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ber tS a SL MALI Ral lie ait Branca Moreira Alves er MeCN Jacqueline Pitanguy } BE Totem aCure (hg O que é FEMINISMO Histérico do movimento feminista: 40 da mulher na sociedade medieval e moderna. jinismo enquanto movimento politico: as primeiras lideres. O movimento sufragista. A luta pelo voto feminino no Brasil bate do feminis ualidade e violéncia, satide, ideologia, formagao } 4 ll e mercado de trabalho. 2 hoje. Abril Oflitural / Brasiliense Agradecemos companheira Leila Linhares Barsted 4s critcas e sugestbes, além do apoio amigo que recebemos dela {de todo 0 Grupo Ceres para este trabalho, (que é frato também de nossasreflexdes sobre o movimento feminista e sobre nds mesmas. INTRODUGAO E diffcil estabelecer uma definigio precisa do que seja feminismo, pois este termo traduz todo lum processo que tem raizes no passado, que se ‘constr6i_ no cotidiano, e que nao tem um ponto predeterminado de chegada. Como todo proceso de transformagao, contém contradigées, avancos, recuos, medose alegrias. (© feminismo ressurge num momento histérico fem que outros movimentos de libertagéo denun- de formas de opressdo que ndo itam ao econdmico, Saindo de seu isolamento, rompendo seu siléncio, movimentos negros, de minorias étnicas, ecologistas, homossexuais, se organizam em torno de sua’ especificidade © se completam na busca da supera¢io das desigual: dades sociais. Esta complementago ngo implica fem uma fusdo de tais movimentos, que mantém ‘Branca M, Alves/ Jacqueline Pltangusy 0 que ¢ Feminismo @ sua autonomia e suas formas proprias de organizacio. Entretanto, nfo so movimentos desvinculados entre si, pois as fontes da discri- minagéo néo so isoladas. Existem, nesse sentido, conexées significativas entre tais _movimentos, que se somam na busca de uma nova sociedade. ‘Ao afirmar que o sexo $ politico, pts contém tanbinek later dee a feet ‘in_ot_modalos politica, tradicional aoe atribuem ume nevtraldede ao espaco individual ¢ ue deinen ome pole unkaments see abies, “objetive”. Desta forma, 0 "di i tat _pata_o cardter também subjetivo da opressdo, e para os s emacio- fait_dasonscincle.-rmiala-or- lane ees entig_at_flacées_infemasoal_2-0-oromnizsip police paola. cotnneenie eee oe cuca ee interpessoais_contém também _um componente lia (homens versus mulheres, pais versus filhos, brancos versus negros, patrdes versus operérios, hetero versus homossexuais, etc), enquanto 1t0,_sul € pelo autoritarismo, Assim, 0 movimento femi- niista no se organiza de uma forma centralizada, @ recusa uma disciplina Gnica, imposta a todas as militantes. Caracteriza-se pela auto-organizago das mulheres em suas miltiplas frentes, assim como em grupos pequenos, onde se expressam a8 vivéncias préprias de cada mulher © onde se fortalece a solidariedade. Os pontos de vista e as_iniciativas séo_vélidos néo porque se originem de_uma_ordenacio_central, detentora_de_um “monopélio da verdade”, mas porque sio_fruto da_prética,_do_conhecimento_¢_da_experiéncia ‘espectfica e comum das mulheres, Isto ndo significa que o feminismo no tenha uma organizagdo, Esta se manifesta nos grupos feministas que se mobilizam em torno da promogao de cursos, debates, pesquisas, campanhas, na formacao de centros, editoras, clinicas de sade, SOS, Casas da Mulher, manifestagdes culturais € fas maltiplas outras formas de expresso e prética do movimento. Entretanto, o feminismo néo é apenas 0 movimento organizado, publicamente visivel. se também na esfera doméstica, no s_esferas_ef es recriar prisma_onde_¢_feminino_ngo_seja_o_menos,_o desvalorizado. ‘© feminismo busca repensar e recriar a identi dade de sexo sob uma dtica em que o individuo, ‘eja ele homem ou mulher, nfo tenha que adaptar- se_a modelos hierarquizados, e onde as qualidades Feminine” ou "oneeulInge” salar stbutoe de ee rarer sooo dear eh Honowio. 3 tera pos afiorar sem constran- gimentos nos homens e serem vivenciadas, nas Branca M, Alves Jacqueline Pitanguy mulheres, como atributos desvalorizados, Que as diferengas entre os sexos nfo se traduzam am_relogbes Ge bodar- que parent a ae homens e mulheres em todas as suas dimensées: no trabalho, na participaggo politica, na esfera familiar, etc, Para a realizacio desta proposta no existem respostas_prontas, acabadas, Estas se constroem na reflexdo e na prética deste movimento recente © vivo, cujos rumos se orientam a partir da experiéncia coletiva que se acumula a cada momento. Neste trabalho procurou-se, em simples pince- ladas, recuperar a presenga da mulher na hist6ri ‘ragando-se um esbogo de sua condigio e suas lutas, pouco estudadas pelas ciéncias sociais. De fato, a mulher tem sido uma parte silenciosa da memoria social, ausente dos manuais escolares € dos registros hist6ricos. Neste esboco, a procura de um passado silenciado, abordou-se @ condi¢go da mulher na Grécia e em Roma, na Gélia ena Germania, na_Idade Média e no’ Renascimento. Buscou-se também registrar as primeiras vozes femininas de insurrei¢do, assim como 0 sufragismo @ as formas contemporaneas de organizaglo do feminismo, suas reivindicacdes e seus objetivos. HERANGA DO SILENCIO "Que as mulheres sprendam no stn ‘lo a sua suelo..." ‘Sho Paulo Apéeolo Na Grécia a mulher ocupava posiggo equiva- lente & do escravo no sentido de que to-somente estes executavam trabalhos manuals, extremamente desvalorizados pelo homem livre. Em Atenas ser livre era, primeiramente, ser homem e néo mulher, ser ateniense e no estrangeiro, ser livre € nfo ‘escravo, A afirmacgo de Plato expressa ber esta realidade: “Se @ natureza nio tivesse criado as mulheres e os escravos teria dado 20 tear a propriedade de fiar sozinho’ Tendo como funcio primordial a reprodugo da espécie humana, a mulher néo s6 gerava amamentava e criava os filhos, como produzi Branea M, Alves/ Jacqueline Pitanguy B tudo aquilo que era diretamente ligado a subsis- téncia do homem: fiagio, tecelagem, alimentagdo. Exercia também trabalhos pesados como a extrago de mineraise o trabalho agricola A esa divisio concreta de_atividades corres- Pondiam valoragies diversas. O “fora de casa”, ‘onde se desenvolviam as atividades consideradas mais nobres — filosofia, politica e artes — era © campo masculino ‘Ao afirmar que “os Deuses” criaram a mulher para as fungbes domésticas, 0 homem para todas 4s outras” Xenofonte, no século IV A.C., exprimia um tipo de argumenta¢go naturalista que ainda hhoje demarca espagos para os sexos. Por outro lado, o mesmo Xenofonte, tratando da educagao da mulher, revela o quanto ¢ sociale ‘Soercitive o aprendizado destes fungdes,"naturais”: “"... que viva sob uma estreita vigiléncia, veja o ‘menor niimero de colsas possivel, ouga o menor rndmero de coisas possivel, faga o menor numero de perguntas poss(vel” Estando assim limitado o horizonte da mulher, era ela exclu(da do mundo do pensamento, do conhecimento, tio valorizado pela civilizagdo sgrega. Excegdo feita das hetairas, cortesés cujo cultivo das artes tinha como objetivo torndslas agradéveis companheiras dos homens em seus momentos de lazer, a mulher grega néo.tinha ‘acesso 3 educa¢o intelectual. O unico registro 4 Branca M, Alves/ Jacqueline Pitanguy 15 hhistérico_de_um_centro_para_a_formacio_inte- lectual_da mulher foi a escola fundada por Safo, poetisa_nascida em | no Qs _fragmentos _conhecidos de _poemas seus, cantando os deuses e o amor, justificam colocd-la entre os grandes nomes da literatura da Grécia antiga. No que se refere a civilizagfo romana, seu cédigo legal, por sua vez, legitima, com a insti- tuiggo juridica do paterfamilias, a quem era atribu/do todo 0 poder sobre mulher, filhos, servos, escravos, a discriminago da mulher. Entretanto, 05 discursos_com que diferentes culturas_tém procurado _assegurar_@_ sujeicéo da mulher, revelam, 20 mesmo tempo, adimensio de sua resisténcig. ssim, NO ano 195 D.C., mulheres dirigiam-se a0 ‘Senado Romano protestando contra a sua exclusio do uso dos transportes piblicos — privilégio ‘masculino — e a obrigatoriedade de se locomove- rem a pé. Diante deste protesto assim se manifestou © senador Marco Pércio Cato: “'Lembrem-se do grande trabalho que temos tido para manter nossas mulheres trangiilas e para refrear-thes a licenciosidade, 0 que foi possivel enquanto as leis nos ajudaram. Imaginem o que sucederé, daqui por diante, se tais leis forem revogadas e se as mulheres se puserem, legalmente, considerando, em pé de igualdade com os homens! (s senhores saber como so as mulheres: facam-nas suas iguais, e imediatamente elas quererdo subir tis suas costas para governd-los”. Estas palavras expressam com clareza a relacSo de_poder entre os sexos, No é de complementa: ridade_e sim de dominio e submissa0, de coercéo ¢_resisténcia, que Catéo fala. O Direito aparece, assim, _nitidamente,_come_um_instremento-_de perpetuaco desta _assimetria, legitimando inferioridade da posigo social da mulher romana. Desmistificando a idéia de que a sujeicgo da mulher seja um destino irrevogével, a-histori @ universal, levanta-se a experiéncia da relagéo entre os sexos existente na Gélia ena Germénia Eram estas sociedades tribais, cujo regime comuni- trio designava 4s mulheres um espaco de atuaclo semelhante 20 dos _homens. Conjuntamente, faziam 3 quer’, participavam dos Conselhos Tribais, ocupavam-se da agricultura e do gado, cconstrufam suas casas. As mulheres funcionavam, também, como jufzas, inclusive de homens. Os ronistas romanos, como Técito e Estrabéo, rgistram com surpresa a posicéo da mulher nessas sociedades. Da mesma forma, os cronistas europeus do século XVI, chegando 8 América, se surpreendem com a relevancia da posigio da mulher entre os Iroqueses_e _Hurons, Nestas sociedades de cacadores_e coletores_néo_havia uma_divisio_estrita_entte economia _doméstica @ economia social, Inexistia o controle de um sexo sobre _o outro na_realizacio de tarefas_ou_nas 16 Branca M. Alves Jacqueline Pitanguy 0 que ¢ Feminismo "7 tomadas_de_decisSes._As_mulheres_participavam smente_das_discussdes_em_que_estavam_em jogo os interesses ds comunidade; Durante os primeiros séculos da Idade Média, enquanto no haviam sido reintroduzides os principios da Legislagéo Romana — 0 que ocorre do século XIII em diante — as mulheres gozavam de alguns direitos, garantidos pela lei e pelos costumes. Assim, quase todes as profissBes eram-thes acessiveis, bem como o direito de propriedade e de sucessio. No que se refere 4 atuagéo politica, hé exemplos de mulheres da burguesia participando de assembiias, com direito a voto. Em Bigorre (Franca), desde 0 século XI, existiu o sufrdgio universal, e as mulheres, quando roprietérias, participavam das discussées dos ‘contratos da comunidade. Estudos demogréficos revelam que havia na Idade Média uma disparidade na distribuigio da opulacdo por sexo, com predomindncia do contingente ferninino adulto. De fato, envolvidos fem constantes guerras e longas viagens, ou recolhi- 0s 4 vida mondstica, era freqiente o afastamento dos homens. Em sua ausincia, as mulheres assumiam os neg6cios da. familia, sendo-thes Portanto _necessério entender de_contabilidade € legislagdo, para efetuar com eficiéncia as transa- ges comerciais e defender-se em jufzo, Histori camente, a_maior_participacéo_da_mulher_na esfere_extradoméstica_esteve_sempre_ligada a0, afastamento_do_homem por motivo de guerras. Tal fato se