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Góticos, a vida em preto

GUSTAVO VILLELA, JANAÍNA SANTOS, KARIN DINIZ, MARCELO TORRES E MARIANA MENEZES

oupa preta, crucifixo no pescoço, rosto páli- Renascença, surgiu o entusiasmo pela Antiguidade
do, expressão triste. Seria ele de uma seita Clássica e o desprezo pela Idade Média, considera-
satânica, um padre, ou um louco? Nada da bárbara e obscura. Os godos faziam parte de
disso. Este é o estilo de um gótico, tribo que uma antiga tribo germânica de bárbaros e, portan-
a cada dia ganha mais adeptos. Carregados de pre- to, denominar a “obra francesa” como gótica (o
conceitos, os góticos constituem uma “subcultura” nome provém dos godos) era dar a esta arte um
mal compreendida, que foi adotada por muitos sentido pejorativo.
jovens brasileiros. Esta cultura é muito mais uma No entanto, com o movimento romântico do
opção estética do que uma escola artística específica. século XIX os valores do classicismo foram afronta-
E n t retanto, o movimento gótico, que adotou linhas dos e cederam espaço para uma “reabilitação” da
a rquitetônicas com perspectivas verticais, especial- Idade Média e de seu imaginário. Os artistas dessa
mente em catedrais, e concebeu livros sombrios, corrente tornaram-se também responsáveis pelo
pode ser considerada uma corrente da arte. surgimento da gothic novel, literatura normalmente
Historicamente o termo gótico tem sua origem na ambientada em castelos sombrios e ambientes
arte medieval, presente nos séculos XIII e XIV, que tenebrosos.
sucedeu o estilo românico (séculos XI e XII). Esse A arquitetura foi a principal expressão da Arte
estilo conhecido como opus francigenarum ou “obra Gótica, que se propagou por diversas regiões, sobre-
francesa”, entrou em decadência quando, com a tudo com as construções de imponentes igrejas,

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Mudanças corporais também fazem parte da subcultura gótica

sendo a de Notre Dame, em Paris, a mais conheci- No interior do movimento pós-punk, subestilo musi-
da. Essas construções refletiam a crença na existên- cal do rock, existem as mais representativas bandas do
cia de um Deus superior, por isso a projeção para o chamado “estilo gótico”, com suas canções sobre
céu, o arco em ponta, as ogivas, as histórias melancolia, desespero, abandono e decepções
sagradas re p resentadas em vi- amorosas. A consolidação do góti-
A consolidação do gótico
trais, a desmaterialização das co enquanto gênero musical, no
paredes e a atenção com a dis- enquanto gênero musical, no entanto, deu-se com o gru p o
tribuição da luz no espaço. entanto, deu-se com o gru p o Bauhaus e seu primeiro single, que
Paralelamente à arquitetura das
Bauhaus e seu primeiro single, fazia alusão à morte, morcegos e
i g rejas desenvolveu-se a escul- vampiros.
tura gótica. Presente nas fa- que fazia alusão à mort e, A sonoridade pulsante e anár-
chadas e portais das catedrais e morcegos e vampiro s quica, temperada com partículas
que se caracterizava pelo natu- de música erudita, e mesclada a
ralismo e pela tentativa de expressar a beleza ideal elementos sombrios de introspecção, demarcaria
do divino. esse estilo. Dentre os representantes do gênero,
destacam-se: The Sisters of Mercy, Siouxsie Sioux,
A música e a literatura Anja Howe, The Cure e outros. A partir da metade
Mais recentemente, a música também surgiu da década de 1990, começam a surgir bandas que
como uma grande influência do estilo gótico, no usam a morte e os sentimentos profundos do ser
final da década de 1970 e início de 1980, a raiva e humano como tema, mas estas foram intituladas
a agressividade, que incendiavam o movimento como gothic metal e doom.
punk, começaram a ceder lugar a uma profunda A literatura também tem um papel import a n t e
depressão, um sentimento de insatisfação, além da quando se trata de góticos. Inspirados pelo Ro-
falta de perspectiva do outro. O porta voz destes mantismo e com a intenção de se contrapor aos
angustiados vai surgir, então, em Manchester, na valores da sociedade burguesa, o movimento
Inglaterra. Ian Curtis e sua banda Joy Division são “ressuscitou” em suas páginas o ambiente da
os primeiros a transformar essa melancolia e Idade Média. Satanismo, mistério, morte, sonho,
desilusão em música. Ian suicidou-se em 18 de loucura e degradação são temas re c o rrentes nas
maio de 1980, dois dias antes da turnê do Joy obras cultuadas pelos góticos. Como as primeiras
Division pelos EUA. publicações do gênero, no século XVIII, eram

