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NOTAS SOBRE PRETENSAO E PRESCRICAO NO SISTEMA DO NOVO CODIGO CIVIL BRASILEIRO JOSE CARLOS BARBOSA MOREIRA 1. Pretensio nao é palavra encontradiga na terminologia legal brasileira. Nao a contém o Cédigo Civil de 1916, nem — salvo omissao involuntaria — qualquer das intimeras leis que o modificaram ou que regularam em separado matérias especificas. Ela aparece no texto de diploma recente, a Lei n° 10.352, de 26.12.2001, que deu nova redacio ao art. 527 do Cédigo de Processo Civil, a fim de atribuir ao relator do agravo de instrumento, no tribunal, competéncia para “deferir, em antecipagao de tutela, total ou parcialmente, a pretensdo recursal” (n° III). Logo se vé que o sentido, af, € particular: “ pretensfo recur- sal” nada mais significa que aquilo que o agravante visa a obter mediante o julgamento do recurso. Vem a doutrina, no entanto, de algum tempo para c4, empregando o termo “pretensio”, posto que em geral sem grande preocupagdo de fazé-lo corres- ponder a conceito preciso. Sempre h4, é certo, um trago comum As varias acep¢Oes adotadas: a idéia de exigéncia. Mas ora ressalta a referéncia & posicao juridica de determinada pessoa, ao seu poder de exigir (aspecto subjetivo), ora ao ato que ela pratique (aspecto objetivo), ora, ainda, a ambos os aspectos'. O novo Cédigo Civil, baixado pela Lei n° 10.406, de 10.1.2002, e desti- nado a entrar em vigor na mesma data do préximo ano, usa a palavra no art. 189, para designar 0 objeto da prescrigao: “Violado o direito, nasce para o titular a pretensao, a qual se extingue, pela prescrigdo, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206”. Sem consagrar propriamente uma defini¢o, 0 texto mi- nistra aos estudiosos indicagdes que os devem guiar na construgao dogmitica. De agora em diante, torna-se imperioso explorar 0 assunto com mais cuidado € em perspectiva sistematica. A pretensiio emerge da condigao de simples ponto de passagem episédico e secundario, a que — com as excegdes de praxe — costumavam relega-la, e move-se para o centro da paisagem, converte-se em 147 topico por assim dizer obrigatério nas elaboragoes doutrindrias. E sua com- preensao, como ja ressalta da mera leitura do dispositivo, sera essencial para a elaboragao teérica do instituto da prescrigao. A evidéncia, nao ser em simples artigo que se poderao explorar todas as potencialidades hermenéuticas do supracitado art. 189. A tarefa tera de ser empreendida em sede mais ampla. Aqui nos propomos unicamente registrar algumas anotagdes, na esperanca de que sejam titeis como subsidios para trabalhos de maior envergadura. 2. A fonte inspiradora do dispositivo em foco é, seguramente, 0 § 194, I, do Cédigo Civil alemao (Biirgerliches Gesetzbuch), inspirado na doutrina de Windscheid e redigido nos seguintes termos: “Das Recht, von einem anderen ein Tun oder ein Unterlassen zu verlangen (Anspruch) unterliegt der Verjah- rung”, ou, em vernaculo: “O direito de exigir de outrem um fazer ou um nao fazer (pretensio) sujeita-se 4 prescrigéo”. O elemento comum a ambas as normas reside em identificar a pretensio como o objeto da prescrigéo. Ao contrario do legislador brasileiro, porém, o alemao animou-se a oferecer uma definigo da pretensdo (Anspruch), cujo nticleo consiste num “direito de exi- gir”. Nao escapou a criticas a defini¢io, inclusive na literatura brasileira mais familiarizada com 0 direito tedesco®, Conceituar a pretensdo como um “direi- to” € atitude que abre margem, com efeito, a perplexidades; nao é de espantar que a opcio haja suscitado controvérsias. Sendo Caio credor de Ticio — titular, perante este, de um direito de crédito —, e nao cumprida a obrigagdo no vencimento, pode Caio, indubitavelmente, exigir de Ticio a prestagao (= ha para Caio a possibilidade de reclamar o pagamento). Ora, se nisso € que consiste a pretensio, é 0 caso de perguntar: torna-se Caio titular de outro direito, ou a pretensdo € 0 mesmo direito de crédito antes existente? Na primeira