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Ni Reitora eéa Freire Francisco Caruso Neto Ivo Barbi residente) José Augusto Messias Liz Ber fo Leite Aray Eduardo F. Coutinho Literatura Comparada na América Latina ensaios Rio de Janeiro 2008 Sentido e funcao da Literatura Comparada na América Latina‘ Pensar a Literatura Comparada na América Latina € tarefa configurara, e encontrando na América Latina um terreno ado por um processo colonialista ainda vigente do ponto de vista econdmico e cultural, a Literatura Comparada atuou, em suas primeiras manifestagdes sobre a literatura do continente, como mais larde, contudo, gracas & prépria evolugdo por que passou a disciplina, © a0 questionamento desenvolvido na América Latina em tomo de suas diferengas culturais, 0 comparatismo oscilou © seu ha de frente das reflexdes sobre 0 continente. E neste sentido que vem conquistando espagos cada vez maiores no pensamento latino-americano e € nesta érbita que se situa sse. Antes, porém, de nos aventurarmos a tecer indaga- jo € a fungao da Literatura Comparada na América faz-se necesséria uma breve revisio critica dos principais dos pela disciplina em seu processo de constituigao e (0, inscrevendo-se na 2 S09 € co ot Eun cman seca UIA © uso de se compararem literaturas teve origem muito antes de a Literatura Comparada ser reconhecida como uma disciplina regida por certos prinefpios € métodos. No entanto, s6 no séeulo XIX ela comega a instituirse como rea do saber e a definir seus rumos € objetos de atuagao. Num rastreio do velho habito da comparasio, por momentos distintos da hist6ria da literatura, todos anteriores & sua configuragio como disciplina, avultam exemplos que, significa- tivos, merecem registro. Ja na Antiguidade especialistas como Berossos ‘ou Filon de Biblos eram versados em duas tendo escrito sobre ambas. Os mesmos mitos freqiientavam diferente (0s mit6grafos comparavam textos de comunidades diferentes, criando seus préprios heréis tribais a partir de mitos anteriores, Na Roma Classica, autores como Macrobius © Aulus Gi paralelos entre poetas romanos © gregos; ¢, na Renascenga, 0 ‘comparatismo chegou a tornar-se moda na Europa, devido, em gran- de parte, & doutrina da imitagdo, que exigia comparagdes e 0 estudo de influéncias. No século XVIII, a comparagio enire obras literdrias elissicas e modemas voltou a ocupar um primeiro plano, gerando inclusive a famosa Querela dos Antigos ¢ dos Modernos, e, finalmen- te, apés essa época, intimeros foram os casos isolados de escritores ou criticos que, marcados por acentuado senso de cosmopolitismo, realizaram estudos comparativos de autores, obras, movimentos, ou até literaturas de maneira geral: Goethe, Herder, Lessing, Mme, de Staél, 0§ imaos Schlegel, Henry Hallam Sismondi No século XIX, a diferenga do que ocorrera até entao, surge a necessidade de sistematizagio do comparatismo ¢ a Literatura Comparada principia a erigit-se como rea do conhecimento. E a Epoca de grande f@ na ciéncia, em que 0 empirismo e 0 método indutivo desempenham papel de relevo, e a disciplina nio deixard de Portar essas marcas, sé muito mais tarde postas em questo. E tam- bém a época em que se incrementa o pensamento cosmopolita e se amplia o interesse por culturas que fogem ao eixo europeu. AS lin- guas despertam intensa curiosidade e tomam-se objeto da Lingiifstica ‘Comparada. A literatura comega a ser encarada por uma 6ptica cons- cientemente comparatista, e surgem os primeiros cursos ¢ estudos sobre 0 assunto. Um quadro exaustivo dos passos da Literatura Com- teratura teceram diversos sono Ok evan yen HSA 1B parada em sua fase de afirmagio autodefinigao escaparia sem diivida ao Ambito deste ensai breves, tampouco devem ficar margem. Seguem-se, assim, algumas delas. Em 1816, antes ainda da grande voga cientificista, Noel e Laplace publicam na Franga uma série de antologias de diversas literaturas, sob 0 rétulo genérico de Curso de-Literatura Compara- da, ¢, entre 1828 & 1840, 0 termo aparece na obra Panorama da literatura francesa do século XVIII, do professor Abel-Frangois Villemain, que, jé em 1828-29, ministrara na Sorbonne um curso sobre 0 assunto, Em 1830, J. J. Ampére refere-se & “hist6ria compa- rativa das artes ¢ da literatura” em seu Discurso sobre a historia da poesia, e, dez anos depois, reemprega o termo no titulo da obra Historia da literatura francesa comparada ass literaturas estrangei- ras. Em 1835, por fim, Philaréte Chasles se encarrega de formular