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estendeu por mais de 20 anos (1964 a 1985), condi-
cionou grande parte da produção artística, cos-
tumes e comportamentos sociais.
Nas grandes metrópoles brasileiras, até mesmo o
termo gótico chegou com certo atraso, passando a
ser aplicado a partir de 1985-86, se popularizando
p ro g ressivamente até substituir o termo dark (até
1989-90), que era usado apenas no Brasil (em outro
sentido, na Itália, como angolo dark ou dark inglês).
Essa transformação teve a ajuda da Rede Globo com
a novela De corpo e alma, escrita por Glória Perez,
em 1992. No elenco o ator Eri Johnson re p re s e n t a v a
um gótico com o personagem Reginaldo Freitas, que
usava roupas pretas e tinha seu quarto decorado
por paredes escuras e um crânio. Influenciado pela
mídia, o termo dark s o f reu uma transformação e
passou a ser conhecido como gótico.
Hoje, existem festas e encontros que reúnem essa
tribo espalhadas por todo o Brasil. Festas como a
DDK (Deutschland Dancefloor Klub) no Rio de Janeiro,
misturam música, costumes e estilos góticos. “A
DDK surgiu em 2003 como uma inovação para o
Usar roupa preta é um dos sinais da identidade gótica meio artístico cultural, novidades musicais vindas
de diferentes países, que passaram a ser introduzi-
ambientadas em castelos medievais sombrios, foi das na festa, o que fez com que ganhássemos rapi-
usada a expressão “gótica” para definir essa tradição. damente um público fiel” comenta o DJ Fester, um
Um exemplo clássico é Notre-Dame de Paris, de Victor dos organizadores do evento.
Hugo (1831), no qual Quasímodo, o protagonista cor- Além de contar com músicas como ro c k, dark eletro
cunda, tem um aspecto monstruoso e vive recluso na e outras tendências, durante a festa são realizadas
Catedral de Nossa Senhora, em Paris, uma tradicional exibições de filmes raros, animes, clássicos do
construção gótica. e x p ressionismo alemão,
Mas o livro precursor do gothic novel é O castelo de vídeo clipes, festivais e
Otranto (1764) do inglês Horace Walpole (1717-1797). shows de bandas. “Na DJ Fester
O enredo gira em torno de um castelo, apropriado v e rdade a DDK é bem
indevidamente pelo príncipe Manfred, que é impedi- democrática, recebemos
do de ter a posse definitiva do lugar devido a uma não só góticos, como
antiga maldição. Outros autores que fazem parte da pessoas de várias tribos”
biblioteca de um gótico são William Beckford (1760- a f i rma Fester.
1844), Ann Radcliffe (1764-1823), Gregory Lewis Outro ponto de encon-
(1775-1818) e Edgar Allan Poe (1809-1849). No Brasil, tro são os cemitérios,
essa tradição é re p resentada por algumas obras de que apesar de serem
Álvares de Azevedo, Augusto dos Anjos, Bern a rd o socialmente repudiados,
Guimarães e Junqueira Fre i re, essencialmente. são para os góticos um
lugar de contemplação
Góticos no Brasil da arte, um espaço para
No Brasil, a subcultura gótica desenvolveu-se fora leitura de poesias e
do contexto original. A ditadura brasileira, que se reclusão.