repetiu inclusive nas duas grandes ‘guerras mundiais deste século, quando a mulher participou expressivamente na forca de trabalho. Na dade Média, a mulher participou também das corporagdes ‘de oficios, atuando como aprendiz e, excepcionalmente, por morte do marido, como mestre. O acesso 8s corporagdes significou também a possibilidade de receber instrugdo profissional, direito que ela viria a perder nos séculos posteriores e que seria uma de suas bandeiras de luta. A ascenso da mulher 0 cargo de mestre sofria, no entanto, restrigées, ‘Assim, ela s6 poderia ocupé-lo, quando vidiva, pelo perfodo de um ano, em alguns burgos, ou, fem outros, enquanto no mantivesse relagdes sexuais com outro homem. Hé registros de mulheres exercendo tarefas ditas masculinas, como a serralheria e a carpintari ‘apesar_de que se concentravam sobretudo nas rofissBes “femininas”” como a tecelagem, a costura, 05 bordados. Participavam do comércio, ao lado de seus maridos e, freqientemente, permaneciam ‘como comerciantes apés a sua morte. Por outro lado, a indistria doméstica — ligada principalmente 4’ produgdo de alimentos e a tecelagem —, domi- nada pelas mulheres, era muitas vezes sua principal fonte de renda ou uma complementagao necesséria do orgamento familiar. Podendo, também, exercer © direito de sucessdo, néo era incomum uma 16 Branca M, Alves/Jacqueline Pitanguy 0 que ¢ Feminismo ” tomadas de_decisées. As mulheres participavam ativamente das discusses em que estavam_em foqo os Intresss da comunidad Durante os primeiros séculos da Idade Média, fenquanto no haviam sido reintroduzidos os Prine(pios da Legislaco Romana — 0 que ocorre do século XIII em diante — as mulheres gozavam de alguns direitos, garantidos pela lei e pelos costumes. Assim, quase todas as profissées eram-thes acessiveis, bem como o direito de propriedade e de sucesso. No que se refere atuagdo politica, hd exemplos de mulheres da burguesia participando de assembléias, com direito a voto. Em Bigorre (Franca), desde © século XI, existiu o sufrdgio universal, e as mulheres, quando Proprietérias, participavam das discusses dos contratos da comunidade, Estudos demogréficos revelam que havia na dade Média uma disparidade na distribuiggo da Populacdo por sexo, com predominancia do contingente feminino adulto. De fato, envolvidos: fem constantes guerras e longas viagens, ou recolhi- dos a vida mondstica, era freqiiente o afastamento dos homens. Em ‘sua auséncia, as mulheres assumiam os negécios da familia, sendo-lhes portanto_necessério entender de contabilidade e legislagao, para efetuar com eficiéncia as transa- ges comerciais e defender-se em ju/zo. Histo camente, a_maior_participaco_da_mulher_na jera_extradoméstica_esteve sempre _ligada ao fastamento_do_homem por motivo de guerras. Tal fato se repetiu inclusive nas duas grandes guerras mundiais deste século, quando a mulher participou expressivamente na forca de trabalho, Na Idade Média, a mulher participou também das corporagées de oficios, atuando como aprendiz e, excepcionalmente, por morte do marido, como mestre. O acesso as corporagdes significou também a possibilidade de receber instrugo profissional, que ela viria a perder nos séculos posteriores e que seria uma de suas bandeiras de luta. A ascensio da mulher 40 cargo de mestre sofria, no entanto, restrigdes ‘Assim, ela sé poderia ocupé-lo, quando vidva, pelo perfodo de um ano, em alguns burgos, ou, fem outros, enquanto ngo mantivesse relagdes ssexuais com outro homem, Ha registros de mulheres exercendo tarefas ditas masculinas, como a serralheria e a carpintaria, fapesar_de que se concentravam sobretudo nas profissdes “femininas”” como a tecelagem, a costura, 08 bordados. Participavam do comércio, ao lado de seus maridos e, freqiientemente, permaneciam como comerciantes apés a sua morte. Por outro lado, a indistria doméstica — ligada principalmente 4 produgo de alimentos e a tecelagem —, domi- nada pelas mulheres, era muitas vezes sua principal fonte de renda ou uma complementagdo necesséria do orgamento familiar. Podendo, também, exercer © direito de sucesso, no era incomum uma ii} Branca M, Alves} Jacqueline Pitanguy. herdeira gerir sua propria renda, ainda que casada. Mulheres economicamente auténomas, comercian- tes ou exercendo outras atividades, independente de seu estado civil, aparecem nos anais de corpo: rages ¢ nos registros administrativos, Entretanto, o trabalho feminino sempre recebeu remuneragio inferior a0 do homer. Esta desvalo- Tizago, por outro lado, provocou a hostilidade dos _trabalhadores homens contra 0 tabalho da mulher, pois a competi¢ado rebaixava o nivel salarial_geral. Assim, em determinados periodos, surgiram restriges & participagio da mulher ‘no mercado de’ trabalho, como em Londres, no ano de 1344, quando a corporacdo de alfaiates proibiu seus membros de empregarem mulheres que ndo fossem suas esposas ou filhas. No campo da educagéo, embora minoritari mente, hd. registros de_mulheres frequentando tniversdades. Assim, em Frankfurt, no século XIV, quinze mulheres estudaram medicina e exerceram a profissio, enquanto em Bolonha algumas mutheres formaramse em Medicina e Direito, Ainda no século XIV, uma escritora francesa, Ghristine de Pisan, torna-se a primeira mulher & ser indicada poeta oficial da corte, Pode ser condi derada_como_uma_das_primeiras_feministas, no a_dos direitos da_mulher. itores de renome na época, defendendo a igualdade entre os sexos. Afirmou 0 que ¢ Feminismo 4 necessidade de se dar as meninas uma educagdo lintica a dos meninos: “Se fosse costume mandar as meninas & escola e ensinar-lhes as ciéncias, como se fazem aos meninos, elas aprenderiam dda mesma forma