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O REINO

EO
SACERDÓCIO
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

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José Antônio de C. R. de Souza
(organizador)

LUIS ALBERTO DE BONI


(responsável pela presente edição)

O REINO
EO
SACERDÓCIO
O pensamento político
na Alta Idade Média

Coleção:
FILOSOFIA-33

Porto Alegre
1995
© Copyright dos Autores
1ª edição: 1995

Editoração:
Suliani — Editografia Ltda

Capa:
José Fernando Fagundes de Azevedo

Impressão e acabamento:
Gráfica Evangraf

Diagramação da versão digital:


Paolla Monticelli

FICHA CATALOGRÁFICA

R373 O reino e o sacerdócio: o pensamento político na Alta Idade Média / org.


José Antônio de C. R. de Souza. — Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995.
234 p. — (Coleção Filosofia; 33)

1. Filosofia Medieval 2. Igreja e Estado 3. Política — Filosofia


4. Idade Média — História I. Souza, José Antônio de C. R. de II.
Título III. Série.

C.D.D 189
261.7
320.01
909.07

Elaboração do Setor de Processamento Técnico — BCPUCRS

Coleção
Filosofia —33
SUMÁRIO

Introdução / 6
Luis A. De Boni

1 - A Igreja nascente em face do Estado Romano / 8


Daniel Valle Ribeiro

2 - A Civitas Política de Agostinho - Uma leitura a partir do Epistolário e do A


Cidade de Deus / 20
Francisco Manfredo Tomás Ramos

3 – Leão I: a Cátedra de Pedro e o primado de Roma / 39


Daniel Valle Ribeiro

4 - O pensamento gelasiano a respeito das relações entre a Igreja e o Império


Roamano-Cristão / 53
José Antonio de C. R. de Souza

5 – Sacralização do poder temporal: Gregório Magno e Isidoro de Sevilha / 78


Daniel Valle Ribeiro

6 – El pensamiento político papal em la Donatio Constantini – Aspectos


históricos, políticos y filosoficos / 97
Francisco Bertelloni

7 - O dever da fidelidade no Manual de Dhuoda / 117


Ruy Nunes

8 – As raízes da hierocracia no De Institutione Regia de Jonas de Orleans / 131


José Antônio de C. R. de Souza

9 – Hincmar, Arcebispo de Reims, e os dois poderes / 156


Nachman Falbel

10 - A teocracia imperial no fim da Alta Idade Média / 184


José Antônio de C. R. de Souza
INTRODUÇÃO

Falando de forma simplificada, e sem querer entrar em problemas de


delimitação histórica, para o mundo ocidental a Alta Idade Média é um período
que se estende desde o século V, quando da queda de Roma, até o século XII. No
que tange ao pensamento político, trata-se de uma época das menos estudadas. A
muitos talvez pareça que nela quase nada existe digno de menção, além do nome
de Aurélio Agostinho, que, aliás, ainda pertence propriamente ao período
anterior. Um olhar mais detido haverá, porém, de constatar alguns fenômenos
importantes e singulares.
O Cristianismo surgiu no império romano, o estado tecnicamente mais bem
organizado da Antiguidade, dispondo de corpo jurídico só igualado pelos estados
modernos, que nele se inspiraram. Entretanto, alguns séculos depois, sobre as
ruínas daquela instituição, desabrochou a Cristandade: em vez de uma monarquia,
com o poder ciosamente centrado na figura de César, ergue-se um mundo estranho,
sobredeterminado pela religião, dentro do qual o bispo de Roma reivindica a
soberania. Nesta mudança há dois aspectos fundamentais a serem considerados.
Em primeiro lugar, observe-se, o arcabouço teórico pagão, transformado,
continuou determinando o pensamento cristão. A noção de unidade do poder
estava latente nas grandes disputas entre o papa e a autoridade leiga, e mesmo nas
querelas entre o sumo pontífice e os patriarcas orientais: às noções jurídicas
herdadas do império, somavam-se as convicções teológicas, afirmando ser vontade
divina que houvesse uma só e tão somente uma autoridade suprema sobre a terra.
Para os clérigos, tal autoridade deveria ter um cunho primeiramente religioso.
Parecia lógico, então, que, ao colocar-se o problema a nível interno, houvesse a
pergunta a respeito de quem dispunha da autoridade suprema dentro da Igreja. No
Oriente, defendeu-se mais urna federação de igrejas, atribuindo-se igual dignidade
a todos os patriarcados. Já no Ocidente há, desde o início uma supremacia da sé
romana e aos poucos, e nem sempre sem dissonâncias, o papa tornou-se o líder
eclesiástico inconteste.
Algo diferente acontecia no confronto entre a autoridade religiosa e a leiga.
Enquanto o basileos bizantino exerceu poder quase inquestionado sobre a igreja
grega, o bispo romano e o imperador ocidental, ao interpretarem a relação entre
ambos os poderes, mostraram que no Ocidente o césaro-papismo defrontava-se
com forte corrente hierocrática. Na esteira da tradição romana, Carlos Magno e

6
Otão I, por exemplo, consideraram o papa como o mais alto funcionário religioso
do próprio império, e nunca titubearam em intervir e legislar também em
assuntos eclesiásticos; em contrapartida, na corte pontifícia (baste recordar para
tanto Gregório VII), argumentava-se que tal como o espírito é superior ao corpo,
assim também o poder espiritual é superior ao temporal, cabendo ao papa o posto
supremo na condução da Cristandade. Quando estas duas doutrinas se
defrontaram em momentos cruciais, tanto aconteceu de o imperador depor o
papa, como de o papa depor o imperador, pesando em cada instante, acima de
tudo, o argumento do mais forte.
No entanto, e com isto chegamos ao segundo aspecto, algo de novo e
inesperado brotou destes debates que, talvez, parecem conservar apenas um caráter
arqueológico. Neles o Cristianismo acabou descobrindo sua originalidade ante o
político: pela primeira vez na História, a religião reivindicou para si um espaço não
coincidente com aquele reservado ao Estado. ―Dar a César o que é de César, e a
Deus o que é de Deus‖ implica em conceber uma forma de poder que rompe com a
concepção imperial romana. Quando os cristãos eram levados ao martírio, dizendo
que César não era senhor, que havia um só Kyrios, Jesus Cristo, estavam abrindo
caminho para os séculos futuros: há um senhorio inconteste de César, mas há um
senhorio superior de Cristo - os dois não se confundem, os dois não disputam o
mesmo espaço, o cristão professa uma dupla e distinta fidelidade a eles. Talvez a
Alta Idade Média não tenha percebido a distinção entre estes poderes; percebeu,
contudo, que nem sempre eles andam juntos.
Os textos do presente volume constituem uma análise tópica daquele
mundo diferente, que não pode ser lido com as categorias de nossa época, se o
quisermos compreender em sua originalidade.

Porto Alegre, 29 de maio de 1995.


Luis A. De Boni

7
1

A IGREJA NASCENTE EM FACE DO


ESTADO ROMANO

DANIEL VALLE RIBEIRO


Universidade Federal de Minas Gerais

O estudo das relações entre a Igreja e o Estado na Idade Média alcança um


longo período. Estende-se do século V ao século XV. Torna-se necessária uma
análise preliminar da situação do cristianismo em Roma — primeiro como religião
perseguida, depois favorecida e mais tarde como religião oficial do Império
Romano. A conversão de Constantino exerceu considerável influência nos
progressos da nova doutrina. As concessões e favores conduziram à
institucionalização da Igreja e influíram na conduta desta na Idade Média.

A IGREJA E O ESTADO ROMANO


É do conhecimento comum que as relações entre a Igreja e o Estado foram, ao
longo de três séculos, marcadas por lutas freqüentes e violentas. Sem o amparo do
estatuto legal da religio licita, o cristianismo tornou-se proscrito pelo Estado
Romano, intransigente na defesa do culto do imperador. De sua parte, embora
considere o Estado como expressão da vontade divina, a Igreja mantém-se
irredutível na defesa de sua fé e de sua liberdade.
A exegese católica repousa na pregação de são Paulo. Na famosa Carta aos
Romanos,1 diz o Apóstolo: ―Sejam todos submissos às autoridades superiores
porque não existe autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram
instituídas por ele. Aquele que resiste à autoridade, rebela-se contra a ordem
estabelecida por Deus e atrai para si a própria condenação. Com efeito, os
magistrados não existem para serem temidos quando se pratica o bem, mas
quando se faz o mal‖.