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Ser gótico
Andar de preto, fre q ü e n t a r
cemitérios, não gostar de praia.
Os góticos são sempre vistos
como “pessoas estranhas”, dro-
gados ou loucos. No entanto, essa
subcultura agrega mais valores
do que se pode imaginar. O vestir
preto é apenas uma pequena
parte de um todo pouco conheci-
do.
“E se o mundo é hipócrita e
falso, se estamos fadados a viver
nele, o que fazer senão abraçar
nosso próprio sofrimento e torná-
lo belo? Aí entra a arte como
canalizadora de uma torrente de
sentimentos reprimidos”, desa- O comportamento “desviante” dos góticos está sendo assimilado pela cultura
bafa o gótico Jonas Louzada. O dominante?
estilo de vida gótico engloba a
arte como sua fonte de existên- necessidade de acompanhamen- Para Jonas, ser gótico é mais do
cia, tendo os livros e a música to de um terapeuta e até de uma que banalizar a cor preta, é ter
como suas grandes fontes inspi- medicação. Não achava normal tudo “preto no branco”, um ser
radoras. minha filha só se vestir assim, individualista que busca em si as
Assumir um visual e uma vida ficar trancada no quarto e ficar respostas existencialistas. No en-
desviante pode gerar repulsa e ouvindo músicas melancólicas. tanto, essa filosofia de vida se
preconceito, às vezes dentro da Na época foi uma decepção, p e rde perante um mundo cada
própria casa. “Quando eu me p r i m e i ro porque eu tinha ver- vez mais modista. “A subcultura
descobri gótica minha vida gonha dela, depois porque quan- que começou como reação ao
mudou completamente. Eu do nasce uma menina esperamos padrão estético-comercial se
assumi esse sentimento e isso co- sempre colocar lacinhos rosas e t o rnou uma febre na mídia e nos
meçou a refletir na minha salto. Não consigo aceitar esse jovens do mundo. O preto se
aparência e na minha forma de jeito e me pergunto se errei em banalizou. O tempo e a pouca
pensar. Meus pais achavam que algum lugar. Eu não aceito”, i n f o rmação fizeram com que mi-
eu era doente por só andar de argumenta a mãe de N. l h a res de jovens deturpassem a
p reto e querer ficar sozinha. Para o psicólogo Leo Wainer, cultura em centenas de caminhos
Minha mãe chorava e eu me existe uma necessidade de per- d i f e rentes. Eles discutem entre si
sentia cada vez mais re j e i t a d a . tencimento entre os seres hu- quem é mais gótico que quem.
Hoje está melhor, mas é difícil manos; sempre buscamos nos Chegamos a um ponto em que é
uma convivência harm ô n i c a identificar com um determinado impraticável definir o gótico
com o resto da família” de- grupo e dele fazer parte. “Hoje como cultura, visto que há muitos
sabafa N. Gonçalves de 21 existe a tribo mundial ‘filhos da pontos de vista sobre o assunto.
anos. globalização’, talvez as tribos Somos um bando de indivíduos
Para os pais é ainda mais com- sejam uma tentativa de fugir distintos, ligados entre si por algu-
plicado. Presos ao conservadoris- disso e criar um maior individu- ma coisa, e nunca se chegará a
mo de sua geração, estranham o alismo, uma interiorização do um consenso sobre o que essa
comportamento do filho e pas- seu próprio ser”, reflete Leo. Se as coisa realmente é. Estamos sem
sam à agressão verbal e senti- palavras já não bastam para rumo, perdidos, e lentamente
mental. “Quando N. começou quebrar o conservadorismo vi- sendo assimilados pela cultura
com essa história de gótico eu gente, criam-se tribos e costumes vigente. Às vezes acho que nos
pensei: a minha filha está louca. diferenciados na tentativa de dias de hoje o verd a d e i ro gótico
Conversei com o pai dela sobre a mudança. deveria usar rosa choque”.

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