alguns princfpios basicos do que « iteratura comparada”, e parte para propor uma visdo conjunta da hist6ria da literatura, da filosofia e da politica nos cursos que iré ministrar, em 1841, no College de France? Embora as obras mencionadas tenham na realidade muito pouco do que hoje se vem compreendendo por Literatura Comparada ~ 0 estudo de Noel € Laplace, por exemplo, nao passa de uma co- letnea de textos escothidos, sem preocupagio sequer com 0 confron- to, € © Panorama de Villemain nao contém mais do que breves referéncias a outras literaturas fora das fronteiras da Franga -, ex- ressam ao menos consciéncia da necessidade de constituigao da disciplina e de sua legitimagao, pela cunhagem do termo para designa- la, Tal preocupagao, porquanto mais presente na Franga, conforme se verifica posteriormente em textos de Sainte-Beuve na Revue des Deux Mondes, ¢ em seus Nouveaux Lundis (1884), nfo deixa, toda- via, de figurar, € com vigor inegavel, em obras de autores oriundos de outras nagdes do Ocidente europeu. Na Alemarha, Moriz Carritre jé adota, em 1854, no livro Das Wesen und die Formen der Poesie, a expressio vergleichende Literaturgeschichte, mais tarde difundida como vergleichende Literaturwissenschaft, e, na Itélia, De Sanctis ‘mas pinceladas expressivas, ainda que iderava ser uma “historia da * Ver CLEMENTS, Robes J: 1978; € WEISSTEIN, Ulrich: 1973, 44 Sev AS on EN COD MA ER UT {j6em 1863 leciona a disciplina em Napolis, e Mazzini declara em seus Scritti (1865-67) que nenhuma literatura pode alimentar-se de si mesma ou escapar & influéncia de literaturas estrangeiras. Na Gra-Bretanha, surge em 1886 0 livro Comparative Literature, de Hutcheson McCauley Posnett, que, apesar do enfoque adotado, de cunho predc minantemente sociolégico, € até hoje conhecido como o primeiro, em Ifngua inglesa, dedicado exclusivamente a matéria, Essa fase los teéricos mais recentes de “pré-histéria da Literatura Comparada”, evolui, da tiltima década do XIX até meados do século XX, para um momento de certa efervescéncia, em que a disciplina penetra no meio académico, tor- nando-se objeto de ensino em universidades européias ¢ norte-ame- ricanas € dotando-se de bibliografia especifica e publicagdes especializadas. E entio que surgem as primeira céitedras université- rias: Lyon (1887), com Joseph Texte, ¢ Sorbonne (1910), com Fernand Baldensperger, e, em seguida, Jean-Marie Carré, na Franga; e Harvard (1890), com Arthur Richard Marsh, e, mais tarde, com H. C. Schoffield € Irving Babbit, e Columbia (1899), com George Woodberry, nos Estados Unidos. E enti também que se publica a primeira bibliogra- ia sobre 0 assunto, de Louis Betz, com o titulo La littérature comparée: essai bibliographique (1904), marco de consolidago do termo “Literatura Comparada” e base da famosa Bibliography of Comparative Literature, de Fernand Baldensperger e Werner Friederich, dada a piblico quarenta e seis anos depois e considerada somo 0 inicio dos modernos estudos da disciplina. E ainda desse Periodo que datam a Revue de Littérature Comparée (1921), criada por Fernand Baldensperger e Paul Hazard, e, durante longos anos, 0 Principal vefculo de divulgagao de trabalhos na rea, e 0 manual de Van Tieghem, La linérawure comparée (1931), adotado em todos 03 Principais centros de ensino da matéria, Estas duas tltimas publica- es, bem como os manuais que se seguiram ao de Van Tieghem, do qual mantiveram 0 titulo ~ os de Frangois-Marius Guyard (1951) ¢ de Claude Pichois e André Rousseau (1867)? -, sio algumas das Claude Pichois ¢ André Rousscavteve uma reedigto ampliad e atvalizada, com ragdo de mais um autor. Pere Brunel, ec tulo Qu'estce que la 1988, | | | Seno Fungo eee NRA WANE A 45 ada era classica do comparatismo fran- ido como Escola Francesa de Literatura iores expressdes da cl cs, do que hoje é conh Comparada ‘Tendo desempenhado papel fundamental no processo de consolidacdo da discipline, e dominado o universo académico por mais de meio século dentro e fora do pais de origem, a Escola Francesa, apesar de ser hoje amplamente questionavel em seus prin- cipios ¢ métodos, deixou cicatrizes no comparatismo que ainda se fazem sentir. A orientagéo dominante era de ordem histérica ou historiografica, calcada na pesquisa de fontes e influéncias e restrin- gindo o 1a a0 terreno das aproximagdes bindrias € A consti A Literatura Comparada era vista como um ramo da Histéria da Literatura e os autores, obras movimentos, como manifestagdes de um contexto