hipétese, vé-se a pretensio como um direito derivado, distinto do originario’, na segunda, como 0 resultado, se assim nos podemos expressar, de uma meta- morfose do primitivo direito*. Dificilmente se evitaria recordar, aqui, antiga tendéncia doutrinaria a enxergar na ag&o algo que em substancia nao se distinguia do direito deduzido em juizo. Fizeram época imagens literérias como “agéo = direito em pé de guerra” e outras de teor andlogo. A alguns espiritos podera acudir a impressao de que o debate sobre as relagdes entre direito e pretensio acabe, de certo modo, por ecoar a contraposigao entre a arcaica concepgao imanentista da ago e a tese, modernamente vitoriosa, da respectiva autonomia em face do direito alegado no processo. Na velha pergunta “E a aco, em esséncia, 0 mesmo direito em cuja defesa o autor vai a jufzo, ou é outro direito, distinto e aut6nomo 148 em face daquele?”, estaria a substituir-se — nada mais, nada menos — “agio” por “pretensdo” . Ninguém estranhara que em torno dessas nogées se hajam travado ardo- rosas controvérsias. E para agravar a complexidade da problematica decerto contribuiu a introducao, por setores da doutrina, de um quarto conceito, o de “acao de direito material” *, inconfundivel, consoante se afirma, com a “acio processual”. Nao é sem motivo que certas construgGes se arriscam a parecer enigmaticas aos olhos de quem nao esteja familiarizado com os matizes, as vezes sutilissimos, da palheta doutrindria. Muitos se sentirao inclinados a ver em tudo isso algo como a pura e anacr6nica reedigao de nao se sabe que vetusta querela bizantina. 3. Dois outros fatores concorreram para enevoar ainda mais 0 panorama. Um deles é de ordem histérica. A discussio moderna a respeito da pretensao arrancou, em maxima parte, de divergéncias manifestadas acerca de uma ques- tao de direito romano: basta lembrar que a celebérrima polémica entre Winds- cheid e Muther, recapitulada em tantos tratados e compéndios de direito pro- cessual®, girava, afinal de contas, em torno da actio romana. Dai se quis extrair conclusdes supostamente vdlidas para os ordenamentos modernos. Como s6i acontecer em casos assim, nem sempre foi possivel evitar que nogGes surgidas em determinado contexto histdrico, e por ele condicionadas, se tornassem equivocas e, aqui e ali, pusessem em falsa pista tentativas de captar a esséncia de fendmenos peculiares a mundo muito diferente. Mais um fator de confusao esta na dualidade de planos em que se tem desenvolvido o tratamento da pretensdo: o material e o processual. Civilistas € processualistas discorrem ao proposito; dir-se-ia, 4s vezes, que o tema € objeto de auténtica disputa entre aqueles e estes, empenhados uns e outros em fixar os marcos tedricos nos respectivos campos. Nao surpreende que a imagem adquira contornos desiguais conforme se projete aqui ou acolé. Nem constitui exagero afirmar que, com freqiiéncia, se resolve em pura ilusao de dptica a impressao de que dois textos discrepam acerca do mesmo problema, quando o que na verdade ocorre é que tratam de coisas distintas. A paisagem é tao diversificada, que nao tém faltado sequer teses negati- vistas. Nem todos os estudiosos, com efeito, reconhecem foros de cidadania & figura da pretensao. Ha quem nela enxergue invengao supérflua, que complica desnecessariamente a teoria das posigGes juridicas subjetivas. Menos radical é a atitude daqueles que se limitam a negar autonomia conceptual a pretensao, inscrevendo a figura na Area do direito subjetivo ou na da agao’. Quanto ao presente trabalho, a premissa de que partimos é a de que, com 0 advento do novo Cédigo Civil, a pretensao se integra no direito positivo brasileiro e, seja 149 qual for a inclinagao teérica de cada qual, cumpre toma-la como dado de que ja nao ser licito prescindir na elaboragio dogmatica de nosso ordenamento. Impende verificar que subsidios ministra o texto para tragar rumo a essa tarefa. 