que estes € compreenderiam as sutilezas das artes e ciéncias, tal como eles”. Vidva aos 25 anos, Christine sustentou a fami Iie, dois irmfos e 3 filhos, e manteve-se economi- camente independente por sua profissio de scritora Escreveu_o que seria talvez_o primeiro tratado feminista: A Cidade das Mutheres, onde afirma verem homens e mulheres iguais por sue propria fiatureza. Refuta_as generalizagSes que imputam inferioridade a0 sexo feminino e condena a dupla moral, pela qual_o mesmo ato é crime quando praticado pela mulher e apenas pequeno defeito ‘Quando pelo ‘Apeser da signficativa participago da mulher na vida social e econémica da Idade Média, a idéia que prevaleceu foi a transmitida pelo romantismo dda cavalaria: uma mulher frdgl e indolente, entre- tida em bordados e bandolins, & espera de seu tavaleiro andante. Esta imagem, que_por_um Jado exclui_a grande massa_de mulheres até de ‘uma_representasio-simbéliea—or_outro-raflate uma visio distorcida do que_seria_o gotidiano Se ee tntre_a_posicfo _concreta_da_mulher_na_vidg cotidiana ea representagdo_simbélica_de_ seu 9 20 Branca M, Alves/ Jacqueline Pitanguy DO que ¢ Feminismo a papel. intensa partic ‘da mulher no mercado de ‘trabalho durante a Idade Média néo the conferia no entanto prestigio social posto que, a diferenca do Que aconteceré no Renascimento € na Reforma, 0 trabalho, bem como as artes e 0 conhecimento tific, no eram entéo considerados como valores em si, nem tampouco eram instrumentos de ascensio social. O poder, monopélio da nobreza € do clero, baseava-se na posse da terra e na ascen- déncia espiritual ‘Ao fazer este breve relato da posi¢go da mulher na Idade Média néo se poderia deixar de comentar @ perseguigdo que se abateu entéo sobre ela @ que ficou conhecida como a “capa as bruxas", Neste erfodo, essencialmente teoldgico, a “‘maldigéo biblica de Eva” acompanharia mais que nunca @ mulher. Se bem que exista uma contradigéo interna no pensamento da Igreja medieval no que concerne & posico da mulher, oscilando entre as figuras de Maria, exaltada, e Eva, denegrida, 0 que prevalece na mentalidade eclesiéstica da época € 2 formacio eo triunfo do tabu sexu Eva é responsével pela queda do homem, @ é jerada, portanto, a instigadora do mal Esse estigma, que se propaga por todo 0 sexo) feminino, vem a se traduzir na perseguigo implacével 20 corpo da mulher, tido como fonte: de maleficios. ‘A chamada “caca as bruxas”, verdadeiro geno- @{dio perpetrado contra 0 sexo feminino na Europa # nas Américas — t8 pouco estudado e denun- clado —, ¢ que se iniciou na Idade Média, exacer- jando-sé no século XVI, inicio do Renascimento, parte da heranca de siléncio que recobre a historia da mulher. As mithares de mulheres wassinadas e torturadas (para cada dez bruxas @ontava:se um bruxo) pouco despertaram a uriosidade dos historiadores. Cabe perguntar: fo este genocidio tivesse sido perpetrado essen- Glaimente sobre 0 sexo masculino, no seria ele ‘objeto de andlises mais profundas? ‘A Inquisicdo nfo perseguiu tdo-somente a bruxaria. Também 0s hebreus, considerados hreges, foram duramente atingidos pelos tribunais Wolesiésticos, Esta perseguicgo, a0 contrério da ‘que se abateu sobre a mulher-bruxa, foi no entanto Fogistrada pela historia, Existe, nessa ir mento claro_de_luta pela manutengdo de uma de poder por parte do homem: a mulher ix@,_Supostamente_possuiria_conhe- spavam ao dominio masculino, © proprio discurso cientifico esté impregnado deste estigma. Ambroise Paré, médico e cientista Hlustre do século XVI, vé no organismo feminino prova da inferioridade da mulher: “Porque o fe 0 homem tem externamente a mulher 0 tom internamente, tanto por sua natureza quanto fgimentos que lhe confeririam espacos de atuacio, Branca M. Alves/ Jacqueline Pianguy por sue imbecilidede, que nfo. pode expel ara fora ete pure Acredcar cha fuels fominines tomar as mulheres “Sst vergonhosas quando nuas” e, em relagdo & menstruagdo, afirma: “Porque as mulheres séo de vtaroperatire. 1) wr reapSa eos hana tis alinertapaa reais enetorrs si aa bom, tanto que a maior parte se torna indigesta cow. transfer eniimerotruestes, Gusta mulher sadia se purga e se limpa’’. Francois Rabe- is, outro grande médico, adota idénticas posigées, concluindo que 0 corpo “hstérico”” da” Mie $6 pode conduzite & dosrdem moral Sgieetin wade ads Bae algo ecu e ilere 5a) peer a ee como ua neu mesuina aun aoa @ monopélio do saber e do poder de cura. E o Savoassobretudo peli -peequicks a prey feminine do ato com fervese do stendltnents 203-pa ‘mulher, curandeira_e parts, eens ea eaetan cate Ce Sen ea ¢aabecnone ar eae ae cabo afi reali Gue-o- Tura de Toque do se instaura no século XIV, quando profundas transformagSes econémicas e politicas desestru- turam as bases do modo de produto feudal, pa qual, como foi dito, ‘a mulher participava ativa~ mente. Tais transformagées — mercantilismo, @ formagdo dos Estados Nacionais, @ reintroducdo do Direito Romano — afastam a mulher da esfera publica. Ao mesmo tempo, o poder eclesistico que_se_afirma pela Inquisicgo &essencialmente masculino: progressivamente,_a_mulher_se_viu ifastada da hierarquia e da atuaco nos ritos desta instituiggo_religiosa. Este_alijamento_néo_teria jo realizado sem resisténcia por parte da mulher. mbora seja dificil recuperar os tracos desta tesisténcia, dado o siléncio que recobre este fendmeno, poder-se-ia supor que a busca pela mulher _de_outras_formas_de_conhecimento_e de_atuaco,_castigada_ como “bruxaria”, caracte No que se refere 20 discurso inquisitorial a festreita associagio que este tribunal estabelece entre bruxaria e mulher se explicita pela atribuicao de conotacdes nitidamente sexuais