1
Rom 13, 1-7.

8
Note-se que são Paulo recomenda o respeito não apenas aos chefes da Igreja,
mas a todos os que exercem o poder e, por conseguinte, mesmo à instituição que
encarna a mais alta magistratura — o Império pagão.2
―Não desejas temer a autoridade?‖ —prossegue são Paulo —. ―Faze o bem e
receberás aprovação; porque o príncipe é um instrumento de Deus para te
conduzir ao bem. Porém, se fazes o mal, teme; porque não é em vão que ele porta
a espada, sendo o ministro de Deus, para fazer justiça e castigar os que praticam
o mal. É necessário ser submisso, não somente por medo do castigo, mas por
dever de consciência. Por essa razão, paga os impostos porque os magistrados
são ministros de Deus que o servem no exercício de sua função. Dá, então, a cada
um o que lhe é devido: o imposto, a quem deveres o imposto; o tributo, a quem
deveres o tributo; o respeito, a quem deveres o respeito; a homenagem, a quem
deveres a homenagem‖ 3
Não é outro o ensinamento de são Pedro. Na sua primeira epístola, proclama a
submissão de todos ao poder humano porque ele vem de Deus. Afirma que a
autoridade do soberano impõe-se ao respeito e à obediência porque ele é o
delegado de Deus para promover o bem e impedir o mal. 4 Para Arquillière,
estamos diante de uma ―conception ministérielle du pouvoir séculier. L‘autorité
Du Prince s‘impose au respecte et à obéissance parce qu‘elle est l‘instrument de
Dieu pour promouvoir Le bien et réfréner Le mal‖.5 Depara-se-nos, aí, um
fundamento providencialista do poder, isto é, de que o poder decorre da ação da
providência divina. Em suma, os princípios políticos do cristianismo apostólico,
assim expressos e definidos, afirmam a separação absoluta entre a Igreja e o
Estado, a submissão dos fiéis à autoridade constituída e a participação do Estado na
obra da Providência.

A LITERATURA PATRÍSTICA
A literatura patrística reflete a doutrina paulina. Embora as questões
pertinentes ao dogma constituíssem a preocupação dominante, aos Padres da Igreja
não escapavam as implicações da vida política. Os textos elaborados ao longo do
período que se estende até a paz de Constantino podem orientar-nos sobre as
relações da Igreja com o Império. Problemas de justiça, ordem social e paz,

2
ARQUILLIÈRE, Henri-Xavier. L‘augustinisme politique. Essai sur La formation des théories
politiques du Moyen Age. 2. ed. Paris: J. Vrin, 1956. p. 91.
3
Rom 13, 3-7. São Paulo retoma várias vezes esse ensinamento. Na Epístola a Tito, por
exemplo, ele recomenda que se lembre aos fiéis ―o dever de serem submissos aos magistrados e
às autoridades‖. Tt 3, 1-7.
4
1Pd 2, 13-17.
5
ARQUILLIÈRE. L‘augustinisme politique. cit. p. 93.

9
inerentes ao direito natural do Estado, acabarão absorvidos pelo cristianismo. Os
ensinamentos desses textos irão instruir a conduta da Igreja nas suas relações com
o poder secular. Posto que esquematicamente, examinemos o pensamento de
alguns desses autores da tradição patrística.
Santo Irineu (130-202), bispo de Lyon, que conheceu de perto a perseguição
de Marco Aurélio, aborda o problema das relações com o Estado. 6 Apoiado na
passagem da Epístola aos Romanos (13, 1-7) relativa aos poderes estabelecidos,
afirma que Deus não pedirá contas aos reis do que estes tenham realizado de justo
e conforme a lei. Mas, tudo o que tiverem tentado contra a lei, poderá tornar-se
causa de sua condenação. A eles deverão os homens submeter-se resignadamente,
pois alguns lhes são dados para o seu bem, outros para o seu castigo, segundo seu
merecimento. A Deus caberá julgá-los.7
Teófilo de Antioquia trata de outro problema capital das relações do
cristianismo primitivo com o Império: o culto do imperador. Diz ele: ―Eu honro o
imperador, mas não o adoro: rezo por ele. Adoro o autêntico e verdadeiro Deus
vivo, aquele a quem o imperador deve sua existência. Tu me dirás: Por que não
adoras o imperador? Porque não foi feito para ser adorado, mas para ser cercado de
legítimo respeito. Porque não é um Deus, é um homem a quem Deus confiou um
cargo, não para ser adorado mas para julgar segundo a justiça. O título de
imperador lhe pertence e não é permitido a outro usá-lo. Da mesma maneira, não é
permitido adorar senão ao único Deus. (...) Honra, pois, ao imperador, amando-o,
obedecendo a ele e rezando por ele. Assim fazendo, observarás a vontade de Deus,
porque este é o preceito divino: ―Honra, meu filho, a Deus e ao soberano, e não
lhes sejas rebelde; porque eles punirão logo seus inimigos‖. 8 Teófilo guarda, como
se vê, absoluta fidelidade ao pensamento paulino.
Tertuliano (155-220) é o mais notável teólogo latino até o aparecimento de
santo Agostinho. De formação jurídica e temperamento polêmico, escreve dois
tratados em defesa dos cristãos e da Igreja contra as acusações da sociedade pagã
— Ad nationes e Apologeticum. Sustenta que o imperador é César porque foi
estabelecido por Deus. É sobretudo interessante seu comentário acerca dos limites
do poder imperial. Assegura no Apologeticum, aparecido em 197: ―Quanto a nós,
para a salvação dos imperadores, invocamos o Deus eterno, o Deus verdadeiro, o
Deus vivo, de quem os próprios imperadores preferem a benevolência mais que a
[benevolência] das outras divindades: sentem que Ele é o único Deus, e que eles
[imperadores] estão colocados sob seu poder, em segundo plano, após o que são os

6
Adversus haereses, 5, 24. Esta é a principal obra de Santo Irineu. Compreende cinco livros, tendo
sido os três primeiros escritos entre 180 e 189. Os últimos são de data incerta.
7
Adversus haereses, 5, 24. A documentação encontra-se em ARQUILLIÈRE. Op. cit. p. 95-6.
8
Ad Autolycum 1, 11. Sources Chrétiennes 20, 1948. p. 83-5. Nascido na Síria, Teófilo foi bispo de
Antioquia em 169. Morreu provavelmente em 182 ou 183.

10
primeiros, antes e acima de todos os deuses (...) Nós pedimos sempre por todos os
imperadores para que tenham uma vida longa, um reinado tranqüilo, um lar seguro,
exércitos corajosos, um senado fiel, um povo honesto‖. 9 Tertuliano indica as razões
dessa atitude: o dever de orar por nossos inimigos; a necessidade de rezar pelo
Império, em virtude da iminência do fim do mundo; por por fim, para que se veja
no imperador o eleito de Deus. Os cristãos sentem-se mais estreitamente ligados a
ele que os outros súditos: ―Ele é, antes de tudo, nosso César porque foi
estabelecido por nosso Deus‖.10 Tertuliano volta ao tema no seu Ad Scapulam
(212), ao reafirmar: ―O cristão não é inimigo de ninguém, nem mesmo do
imperador. Sabe que ele foi instituído pelo seu Deus e que deve amá-lo e respeitá-
lo (...) Deseja sua salvação como a de todo o Império, enquanto o século subsistir.
Nós honramos, pois, o imperador como homem que vem logo após Deus e a quem
deve tudo o que é (...) Ele é maior que todos, somente inferior ao verdadeiro
Deus‖.11 Registre-se, finalmente, sua conhecida condenação da lei injusta: ―Legis
injustae honor nullus‖.12
A segunda metade do século IV assinala o começo da idade de ouro da
literatura patrística. É a época de Atanásio de Alexandria, João Crisóstomo,
Agostinho de Hipona, Ambrósio de Milão, para citar alguns. A efervescência
religiosa favorece a expansão da vida espiritual e permite que a Igreja se organize.
A liturgia ganha magnificência. As indagações de natureza especulativa propiciam
o surgimento de controvérsias sobre questões fundamentais do dogma. E também a
época em que as relações de poder entre a Igreja e o Estado se revestem de uma
significação especial.
A santo Ambrósio (333-397), de quem falaremos adiante, coube tentar
estabelecer, no século IV, as atribuições respectivas dos poderes religioso e leigo.
De sólida formação jurídica e conselheiro dos imperadores Graciano e Teodósio, o
bispo de Milão é animado de forte sentimento de independência da autoridade
eclesiástica, vale dizer, da preeminência da Igreja. Assevera que o imperador é um
cristão revestido de púrpura; está sujeito à lei moral como todos os fiéis.13
São João Crisóstomo, bispo de Constantinopla (398-404), professa,
igualmente, a superioridade do poder espiritual. Para ele, as leis divinas impõem-se
aos que detêm o poder. Sustenta na sua Homilia 4: ―Ao rei são confiados os
corpos; ao sacerdote, as almas. O rei perdoa as dívidas, o sacerdote perdoa os
pecados. Aquele, pelo constrangimento; este, pela exortação. O rei dispõe de armas
visíveis; o sacerdote, de armas espirituais. Aquele faz guerra aos bárbaros, este luta

9
Apologelicum 30, col. 441-443, PL 1,502-04. Tradução de ARQUILLIÈRE. Op. cit. p. 99.
10
Apologeticum 32, co). 447. PL 1, 508 ss.
11
AdScapulam 2, col. 700. PL 1,778.
12
Ad nationes 1,6. Col. 566. PL 1,636.
13
PALANQUE, Jean-Rémy. Saint Ambroise et l‘Empire romain. Paris: De Boccard, 1933. p. 355.