4. Vamos, pois, & andlise do art. 189, comegando pela primeira parte, que visa a indicar a origem da pretensao. “Violado o direito” — diz-se af —, “nasce para o titular a pretensao” . Facilmente se percebe que o texto pressupoe duas coisas: (a) que exista um direito: e (b) que esse direito haja sido violado. A impressio que desde logo se colhe é a de que a lei aderiu 4 concepgio da pretensio como poder de exigir, nio como pura exigéncia. Com efeito: a existéncia do direito e a ocorréncia da violagdo afiguram-se necessdrias para que alguém possa exigir (legitimamente) uma prestago de outrem. Nao 0 serio, entretanto, para que alguém de fato exija a prestagao. Na perspectiva do novo Cédigo Civil, sé mereceria o nome de pretensio a pretensao fundada, aquela que se baseie num genuino poder de exigir. Concebida a pretensio como exigéncia, as coisas mudam de figura. Se alguém exige a prestagao sem ter direito, ou sem que o direito haja sido violado (e portanto sem poder de exigir), existira uma pretensao, embora infundada. Da posigao que se adote depende a valoragdo que se fara do art. 189. 0 juizo de valor inevitavelmente variaré conforme se prefira 0 critério subjetivo (pretensdo = poder de exigir) ou 0 critério objetivo (pretensdo = exigéncia). A vista de seu teor, repita-se, a disposi¢o parece mais compativel com o primeiro do que com o segundo. 5. Para que nasga a pretenso, segundo 0 art. 189, € mister nao apenas que o direito exista, senio também que tenha sido violado. A violagao sera pressuposto téo necessdrio quanto a prépria existéncia do direito. Quando se tem por violado um direito? A resposta é: quando 0 sujeito passivo da relagao jurfdica deixa de fazer o que devia ou faz 0 que nao devia, dando-se ai ao verbo fazer, obviamente, a mais larga acepgao possivel. Falar assim pode dar a impressio de que o fendmeno de que se esté cuidando fica restrito ao 4mbito obrigacional. Mas a impressao € falsa. Tam- bém no dominio dos direitos reais surgem pretensdes. Aqui, porém, ao nosso ver, 0 nascimento da pretensao nao pressupde necessariamente a violagio. Tome-se 0 caso da propriedade. O proprietdrio, sem sombra de duvida, tem 0 poder de exigir que outrem — seja quem for — lhe respeite a propriedade, se abstenha de praticar ato que a lese; por exemplo: contra a vontade do dominus, ocupe a casa, ou a destrua no todo ou em parte, ou dela retire 0 que quer que seja. Essa pretensao (a abstengo) é anterior a qualquer ato lesivo, 0 qual talvez jamais ocorra.* 150 Sem dtivida, praticado que seja ato lesivo, nasce para o infrator uma obrigaciio, v.g. a de restituir a coisa subtraida, ou de ressarcir o dano por ela sofrido. Af, contudo, ja se esta diante de outra pretensio. Nao parece de bom alvitre confundir as duas figuras, ou reduzi-las a uma nica. Hd a pretensao a abstengiio e a pretensao a restituigdo, ou em termos gerais 4 reparagado do dano causado por quem, devendo abster-se, nao se absteve. O fato de nascer a segunda nao cancela a existéncia, anterior, da primeira. Em suma: a despeito de sua letra, 0 art. 189 nao pode ser entendido como se excluisse a possibilidade de pretensGes que precedem a violagao, ou até prescindem dela. 6. A alusio a violagao traz 4 mente uma divisdo classica dos direitos subjetivos: aquela que separa, de um lado, os direitos a uma prestagdo (positiva ou negativa) e, de outro, os direitos a uma modificagao juridica, habitualmente denominados direitos potestativos’. Nestes, 0 sujeito passivo nao est4 obrigado a prestar: submete-se, pura e simplesmente, 4 modificagao produzida por ato do sujeito ativo, diretamente (exemplos: a escolha do devedor, na obrigagao alternativa; a revogagao do mandato) ou por intermédio de sentenga judicial (exemplos: a anulagao do casamento, o divércio). Ora, nao havendo obrigagéo de prestar, a violagiéo é impensdvel. Logo, nessa esfera, nao ha cogitar de pretensio!