determinado, por- tanto abordados por uma ética extrinseca. © feiémeno literério nao interessava em si mesmo, mas em suas relagdes com a série em que se insertava ov com outros a que se assemelhava, € nesses caso: comparagdo dependia de um contato real e comprovado, documenta- do. Investigavam-se as filiagdes de uma obra, autor ou movimentos, «as influéncias que eles teriam exercido sobre outros, ¢ ficava-se, na maioria das vezes, em um plano puramente anal6gico-descritivo. verdade que, em alguns casos, tais estudos (cuja tinica diferenca 6 a énfase sobre o emissor ~ influéncias — ou sobre 0 receptor ~ fontes) contribuiram para o melhor conhecimento de uma obra ou autor, revelando enganos e faldcias, ou para avaliar a importancia que estes tiveram em contextos posteriores, mas o que ocorreu com freqiiéncia foi 0 rastejo descri de tragos epidérmicos, que nao raro desa- guou em labor de cunho simplesmente detetivesco. ‘A ruptura com essa tradi¢ao ocorreu em 1958, durante 0 Il Congresso da Associagdo Internacional de Literatura Comparada (AILC/ICLA), fundada poucos anos antes. Nesse congresso, organi- zado por Werner Friederich na Universidade da Carolina do Norte, em Chapel Hill (EUA), René Wellek apresentou uma conferéncia com 0 titulo provocativo de “A crise da Literatura Comparada”, em que procede a um balango da disciplina e investe contra suas fragilidades te6ricas ¢ a incapacidade de estabelecer até aquela época um objeto ance da discij 16 nn 0 ETO COMIN MAIC representado por Baldensperger, Van Tieghem, Carré e Guyard, despertou imensa celeuma, ¢ constituiu uma espécie de ponto de partida do que veio a ser designado mais tarde, em oposigio a Escola Francesa, de Escola ‘Americana de Literatura Comparada. Tais termos, observe-se, emby +a patrio-gentilicos, néo tém qualquer conotagao de teor nacional Antes, apontam para uma pol duas geragdes de compa- istas: uma mais antiga, cléssica, composta na maioria por professo- es e pesquisadores franceses, que encarava a disciplina por um viés Predominantemente centrfpeto, e outra mais recente, moderna, centrada Principalmente em universidades norte-americanas, € que opunha a Visio tradicional outra de cunho mais centrifugo, Influenciado pelo Formalismo Russo, a Fenomenologia ¢ 0 ‘New Criticism norte-americano, Wellek critica com veeméncia os estudos de fontes ¢ influéncias, de ordem extr as, € propde uma anélise centrada primordial- texto, Entretanto, no se atém & postura imanentista dessas Correntes; ao contrério, considera um complemento fundamental o estudo das relagdes entre 0 texto © 0 contexto em que este foi pro- duzido. Sua critica incide sobre o historicismo tradicional, mas nao sobre a dimensdo hist6rica, que néo deve estar ausente na abordagem do fenémeno literério, Além disso, os estudos de fontes e influéncias limitavam-se na maioria das vezes a estéreis paral de mera casa as semelhancas. Wellek condena a perspectiva predo- minantemente descritivista de tais estudos e afirma que comparatismo © erftica no podem andar separados. Do mesmo modo, insurge-se contra a distingao entre Literatura Comparada e Literatura Geral ¢ 0 ressurgimento da velha Stoffgeschichte alema, e aceita a possibilida- de de estudos comparatistas no interior de uma tnica literatura, Contanto que a abordagem adotada tenha uma dimensio critico-ted. rica que transcenda as fronteiras dessa literatura. Todos esses aspec- {os formam juntos a base da cisio entre uma suposta orientagio norte- americana € a francesa © fazem do autor uma espécie de Prégono da nova Literatura Comparada. Contudo, assinale-se que, a despeito das diferengas significativas que ponteiam essas duas esco- 7 a las, a incompatibilidade entre > & irredutivel. Basta ler © caso de Btiemble, que sucede a Carré na Sorbonne, € que, pelo tionamento empreendido contra 0 comparatismo tradicional ¢ a critica desencadeada contra toda sorte de eurocentrsmo, chega a aproximar-se mais dos americanos do que de seus pares na Pranga :mbora os autores que integram a chamada Escola Ameri- cana de Literatura Comparada nao constituam um grupo coeso nem disponham de um programa estabelecido, fortes denominadores mons, distinguiveis na atuagao desses autores, justificam 0 uso do termo. Além dos rasgos j4 apontados na proposta de Wellek, regis- trem-se 0 tOnus acentuadamente eclético da nova escola ¢ sua capa- cidade de absorgo de nogGes teéricas diversas. Tais aspectos ampliam consideravelmente 0 cscopo da Literatura