aos ritos do ‘sabé"” — culto a0 deménio: nestes as mulheres eopulariam com o diabo. E portanto_pelo sexo que ela se faz bruxa, sexo este considerado, “por hatureza”, impuroe maléfico, Leonard de Vair, Inquisidor, assim descreve, em 1883, amenstruago, no livro Trois Livres des Charmes, des Sorcelages ‘at Enchantements: ""Mensalmente elas se enchem de elementos supérfluos e o sangue faz exalar vapores que se elevam e passam pela boca, pelas narinas e ‘outros condutos do corpo, lancando feiticos sobre tudo que elas encontram”. Branca M. Alves|Jacqueline Pitanguy Due ¢ Feminismo 3s s wares de mulheres queimadas nfo so distinguiriam das demais por possu(rem uma “natureza diversa". Elas teriam, t8o-somente, exercido determinados maleficios que seri inerentes a qualquer mulher. Era, portanto, @ ‘natureza”” feminina que ardia nas fogueiras que se acenderam pela Idade Média e 0 inicio do Renascimento, “Se hoje queimamos as bruxas, ¢ por causa de seu sexo feminino”, diz Jacques Sprenger, inquisidor e te6rico da demonologia, que publica, no final do século XV, um manual de base do cagador de bruxas, 0 Malleus Maleficarum, no qual se remete 20s textos, sagrados para comprovar a inferioridade feminina, Afirma assim qi “A mulher & mais carnal que 0 homem; vemos isto por suas miltiplas torpezas... . Existe um defeito na formago da primeira mulher, pols ela foi feita de uma costela curva, torta, colo- cada em oposico a0 homem. Ela é, assim, um ser vivo imperfeito, sempre enganador”, ‘Ao longo do século XVI se sucederam demo- n6logos lancando sobre a mulher a suspeita de satanismo. Um destes, Nicolas Remy, se jactava de haver mandado queimar 900 bruxas, Q adventa do_protestantismo _ngo_significou_uma do__protestantismo _néo_significou_uma_queda hnesia_perseauicéo. Ao contrério, tanto Lutero quanto Calvino _aderiram_a_mesma, apoiados_na_ boo indo alguns autores chegou-se mesmo 0 estabelecer_uma _competico_ent roligibes Jules Michelet, em Sobre as Feiticeiras, trans- reve ndmeros estarrecedores: por ordem de seu bispo, a cidade de Genebra queimou, no ano 1515, em apenas 3 meses, nada menos que 600 mulheres; na Alemanha, 0 Bispado Bamberg ‘queima de uma s6 vez 600, e 0 de Wurtzburgo, 900. As confiss6es eram extrafdas sob tortura f mesmo contra qualquer evidéncia, como afirma Michelet: 0 processo é simples. Comecar por utilizar a tortura para as testemunhas... Extrair a0 ‘acusado, 8 custa de sofrimentos, qualquer confisso... Uma feiticeira confessa ter rou- bado do Cemitério 0 corpo de uma crianca . Desenterram-no e ld 0 encontram dentro do caixio, O Juiz porém resolve, contrariando o que os olhos Ihe dizem, que se trata de uma ‘aparéncia, um engano do Diabo . . . Ela é quei- mada”. Nao apenas_as_instituic6es da Inquisicéo e da ‘medicina_condenam _a_mulher. Discursos_de intelectuais_e _humanistas, como Jean Bodin, twmbém_a estigmatizam como inferior e impura gontribuindo_para_a_justificagéo jca_de jesvalorizagao. - ‘Branca M, Alves/Jacqueline Pitanguy wir © seu espago de atuacéo politica, posto gue esta se realizava sobretudo a nivel comunal, A centralizagio.do poder vai de par mento de mute dct pin, “°° a8 "or outro lado, a reintrodugso da legis romana implcoy uma redueto dos dros OM de mulher. Surgem entforestig6es vo seu drlt de ns por heranca, reger seus prOprios representar-se na Justica, ‘Se durante a Idade Média a mulher atuou em Praticamente todas as profissSes, a partir do fenascimento determinadasatividades vo radativamente tornando-se do. dominio maseu: lino, 20 mesmo tempo que. as Corporagdes de cio se fecham 8 participagéo feminina, & lustamente durante _este_perfodo, quando trabalho se valoriza como Inst mo _instrumento_ de. Tormacd : j0_do mundo pelo homem, que Te Th tamente ~ ° determinadas _profissées, —Profissées,_tece-s@ ‘ambém_toda_uma_ideologia_de_desvaforizagio da.mulher que trabalha. selon, oo feats aaa coe ee ae lor io _do trabalho feminir : D que ¢ Feminismo n rida_concretamente_na_atribuigéo de _menor pagamento a _mSode-obra_feminina_que_& ae cane sae Ties no ooo OS ‘encontra sua légica_no_processo_de fnoumulagao_de_capital, Soret eo do trabalho_da_mulher_(e do menor) cumpre funcdo especiica Nao houve portanto um afastamento da mulher da esfera de trabalho e sim formas proprias de sua incluso na mesma. Ela é totalmente alijada de determinadas atividades, tal como 0 fabrico de cerveja, de velas, e os offcios de serralheria fundigo. Ainda que permaneca de forma significativa ‘em determinados ramos de produgo, como a inddstria da seda e t8xtil em geral (em 1790 a mio-de-obra ocupada na indistria de la na Franca se distribufa da seguinte forma: 45,6% de mulheres, 35% de criancas e 19,3% de homens), desempenha as atividades menos qualificadas e de mais baixa remuneracdo. de tais empecithos a sua participacdo no mercado de trabalho adquire faceta peculiar: a partir do século XVII e sobretudo no século XVIII contin gentes cada vez maiores de mulheres passam 2 fealizar trabalhos a domicilio, contratadas por intermediérios. Este tipo de trabalho ¢ ainda hoje largemente exercido pela méo-de-obra feminina, particularmente na inddstria de confeceao. Vai de par com a valorizacdo da idéia de traba- tho ocorrida neste perfodo, o respeito nascente pela ciéncia e a preocupacdo com a aquisicao Branca M. Alves/ Jacqueline Ptanguy do conhecimento. No entanto, ao mesmo tempo em_que_se_desenvolve_a instrugio_masculina ei vitios niveis, a educacio da mulher sofre revezes, do. fissional, quanto No _da_formaego intelectual. Nao se tem registro de mulheres frequentando universidades até meados do século XIX. Desaparecem as mulheres médicas, cirurgids, advogadas. A