11
contra os demônios (...) Eis por que o rei curva a testa sob as mãos do sacerdote, e
em todo o Antigo Testamento os sacerdotes ungiam os reis (...) Eu digo isso não
porque queira difamar os reis, mas para os que exaltam a presunção e a cólera, a
fim de que saibas que o sacerdócio é maior do que a realeza‖.14
Na tradição patrística, portanto, os súditos devem obedecer à lei civil,
submeter-se à justiça secular. Entretanto, a obediência ao Estado conhece limites.
Sujeita-se a uma hierarquia de ordens e de leis. A lei de Deus sobrepõe-se à lei
humana. Nada se deve fazer contra a primeira, sob o pretexto de obediência à
segunda. Em conseqüência, a resistência à lei má ou injusta é legítima. Como
assinala Gaudemet, ―elle se borne à une attitude de résistance passive, au refus de
faire Le mal, qui exposera peut-être au martyr. Elle NE saurait autoriser
l‘insurrection‖.15
Existe, pois, um equilíbrio instável entre a aceitação e a recusa ao Estado pelos
cristãos. Como explicar, então, essa progressiva rejeição ao poder romano? Esse
sentimento de recusa origina-se nas perseguições sistemáticas e na insegurança
jurídica em que vivia a comunidade cristã. H. Rahner salienta, com razão, que esse
sentimento de oposição ao Estado tem raízes mais profundas: baseia-se na própria
Revelação divina, contida no Antigo Testamento, de que a espécie humana é
chamada a participar do futuro reino do Messias, único rei, onde reinarão a paz e a
justiça. Instruído pela Revelação, o homem não poderia aceitar o Estado despótico
porque Estado e política são considerados, dentro dessa óptica, coisas secundárias e
efêmeras. A oposição aos grandes Impérios do Oriente já aparece, aliás, no livro de
Daniel e na epopéia dos Macabeus. De fato, a Igreja nascente nutre simpatia pelos
jovens executados na fogueira, por Daniel e pelos irmãos Macabeus e os torna
como modelo na sua luta contra o despotismo religioso. 16
Por último, deve ser lembrado que a desobediência ao Estado decorre da
própria concepção religiosa de Roma. Herdada de velhos princípios italiotas e
helenísticos, atribuía ao imperador, representante do Estado, qualidades, privilégios
e poderes comumente conferidos ao sacerdote. Dito de outra maneira: o poder
romano outorgava função pública à religião. Com efeito, Augusto e seus
sucessores assumiram o principado e a dignidade de Pontifex Maximus, isto é,
eram os primeiros da res publica e sumos sacerdotes da religião do Estado. Tal
acontecimento é assim visto por um especialista das relações entre Igreja e Estado:
―L‘empereur, prêtre supreme: ce fait constituait um problème pour lês chrétiens.
Certes, on constate que, au cours de l‘histoire, lês prérogatives religieuses se
réduisent jusqu‘à n‘être plus qu‘um simple titre: mais depuis l‘origine jusqu‘aux
14
Homélies 4, 5. Sources Chrétiennes 277, 1981. p. 165-71.
15
GAUDEMET, Jean. L‘Eglise dans l‘Empire romain. Paris: Sirey, 1958. p. 496.
16
RAHNER, Hugo. L‘Église et l‘État dans le christianisme primitive. Paris: Éd. du Cerf,
1964. p. 30-1.

12
derniers siècles de l‘Empire, on trouve une pensée qui accordait à l‘Etat Le droit
de régler absolument à as guise La vie religieuse de sés sujects, et une telle pensée
NE pouvait que se heurter à um ‗non‘ catégorique chez lês chrétiens‖.17
Reside aí, com efeito, a raison d‘être da oposição cristã ao Estado. Fiel à sua
doutrina, a jovem Igreja coloca-se contra o poder constituído. Nutre sentimento de
hostilidade à instituição imperial. Fica ao lado dos humildes. Prefere a companhia
dos que lutam contra o despotismo.

A VITÓRIA DE CONSTANTINO E AS RELAÇÕES DE PODER


A adesão de Constantino abre novas perspectivas ao cristianismo. O chamado
Edito de Milão (313) coloca a religião nascente em condições de igualdade com as
demais. Dominado por exaltação mística e razões de Estado, o novo senhor do
Império estava seguro do caminho a seguir: edificar a unidade com o concurso da
Igreja. Após a vitória parece ter crescido nele a consciência de sua própria missão.
Acredita-se mesmo um enviado do Senhor. Ao esboçar seu programa de governo,
afirma: ―Deus me quis a seu serviço e me julgou apto a executar seus desígnios‖ 18.
Constantino está convencido de que seu imperium vem de Deus. Em decorrência, a
Igreja é importante para a execução de sua política imperial. O príncipe vê nela um
instrumento admirável e uma ―religião de Estado‖ para sustentar seu governo,
razão por que devia sujeitá-la.19
As relações de poder entre a Igreja e o Estado não parecem conduzir, durante
algum tempo, a uma ruptura do equilíbrio. Como cristão, devia o imperador
submeter-se às prescrições eclesiásticas e conduzir a política de acordo com a
moral cristã. Entretanto, os poderes exorbitantes do soberano acabaram por
estender-se sobre toda a Igreja e esta não pôde preservar sua jurisdição sobre
matéria religiosa. Na verdade, o imperador torna-se ―o primeiro senhor da Igreja‖,
regendo-a com absoluta falta de escrúpulo. Antes reprimido, o cristianismo é agora
a religião mais favorecida. A Igreja beneficia-se de múltiplas concessões — terras,
templos, funções públicas. Mas tem um preço a pagar: sua liberdade. Essa
interpenetração progressiva entre os poderes eclesiástico e leigo será um dos traços
marcantes até o fim do século V.

17
Idem, ibidem. p. 33.
18
EUSÉBIO. Vita Const 2, 28.
19
Cf. PACAUT, Marcel. La théocratie. L‘Église et le pouvoir au Moyen Age. Paris: Desclée, 1989. p.
14-7. Cf. ALFÔLDI, Andrew. The Conversion of Constantine and pagan Rome. Oxford: Claredon
Press, 1948. p. 36 ss. Cf. BAUS, Karl & EWIG, Eugen. Storia della Chiesa. L‘Epoca dei Concili.
Milano: Jaca Book, 1977. v. 2. p. 4 ss. Cf. ainda MAZZARINO, Santo. La fin Du monde antique.
Paris: Gallimard, 1973. p. 111-19.

13
Com Teodósio, que reinou no final do século IV (379-395), o cristianismo
converte-se em religião oficial. E imposto a todos os súditos, enquanto as
outras doutrinas sofrem discriminação. A Igreja institucionaliza-se e, em
decorrência, configura-se uma hierarquia eclesiástica a que se reconhece
competência administrativa e jurisdicional: estabelece-se estatuto privilegiado
aos clérigos, que passam a gozar de favores fiscais, e a dispor de patrimônio
resultante de doações e liberalidades. Essa interpenetração entre as duas
sociedades, sem duvida materialmente favorável à Igreja, é também a mais
nociva ao seu ministério espiritual.
O apego do clero romano ao bem-estar é lastimado por Amiano Marcelino
(AM 27, 3,14). Também são Jerônimo estigmatiza com energia os estranhos
abusos que a prosperidade crescente da Igreja Romana introduzia em seu seio, nota
Duchesne.20 Tornando-se cristão, Teodósio desejou converter também o Império, e
não somente converter, mas fazer da nova religião o que não pudera fazer com a
antiga – uma instituição universal e oficial, uma religião de Estado. 21
No século IV erguem-se numerosas e magníficas igrejas graças ás doações
imperiais e, segundo o novo modelo imperial, a basílica, edifício muito semelhante
à ―sala de audiência‖ do imperador. Na verdade, porem, a Igreja do século IV é
uma Igreja rica e marginal em relação ao saeculum.22 Teoricamente, o imperador
não determina as formulas de fé – é assunto dos bispos. Também não se atribui o
direito de depor um bispo – competência da igreja. Na prática, contudo, o
cristianismo ―converte-se na religião do imperador, não somente no sentido de que
era professada, mas também dirigida por ele‖ (L. Duchesne).
A tutela imperial torna-se sufocante. Fraco ainda, o papado pouco pode fazer
diante da onipotência do estado Romano. A igreja conta, certamente, com homens
de valor, alguns até de expressão política. Mas faltam-lhe organização centralizada,
aparelhagem administrativa, quadros e meios para aspirar à teocracia, ou mesmo
com ela sonhar. Contudo, Roma toma a palavra. A partir do século IV é o bispo de
Roma quem lidera a luta pela liberdade. Saliente-se que a crescente perda de
autoridade dos imperadores do ocidente impediu qualquer pretensão ao
cesaropapismo. No oriente, os imperadores arianos, com o apoio freqüente de
bispos de Constantinopla, prepararam o cesaropapismo bizantino.
Diante da ameaça, elabora-se doutrina contrária à intervenção imperial nos
negócios da Igreja. Os bispos opõem-se ao imperador ariano Constâncio II, que
nos concílios ―fazia de sua vontade a lei da Igreja‖, que perseguiu Atanásio de