Comparada, conferindo-the tum cardter mais internacional, que a leva a incluir outras literaturas até entio alheias linar, que a aproxima nao s6 das demais formas de como de outras esferas do conhecimento, Tomando © texto, mas levando em conta suas relagdes ral, a Escola Americana aborda o fendmeno litera © contexto histé- incorrer em simples sistema de trocas Nessa nova fase, 0s tradicionais estudos de fontes € influéncias sofrem um embate deci- sivo € as barreiras entre comparatismo € critica tornam-se cada vez mais ténues. Contudo, nem todos os germes da tradigdo sao langados por terra, permanecendo ai © cunho universa- lizante das propostas e o tom, porqu: mente etnocéntrico do discurso. Além dessas duas escolas de Literatura Comparada, houve também, no percurso de autodefinigao e consolidagao da disci foutras vozes, em grupo ou isoladas, que, embora em menor escal prestaram valiosa contribuicao & sua formagao, e a que, portanto, nio pode faltar mengao, maxime pela atuacdo que tiveram sobre o compa ‘americano, Entre as primeiras, vale mencionar 0 “Ver BTIEMBLE, Reaé: 1963 18 soi choo TEAK COMAEDA MEDEA lo por figuras como Victor Zhirmunsky ¢ Dionyz Durisin, que, somando a influéncias do Formalismo Russo preocupa- ges de ordem social, desenvolveu um sistema de analogias tipoligicas € chamou atengo para os ropoi da tradi¢ao popular e legendiria. E entre as vozes isoladas, citem-se figuras como Robert Escarpit, den- tro da prépria Franga, que projetou novas luzes sobre o comparatismo, abordando-o por uma ética sociol6gica e realizando pesquisas com o piiblico ledor que antecipam questées posteriormente retomadas ¢ reelaboradas pelos te6ricos da Estética da Recepgao, ¢ Claudio Guillén € Gillermo de Torre, que, situados, pela sua otigem hispiinica, fora do eixo central da Literatura Comparada, ergueram-se como criticos combatentes do etnocentrismo, ___ A maior permeabilidade da Escola Americana ¢ as contri buigdes dessas vozes isoladas conferiram novo impulsc a0 Comparatismo, que deixou de lado a perspectiva historicista tradicio- nal e seu correlato ~ os velhos estudos de fontes e influéncias — Passou a ocupar-se cada vez mais do texto literdrio © das relagdes interliterérias e interdisciplinares. No entanto, a amplitude que ad- uiriram os estudos comparatistas dos anos de 1970 até presente deve muito & voga da Teoria Literéri ondas estruturalist esse periodo, sobretudo as € pos-estruturalista ou desconstrucionista, que varreram 0 meio intelectual ocidental. Ao contrério do que se pode- ria supor, a Literatura Comparada e a Teoria Literdria nio se antagonizam em momento algum; antes complementam-se, ¢ no Podem prescindir uma da outta. Toda teorizacao sobre uma obra ou obras literérias pressupde necessariamente uma atividade comparatista, ainda que num plano intertextual nao explicito, ¢ todo estudo comparatista sério conflui para uma reflexdo de ordem tedrica € critica; caso contrario, corre 0 risco de ater-se a mero descritivismo. A Teoria, a Critica © a Literatura Comparada distinguem-se pela Enfase que € dada ao objeto da pesquisa em cada uma delas, mas a atuagdo de uma sobre a outra & de tal 1 que didlogo entre elas é fator fundamental Nao cabe aqui detalhar a contribuigdo que cada uma das correntes te6rico-criticas da segunda metade do século XX aportou modo significativa que 0 se oO AN nO NAGLE AI 19 para a Literatura Comparada, desde 0 Estruturalismo € a Semiologia, passando pela Estética da Recepgio e pela releitura a que se proce- deu do Marxismo ¢ da Psicandtise, até as visdes mais recentes do Desconstrucionismo ¢ da Nova Histéria, mas é mister assinalar que, gragas a esse intercurso, © comparatismo ganhou dimenso, que se expressa hoje na multiplicidade de caminhds com que ele dialoga com a obra litersria. Voltado cada vez mais para o texto, mas cons- ciente da sua situagio de discurso condicionado a uma realidade anto passfvel de questionamento, hist6rico-cultural determin © comparatismo vem pondo em xeque seus pressupostos basicos, de teor etnocéntrico, ¢ reformulando constantemente seus cénones, Nes- sa tritha, vém conquistando espago gradativamente nao $6 as litera- turas até entio tidas como periféricas, como as do chamado Terceiro Mundo, quanto outras formas de registro até recentemente relegadas a plano secundario: as manifestagdes folel6ricas ou populares © a chamada feratura. oral E nesse estégio do comparatismo que entra em de maneira mais significativa, a América Latina. A pritica