obstetricia, como um ramo do conhecimento cientifico 20 ual s6 os homens tinham acesso, vem retirar das mulheres © monopélio da profisséo de parteira, secularmente seu, ‘Ao mesmo tempo em que o ensino piblico e Privado se expande na Europa, a defasagem entre © nimero de escolas masculinas e femininas é enorme: em 1790, na Diocese de Rouen, por exemplo, a relagio entre escolas para meninos ¢ Para meninas € de 4 por 1, Tal defasagem se dé do somente em termos’ quantitativos como também no que se refere a qualidade do ensino ministrado. O currfculo das meninas enfatizave © aprendizado das prendas domésticas e sua escolarizacdo no as preparava para o ensino Superior, que, alids, sequer thes era acess{vel, Nao € de se estranhar, portanto, it yozes_de_contestacio feminina que a historia ‘Moderna _fegistra_se_dirijam justamente contra a dexigualdade savual no aes educagdo e a0 trabalho, O FEMINISMO COMO MOVIMENTO POLITICO Primeiras vozes Na América o século XVII, que antecede a sentes Taeneea's tno ode eee eee een sens arena sie aay 30 Branca M. Alves} Jacqueline Pitanguy. feminina que a Hist6ria Americana registra. Profundamente religiosa, Ann congregou em torno de si uma comunidade que se reunia para ouvir as suas pregagdes. Afirmava que 0 homem @ @ mulher foram criados iguais por Deus, contra- riando assim os dogmas calvinistas da superioridade masculina, Acusada de: “Ter sido mais um marido que uma esposa, um pregador que um ouvinte, uma autoridade que um sidito (...)" e de ter “‘mantido reunies em sua casa,... um fato intolerdvel diante de Deus e impréprio para seu sexo”, foi condenada, em 1637, 20 banimento. No século XVII, a idéia de igualdade de direitos para a mulher, mesmo que téo-somente a nivel do religioso, era ainda intolerdvel, ‘Marcado pela intensa participago das massas nna esfera politica, 0 século seguinte ¢ 0 século das revolugdes. As idéias de liberdade do ci frente 20 arbitrio do Estado e a consciéncia de jue _esta_s6_se_constr6i_com_a participagio do individuo-na_esfera politica, se afirmam enquat rineipios_da_ideologia_liberal,_que_eneontram, ‘na propriedade ua base material Nos Estados Unidos, a luta pela libertacio fez do principio bésico da igualdade a expresso primeira de sua Declaragdo de Independéncia: “Todos os homens foram criados iguais”. Temendo que o conceito de “homem’” contido na Declaraggo abarcasse téo-somente 0 sexo masculino, Abigail 0 quer Feminismo ‘Adams escreve a seu marido, John Quiney Adams, ider de Guerra da Independéncia, uma carta em {que reivindica sejam estendidos a seu sexo aqueles direitos: ... Espero que no novo Cédigo de Leis vooés se lembrem das mulheres e sejam mais generosos que seus antepassados. (...) Se néo for dada especial atencao as mulheres, estamos resolvidas a nos rebelar e no nos considerare- mos obrigadas a cumprir leis, diante das quais indo temos nem voz, nem representacdo”. A resposta sarcéstica de John Quincy Adams ver reafirmar ndo incluséo do sexo feminino (@ de outras minorias) na idéia de igualdade definida pela Declarago de Independéncia uanto 20 seu extraordinério Cédigo de Leis, ‘eu 56 posso rir, Nossa luta, na verdade, afrouxou 05 lacos de autoridade em todo o pafs. Criangas @ aprendizes desobedecem, escolas e universide des se rebelam, indios afrontam seus guardides f@ negros se tornam insolentes com seus senhores. Mas a sua carta é a primeira intimagao de uma outra tribo, mais numerosa e poderosa do que todos estes descontentes (...) Esteja certa, nds somos suficientemente Idcidos para néo abrir mo do nosso sistema masculino”. 0 discurso de John Quincy Adams revela, com inusitada clareza, os limites da ideologia liberal at 32 Branca M. Alves/Jacqueline Pitanguy 0 que €Feminismo 33 conforme delineada_naquele século de ascensio ja_burguesia, Fi excluidos dai ie a jade,_de forma irreversivel — porque em nome do sexo e da raga, fatores biolégicos insupe- réveis — gs mulheres, 0s negros, os indios. A este contingente discriminado, adicionava-se também o homem branco de baixa renda, cuja exclusio no era no entanto irremedidvel jé que, teoricamente, oderia ascender financeiramente e ter direito 20 voto, Na_Franca, neste_mesmo século_marcado por revolugdes, a mulher, que participa _ativamente ‘¢_lado_do_homem_do_processo_revolucionario, 30_lado_do_fomem_do_processo revoluciondtio, 1ndo_vé_também_as conquistas_politicas_estende fem-se_a0_sou sexo, E_neste momento historico gue_os_contrariam, o movimento feminista, na Franga, assume_um di jo, que afirma a.especificidade X ‘As mulheres revolucionérias francesas dirigem-se 4 Assembléia, peticionando a revogago de institu: tos legais que submetem o sexo feminino a0 domfnio masculino. Reivindicam, assim, a mudanea da legislaggo sobre o casamento que, outorgando 20 marido direitos absolutos sobre 0 corpo e (9s bens de sua mulher, aparecethes como uma forma de despotismo’ incompativel com os Principios gerais da Revolucdo Francesa, Em 1789, apresentam Assembléia Nacional um documento no qual afirmam: “Destrusstes os preconceitos do passado, mas permitistes que se mantivesse 0 mais antigo, que ‘exclui dos cargos, das dignidades das honrarias , sobretudo, de sentar-se entre vés, a metade dos habitantes do reino. (...) Destruistes o cetro do despotismo . ..e todos os dias permi is que treze milhdes de escravas suportem as cadeias de treze milhdes de déspotas”. Neste perfodo, sfio_publicadas ras_bro- churas sobre a situacgo da mulher, abordando os temas do_trabalho, da_desiqualdade_legal,_da participacio politica, da prostituicdo, Esta atingia em Paris cifras assustadoras. Segundo registros, no final do século XVIII, para cada 5 mulheres solteiras, uma era