®, Mas entenda-se bem: 0 direito potestativo pode resultar do descumpri- mento de algum dever, como 0 que corre a ambos os c6njuges de nao praticar ato que torne insuportavel a vida em comum: se um deles, violando gravemente dever inerente ao casamento, pratica ato com tal caracteristica, nasce para 0 outro o direito 4 decretagio do divércio. A evidéncia, nao foi esse o direito violado: ele se originou da violagéo do dever, mas nao pode ser, por sua vez, objeto de violagio. O direito ao div6rcio, que nasce para um dos cénjuges da falta cometida pelo outro, é insuscetivel de violagéo pelo cénjuge faltoso. Conforme ressalta da listagem dos prazos prescricionais (art. 205), 0 novo Cédigo Civil cogita ai, exclusivamente, de direitos que tém por objeto presta- ¢Ges. Sado todos eles, quando o titular queira reclama-los judicialmente, dedu- ziveis em agGes condenatérias. 7. A matéria comporta outros desdobramentos. Em certas hipdteses, 0 ordenamento jurfdico, apesar de reconhecer a existéncia de divida, nao permite que o credor lhe obtenha a satisfagaéo coativa. O exemplo classico, no direito brasileiro, é o da divida de jogo ou de aposta (Cédigo Civil de 1916, art. 1.477; de 2002, art. 814). Fala-se, ao propésito, de direito sem pretensdo'!. Esse modo de dizer evidentemente pressupGe que se parta do conceito de pretensio como poder de exigir, nao como pura exigéncia. Nao fica excluido que de fato 0 credor exija ISI © pagamento; mas, se 0 exige, é ilegitimamente que o faz. Para quem conceba a pretensio como exigéncia, nao haver4 impropriedade em admitir que ela exista: falar-se-4 entao — vale repetir — em pretensao infundada. Aqui como alhures, a construgao dependeré do modo por que se conceitue a pretensio. Ocioso frisar que, em todo caso, direito existe, e pode ter havido violagao; por exemplo, se se fixara termo, e nao houvera pagamento tempestivo. Tanto € assim que, vindo o devedor a pagar voluntariamente, em regra n&o poderé recobrar 0 que houver pago. O pagamento nao é indevido: o credor teré recebido aquilo a que fazia jus, conquanto nao tivesse o poder de exigi-lo. 8. A semelhanga do texto alemio em que se inspirou, o art. 189 identifica na pretensao o objeto da prescrigéo. Entre nds, ja ha algum tempo se vem manifestando essa concepg4o no terreno penal, onde a propria linguagem fo- rense, nao raro despreocupada de finuras técnicas, costuma referir-se 4 “ pres- crigo da pretens4o punitiva” !?, Nao se pode dizer outro tanto do campo civil. Imperava af na doutrina mais antiga a idéia de que a prescrig&o golpeasse aacdo'. Tal maneira de pensar refletiu-se na redag&o do Cédigo Civil de 1916, cujo art. 178, em seus varios pardgrafos, ao fixar os prazos prescricionais, aludia reiteradamente a “acio” — palavra agora substituida, no diploma de 2002, por “pretensao”. Com aquela concepgio ja nao se harmonizava, convém advertir, o Codigo de Processo Civil de 1973. Realmente: 0 estatuto processual civil inclui entre as hip6teses de extingao do processo com julgamento de mérito a de declarar 0 juiz a ocorréncia de prescrigao (art. 269, n° IV). Ora, se af se chegou a julgar © mérito, é 6bvio que a agao nao sé foi exercitada, mas o foi legitima e eficazmente. A nica via conceb{vel para conduzir a solugao diversa consistiria em dar a palavra “ag&o”, no art. 178, 0 sentido de “agio de direito material”, pressupondo a distingdo entre esse e o de “agao processual” — premissa que esta longe de poder considerar-se como generalizadamente aceita. A luz do art. 189 do novo Cédigo Civil, fica fora de dtivida que o decurso in albis do prazo prescricional atinge a pretensao. Resta verificar como a atinge. 