20
DUCHESNE, Louis. Histoire ancienne de l‘Église. 3 ed. Paris: Albert Fontemoing, 1907.
v. 2. p. 459.
21
Idem, ibidem. P. 656.
22
BROWN, Peter. Antiguidade Tardia. In: ÁRIES, Philippe & DUBY, Georges, org. História da vida
privada. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1990. v. 1. p. 265.

14
Alexandria e mandou para o exílio outros bispos. As variações da política
imperial no tocante às relações com a Igreja favoreceram modificações na
conduta dos homens do clero. Assim, quando o arianismo pareceu superado, a
doutrina eclesiástica adotou o princípio da colaboração estreita. Mas quando a
crise oriental se agravou, no final do século V, voltou-se a insistir na separação
e distinção dos ofícios.

DOUTRINAS DE NÃO-INTERVENÇÃO NO SÉCULO IV


Essas doutrinas elaboram-se especialmente durante o reinado de Constâncio II.

Ossius de Córdoba
O Concílio de Sárdica (343), reunido para discutir a ingerência do poder
temporal nos assuntos internos da Igreja, exprime um prelúdio dessas doutrinas. A
carta que os bispos dirigem a Constâncio é formulação clara do princípio de não-
intervenção do poder imperial na esfera religiosa.
Mas foi sobretudo Ossius que, pressionado a subscrever a sentença de
condenação de Atanásio, dirigiu ao imperador famosa carta (356) em que expressa
a doutrina eclesiástica da não-intervenção. Esse documento constitui a primeira
manifestação oficial a respeito das relações entre os dois poderes.23 O bispo
assevera a submissão do príncipe cristão à Igreja e preconiza a separação de
atribuições: ―Não te intrometas nos negócios da Igreja e não nos dês ordens a esse
respeito. Mas aprende conosco. Deus te colocou nas mãos o Império e a nós
confiou os negócios da Igreja‖.24
A mesma doutrina encontra-se em outros bispos, desterrados porque se
recusaram a subscrever a condenação de Atanásio. Assim, Lúcifer de Cagliari
compõe no exílio (354-61) obras violentas contra o soberano. Não teme enviar
a Constâncio a manifestação de sua intransigente independência: (...) ―Prova
[então] que foste designado nosso juiz, prova que foste feito imperador para
que, pela força das armas, nos obrigues a executar todas as vontades do teu
amigo, o diabo (...) Como podes pretender julgar os bispos, quando não lhes
obedeces; já estás condenado à morte, perante Deus! Nessas condições, como
tu, que és profano, podes assumir tal autoridade sobre os amigos de Deus, sobre
os sacerdotes de Deus?‖.25

23
GAUDEMET. L‘Église dans l‘Empire romain. cit. p. 498.
24
Citado por GAUDEMET. Op. cit. p. 499.
25
Escrita provavelmente em 357 ou 358. Pro Sancto Alhanasio 1. PL 13, 823. A carta está em
ARQUILLIÈRE. Op. cit. p. 104 e GAUDEMET. Op. cit. p. 499.

15
Outro que se ergueu contra o imperador Constâncio foi Hilário de Poitiers.
Exilado na Frígia (356), no Oriente grego, o bispo redige numerosos panfletos
nos quais denuncia os perigos da intervenção imperial na esfera religiosa. Sua
obra Contra o imperador Constâncio é grito vigoroso na defesa da liberdade da
Igreja. Embora firme, Hilário mostra-se menos violento que seu
contemporâneo Lúcifer de Cagliari.

Santo Ambrósio
Ardente defensor da independência da Igreja, como se afirmou, santo
Ambrósio não se contenta apenas em sustentar a liberdade do poder espiritual:
solicita a ajuda do Estado. Para assegurar a autonomia da Igreja, a doutrina
ambrosiana26 separa a religião da res publica, ou seja, o temporal do espiritual.
Conseqüentemente, a fé não depende senão da Igreja, e o imperador, sendo cristão,
a ela está submisso. Em matéria religiosa, o soberano deve seguir as instruções da
Igreja. Por outro lado, deve ajudá-la a buscar o bem comum.
A questão essencial das relações entre a Igreja e o Estado estará sempre
colocada: como estabelecer os limites entre um e outro poder? Ambrósio de Milão
busca o caminho ao recomendar ao próprio Teodósio — ―Imperator enim intra
Ecclesiam, non supra Ecclesiam est‖ (―o imperador está na Igreja, não acima da
Igreja‖).27 Em outros termos: reconhece os direitos do príncipe, mas afirma que,
em sua qualidade de cristão, está submetido a Deus. Deve por isso respeitar o
direito, os bens e a honra de seus súditos. Considera o imperador como legislator
supra legem: acima da própria lei. Mas, se sua autoridade é preeminente no jus
publicum, seu poder detém-se no domínio reservado. Santo Ambrósio abriu o
caminho para as futuras definições dos papas Dâmaso e Gelásio. Suas idéias irão
inspirar a doutrina do primado da ordem eclesiástica de santo Agostinho e a do
ministerium regale que a Idade Média professará.28

DOUTRINAS DE COLABORAÇÃO
O período compreendido entre a morte de Teodósio (395) e a ascensão de
Zenão (474) é especialmente favorável, sobretudo no Ocidente, às relações entre a
Igreja e o Estado. A convivência estreita-se, superam-se as dificuldades, uma ou

26
Sobre o pensamento político de Santo Ambrósio, cf. CARLYLE, A. J. A History of Mediaeval
Political Theory in the West. London: W. Blackwood, 1903. v. 1. p. 180-84. Cf. BATIFFOL, Pierre.
La Siège apostolique. Paris: Gabalda, 1924. p. 51 ss. Cf. também PALANQUE. Op. cit. P. 371 ss.
27
Sermo Contra Auxentium 36. PL 16, 1018. Cf. a tradução de RAHNER. Op. cit. p. 134-46.
(Documento 13 b).
28
GAUDEMET. Op. cit p. 500.

16
outra crise mais séria não perturba a aproximação. A doutrina eclesiástica já não
acentua com o mesmo rigor a distinção entre os dois domínios. Insiste-se agora na
colaboração, apressa-se o entendimento. A fraqueza da autoridade dos príncipes e
mesmo sua devoção à Igreja favorecem quadro de sensível influência eclesiástica.

Santo Agostinho
No início do século V, santo Agostinho aparece como o grande defensor dessa
política de colaboração. Fundamentado nas Escrituras, mas apoiado também em
textos de santo Ambrósio, o famoso bispo de Hipona formula doutrina mais
adequada às circunstâncias. O Império, enfraquecido, necessita da Igreja. A
solidariedade entre os dois poderes parece útil, inclusive para combater as heresias,
consideradas por diversas razões um perigo para o Estado e para a Igreja.
Embora sem examinar pormenorizadamente o pensamento político de santo
Agostinho, tema de outro capítulo, recorde-se que o grande doutor distingue
nitidamente os dois poderes, que diferem em seu objeto: o Estado ocupa-se dos
interesses materiais, e a Igreja dos interesses espirituais; em sua natureza: uma é
física, a outra é moral; em seus meios de ação: o Estado recorre à espada para
impor e defender sua autoridade, a Igreja exerce sua autoridade pela caridade; em
seus fins e destino: o Estado é temporário, desaparece, ao passo que a Igreja é
eterna. Existem, entretanto, diferenças entre as duas sociedades, ambas feitas de
homens e para o bem do homem. Entre os dois poderes existe por vezes
concordância na preocupação quanto ao bem comum. De sua parte, a Igreja
empresta ao Estado seu ensinamento moral, suas preces, e impõe aos seus fiéis a
obrigação de obediência. Cabe ao Estado assegurar à Igreja paz, proteção e ajuda.
Essa colaboração não implica perda da preeminência do espiritual, isto é, da
Igreja, de vez que os fins desta são superiores aos do Estado. Tal preeminência,
por outro lado, não significa necessariamente teocracia. Mesmo porque, à época
do autor do De civitate Dei, o papado não era suficientemente forte para
sobrepor-se ao Estado. O pensamento político de santo Agostinho terá poderosa
influência na Idade Média.