prostituta, Olympe de Gouges, escritora jS conhecida na 6poca, por sua defesa dos ideais revolucionérios, sentindo-se profundamente decepcionada a0 constatar que estes ndo inclufam preocupagées com relago a situagdo da mulher, publica, em 1791, um texto intitulado Os Direitos da Mulher @ da Cidadé, no qual afirma: “Diga-me, quem te deu o direito soberano de ‘oprimir 0 meu sexo? (....) Ele quer comandar como déspota'sobre um sexo que recebeu todas as faculdades intelectuais. (.. . ) Esta Revolugao 86 se realizaré quando todas as mulheres tiverem Branca M. Alves/ Jacqueline Pitanguy O que é Feminismo 35 ‘consciéncia do seu destino deplorével © dos direitos que elas perderam na sociedade”, Parafraseando 0 discurso revolucionério, die: “A mulher nasce livre e permanece igual a0 homem em direitos. (....) Esses direitos inalie- ‘dveis e naturais sf0: a liberdade, a propriedade, ‘ soguranca e sobretudo a resisténcia & opressio. (...) 0 exercicio dos direitos naturais da ‘mulher s6 encontra seus limites na tirania que 0 homem exerce sobre ela; essas limitages devem ser reformadas pelas leis da natureza e da razéo”. © discurso de Olympe de Gouges néo é uma critica 20s principios fundamentais do liberalismo. ‘Ao contrério, esté profundamente imbu/do destes prinefpios e é em nome do “‘direito natural” que exige sejam estes estendidos 0 sexo feminino. Este discurso, que prope a insergo da mulher na vida politica e civil em condigéo de igualdade ‘com os homens, tanto de deveres quanto de direitos, serd repetido durante todo 0 século XIX pelas ferinistas, na sua luta pelo sufrdgio.. Olympe de Gouges foi guilhotinada em 3 de novembro de 1793. A sentenca que a condenou ‘acusava‘e de ter querido ser um homem de Estado @ ter esquecido as virtudes préprias @ seu sexo, ‘A ampla participaggo da mulher na vide péblica durante_o_perfodo_revolucionétio_—redigicam menifestos, _mobilizeram-se_em_motins_contra a_carestia, participaram_dos_principais eventos da_Revolucdo,_ formaram_clubes_politicas — reprimida por um decreto de 1795, da Assembiéia Nacional, que a circunscreve ao &mbito doméstico: “"Decreta-se que todas as mulheres se retirardo, até ordem contréria, a seus respectivos domicr. ligs. Aquelas que, uma hora apés a publicagéo do presente decreto estiverem nas ruas, agrupa- das em ndmero maior que cinco, serio disper. sadas por forga das armas e presas até que a tranqiilidade publica retorne a Paris” Feche-se assim, formalmente, o acesso da ‘mulher & participagao na esfera pablica, de acordo, afinal, com 5. proprias idgias de Rousseau — Principal ideslogo da Revolugo — para quem o mundo masculino seria, por natureza, o mundo extemo, @ 0 feminino, 0 mundo interno. Segundo Rousseau, a mulher deveria ser educada e encontrar sua realizagéo “natural” e colocar-se a servigo do homem, desde a inféncia até 8 idade adulta “"Toda a educago das mulheres deve ser relaci nada ao homem. Agradélos, serthes util, fazer- se amada e honrada por eles, educélos quando jovens, cuidé-1os quando adultos, aconselhé-los, ‘consolé-los, tornar-hes a vida til e agraddvel — so esses 03 deveres das mulheres em todos ‘08 tempos e o que Ihes deve ser ensinado desde a infancia’” (Jean Jacques Rousseau). Na Inglaterra Mary Wollstonecraft, defensora dos principios rousseaunianos de respeito 20s 36 Branca M. Alves/ Jacqueline Pitanguy 0 que ¢ Feminismo 37 "direitos naturais” do individuo, porém, levando estas idéias de libertagdo as suas dltimas conse- qiiéncias, destaca-se como uma das mais relevantes vozes da histéria do feminismo. Denunciando as idéias de Rousseau com relagéo @ mulher escreve, em 1792, um livro intitulado Defesa dos Diteitos_da_Mulher, Nele. contesta que existam diferencas “ne Z na intelic ‘de_meninos e meninas. A inferioridade da mulher, sequndo ela, adviria unicamente de sua educacdo, Propde, portanto, que se ofereca as meninas idénticas oportunidades de formacdo intelectual @ desenvolvimento fisico que as existentes para (0s meninos. “Para que a humanidade seja mais perfeita e feliz, é necessdrio que ambos 0s sexos sejam educados segundo os mesmos principios. Mas ‘como seré isso possivel, se apenas a um dos sexos 6 dado o direito 4 razdo? ... ¢ preciso ‘que também_a_mulher_encontre sua virtude onhecimento, o que. vel se for educada com os mesmos objetivos que os do homem, Poraue- é-a-hmnorinea que" Tor a ignorsncia que a tora ferior No século XIX, a consolidago do sistema capi- talista traré conseqUéncias profundas tanto para 0 processo produtivo quanto para a organizacdo do trabalho como um todo, e para a mgo-de-obra feminina, em especial. O sistema de produgio Wile A desvalorizagao da forea de trabalho feminina 38 0 que é Feminism 39 manufatureira e, posteriormente, fabril, 0 desen- volvimento tecnolégico e a introduggo cada vez mais significativa da maquinaria, véo afetar o trabalho feminino, transferindo para as fébricas tarefas antes executadas a domictio, e aumentando enormemente 0 contingente feminino da méo- de-obra operaria, Compartindo com 0 homem as terriveis condi es de trabalho vigentes naquele per‘odo, como jornadas de 14, 16 © até 18 horas, as mulheres (assim como 0s menores) sofrem ainda uma superexploragio advinda das diferencas salariais. Em Paris, 0s saldrios femininos eram em_média de 2,14 francos e os masculinos, de 4,75; na Alemanha, na inddstria do papel, os homens ganhavam’ de 18 a 20 marcos, e as mulheres, de 9 a 12; em Massachusetts, na indstria de calgados, 08 salérios variavam de 37 délares para as mulheres 2-75 para os homens. A justificativa ideol6gica para esta superexploracdo era de que as mulheres necessitavam menos trabalho e menos saldrios do ‘que os