Você está na página 1de 1
a CARLOS DE OLIVETA O ICEBERG (4s Parte) 1) Carta a uma estudante de literatura que me pede dados biogrdficos: ‘Pensando bem nio tenho biografia. Melhor, todo 0 escritor portugués marginalizado sofre biograficamente do que posso denominar com- plexo do iceberg: um tergo visivel, dois tercos debaixo de gua. A parte submersa pelas circuns- ‘tancias que nos impediram de exprimir 0 que pen- samos, de participar na vida piblica, é um peso (quase morto) que dia a dia nos puxa para o fun- do. Entretanto a linha de flutuagSo vai subindo a parte que se vé diminui proporcionalmente. Biografar alguém, a0 que a palavra insinua, consiste em escrever-the a vida: os factos, ot acon- ‘tecimentos, as datas, que a estruturam e balizam. A maior parte disso foi-nos negado, nao chegou portanto a dar-se. Suponha por exemplo um con- gresso de escritores. famos lé, faldvamos ¢ tal- ‘vez disséssemos qualquer coisa importante. Quem sabe? Pelo sim pelo niio evite-se 0 congresso © ‘as suas chatices, decidiram entre si os compac- tos burocratas que tm os congressos dos outros ‘na mao. De modo que foram banidos da nossa biografia um facto, uma data. O iceberg afundou- -se mais uns bons centimetros. Esta acumula¢ao de dados negativos transformou-nos a existén- cia naquilo a que os franceses gostam tanto de chamar a travessia do deserto (aqui solitéria mas solidéria, compreende?). Com as suas tentagbes também, a que se entregaram alguns menos sen- siveis & troca da vida por miragens, de resto na- da sedutoras. A eles, pode-se-Ihes fazer realmen- tea biografia, mas sabe-se que ndo vale a pena. (Os factos abonam pouco a seu favor ¢ as datas sdo para esquecer. ‘Longe de mim a ideia de simular que nou- tras circunstncias me caberia uma riqueza bio- que tinha direito a experiéncia da minha propria liberdade. Oportunidades limpas. Viver, falar, ‘gir, segundo uma consciéncia que nfo julgo te- nebrosa nem pervertida. Verfamos depois o que (que alegria triste assumir como iitima consequén- cia de ser livre a responsabilidade do falbango. ‘Assim, 0 que nos cai sobre os ombros ¢ tenta cempurrar para baixo 0 resto do iceberg é a mio da intolerdincia, escrevendo sempre sua manci- ra a biografia que nlo temos, procurando riscar, sumir 0 que flutua ainda. Com a biografia interior as coisas mudam de figura. Dentro, mandamos nés. Se no po- demos expandir-noslivremente podemos recusar, __ fechar a porta asintrusées, manter a casa lim- pa. Dificil e duro, eu sei. Custa momentos de frandesolldzo. Mas pagando ese tanto‘ pes- soas dormem em paz consigo mesmo. ‘A biografia interior relaciona-se evidente- ‘mente com a historia factual do individuo. A par- te submersa do iceberg, cada vez maior, faz-se também do que no houve em cima, suport 0 peso dos acontecimentos por acontecer, como diria (talvez) Fernanda Pessoa. Chega porém uma altura em que a linha de flutuaco se imobiliza. Por menos que fique de fora ha sempre um val- to visivel. Os iates, 0s paquetes, os grandes bar- ‘cos mercamtes (a navegagao préspera ¢ feliz) tém de considerar: que tal serd a consisténcia da par- teinvisivel? B a cautela pensam duas vezes antes de investir ou seguir. ‘Tocimos no verdadeiro problema. O que ‘vive em nés mesmo irrealizado precisa nestes tem- pos dibios da rijeza da pedra. Orgulho autén- tico. Recusa da conivéncia, do arranjo disfarca- do. Dignidade. Elementos de que se far a vvagarosa teimosia dos sonhos. E entio a partida esti ganha. Pode perd8la o excritor (por outras razées, aliés) mas o homem vence-a de certeza.

Você também pode gostar