Leão I
O papa Leão I governou a Igreja de 440 a 461. Adotou de perto a doutrina da
união dos poderes, sem renunciar aos direitos da Santa Sé. Além da grande
contribuição à doutrina da primazia papal, Leão I deixou importante auxílio à idéia
de colaboração estreita entre a Igreja e o Estado. Essa doutrina de aproximação
atendia às necessidades da época e, assim, não parece estranha a cautelosa adesão
do papa. Posto que favorável à união dos poderes temporal e espiritual, S. Leão

17
tem idéia nítida sobre os direitos da Sé Romana. Julga que o primeiro dever do
imperador é ajudar a Igreja. Essa ajuda ―se traduit par des interventions impériales
dans la vie de l‘Église que le pape admet et parfois sollicite. Il prie l‘empereur de
reunir le concile, mais il se reserve de décider de l‘opportunité de cette réunion et
de fixer l‘ordre du jour de l‘assemblée‖29 Destina-se também a resolver querelas
doutrinárias ou mesmo questões disciplinares. A autoridade religiosa cabe
determinar matéria de fé, regulamentar a disciplina e administrar o patrimônio.
Evidentemente, a aplicação dessa doutrina de estreita colaboração só tem êxito
quando o imperador é devotado à Igreja e pronto a respeitar-lhe os direitos.
Note-se, porém, que as relações entre a Igreja e o Estado conheceram novo
curso no final do século V. Leão I havia afirmado com insistente firmeza a tese
do primado papal e lançado as bases de uma doutrina de independência. No
entanto, persistiu na antiga linha de união dos poderes religioso e temporal, e
manteve-se sob a proteção do imperador. A diferença mais nítida entre um e o
outro poder começou a delinear-se no pontificado de Felix III (483-492),
seguramente por influencia do cisma de Acácio, e teria seu perfil definido por
Gelásio I (462 – 496).30
Pode-se afirmar que as relações de poder entre a Igreja e o Estado no
Ocidente, no final do século V, tendem para uma solução de equilíbrio. Há a
busca constante de superação de problemas. Assim é que a doutrina do poder
secular vai ao encontro do mesmo ideal de entendimento e afirma os mesmos
princípios manifestados pela Igreja.
Sem dúvida, a ligação com o Estado trouxe à Igreja consideráveis vantagens.
A sombra do poder imperial, ela manteve sua unidade diante da crise ariana,
estruturou-se, prosperou. O preço foi elevado, porém. Conheceu a intervenção
direta do Estado até em matéria doutrinária, quase sucumbiu à tentação de riqueza,
caminhou para a intolerância.31 O espantoso apego do clero ao bem-estar foi
lastimado por alguns. São Jerônimo, como vimos, chegou a condenar os abusos
decorrentes da prosperidade crescente da Igreja Romana.
Desde o século IV vinha o cristianismo atraindo alguns dos melhores espíritos
da sociedade romana — Ambrósio, Hilário de Poitiers, Agostinho, Atanásio, João
Crisóstomo. Demais, a riqueza que antes se aplicava na construção de teatros e
aquedutos destinava- se agora à edificação de igrejas. Alterou-se o equilíbrio social
em benefício do sacerdote, em desvantagem para as antigas instituições imperiais.

29
Id.Ib.p.503.
30
Ao examinar a doutrina gelasiana, Marcel Pacaut afirma: ―Dualisme, explicite avec clarté, et
coopération: voilà finalement lês notions essentielles que l‘Antiquité legue au Moyen age‖. PACAUT.
La théocratie. cit. P. 20-1.
31
Cf. HILLGARTH, J. N. Christianity and Paganism. Philadelphia: University of Pennsylvania Press,
1986. p. 4-5. Cf. DUCHESNE. Op. cit p. 459.

18
Enquanto ―the political organization of the empire became increasingly rigid,
unimaginative, and unsuccessful, the Church was mobile and resilient and
provided space for those whom the State was unable lo absorb‖.32
Em 476 caiu o Império e o Estado fracionou-se. Das ruínas restou a Igreja,
única força organizada. Ancorada no prestígio que lhe dava sua doutrina,
dententora da cultura, possuidora de bens e terras, pôde consolidar
progressivamente sua posição. Por isso, da autoridade soberana, imperial e
universal de Roma fez-se a herdeira presuntiva. A formulação da teoria da
monarquia pontifícia será estudada no capítulo 3 — ―Leão I: A Cátedra de Pedro e
o primado de Roma‖.

APÊNDICE

A mais antiga pregação cristã sobre o Estado


―Com efeito, aqueles que crêem em Deus não têm que dissimular, e não têm
que temer os que detêm o poder, se não praticam o mal. Mas se obrigados, em
virtude de sua fé em Deus, a agir de outro modo, preferem morrer felizes a fazer o
que lhes é ordenado. Quando o apóstolo diz que ‗é preciso submeter-se a todo o
poder dominante‘ (13, 1), ele não faz alusão a esse caso. Não pede que
renunciemos à nossa fé nem aos mandamentos divinos para executar as ordens dos
homens, mas que, por deferência ao poder, não cometamos nenhum delito, de
modo a não sermos castigados como malfeitores. Eis porque ele acrescenta: ‗o
carrasco é servidor de Deus‘ (Rom 13, 14), contra aqueles que praticam o mal.
‗Não queres temer o poder? Faze o bem e obterás louvor. Mas se praticares o mal,
teme. Não é em vão que ele usa a espada‘. Por conseguinte, o apóstolo recomenda
que se submeta a uma existência santa e piedosa neste mundo, e que não se tenha
diante dos olhos o perigo da espada‖.

HIPÓLITO DE ROMA. Comentário sobre Daniel. Sources Chrétiennes


14, 1947. p. 156.

32
MOMIGLIANO, Arnaldo. The Conflit Between Paganism and Christianity in Fourth Century.
Oxford: Clarendon Press, 1963. p. 1-10.

19
2

A “CIVITAS” POLÍTICA DE AGOSTINHO


Uma leitura a partir do Epistolário e do A Cidade de Deus1

FRANCISCO MANFREDO TOMÁS RAMOS


Instituto Teológico de Fortaleza

A fonte principal de nosso estudo: o Epistolário


Poderia causar estranheza — e não somente ao leigo — o fato de
pretendermos nos servir do Epistolário de Agostinho como fonte principal para um
estudo de maior envergadura acerca das idéias políticas do grande Doutor (354-
430). É preciso, pois, salientar, logo de início, que suas cartas à nossa disposição
hoje (cf. PL XXXIII 270 cartas; CSEL LXXXVIII, 31 cartas) não são apenas
confidenciais e pastorais, mas também doutrinais (filosófico-teológicas, as mais
numerosas) e oficiais. Cobrem elas todo o arco da vida de Agostinho a partir de sua
conversão, e refletem o século agitado em que ele viveu; a decadência do Império
Romano do Ocidente, sua vida econômica, política e religiosa. A sociedade e a
família espelham-se bem nelas. Pense-se, por exemplo, nas 54 cartas sobre a luta
donatista em que, por 30 anos, Agostinho empenhou o melhor de suas energias. As
intrincadas questões sobre a graça, por ocasião da polêmica com os pelagianos, são
tratadas a fundo em 29 cartas das quais algumas são clássicas (cf. Eps. 140; 186;
217...). As invasões bárbaras que assolam a Europa e chegam até o norte da África,
em particular o assédio de Roma de 410, escandalizam os cristãos e servem de
pretexto a intelectuais pagãos para atribuir à nova religião, que prega a
misericórdia e a mansidão, a culpa de tais calamidades; isto dará ocasião a

1
O presente artigo é uma síntese parcial das conclusões a que chegamos numa recente pesquisa: A
idéia de Estado na doutrina ético-política de S. Agostinho (Um estudo do Epistolário comparado com
o ―De Civitate Dei‖). Coleção ―Fé e Realidade‖ 15, São Paulo: Loyola, 1984, 730 p. Foi publicado,
originariamente, pela revista Perspectiva Teológica, XVII (1985), n. 41, p. 63-76, no Centro de
Estudos Superiores da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte (Brasil). Agradecemos tanto à Edições
Loyola quanto à direção da Revista Leopoldianum a permissão de reeditar o texto.

