente que Debord torna a realidade. Nesse último caso,
dá margem para estas interpretações, temos um fetichismo do fetichismo.
mas ele não afirmou exatamente A consciência fetichista deixa de
isto. Porém, a possibilidade de ser consciência para ser realidade
apropriação, de forma relativamente e logo, deixa de ser representação
convincente, do seu pensamento ilusória para ser verdadeira e assim
por estas interpretações, mostra representação e realidade se fundem.
um problema real em sua análise, a O fetichismo não é mais – nessa
abstratificacao. ideologia – uma inversão da realidade
A separação é criticada por Debord e sim sua expressão e, sendo assim,
e a vida cotidiana, a totalidade o dinheiro, a mercadoria, o valor de
reaparece, o que é um mérito. Porém, troca é o essencial e é isso que tem
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que ser combatido. O modo de produção que gera tudo isso não
tem mais importância, as classes sociais e suas lutas deixam de ser
o motor da história, e Marx é substituído por Adam Smith.
Esse retrocesso intelectual, porém, não é gratuito, tem seu
próprio processo de produção, que não poderemos nos ocupar
dele no presente artigo. A consciência fetichista se funde com
a realidade tornada fetichista e assim, se ainda permanece o
desejo de transformação social, o combate é ao fetichismo e a
produção do fetichismo foi esquecida. Este é o procedimento
típico da consciência fetichista e, portanto, transforma-se, mais
uma vez, o marxismo em ideologia. A concepção teórica do
fetichismo é substituída pela concepção ideológica e os críticos
do fetichismo fetichizado são apenas outros fetichistas a mais, se
dizendo “esquerdistas” e “revolucionários”. A crítica do fetichismo
se tornou fetichista e abandonou seu caráter crítico, tornando-se
um superficialismo abstratificante.
Porém, independentemente disso, a obra de Debord assume uma
radicalidade e potencial crítico que é uma das melhores análises do
capitalismo que emergiu após a Segunda Guerra Mundial. Assim, a
obra A Sociedade do Espetáculo mantém seu valor e atualidade. O
seu valor reside em focalizar em sua análise um derivado do modo
de produção capitalista que é a expansão do consumo e das formas
como ele assume e das imagens criadas por ele, o que denominou
espetáculo (sem analisar o processo histórico que engendra essa
situação, mas por questão de foco analítico). Isso, por sua vez,
tem ressonância na análise do processo comunicacional, pois no
próprio cerne de sua análise do espetáculo se encontra o problema
da comunicação, da separação e do isolamento. A comunicação
cotidiana é atingida pela separação e fim do diálogo, a comunicação
via meios tecnológicos é cada vez mais espetacular.
A sua atualidade reside em que tal análise se mantém válida, pois
o desenvolvimento do capitalismo reproduz essa situação, embora
trazendo novos elementos a partir da década de 1980 e esboçada
nos anos 1970, quando emerge o regime de acumulação integral
(Viana, 2009). A crítica abre espaço para a ação, e, na época em
que o espetáculo e o fetichismo invadem tudo, inclusive a obra de
Debord, este reconhecimento é fundamental. Daí a importância de
Debord na atualidade e seu valor.
NOTAS
1- Debord é um dos teóricos que defendem que o regime da antiga União Soviética, Leste Europeu, China,
Albânia, etc., era um capitalismo de estado, não tendo nada a ver com uma sociedade autenticamente
socialista. Os primeiros defensores desta tese foram os esquerdistas russos de oposição ao bolchevismo
e os esquerdistas alemães, holandeses e italianos, duramente criticados por Lênin, em O Esquerdismo,
A Doença Infantil do Comunismo (1986).
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3- A obra de Debord foi interpretada de forma equivocada por diversos autores. Anselm Jappe
chama a atenção para isso ao colocar o exemplo daqueles que colocaram a obra de Debord
como sendo uma crítica aos meios de comunicação – a mídia, sendo que se trata de algo bem
mais amplo (Jappe, 2008). Assim, Debord seria um dos poucos que teria sua obra “aproveitada
de modo tão deformado” (Jappe, 2008, p. 12). Tragicamente, a interpretação de Jappe é também
uma deformação, pois ao invés de compreender o autor através da análise do processo genético
e totalidade de sua exposição, mistura o que o autor diz com o que ele – o intérprete – acredita e
assim mescla a ideologia de Robert Kurz e do grupo Krisis com as teses de Debord, transformando-o
no que não é. Uma crítica moderada e com alguns equívocos à interpretação de Jappe pode ser
vista em Aquino (2006)
4- Marx não desenvolveu nenhuma análise aprofundada sobre isso, mas sempre distinguiu a
abstração dialética, a que ele propunha em seu método dialético (Marx, 1983) e a abstração
metafísica, que ele criticava. No seu texto sobre método dialético, ele coloca a necessidade da
abstração (dialética) e, ao mesmo tempo, coloca o problema da abstração (metafísica), tal como
no seu exemplo sobre a “população”, analisada sem divisão social do trabalho, classes sociais, etc.
REFERÊNCIAS
AMARAL, Ilana. Para Além do Espetáculo (Ou: dos possíveis valores dessa obra). In: AQUINO,
João Emiliano. Reificação e Linguagem em Guy Debord. Fortaleza: EdUECE/Unifor, 2006.
FROMM, Erich. Psicanálise da Sociedade Contemporânea. 8ª Ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1976.
_______, Erich. Ter ou Ser? 10a Ed., Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. 4ª Ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra 1986.
LEFEBVRE, Henri. A Vida Cotidiana no Mundo Moderno. São Paulo: Ática, 1990.
_______, Henri. Introdução à Modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.
LÊNIN, W. O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo. 6ª Ed., São Paulo: Global, 1986.
MARX, K. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
_______, Karl. O Capital. 3a edição, vol. 1, São Paulo: Nova Cultural, 1988.
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