de se com- pararem autores, obras ou movimentos jé existia de hi muito no continente, mas por uma ética tradicional, calcada, & maneira fran- cesa, nos célebres estudos de fontes e influéncias, que, além disso, se realizavam por via unilateral. Tratava-se de um sistema nitidamente hierarquizante, segundo o qual um texto fonte ou primédrio, tomado como referencial na comparagéo, era envolvido por uma aura de superioridade, enquanto 0 outro termo do processo, enfeixado na condigao de devedor, era visto com evidente desvantagem e relegado a nivel secundério. Como sempre que esse método era empregado no estudo da Literatura Latino-Americana o texto fonte era uma obra européia, ou mais recentemente também norte-americana, a situago de desigualdade emergente do processo se explicitava de imediato. O resultado inevitével era a acentuagéo da dependéncia e a ratifica- ¢40 incontestavel do estado de colonialismo cultural ainda dominan- te no continente. Esse tipo de comparatismo encontrara na América Latina ‘um solo propicio ao seu florescimento, e semeado jé em boa parte por poderosos aliados no campo da Historia Literdria e da Teoria Lite- dos na Europa ¢ encarou as manifestagées eextensGes dos primeiros, reduzindo-os a uma espécie de reflexo esmaecido dos modelos fordincos. E, no segundo caso, a aplicagao dogmit na critica quanto no ensino da literatura, de postulados de correntes teoricas européias a qualquer obra literéria, sem se levar em conta as especificidades que a caracterizavam e as diferengas entre 0 seu contex. to hist6rico-cultural e aquele onde elas haviam brotado, Tais formu. lagdes, diga-se de passagem, haviam emergido, na maioria das veres, de Sérias © profundas reflex6es sobre um corpus literdrio da Europa I, mas, ao serem generaliza io cara aos europeus, de sua Essa pritica, que Estruturalismo fan a com o universal.* ira seu apogeu nos anos dourados do comecou a ser posta em xeque na América s da década de 1970, e para tal contribuiram ‘0 © Desconstrucionismo, com sua énfase sobre a Wa, € a revalorizagao da perspectiva historiea, que ua chamar atencio para ionamento de nogses influéncia e ori ‘omo as de autoria, cépia, idade, empreendido pelos fildsofos franceses pés- éstruturalistas, atuou de modo muito proficuo sobre 0 comparatism: de seus idirecional, adquire em conseqiléncia, mais rica e dinamica. O que passa a prevalecer ura comparatista nao é mais a relagdo de semelhanga ou continuidade, sempre desvantajosa ira 0 texto segundo, mas o elemento de diferenciagio que este “timo introduz. no diglogo intertextual estabelecido com o primeiro, * Ver COUTINHO, Eduardo F: 1991 sErnuo nao eres coe CR UTI 24 de Literatura Comparada que envol na. Agora, 0 que se caracterizava como ¢6} jtura central pas lade so langados por terra ¢ o valor da contribui- do latino-americana passa a residie exatamente na maneira como ela se apropria das formas literdrias européias e transform: do-lhes novo vigo. Os termos do sistema hierérquico anterior inver- tem-se no processo € 0 texto da cultura dominada acaba por confi- gurar-se como 0 mais rico dos dois.* Essa énfase sobre a questio da diferenga, propiciada pelo Desconstrucionismo, prestou, sem sombra de diivida, valiosa contri- buigdo aos estudos de Literatura Latino-Americana, que sofreram, pelo menos no campo do comparatismo, uma séria revisio critica. Contudo, niio se pode deixar de assinalar que ela também deu mar- ‘gem a falaciosos exageros, expressos freqllentemente sob a forma de um acentuado ufanismo. Nao basta, como se poderia supor, inverter a escala de valores do modelo tradicional para derrocar-se seu teor pois 0 referencial ni sendo 0 elemento europeu. F preciso ir além: desconstruir 0 préprio modelo, ou melhor, desestruturar ico sobre 0 qual ele se havia erigido. Daf a necessidade a que se referem outros estudiosos da questio de desarticulagao do discurso que sustenta 0 ‘comparatismo, para rearticulé-lo sobre novas bases. Este discurso acha-se de tal modo contaminado pelo sentimento de margin: internalizado pelo homem latino-americano ao l que dificilmente poderia fornecer uma imagem liicida da do continente. Ele oscilava entre extremos que iam desde a aceitagao passiva dos valores etnocéntricos & rebeldia mencionada, traduzida na exaltagio da diferenga, mas em nenhum desses casos se apresen- conferin- etnocent * Ver SANTIAGO, Silvano: 1982, 13-24; € SCHWARZ, Roberta: 1987, 29-48 2 tava com a potencialidade necesséria para cumprir a fungio