A história do comandante do exército do rei da Síria, Naamã, é
bastante singular e lança muita luz sobre o tema desta edição, principalmente quanto à necessidade de reconsiderarmos nossa relação com o trabalho. O texto de 2 Reis 5.1-19 nos mostra que ele “era grande homem diante de seu senhor e de muito conceito, porque por ele o Senhor dera vitória à Síria; era ele herói de guerra…” (v.1). Naamã era um militar exemplar, idôneo, respeitado, sensato no cumprimento de suas atribuições. Tudo isso não passou despercebido aos olhos de seu soberano. Sua fama era irrepreensível. Seu zelo e excelência no serviço que dedicava ao seu país e ao seu rei estavam muito acima da linha da mediocridade. Estamos diante de um homem sincero, abnegado, objeto, inclusive, da benevolência de seu senhor, pois, não obstante seu caráter irretocável, trazia no corpo as marcas de uma condenação: era leproso.
No entanto, outro par de olhos estava posto sobre Naamã: o de Deus.
Assim como em Atos 10 ficamos sabendo que as esmolas de Cornélio subiram aos céus como oferta de lembrança (v.4), aqui em 2 Reis 5 verificamos como o exercício competente, íntegro, honrado das funções de Naamã chamaram a atenção de Deus. As obras do siro à frente do exército de seu país falavam de uma personalidade e de uma disposição de espírito elevadas, talvez em resposta à revelação geral de Deus derramada sobre a humanidade e que achou na consciência deste homem um acolhimento (ver Rm 1.20; 2.15). Naamã revelava, no desempenho de suas responsabilidades, uma sede, ainda que difusa, do verdadeiro Deus, necessidade que o deus pagão Rimom, a cujo templo ele ia com frequência, não poderia dar conta de satisfazer.
Desejoso de se encontrar com Naamã, Deus começa a movimentar a
história. Numa das incursões dos siros à terra de Israel, uma menina é levada cativa e colocada ao serviço da esposa de Naamã. Tão logo a menina se ambienta ao novo lar, mostra para o que viera: sugere à sua senhora que a doença de seu marido pode ter solução se ele for levado diante do profeta de Samaria. O alarme está dado. Numa sucessão de providências, o soberano da Síria envia seu caro general ao território de Israel a fim de se avistar com o rei daquele lugar. Mas Naamã vai parar mesmo diante das portas do profeta Eliseu que, sem recebê-lo, envia-o ao Jordão para uma lavagem de purificação. Não é sem luta que Naamã decide atender o conselho de Eliseu. É Deus mesmo quem está convidando o general à humilhação, ao quebrantamento, à rendição profunda ao seu senhorio. O resultado que se segue é incrível: “e a sua carne se tornou como a carne de uma criança, e ficou limpo” (2 Rs 5.14). Eis o novo nascimento de um homem se concretizando.
Cessou então a desconfiança de Naamã. Não era mais apenas uma
questão de se colocar ao favor de uma outra divindade, de um deus estranho, estrangeiro. Não estava diante de um resgate unicamente exterior, cosmético. Ele se encontrava com o Deus verdadeiro, o responsável pelo fôlego de vida que há no homem. O Deus capaz de transformar abnegação profissional em devoção apaixonada; zelo servil em caráter santificado; dedicação militar e patriótica em adoração radical.
E agora? Como vai ser o dia seguinte lá no
trabalho?
Naamã quer presentear Eliseu, mas diante da recusa do profeta,
carrega dois mulos de terra, pois segundo ele “nunca mais oferecerá este teu servo holocausto nem sacrifício a outros deuses, senão ao Senhor” (2 Rs 5.17). Resta ainda uma preocupação ao oficial siro: “Nisto perdoe o Senhor a teu servo; quando o meu senhor entra na casa de Rimom para ali adorar, e ele se encosta na minha mão, e eu também me tenha de encurvar na casa de Rimom, quando assim me prostrar na casa de Rimom, nisto perdoe o Senhor a teu servo” (v.18). Naamã não sabe como continuar sua vida profissional depois da conversão, sobretudo porque começou a se ver em um ambiente de trabalho hostil e sob um patrão implicado em práticas estranhas à fé com a qual se encontrara.
Colocada de outra maneira, a questão seria: como Naamã, então
convertido, vai se comportar no trabalho, logo ele que desempenha funções agora estranhas à fé que abraçou? Que conselhos daríamos a ele? Que mudasse de emprego? Que pedisse um rebaixamento de função? Que despejasse em cima do chefe suas novas convicções e exigisse dele respeito à liberdade de culto? Não foi a essas escolhas que Eliseu recorreu. Ele simplesmente disse: “Vai em paz” (v.19). Pode parecer, numa leitura distraída, que Eliseu abandonou Naamã à própria sorte. Não! Eliseu pacificou o coração do gentio. Não era necessário desesperar-se. Ele deveria continuar fazendo o que sempre fizera, sem qualquer medo de incorrer em contaminação. Que continuasse servindo de “bengala” para o seu rei, que se prostrasse para poder dar sustentação ao idoso soberano, que se mantivesse idôneo, íntegro, irrepreensível no exercício de seu generalato. Fora ali que Deus o alcançara, quando encontrou prazer nas obras que Naamã realizava. Sua vida correta, zelosa, comprometida o distinguiu entre milhares de leprosos de seus dias, inclusive entre os de Israel, como atestou posteriormente Jesus (Lc 4.27). Deus vira tanta nobreza neste coração e não desejava que agora ele passasse a viver uma vida inferior, mediocrizada, regida pelos medos e preconceitos que a religião patrocina. Deus o queria ali, não tinha problema que dentro do templo de Rimom, mas ao lado de seu soberano, testemunhando uma excelência de caráter, agora influenciado pelo encontro com o verdadeiro Deus.
Fugir representaria deixar a religião perpetuar sua “higienização”
inócua, que retira das pessoas o sal que dá sabor aos contextos em que estão plantadas, que sequestra, em nome da manutenção do status quo religioso, as pessoas dos ambientes carentes de influência relevante. Se Eliseu enchesse a cabeça de Naamã de fantasmas, este não passaria de um leproso curado vivendo em Israel, um ex-general galhardo, outrora cheio de bom senso e atitudes nobres, mas agora leproso na alma, confinado, não muito diferente de muitos leprosos que foram incapazes de chamar a atenção do profeta Eliseu.
Naamã significa a esperança de não termos os conteúdos do
evangelho represados, domesticados, experimentados entre quatro paredes. Eliseu estava seguro de que Aquele que possuíra o coração do siro era muito maior do que qualquer manifestação mesquinha que viesse a concorrer contra a sua nova fé. Eliseu sabia que o Deus que esteve durante muito tempo de olho no estrangeiro e movimentou os acontecimentos para se revelar a ele não o devolveria àquela terra para vê-lo sincretizando sua fé com as práticas pagãs. Deus estava muito vivo em Naamã. Por isso Eliseu simplesmente diz: “Vai em paz”.
Chega de paranoia em nossas vidas. Há muito que a religião vacinou
as pessoas contra o evangelho. Digamos um basta a isso! Naamã e Eliseu nos convidam à vida integral, a uma expressão de fé sem reservas, sem xenofobismos nem apartheids religiosos, sem castração doutrinária, a uma vida bela que extravasa todo o conteúdo excelente que recebemos do Filho que, depois de nos impregnar com sua vida e empenhar sua intercessão para que sejamos livres do mal, nos devolve para o mundo, dizendo: “Vai trabalhar em paz”.
Texto publicado originalmente na Revista Impacto – Edição 49 –