20
Agostinho de escrever as cartas a Deogratias, Vitoriano, Volusiano, Marcelino e
Macedônio (Eps. 102; 111; 135-138; 152-155), que, sob vários aspectos, podem
considerar-se como anteprojetos parciais da obra monumental do De Civitate Dei.
Não só os pagãos, mas ainda os maniqueus, os arianos e outros hereges, são
refutados no Epistolário. Problemas teológicos, exegéticos, eclesiológicos, morais,
filosóficos, são aí debatidos com maestria.
Esta correspondência é enviada aos quatro pontos cardeais do mundo
civilizado de então. Seus destinatários pertencem a todas classes sociais e
estados de vida: a hierarquia eclesiástica está toda presente, desde o papa ao
humilde subdiácono da vizinha diocese; uma teoria de oficiais e funcionários
do Estado comparecem igualmente nas pessoas de senadores, governadores,
cônsules e pró-cônsules, vigários da África, comissários imperiais, mestres dos
ofícios, ―principales‖, ―civitatis curatores‖, tribunos, notários, decuriões...
Muitas destas epístolas, além disso, ―são sínteses perfeitas de longas
elucubrações‖ dos grandes tratados, enriquecidas ainda pela ―índole
circunstancial e ocasional‖ que lhes é própria.2
Apesar disso, e não obstante o enorme volume de publicações que dia-a-dia
cresce acerca do pensamento agostiniano, o seu Epistolário, como conjunto,
continua praticamente inexplorado, principalmente no tocante aos temas
doutrinais.3 O presente estudo vem mostrar, precisamente, um dos pontos (e de
capital importância dentro do ―augustinismo‖) em que as cartas do Hiponense têm
algo de original a nos dizer: o político. Pretende-se definir, em particular, a
natureza, a finalidade própria e o valor do Estado terreno, da ―respublica
civitasque terrena‖ [―república e cidade terrena‖] (Ep. 91, n. 4), que é ―multitudo
hominum in quoddam vinculum redacta concordiae‖ [―multidão de homens
reunida por certo vínculo de concórdia‖] (Ep. 138, n. 10).4

I - A PROBLEMÁTICA
O pensamento político de Agostinho é por demais estudado e discutido
para que se faça ainda necessário encarecer-lhe a profundidade, a importância e
a atualidade. Bastaria para constatá-lo reler as atas da primeira sessão plenária
2
Cf. CILLERUELLO, L. In: Obras de San Augustin, tomo VIII. Madrid: BAC. 1951, p. 2-3.
3
O exauriente Fichier Augustinien (4 v. Institut des Études Augustiniennes, Paris, 1972) elenca apenas
86 estudos sobre as cartas em geral. Os temas tratados são: Agostinho e Jerônimo; Paganismo e
Cristianismo; aspectos literários; Igreja do século IV no norte da África; os correspondentes de
Agostinho; a responsabilidade do cristão (1); a Cidade de Deus nas cartas (S. PRETE); caráter de
Agostinho; os bens temporais (M. RAMOS); pelaglanismo; O Epistolário de Sto. Agostinho (2). A
pesquisa bibliográfica ulterior que fizemos (1961 até hoje) não enriquece este acervo.
4
A tradução das palavras e frases latinas entre colchetes é da responsabilidade da Redação de
Perspectiva Teológica, como também a de algumas frases da carta 155, no Apendice.

21
do Congresso Agostiniano Internacional de 1954, ou compulsar, mesmo
superficialmente, os repertórios bibliográficos especializados. Como no-lo
nota, por exemplo, E. L. Fortin, nesta época dividida entre duas tendências
opostas — a primeira, uma utopia de democracia radical e igualitária que se
alia por vezes à violência sistemática, fruto ambas da filosofia do século XIX,
passando por Marx, Nietzsche e Heidegger; a segunda, configurada num
imobilismo conservador do ―status quo‖ e que pode tornar-se, como reação, tão
perigosa quanto a primeira — transparece, diz ele, a atualidade da ―teologia
política‖ de Agostinho, ―o pensador mais profundo da Igreja antiga‖, com sua
posição de equilíbrio, eqüidistante dos extremos. 5
E Henrique C. de Lima Vaz, nosso filósofo da História, escreve, por seu
lado: ―Às fontes filosóficas do pensamento político ocidental vêm juntar-se,
assim, as fontes teológicas das quais procede, por um aparente paradoxo,
sobretudo a partir dos fins da Idade Média, uma das correntes estudadas
magistralmente, entre outros, por Georges de Lagarde, que conduziram à idéia da
laicidade do Estado moderno. Entre essas fontes teológicas a mais importante é,
sem dúvida, santo Agostinho. A reflexão política de Agostinho move-se, como é
sabido, entre duas ordens de problemas, que ele situa dentro das vastíssimas
coordenadas do seu pensamento filosófico-teológico: a interrogação lançada
sobre a perenidade da ordem romana, abalada com a tomada de Roma por
Alanco em 410, e as relações entre o Estado cristão e a heresia, problema
suscitado pela revolta donatista na África. A influência do pensamento político
de Agostinho domina soberbamente toda a Idade Média e estende-se até os
tempos modernos. Na verdade, há uma vertente do pensamento político do
Ocidente que só pode ser entendida à luz das concepções de santo Agostinho e
daqui a importância do conhecimento exato da sua doutrina nesse campo‖.6
Estão longe, contudo, os conhecedores da matéria, de se acordarem — como
sói acontecer quando se trata com um gênio da envergadura de um Agostinho —
acerca da interpretação exata de não poucos pontos particulares de sua doutrina,
haja vista, a modo de exemplo, a questão sobre a mudança de opinião do mesmo
acerca da intervenção do Estado contra os circunceliões da seita de Donato. 7 Tais
divergências, aliás, têm raízes mais profundas. No exemplo agora dado, estas se
encontram na discussão a respeito do reconhecimento mesmo, por parte de

5
Cf. FORTIN, E. L ‗Idéalisme politique et foi chrétienne dans la pensée de Saint Augustin‖ In:
Recherches augustiniennes VIII (1972), p. 231-2.256.
6
H. VAZ, H. C. de Lima. Prefácio ao nosso estudo supra-referido, A idéia de Estado na
doutrina..., p. 16.
7
Vd. Epístolas 93 e 185 (Nuova Biblioteca Agostiniana, v. 21, p. 806-77,23,10-75) e o estudo de C.
BOYER, ―Droit et Moral dans S. Augustin‖ In: Essais anciens et nouveaux sur la doctrine de saint
Augustin, Milão, 1970, em confronto com S. COTTA, La città politica di S. Agostino, Milão, 1960.

22
Agostinho, de um Estado de direito, autônomo em relação à Igreja, e em última
análise a existência dc uma lei natural como fundamento do Direito.
Enfim, mesmo acerca das características fundamentais do assim chamado
―legítimo ou autêntico augustinismo‖, não há pleno acordo, e isto entre autores de
total ortodoxia católica:8 é assim, pois, que, em última instância, vêm à baila as
questões mais fundamentais sobre as relações do natural e do sobrenatural, do livre
arbítrio e da graça, do pecado e da justificação, da razão e da fé, da ciência e da
―sapientia‖, da filosofia e da teologia. Resulta então, no campo do político e em
particular no tocante à definição da natureza, da finalidade e do valor do Estado
terreno, toda uma série de questionamentos, a partir da perspectiva básica, em
Agostinho, das ―duas Cidades‖ (quas etiam mystice appellamus civitates duas
[―que também chamamos misticamente duas cidades‖] — DCD XV, i, 1).9
É na linha destas interrogações que se coloca o presente trabalho. É o próprio
Agostinho a nos dizer já numa das primeiras cartas, ao amigo Nebrídio, que de
todo ―existente‖ se deve perguntar pela natureza e pelo valor (...ita cum quaeritur
quid sit, necesse est ut et sit, et aliqua aestimatione pendatur‖,Ep. 11,4). O que
significa, pois a sua ―Civitas multitudo hominum in quoddan vinculum redacta
concordiae‖ do Epistolário [―cidade (Estado), multidão de homens reunida por
certo vínculo de concórdia‖] (vd. Ep. 138, 2, 10) ou o seu ―populus, coetus
,nultitudinis rationalis rerum quas diligit concordi communione sociatus‖
[―povo, multidão de seres racionais, associados pela participação concorde dos
bens que eles amam‖] do De Civitate Dei (XIX, XXIV) Para um pensador cristão
de linha platônica, que procura a ―sabedoria‖ que torna o homem ―bem-
aventurado‖, e que a repõe no conhecimento e no amor da Verdade, que é Deus
(cf. Ep. 118), como é vista a ―felicidade temporal‖ do Estado terreno? E como
poderia este atingi-la senão através da justiça? Eis-nos chegado ao terreno das
assim chamadas ambivalências ou antinomias agostinianas, em campo político.
Estamos diante de Agostinho que põe em dúvida a justeza da definição
ciceroniana de ―populus‖10 — sem que, paradoxalmente, dele
discorde.11Estamos diante de Agostinho, ―romano‖ e cristão, que louva os