9. Nos termos do dispositivo comentado, a pretensdo extingue-se uma vez decorrido o prazo prescricional. Semelhante modo de dizer, estranho ao § 194 do BGB alemiao, nao parece compativel com 0 sistema do nosso préprio Cédigo Civil — nem do antigo, nem do novo, convém sublinhar, sobretudo a conside- rar-se acolhido 0 conceito de pretensio como poder de exigir. Se na verdade a pretensio prescrita se achasse extinta, jamais se conceberia que 0 juiz pudesse proferir decisao favordvel ao autor: estaria a conceder-lhe algo que ele ja nao pode legitimamente pretender. Ora, a lei nega ao 6rgao judicial, em principio, a possibilidade de pronunciar ex officio a prescrig&ao (Cédigo de 1916, art. 166; 152 Cédigo de 2002, art. 194). A regra proibitiva de forma alguma se justificaria caso ocorresse mesmo extingado: como forgar o juiz — na auséncia de outro fundamento bastante para decidir contra 0 autor — a julgar procedente o pedido apesar de extinta a pretensdo? Tal sentenga seria manifestamente injusta! Outro é o fendmeno que se verifica. Demandado apés 0 vencimento do prazo prescricional, faculta-se ao réu alegar, em defesa, a consumagao da prescrigao. Se provada a alegacio, a tinica possivel conclusao é a de que a pretensio teve sua eficdcia tolhida. Isso o juiz declara independentemente de qualquer verificagao relativa ao direito de que se afirma titular o autor e a respectiva violagéo. Em ultima andlise, quando o 6rgdo judicial decide com base na prescrigao, 0 que se entende é que a alegagao do réu tornou ineficaz a pretensdo do autor — abstraindo-se da indagagao sobre sua real existéncia (ou, dependendo da premissa conceptual, sobre seu real fundamento). Nao perdeu 0 autor, propriamente, em virtude da prescrigéo, o poder de exigir — tanto assim, que, ndo havendo alegacgdo do réu, cabera ao juiz, se provado o fato constitutivo, e na auséncia de fato impeditivo ou extintivo, dar pela procedéncia do pedido e condenar o réu & prestagaio devida. O poder de exigir, que por hipdtese se houvesse de reconhecer ao autor, subsistiu; mas sua eficdcia ficou sujeita a ver-se tolhida se o réu lhe opuser a prescrigao. Adite-se que o quadro nao mudard substancialmente caso se conceba a pretensio como exigéncia: 0 credor exigiu, porém sua exigéncia tornou-se ineficaz ante a alegagao do de- vedor. Bem pesadas as coisas, pois, a prescrig&o, por si sd, na realidade nao subtrai ao credor 0 que quer que seja. Decerto nao Ihe subtrai a ago, que pode ser até eficazmente exercitada. Tampouco lhe subtrai o direito: basta ver que o pagamento de divida prescrita nao comporta repetigio (Cédigo de 1916, art. 970; de 2002, art. 882), o que significa que nao foi indevido. Nem mesmo de pretensao — a despeito do que se lé no art. 189 do novo Cédigo — fica desprovido o credor:'*é perfeitamente concebivel que, reclamando a prestagio em juizo, ele venha a ser atendido. O que a prescrigio faz € dar ao devedor um escudo com que paralisar, caso queira, a arma usada pelo credor'®. Ela se enquadra dogmaticamente entre as exce¢des materiais ou substanciais — em linguagem processual, defesas de mérito de que 0 juiz no pode conhecer de officio, mas somente quando alegadas pelo réu'®. 10. A quem observe a dinamica do mecanismo no plano processual nao escapard um aspecto interessante, ao qual j4 se fez ligeira alusdo no item anterior. Ao menos no comum dos casos, se 0 juiz acolhe a excegao material de que estamos tratando, da por encerrada sua atividade cognitiva e profere 153 sentencga (de mérito: Cédigo de Processo Civil, art. 269, n° IV), na qual se limita a declarar que a prescrigdo ocorreu."” Extingue-se, assim, 0 feito, sem que fique positivada a existéncia (ou a inexisténcia) do direito afirmado pelo autor. Nao tem o 6rgio judicial de dizé-lo existente, nem de dizé-lo inexistente. Menos ainda tem de averiguar se real- mente se configurou a alegada violagio, sendo o caso. Declarada a prescrigao, nada ha que acrescentar. Que significa isso? Que possivelmente se estara declarando prescrita uma pretensdo que na verdade nao existia (ou, se assim se preferir falar, uma pretens&o que nao era fundada). Parece estranho cogitar ai de eficdcia tolhida: eficdcia de qué? A explicagdo € simples. O principio da economia processual imp6e que 0 pleito se encerre com 0 minimo dispéndio possivel de energias. Em geral, é mais facil para o juiz apurar se ocorreu a prescrigao do que averiguar os outros aspectos do mérito, que podem reclamar atividade instrutoria mais complexa. Por outro lado, se 0 6rgio judicial se convence de que efetivamente