que dele se esperava. ia do pensamento contemporineo que con- remto da visio de mundo eurocéntrica ~ a m encontrow terreno americanos. Num con- texto onde correntes como 0 Marxismo e 0 Historicismo sempre para o quest veram grande penetragiio, e questées como a dependéncia econdmica ral, a idéia de que as manifestagdes de realgdes € s6 podem ser su abordadas po De acordo com este, importincia das diferengas latino-americanas; & preciso estudar a jagtio destas diferencas .com stema de que fazem parte — a fe em seus diversos registros ~ e investigar o que assumem no quadro geral da tradig: Foi dentro dessa linha de pensamento que Angel R (1982) extraiu, dos estuc _ mn 7 para explicitar 0 tipo de apropriagio que realiza a Literatura Latino-Americana das formas movimentos da européia. Ni taco de modelos, tamp. ‘movimentos europeus simplesmente adaptados ao novo contexto, Trata- Se, antes, de um proceso complexo em que os aportes da européia mesclam-se com as formas ou tendéncias aqui exi dio origem a manifestagdes nov + que contém elementos tanto da forma apropriada quanto da que jé existia anteriormente no continen- te. Como se vé, hi perdas e ganhos em ambos os lados, e 0 resultado ttaz em si um trago de singulatidade — seu cunho amalgamado ou hibrido — em franca homologia com a mestigagem étnica e cultural do continente. A idéia no € nova. Ao contr muitos dos movir Ji se achava presente em s de vanguarda que emergiram na América Somn € ano TERTAA conoN mR IA 23 Latina a0 longo do século XX, como o Criacionismo, de Vicente 10, de Oswald de . Nem por isso & menos significativa. E para que tal se tome evidente bastaria recordar a forga da imagem fisiol6gica de assimilagao seletiva de que Oswald izou para representar 0 Modernismo brasileiro. O que se propu- 1, € que agora volta novamente 4 tona, em escala ampliada para todo o continente, na tese de Rama, era 0 que Harold de Campos muito bem resumiu a respeito do Antropofagismo: “a aceitagio nio passiva, mas sob a forma de uma devoragao critica, da contribuigao européia € a sua transformago em produto novo, dotado de carac- eristicas prOprias que, por stia vez, passava a ter uma nova univer- salidade, uma nova capacidade de ser exportado para o mundo” (1979, 293), Mas Rama nao para af. Ao largo de seu livro, em que analisa iculosamente alguns casos de transculturago na narrativa do dentre os quais 0 do peruano José Marfa Arguedas, a relevancia da perspectiva hist6rica é de imediato flagrada. Fica claro {que nao Ihe basta estudar a deformagio dos modelos europeus no processo de apropriagio (0 descentramento, ou, para usar um concei~ to de Bakhtin (1973), a “camavalizagio” desses modelos) nem apenas as especificidades de tal processo. Esses dados so sem diivida indis- pensveis; mas a eles deve acrescentar-se 0 exame das relagdes destas especificidades com a literatura € a tradigao © No estudo das r apropriagao com o sistema surgem quest6es que ampliam em muito a érbita do comparatismo. Os exemplos sio muitos, mas fiquemos ao menos com dois a que, pela relevancia que assumem no quadto geral da literatura do con- inente, nao pode faltar mengio, O primeiro é a necessidade de inclusdo nesses estudos dos miltiplos registros existentes no conti- nente, dentre os quais © chamado popular, presente em formas como © corrido mexicano ¢ 0 cordel brasileiro, e o das Iinguas indfgenas ainda vivas, como 0 quichua € © guarani. segundo é a importancia de se abordar também de maneira contrastiva as literaturas das diver- sas nagdes, ou melhor, povos, que integram 0 conjunto que vimos lema a que pertencem — 24 sen ea oe UPAR cme dC AR dores comuns decorrentes na maioria dos casos de fatores histérico- culturais ou geogréficos. Reconhecendo a importincia dessas questdes a tes, podemos tentar , como o fez, por exemplo, Pizarro (1985, 50-1), porta-voz do grupo reunido em Campinas nos anos de 1980 sob a supervisio de Antonio Candido, que assinalou trés diretrizes, ou niveis de interagio, que a configuragio do desen- terdrio latino-americano exigiria do comparatismo. Sio relagdo América Latina/Europa Ocidental. caracterizagao da heterogeneidade das literaturas nacionais no am to continental. Levando em conta que nenhuma aproximagdo a ratura do continente pode deixar de inserir-se no escopo dessa di ‘mica triplice, sem cuja percepgdo no se pode penetrar na comple- xidade da Literatura Comparada na América Latina, faremos uma breve referéncia a cada uma dessas diretrizes, comegando