8
Compare-se, por exemplo, ET. GILSON, Introduction à l‘étude de saint Augustin, paris, 1949, 3 ed.,
p. 229-323 ; F.CAYRÉ, ―Caractères speciaux de la philosophie augustinienne‖ (1954) In : Essais
anciens...,p. 71-86.
9
Cf. RAMOS, M. T. Op. cit., cap. V, art. 2.—O De Civitate Dei é referido no texto com a sigla DCD.
10
―Est igitur, inquit Africanus, respublica res populi, populus autem non omnis su ET utilitatis
communione sociatus‖ [É portanto, segundo o Africano, a república algo do povo; e o povo não é todo
e qualquer grupo de homens, reunidos de qualquer modo, mas a reunião de uma multidão associada
por um consenso jurídico e pela comunhão de interesses‖] (CÍCERO, De Rep. 1,39).
11
Vd. RAMOS, M. Ob. Cit., cap. III, final, com nota 77.

23
méritos do ―preclaro Império‖, e ao mesmo tempo lhe condena a ―cupiditas
hurnanae gloriae‖ [―a cobiça de glória humana‖].12
Estamos diante dos autores que, à vista destas páginas do Hiponense, se
dividem na interpretação da natureza de sua ―cidade política‖ e se perguntam, em
última análise, se o grande Doutor tê-la-ia ou não concebido como ―uma terceira
cidade‖, ―autônoma‖, ao lado das ―duas cidades‖ místicas (DCD XV, i, 1), capaz
de unificar todas as cidades políticas concretas da terra, e se ela, por si, poderia ou
não pretender atingir o ideal de um ―Estado justo‖. 13 Qual é, pois, a possibilidade
de realização de um Estado justo? Eis a pergunta central, aquela utopia que platão
e Cícero já procuravam. Mas como definir, então, a propria justiça? Sobre tais
questoes o epistolário tem algo a nos dizer, particularmente naquelas cartas que
chamaremos de politicas, as de numeros 137, 138, 153 e 155, e em tantas outras de
alto teor filosófico e teológico.
Deve-se estar atento para os riscos que se corre na interpretação da doutrina
politica (e do ―augustinismo‖ em si) do Hiponense: - não exagerar o valor de
expressoes obiter dicta, devidas antes, por vezes, ao calor da polêmica ou às
exigências da retórica; - querer encontrar em Agostinho um ―sistema completo de
verdades‖, onde ao invés se encontra um método a ser aplicado no problema do
destino humano; - querer salavar a ―autenticidade do social... com sua inegavel
problematicidade‖, sem colocar-se no ponto de vista da ―sapientia‖[―sabedoria‖]
que nos aponta, mais acima, um Absoluto de valor. Além disso, ainda os debates
do Congresso de 54 nos mostram a necessidade de uma visão interdisciplinar,
aonde convergem a teologia, a exegese bíblica, a filosofia, a história e até a crítica
literária e a filologia, quando se queiram dirimir, até o fundo, as questões mais
espinhosas do pensamento politico de Agostinho.
Por tudo isso, não se deve transcurar de estabelecer o fundamento
metafisico da moral augustiniana, indispensável aliás para a compreensão de
toda sua doutrina,14 nem esquecer de debater o sentido da ―romanidade‖ de
Agostinho, que explicará bem melhor a ótica com que ele vê o Estado
terreno;15 tampouco negligenciar o confronto da ―respublica civitasque
terrena‖ [―republica e cidade terrena‖] (Ep. 91, 4) com a ―divina caelestisque
respublica‖ [―divina e celeste república‖] (Ep. 155, 1.1) que já é ―peregrina
nesta terra‖ (Ep. 91, 1), à cuja luz somente se pode aquilatar corretamente o
último valor do que é terreno (cf. Ep.. 258, 2);16 por fim, não deixar de
confrontar a imagem do estado ―ideal‖ de Agostinho, entrevisto numa

12
Ibid., cap. IV, art. 2º, D.
13
Ibid., cap. V, art. 2º B.
14
Vd. RAMOS, M. Ob. Cit., cap.
15
Ibid., cap. IV, art. 2º
16
Ibid., cap. V e VI.

24
perspectiva platônica e cristã, não puramente escatológica, com a imagem
―real‖, existencial, dos ―muitos reinos terrestres, nos quais se divide a
sociedade dos interesses e das cobiças terrenas‖ (...terrenae utilitatis vel
cupiditatis...societas – DCD XVIII, ii, 1), que de nenhum modo lhe fugia.17
Aqui precisamente está o nó do problema, sob o ponto de vista te´rico e
prático, na composição das duas imagens. O nosso titulo, ―Idéia do Estado...‖, quer
indicar isso. Chega Agostinho a conceber o Estado terreno de um modo unitário e
coerente? Esta sua unidade seria real, de tal modo que os vários estados concretos
poderiam pretender também constituir-se numa única ―civitas mundi hujus‖
[―cidade deste mundo‖], ou esta peramnece apenas como um ―universale
vocabulum‖ (cf. DCD, ibid.)? Neste ultimo caso, por que? – Responder a estas
perguntas significará, a nosso ver, determinar o alcance daquele ―quoddam
vinculum concordiae‖[―certo vinculo de concordia‖]. Será ela, a concordia, a
definir o Estado;18 é ela, enquanto se expressa na ―pax temporalis‖, o fim
específico a ser procurado e tutelado pelo mesmo;19 é ela por ela, ainda, que
propriamente se medirá o valor do estado, mas neste caso deverá ser ―ordinata
concordia‖[―concórdia bem-ordenada‖]. E como, então, poderá ser ela aferida,
enquanto valor?20

II - NOSSAS CONCLUSÕES
1 - Nota prévia: a descoberta do Epistolário
Não será fora de propósito chamar ainda a atenção, como primeira conclusão,
para a extraordinária riqueza do Epistolário agostiniano enquanto repositório
privilegiado das grandes teses que fazem o ―grande augustinismo‖. Haja visto, a
modo de comprovação: H. MARROU, Saint Augustin et l‘Augustinisme. Dos 30
títulos com que o autor, na 2ª parte do seu livro, ilustra a doutrina de Agostinho,
aduzindo excerptos de seus escritos, 9 são tirados do Epistolário. 21
Quanto à doutrina política, todos os augustinólogos, maiores ou menores, se
sentem na obrigação de referir ao menos algumas passagens das cartas 93, 137,
138, 153, 155 ou 185.22 Mas o que se nos impõe dizer, depois de haver
compulsado atentamente não poucas das obras destes autores, é que, quase sempre,
lhes falta a visão de conjunto da carta inteira (para não falarmos do nexo de uma

17
Vd. RAMOS, M. Ob. Cit., cap. VI, art. 3º.
18
Ibid., cap. III.
19
Ibid., cap. IV, art. 3º.
20
Ibid., cap. VI, art. 2º.
21
Vejam-se, de resto, o nosso cap. I, no tocante à filosofia, e o artigo 1º do cap. VI, com relação à
cristologia, à eclesiologia e à soteriologia agostinianas.
22
Ibid., cap. II nota 4.

25
série determinada de cartas ou do inteiro Epistolário), o que vem empobrecer
notavelmente a avaliação do texto em estudo. Sob este aspecto, não podemos
deixar de enfatizar a densidade doutrinal e a força de textos tais como os das cartas
137, n. 17; 138, n. 17 e 155, n. 1 e 2, onde se encontram, em síntese, todos os
princípios básicos para a solução de nosso questionamento sobre o Estado.23
O primeiro texto, que é como o fio condutor que percorre toda a nossa
dissertação, deveria ser lido em paralelo com os capítulos dos livros VIII e XI
do De Civitate, que contêm a síntese da filosofia agostiniana, e de largas
páginas do livro XIX, o ―político‖por excelência; o segundo texto nos permitiu
levantar um quadro que põe bem à luz a maestria dialética com que Agostinho
joga com estes três elementos: ―civitas terrena‖, ―caelestis respublica‖ e
―imperium Romanum‖;24 a partir do terceiro texto, enfim, pudemos impostar
todo o parágrafo central do nosso estudo, a saber: ―A Verdade como critério
último do valor do Estado‖.25
Note-se ainda, dentro do âmbito político, o significado de outras cartas que são
praticamente ignoradas por todos, ou porque insignificantes quanto à extensão ou
porque são motivadas, aparentemente, só pela cortesia ou cordialidade do Bispo de
Hipona. Tais são, por exemplo, as de número 18 (a Celestino), 164, n. 4 (ao bispo
Evódio), 233 (a Longiniano), 258 (a Marciano). Mostramos, de resto, sobejamente,
a vantagem da leitura paralela do Epistolário com oDe Civitate Dei; iluminam-se
mutuamente. Seria almejável que se levasse a cabo um estudo comparativo, ―ex
professo‖, de ambos. Empresa muito árdua, aliás.