decorreu in albis 0 prazo prescricional, de nada adiantaria qualquer investigagao suple- mentar, pois, ainda a concluir-se que assistia razdo ao autor, nao seria possivel dar-Ihe ganho de causa: a alegacao de prescrigao Ihe haveria tolhido eficacia 4 pretensao. Desse ponto de vista, portanto, é indiferente que o autor tivesse ou nao raziio. A comodidade da expressdo sugere que se fale como se ele a tives Em tudo quanto se disse acima (rectius: em tudo quanto se diz da excegao de prescrigdo), uma coisa deve ficar entendida: embora o fraseado possa pres- supor que a pretensiio existe (ou € fundada), como em qualquer caso 0 juiz ha de dar prioridade ao exame da excegio material, o resultado sera sempre 0 mesmo, exista ou nao exista (ou: seja ou nao fundada) a pretensio. No parti- cular, como alhures, a linguagem reveste-se inevitavelmente da ambigiiidade inerente A considerag’o de quest6es que, pertinentes ao direito material, adqui- rem relevancia pratica no processo. 11. Questao que se costuma pér sempre que se cuida de prescrigio € a do critério a ser adotado para diferengd-la de fendmeno até certo ponto andlogo, o da decadéncia. Na doutrina brasileira menos recente, era comum a afirmagao de que esta feria de morte o direito em si, ao passo que aquela recafa — equivoco manifesto — sobre a acdo'*. O Cédigo Civil de 1916, nos varios pardgrafos do art. 178, empregara 0 mesmo verbo (‘Prescreve”) para fixar prazos, sem preocupar-se em estabelecer qualquer distingao. Nao obstante, 0 tema era de grande relevancia pratica, visto serem inaplicdveis 4s hipdteses de decadéncia, no consenso geral, as disposigdes sobre suspensao e interrupgio dos prazos verdadeiramente prescricionais””. 154 O Cédigo de 2002 tomou posicaio clara a respeito do assunto, versado no Titulo [V do Livro III da Parte Geral. Af, 0 Capitulo I ocupa-se da prescrigao, e 0 Capitulo II da decadéncia. Em perfeita coeréncia com a disposi¢ao do art. 189, no rol dos prazos especiais de prescrigao (art. 206) s6 se incluem, con- soante ja registrado, casos de direitos que tém por objeto prestagdes — por conseguinte, direitos a que correspondem pretensées. E é a palavra “preten- sfo”, em vez de “ag&o” , que aparece em cada um dos pardgrafos. Lamente-se 0 deslize do art. 1.601, caput, fine, onde se vé a expresso inexata — a luz das premissas do préprio Cédigo — “agao imprescritivel” . Quanto & decadéncia, dela tratam os arts. 207 a 211, dos quais o primeiro faz certo que, “salvo disposigéio legal em contrario, nao se aplicam A decadén- cia as normas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrigao” . O art. 210, por sua vez, atribui ao juiz o dever de conhecer de offcio da decadéncia, quando estabelecida em lei (diversamente, quando convencional: art. 21 1, fine). Ao contrério do que sucede com os prazos prescricionais, os dispositivos referentes aos de decadéncia nao esto reunidos, nem se situam no supracitado capitulo: o legislador preferiu distribuf-los ao longo do texto, de acordo com a matéria a que se referem. Assim, por exemplo, 0 art. 178 fixa em quatro anos “o prazo de decadéncia para pleitear-se a anulagao do negécio juridico”, colocado o dispositivo no Capitulo V do Titulo I do Livro III, sob a rubrica “Da invalidade do negécio juridico”. Desnecessdrio frisar que 0 direito a anulagao do negécio é tipicamente potestativo. 12. De tudo que se expos, fazendo-se abstragao de outras possiveis espé- cies de agdes (como a ag&o meramente declaratéria), é licito extr s seguintes correlagGes: — direito a uma prestag4o? pretensio? agdo condenatéria? prescrigéo; — direito potestativo? acio constitutiva? decadéncia. O esquema nao é novo; mas o Cédigo Civil de 2002, ministrando elementos que o abonam, certamente Ihe confere a autoridade inerente ao direito positivo. Doravante, j4 no serao justificaveis os equivocos em que, ao propésito, costumava incidir parte da doutrina. NOTAS 1. Veja-se a definigdio de PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado, t. V, Rio de Janeiro, 1955, pag. 451: “Pretensao é a posigao subjetiva de poder exigir de outrem alguma prestaciio positiva ou negativa”. HELIO TORNAGHI, Comentérios 155 ao Cédigo de Processo Civil, vol. 1, 2* ed., S.Paulo, 1978, parece identificar pretensio e exigéncia. Em recente monografia, ANDRE FONTES, A pretensdo como situagdo juridica subjetiva, Belo Horizonte, 2002, pag. 10, conceitua a pretensaio como “o poder de exigir alguma prestacdo” , mas noutro passo escreve: “Identificam-se normalmente pretensdo e exigéncia” (pag. 39; destaques do autor). 