pela titi- ma, com o fim de melhor elucidé-tas. A caracterizago da heterogeneidade das literaturas nacio- nais na América Latina constitai um problema fundamental para 0 comparatismo, na medida em que exige deste 0 reconhecimento de registros nao s6 diferentes dentro de uma mesma Ii (© espanhol € 0 quichua, por exemplo, no Peru; ou 0 espanhol ¢ o guarani, no Paraguai), mas ainda de niveis tradicionalmente di tos, como o erudito e 0 popular, este ttimo quase sempre margin: ido. A culty inericana caracteriza-se, desde 0 século XVI, por significativa pluralidade, © o comparatismo nao pode perder de vista esse fato, devendo estender-se ao estudo de textos nio s6 rema- nescentes das culturas indigenas anteriores a chegada dos europeus 40 continente, copilados posteriormente pelos jesuftas, como também os que continuaram a ser produzidos nas linguas ainda faladas, e as atuagdes dessas diversas culturas umas sobre as outras. E 0 caso da ratura nacional 25 5 sobt atuagao de Maria Arguedas e Miguel Angel Ast sobre a producio escrita em créole no Caribe, ou em seu correspon- dente nos locais de colonizagio inglesa ou holandesa. E também, embora as avessas, 0 caso da recepgio, por parte da oralidade, da cultura do texto, como ocorre, por exemplo, com a literatura de del brasileira, que narra epi cantares de gesta franceses. a relagdo entre as no interior da América Latina, apresenta, entre ‘blemas de certa magnitude: o da delimitagao da érea abrangida pelo conceito de América Latina € o da unidade na diver- sidade que caracteriza os paises do continente. No primeiro caso, a questo que se coloca de imediato é a dos critérios a serem utilizados na delimitagio do conceito, que evoluiram de uma perspectiva ori- ginariamente para outra ainda tomo de cluir, por exemplo, regides do Caribe no colonizadas por povos de origem neolatina. O segundo caso, um pouco mais complexo, implica snde desde a independéncia, no plano diacrénico, do corpus literério com relagio as literaturas das ‘metr6poles colonizadoras, até 0 reconhecimento, no plano sinerénico, de conjuntos ou blocos nacionais ou regionais, que se vao encaixando num processo de mise en abime a outros maiores denominadores comuns, até chegar-se a uma espécie de mosaico, es, por mais integradas ao todo, continuam mantendo sua ricana nio se atém nem ao mero somatério de distintas nacionais, nem a uma generalizagao abstraida de qualquer anéli consiste na construgao de um Gao literéria geral do continente © suas diferencas especificas. A terceira diretriz mencionada, a das relagGes entre a Lite~ ratura Latino-Americana e as da Europa Ocidental, a que podemos actescentar mais recentemente a da América do Norte, & a que jé se verificava no comparatismo tradicional, © que vem sofrendo, como 26 sen RH TEIN EAR MAA eT procuramos mostrar, séria revislo critica, da década de 1980 para 0 presente, sebretudo ne que conceme ao questionamento de sua pers- pectiva unilateral, Aqui, além do estudo das respostas criativas que a Literatura Latino-Americana vem apresentando em seu processo de apropriagio de formas européias, e do exame das diferengas encon- {radas com relagdo ao sistema de que fazem parte, passa-se a abordar também a atuagao dessa literatura sobre a européia e norte-america- nna, € inclusive sobre outras ndo pertencentes a nenhuma dessas esfe- as, Contudo, nao se trata, é preciso frisar, de mera inversio do ‘modelo-padrao do comparatismo tradicional nem de uma extensao do Paradigma etnocéntrico a outros sistemas periféricos. O que se pre- tende, a0 contrério, € © estabelecimento de um dislogo em pé de igualdade entre essas diversas literaturas, assegurando a transversali. dade propria da disciplina a eae ‘ago das especificidades da Literatura ou das sas Literaturas Latino-Americanas € no olhar langado sobre a {radicgZo litersria do continente, que o comparatismo adquire sentido na América Latina, passando de um estudo mecdnico de fontes influéncias a uma disciplina de abordagem do fendmeno literstio capaz de desencadear um verdadeiro diélogo de culturas. O Comparatismo é, como afirmou Claudio Guillén, em seu livro Entre a ‘uno y lo diverso, “wna disciplina resueltamente hist6rica” (1985, °7), & como a Literatura Latino-Americana, pelas préprias circuns. ieee cr ue foi engendrada, carrega como marca uma ica entre © local e 0 universal, é nessa pluralidade, nesse sin nio-sjuntvo, que deve ser apeenid. A Titra doe aaron paises latino-americanos certamente