homens porque, supostamente, tinham ou everiam ter quem as sustentasse. tina._que_vinha se processando_a_partir_do Benascimento, vem delegarthe, em _goral,_ as fafefas_menos quelificadas e_‘ais_subalternas da produgao fabri. Por outro lado, a desvalorizaglo da forga de trabalho da mulher acarretava um rebaixemento do nivel salarial geral. Desta forma, movimentos ‘operdrios do século pasado repudiaram o ingresso das mulheres no mercado de trabalho, fechando- thes as portas dos sindicatos recém-formados, vendo-as como “concorrentes desleais". L{deres operdrias como Jeanne Deroin e Flora Tristan afirmavam a necessidade de que a mulher se_educasse_e_se_organizasse para defender seus inferesses, proGurando fazer com que as organiza- ‘operérias masculinas compreendessem que estes eram comuns a toda a classe trabalhadora. Jeanne Deroin, operdria francesa autodidata, esereve em 1848 um Curso de Direito Social para {as Mulheres, no qual pretende apontar as préprias mulheres a passividade por elas assumnida: “A mulher, ainda uma escrava, permanece em silencio. (...) Subjugade pelo dom{nio mas culino, ela nem sequer aspira a sua propria libertagdo; © homem & que deve liberté-a” Lutando para que homens e mulheres se consa: grassem em toro da sua condicéo operéria ‘comum, Jeanne elabora um Jeanne elabora um projeto de uma Unido ase ae epee eames Ao promover reuniées para realizacdo desta Unido, Jeanne e seus companheiros foram presos. Apesar Re ice areca ener i eciciecpose heeciaiacoa iad Selecnmalcns actmese iaceonoral age Branca M. Alves/ Jacqueline Ptanguy a em, 40 Branca M, Alves/ Jacqueline Pitanguy O.que ¢ Feminismo 4a nascente movimento por uma lideranga feminina, Jeanne dobra-se 20 preconceito que tanto combs tera, no assumindo a autoria do projet. Contemporanea de Jeanne Deroin, destaca-se a figura de outra \(der operéria, Flora Tristan, que publica, em 1843, um trabalho intitulado Unido Operdria. Planejava a criacéo de centros de orge- nizagdo e educaréo moral, intelectual técnica do operariado, a que chamava “Palécio dos Trabalhadores”. Lutou, ainda, em 1844, pela corganizagéo de uma intemacional do Trabalho. Em uma carta dirigida 20 lider socialista Cons dérant, Flora reconhece ter todos contra si: “Os hhomens, porque reivindico a emancipario das mulheres; 0s proprietérios, porque reivindico a emancipagdo do proletariado”. No século XIX, caracterizado pelos movimentos reivindicat6rios @ revoluciondrios, estruturam-se as bases da teoria socialista, A partir da andlise das relagdes de produgdo do sistema capitalists, entende-se a condigo da mulher como parte das relagBes de exploracdo na sociedade de classes. Neste sentido destacase a contribuigio de dois ‘autores: Friedrich Engels (A Origem da Familia, da Propriedade Privada e do Estado) © August Bebel (A Mulher sob 0 Socialismo). Engels baseia-se em estudos de relagdes familiares em sdades primitives efetuados por antropélogos ‘como Lewis Morgan. Contrapondo estas socieda des, em que a propriedade 6 comunal, em que no existe aparelho de Estado e que seriam regidas ppor lagos de parentesco matrilineares, &s sociedades apitalistas, conclui que a base da inferiorizagio ‘da mulher encontra-se no surgimento da proprie- dade privada, Desta forma, o casamento © a sujeigéo da mulher surgiriam como gerantia para {a transmissfo da propriedade (heranca). ‘Apoiando-se nos argumentos de Engels, Bebel equipara a sujei¢do da mulher & da classe operdria no sistema capitalista, j4 que a causa é comum: © surgimento da propriedade privada. Afirma ssim que “o poder de uma classe sobre a outra terminaré e, com ele, terminaré também 0 poder do homem sobre a mulher Através de uma luta constante por sous direitos, as_mulheres_trabalhadoras_romperam_o_ silencio ¢¢_projetaram suas reivindicacoes na esfera publica. © avanco das lutas operdrias conarega homens e mulheres nas organizagSes sindicais. Com eles fas_mulheres participaram des greves e, como eles, foram vitimas da repressio. O dia 8 de marco, depois proclamado Dia Internacional da Mulher, faz parte desta historia de luta Em 8 de margo de 1857 as operdrias da industria téxtil_ de Nova lorque empreenderam uma marcha pela cidade, protestando contra seus baixos salérios @ reivindicando uma jomada de trabalho de 12 horas. Violentamente reprimidas pela policia, muitas tombaram presas e feridas. Passados 51 anos, no. mesmo dia 8 de marco, em 1908, ainda na Branca M. Alves/ Jacqueline Pitanguy lade de Nova lorque, operdrias novamente saem 4s ruas denunciando as mesmas condicdes degra: dantes de trabalho e acrescentando as suas reivindicagdes a exigéncia de legislagio protetora do trabalho do menor e 0 direito de voto as mulheres. A dentincia da sua situago enquanto trabalhadoras acrescentam a dendncia de sua exclusio da participacdo nas decisdes piblicas enquanto cidadas. O movimento sufragista O século XIX se caracterizou por duas frentes de luta do operariado: a luta por melhores condig6es de trabalho (salério, redugo da jornada, repouso semanal, condi¢des de higiene), e a luta pelos direitos de cidadania (o direito de votar e ser votado sem o critério censitério e a reivindicago de remuneracgo para os cargos do Parlamento, Posto que, como estes nio eram retribu(dos, somente os que tinham altas rendas poderiam desempenhé-tos). © sufrdgio universal foi uma das principals conquistas dos homens da classe trabalhadora Ro final do século pasado, consolidada, dep« de muita luta, por reformas legislativas que elimi- naram o voto qualificado por renda A luta pelo sufrdgio universal, pela ampliaglo Oque Feminismo O direito de votar “a

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