2. Vide PONTES DE MIRANDA, ob. cit., pags. 451, 452, 457 (“‘infeliz defini- ao”). 3. Lé-se, por exemplo, em LANGE, BGB — Allgemeiner Teil, 10° ed., Munique, 1968, pag. 92: “Subjekrives Recht und Anspruch decken einander weder dem Inhalt noch dem Umkreis nach (O direito subjetivo e a pretensio nao coincidem nem no contetido, nem no ambito)”. LEHMANN, Allgemeiner Teil des Biirgerlichen Gesetz- buches, T° ed., Berlim, 1952, pgs. 82/3, distinguia: na drea dos direitos absolutos (como os reais), a pretensio seria inconfundfvel com o direito, embora dele originria, na dos direitos relativos (como os de crédito), caberia ainda uma subdistingao, confor- me se tratasse de relages obrigacionais abrangentes (v.g. locagZo), da qual nasceria uma pluralidade de pretensdes, ou de direitos singulares nascidos da relagio obriga- cional base (Forderungsrechte), os quais, neste caso, se identificariam com pretensées. Também LARENZ, Allgemeiner Teil des Deutschen Biirgerlichen Rechts, Munique, 1967, pags. 252 e segs., distingue entre pretensdes “aut6nomas (selbstdndige)” , que se identificam com direitos, e pretensdes “ subordinadas (unselbstdndige)” , que servem a direitos, conceptualmente distintos dela: 4. ANDRE FONTES, ob. cit., pag. 54, refere opiniio de PAWLOWSKI, segundo a qual “as pretensdes seriam nada mais que direitos subjetivos no status activus” (grifado no original). 5, Introduzido na doutrina brasileira, salvo engano, por PONTES DE MIRANDA (vide, entre tantos passos, Trat. de Dir. Priv. cit., t. V, pags. 481 e segs.; Tratado das agées, t. I, S. Paulo, 1970, pgs. 109 e segs.) e acolhido, entre outros, por OVIDIO A. BAPTISTA DA SILVA, (v.g., Curso de Processo Civil, vol. I, Porto Alegre, 1987, . Nao é este o momento adequado a apreciagiio critica dessa proposta. . E mais acessivel ao leitor brasileiro, em geral, na tradugio italiana de HEI- NITZ e PUGLIESE, publicada sob 0 titulo Polemica intorno all’ “actio”, Florenga, s.d. (mas 1954), com substanciosa introdugio do segundo tradutor. 7. Sobre as “teorias niilistas”, vide ANDRE FONTES, ob. cit., pigs. 36/7 8. Com razio PONTES DE MIRANDA, Trat. de Dir. Priv. cit., t. V, pag. 461: 4 pretensdes, que se manifestam na proibigdo geral de turbacao e esbulho” ; “ proibir € exigir ato negativo”; “a pretensdio é erga omnes, consiste em proibigio geral, que corresponde a estrutura dos direitos com sujeitos pa ‘os totais”. Na Alemanha, jd HELLWIG, Anspruch und Klagrecht, Aalen, 1967 (reimpressio da edigdo de 1924), pags. 25/6, falava da pretensao 4 abstencao, que deriva, em face de todos, do direito real. Em sentido contrario, porém, a doutrina predominante: VON TUHR, Der Allge- meine Teil des Deutschen Biirgerlichen Rechts, Berlim, 1957, vol. 1, pags. 2423; LANGE, ob. cit., pags. 92/3; LEHMANN, ob.cit., pag. 82; LARENZ, ob. cit., pag. 156 Munique, 1979, pég. 172 (diversamente dos direitos de crédito, a propriedade subsiste por si, sem necessidade de pretensao alguma; esta s6 se configura em determinadas circunstancias, por exemplo quando o proprie- trio perde a posse). 9. PONTES DE MIRANDA preferia 0 nomen iuris “direitos formativos”: vide Trat. de Dir.Priv. cit., t. V, pags. 289/90 e passim. A expresso alema € Gestaltungs- rechte. 10. Na doutrina alema, vide por todos VON TUHR, ob. cit., pag. 244. Entre nés, diversamente, PONTES DE MIRANDA, Trat. de Dir. Priv. cit., t. V, pag. 462. 