recebe forte influéncia da euro- pelea Suma série de aspectos tanto desta quanto de outras ras. Mas ela modifica substancialmente tais aspectos no mo- mento da apropriagdo, passando a apresentar elementos préprios muitas vezes resultantes desse processo. Eo que se passou, por exemple com © Modemnismo brasileiro, originado, de um lado, da transeulter ado das diversas Vanguardas européias, ¢, de outro, de uma releitura critica da tradigao literdria do Brasil, maxime do perfodo romantico. Assim, qualquer que seja a abordagem que o comparatismo venha a adotar com relagao & Literatura Latino-Americana, send ie TERT COMO AME 27 s estas questdes. E os exemplos so mui- lo de amostragem, no caso dos estudos de questdes como a do realismo maravilhoso, preciso ter sempre pres tos. Mas citem-se, a géneros, estilos ou topo resultante da transculturagdo de formas distintas do fantéstico euro- peu e norte-americano com aspectos das culturas indfgenas e afro- americanas; do barroco, que, tendo-se tornado uma espécie de modus vivendi na América Latina, voltou a florescer ei grande escala nas obras de autores da chamada “nova narrativa” dos anos de 1950 a 1970; da ficgao indigenista dos anos 20 € 30 do século XX: € de 1s como 0 do gaucho, da selva, do Hano e do sertio, expressdes multifacetadas do regionalismo, decorrentes também de processos transculturadores. Mencione-se ainda, no caso das abordagens inares cada vez mais freqilentes na Literatura Comparadi, a necessidade de incluso nesses estudos de uma ampla gama de elementos, que, pelo seu cunho folelérico, ou popular, foram manti- dos & margem até bem pouco. inalmente, na seara das relagbes entre o Comparatismo © 4 Historiografia, a Teoria e a Critica da Literatura, € preciso que se proceda a cuidadosa revisio dos critérios que vém norteando o estudo dessas disci ica Latina, de modo a que se possa tornar viével 0 didlogo referido. No campo da Historiografia, mencione-se, como exemplo, o problema da periodizagio, que, ao invés de encampar a risca 0 modelo europeu, deve abrir-se, ¢ ja 0 esté fazendo, para idades que busquem dar conta do emaranhado de vere- das seguidas pela literatura do continente. Na esfera da Teoria, cite- se a substituigao do método da aplicagao dogmitica de conceitos categorias importados, por si s6 expressivo da condigo de color dos de seus usuérios, por um questionamento desses conceitos e uma reflexdo consistente sobre o proprio corpus literério latino-americano. E, no que diz respeito & Critica, um reexame dos pressupostos de ago geralmente condicionados a visdes aprioristicas pouco sus- t igo de um discurso que, sem deixar de reconhecer a relevancia da contribuigao estrangeira, sobretudo da Europa Ocidental — pelo menos a mais atuante até 0 presente -, ona em xeque o monopélio do discurso que sustenta essa contribui- G0, relativizando sua autoridade. » hegeménico, sao taxadas de nacionalistas man 28 som € WoO LENA CPAION MA AER Fique claro que, a0 chamarmos atengao para a nec na América Latina, de um comparatismo io literdria e cultural do continente, néo estamos, em momento algum, defendendo qualquer tipo de posture nacionalista ~ o que viria de encontro inclusive ao cunho supranacional da di mas apenas questionando 0 ténus etnoc portador. A vando os europeus falavam de mente & européia, ident apesar de essa mental com a universal. E, atualmen zadora estar sendo cada vez {ores da intelligentsia (tanto européia quanto de fora da Europa), Sha ateS'9s ~ to afiadas como antes e agora ampliadas para todo ¢ chamado Primeiro Mundo ~ continuam a se fazer sentir, camufladas, Sob rtulos diferentes, em vio dscusos culturis E asim que por exemplo, em nome de uma modernidade cujo senti Jamais, diluem-se diferengas signi ue em prol de uma iversalidade que esconde, no fundo, seu teor stages muitas vezes auténticas © fecundas de verdadeiro autoconhecimento. Que esse discurso etnocentrista continue langando chamas 8 despeito dos esforgos que vém empreendendo, nados por fortes tintas etnocéntricas. Daf que vem passando o comparatismo na A iportaneia da revisio por ica Latina e 0 sentido de "Ver AINSA, Fernando, 1986 0 TENT coach MA AEA ATER 29 objeto de suas investizagoes um dislogo no qual, como sfirmou Todorov em seu A conquista da América, “ninguém tem a iltima palavra, onde nenhuma das vozes reduz a outra ao status de A objeto e onde se tira vantagem de sua extetioridade ao outro” (1983, 246).

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