11. PONTES DE MIRANDA, Trat. de Dir. Priv. cit,, t.VI, pag. 57, distinguia entre jogos e apostas proibidos (caso que seria de nulidade ex vi do art. 145, II, fine, do Cédigo Civil de 1916) e jogos e apostas nao proibidos, que “vinculam, apenas nao criam pretensio”. 12. Na literatura mais recente, vide RENE ARIEL DOTTI, Curso de Direito Penal, Parte Geral, Rio de Janeiro, 2001, pag. 680 (onde também se fala, contudo, de “prescrigdio da agdo penal” ). O conceito de pretensao nesse contexto nao se identifica, porém, com o do direito civil: 0 Estado nao exige 0 que quer que seja do infrator, que somente fica sujeito & pena, e nao obrigado a fazer ou a deixar de fazer algo. Esse e outros tragos tornam dificil uma construgdo unitéria da figura da prescrigao, capaz de cobrir ambos os campos, 0 civil e o penal. O tratamento do assunto nao cabe, 2 evidéncia, em simples nota. 13. Cf., por todos, CLOVIS BEVILAQUA, Teoria Geral do Direito Civil, 4° ed. s Bevilaqua), Rio de Janeiro — S. Paulo — Belo Horizonte, 1949, pag. 37: “Prescri¢do é a perda da agio atribuida a um direito (...)” 14. Com toda a clareza, na doutrina alema, JAUERNIG, in JAUERNIG et alii, Biirgerliches Gesetzbuch, Munique, 1979, pag. 127: “Der verjdhrte Anspruch bleibt stehen (...). Der Anspruchsgegner erwirbt lediglich ein Leistungsverweigerungsrecht (...): die Veriihrungseinrede (A pretensao prescrita subsiste (...). A parte que a ela se ope adquire simplesmente um direito de recusar a prestagiio (...): a excegdo de prescrigao” ). 15. No Brasil, jé hd quarenta anos, notava AGNELO AMORIM FILHO, Critério cientifico para distinguir a prescrigao da decadéncia e para identificar as agdes imprescritiveis, in Rev. de Dir. Proc. Civ., 3° vol., pag. 116: “o efeito imediato da consumacio do prazo prescricional é um efeito criador: faz nascer, em favor do prescribente, uma excegio substancial cuja atuagio depende exclusivamente de sua vontade”. E mais: “a prescrigdo nao tem efeito extintivo nem mesmo quando oferecida a exceciio pelo prescribente: 0 que ocorre, ent&o, € apenas o encobrimento da eficacia da pretensio, e no a sua extingao”. Muitos equivocos poderiam ter sido evitados se se houvesse dado a tais observagdes a atengao merecida. 16. Ensinava PONTES DE MIRANDA, Trat. de Dir. Priv. cit., t. VI, pag. 100: “prescrigdo € a excecdo, que alguém tem, contra 0 que nao exerceu, durante certo tempo, que alguma regra juridica fixa, a sua pretenso ou agio”. Na pag. 101 lé-se 157 que os prazos prescricionais “no destréem o direito, que é; nao cancelam, nio apagam as pretensGes; apenas, encobrindo a eficdcia de pretensiio, atendem a conveniéncia de que nao perdure por demasiado tempo a exigibilidade ou a acionabilidade” . Vide ainda as pags. 253 e segs., sobre a eficdcia da alegagio de prescrigio. Cf., na mais recente literatura, ANDRE FONTES, ob. cit., pags. 50 (“Prescrigo é a excegio criada em razdo do transcurso do tempo, destinada a tolher, em cardter definitivo, a eficdcia da pretensiio” — grifado no original), 52 (“A pretensio, pois, nao é anulada pela exce¢io, mas apenas atenuada no seu efeito” ). 17. Isso leva a inclusao da questao entre as preliminares de mérito: vide BAR- BOSA MOREIRA, Comentarios ao Cédigo de Processo Civil, vol. V, 10° ed., Rio de Janeiro, 2002, pag. 673. 18. Cf., supra, n° 8 e, af, a nota 13. Diferente a opinido de NICOLAU NAZO, A decadéncia no direito civil brasileiro, pags. 118 ¢ 121, para quem a prescrigao nao teria “por objeto extinguir a acdo, mas 0 préprio direito substancial”, ao passo que a decadéncia constituiria um “6bice ao desenvolvimento da ag&o” e acarretaria “a caréncia de ago ou a ineficdcia do ato com que se pretendam anular os seus efeitos” (2). 19. Vide por todos WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, Curso de Di- reito Civil, 1° vol., 3° ed., S. Paulo, 1962, pag. 298. 20. Substancialmente, ele reproduz em parte — para nos cingirmos a doutrina brasileira — 0 que ja constava do artigo de AGNELO AMORIM FILHO, cit. em a nota 15, supra. 158

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