2— A “Civitas” política de Agostinho


Não se encontra em Agostinho um tratado sistemático de ética política. Ele
aborda, ao invés, na sua ingente obra, problemas e situações que vêm precisamente
a constituir o ambiente histórico concreto de sua época e que resultam em tantos
outros elementos do que poderíamos chamar sua ética social e política, a saber: o
bem sobreexcelente da paz temporal; o valor e o papel da autoridade e das leis; o
Estado como instituição ―de jure naturali‖ [de direito natural], suas relações com a
Igreja; a justiça penal e a virtude da mansidão; o direito de propriedade e a
comunhão dos bens; o sentido da ―guerra justa‖, etc...
Constatam, de fato, os autores a respeito desta ética política que é incompleta;
que Agostinho move-se num plano inetapolítico; que as interpretações que dela se
fazem são muitas vezes antitéticas. Mas não se lhe negam a validade e a força dos

23
Vd. o apêndice deste artigo.
24
Cf. RAMOS, M. ob. cit, p. 203.
25
Ibid., p. 311-314.

26
princípios. Agostinho tem em vista sempre a condição do homem concreto e nela
ele sabe distinguir, e ao mesmo tempo coerenternente interligar, as dimensões
ontológicas, existencial e escatológica. Isto vale para o homem singular e para a
―civitas‖. O seu conceito de Estado, como no-lo mostram suas cartas, é tributário
destes três planos convergentes da sua ―sapientia‖: do metafísico de linha
platônica, do crente e místico cristão, e também do homem do seu tempo,
perfeitamente inserido na realidade do dia-a-dia e por ela questionado. É assim que
as cartas 102, 135 a 138, 152 a 155, que são como anteprojetos do De Civitate Dei,
respondem a objeções bem concretas de pagãos e cristãos, amantes da grandeza do
Estado Romano e temerosos de que a nova religião oficial, com seus preceitos de
misericórdia e mansidão, viesse a solapar-lhe a segurança, seja externa, seja
interna; ou ainda, que ela deixasse fora da via de salvação os antigos romanos que
antecederam a Cristo. As respostas de Agostinho convergem, pois, coerenternente,
para o Estado (romano) (cf. Eps. 137, n. 17; 138, n. 17; 155, n. 9, 16), vendo-o e
avaliando-o à luz da sabedoria dos filósofos, dos méritos dos seus grandes vultos e,
sobretudo, da visão de fé da ―divina e celeste República‖.
Importa, então, muito mais determinar estes princípios fundamentais,
metafísicos e de fé, de toda a ética agostiniana, a cuja luz poder-se-á entender
melhor a sua concepção do Estado.
Tentemos fazê-lo, brevemente, numa síntese.
O Estado terreno, como instituição política, terá por fim imediato a promoção
e a tutela dos ―bens temporais e transitórios‖ (Ep. 220, 8), ou seja, a salvaguarda e
garantia da incolumidade física, da tranqüilidade e segurança (―quies... secundum
carnem‖ [―repouso, tranqüilidade.., segundo a carne‖] — (Ep. 155, n. 10) de seus
cidadãos. Ele deve assegurar, em suma, a ―salus hujus vitae‖ [―a salvação desta
vida‖] (Ep. 137, n. 1; 220, n. 9), ou seja, a ―pax hujus mundi‖ [―paz deste
mundo‖]Ep. 231,6), a ―paz humana‖ (Ep. 189,6), a ―pax temporalis‖ (DCD XIX,
xiii, 2) ou a ―terrena felicitas‖ [―felicidade terrena‖] (Ep. 138, n. 18). Contudo o
―bonum sociale‖ [‗bem social‖] não é todo o ―bonum commune‖ [―bem comum‘]
nem muito menos o ―summum bonum‖ [―sumo bem‖] do homem. O Estado não é
o Absoluto. A concórdia necessária e suficiente para constituí-lo, como realidade
natural, será um acordo sobre coisas temporais e transitórias — ―rerum
humanarum... consensio‖ —, ao menos acerca de um mínimo de ―paz temporal‖,
de si boas, mas tais coisas permanecem axiologicamente abertas ao absoluto de
valor — ―rerum divinarum... consensio‖ —, pelo qual são elas medidas,já que, de
fato, sem este acordo aquele primeiro não será ―nem pleno nem verdadeiro‖ (Ep.
258, 1,2). A concórida que funda a ―civitas‖, não deveria ser, em última análise,
uma concórdia qualquer, mas ―ordinata concordia‖ [―concórdia ordenada‖] (DCD
XIX, xiii, n. 1), ―ordinata cantas‖ [caridade ordenada‖] (Ep. 140, n. 4), ―vera
amicitia‖, [―verdadeira amizade‖] ―non pensanda temporalibus commodis, sed

27
gratuito amore putanda‖ [―que não se mede por interesses temporais, mas se
avalia pelo amor gratuito‖] (Ep. 155, n. 1).
Ora, ―nemo... potest veraciter amicus esse hominis, nisi fuerit ipsius primitus
veritatis‖ [―ninguém pode ser verdadeiramente amigo do homem, se não o for
primeiramente da própria verdade‖] (ibid.). Não há, pois, justiça nem nenhuma das
virtudes sobre as quais se fundamenta o Estado, sem o amor de Deus e do próximo.
A própria razão já no-lo diz e a fé no-lo confirma: nisto consiste a filosofia natural,
a lógica e a ética — individual, social e política — pois é Deus o ―Criador de todas
as naturezas‖, a ―verdade e a luz da alma racional‖, ―o sumo e veríssimo bem
comum‖ (Ep. 137, n. 17), a única verdadeira beatitude tanto do homem singular
como do Estado (Eps. 118, 155...). A lei da razão e os preceitos da antiga lei
mosaica, com efeito, já nos impõem este duplo mandamento, mas ele só se cumpre
pela graça do Espírito Santo (Ep. 157, n. 4, 9, 15, 16...; Ep. 140, n. 4). Eis que o
problema da justiça e da felicidade ―... unde boni beatique simus‖ [―como sermos
bons e felizes‖] (Ep. 233), do homem e da ―civitas‖, só encontra resposta em
Agostinho à luz da sua doutrina, metafísica e cristã, sobre a criação e, a
participação, juntamente com a teologia da graça e da salvação.
Está, aí, implícita, toda uma doutrina da analogia, ―a tese fundamental da
filosofia cristã‖, sem a qual não se entenderá a idéia de ―civitas‖ de Agostinho. 26
Este ―Estado justo‖, numa perspectiva cristã, com efeito, permanecerá ―ideal‖,
como tendência, possibilidade ou imagem imperfeita daquele ideal verdadeiro (que
é a Realidade, no sentido platônico) da Cidade Celeste (cf. Ep. 138, n. 17). Na
verdade, Agostinho está certo de que em todos os tempos haverá ―em todos os
povos‖ cidadãos dos ―dois remos‖, do de Cristo e do demônio, em constante luta
(Ep. 199). Todo Estado terreno e temporal (―non caeleste‖), enquanto tal, com
seus bens e sua ―paz terrena‖, embora ―bons, porque dom de Deus‖, permanece
assim na sua ambivalência, diante da ―paz eterna da Cidade suprema‖, já que estes
bens que o Estado procura ―não são tais que possam eximir os que os amam de
toda angústia‖ e poderão mesmo, desgraçadamente, ser tido como supremos e
definitivos; daí as guerras e divisões da cidade terrena (DCD XV, iv; Ep. 220).
E sob este aspecto de temporalidade, de transitoriedade, de implicação
sobretudo na liberdade e nos ―vícios da humana fragilidade‖ (Ep. 153, n. 13) que
falamos, por várias vezes, de ambivalência e de ambigüidade da cidade dos
homens e dos seus bens próprios.27 Esta ambivalência da ―civitas‖ é a mesma, em
fim de contas, do homem seu cidadão. Este é, antes de tudo, fundamentalmente, ou
ontologicamente, limitado enquanto criatura (―...non ob aliud res deficere, vel
posse deficere, nisi quod ex nihilo factae sunt‖ [―não por outra razão as coisas

26
Ibid., cap. VI, art. 2º, D. 4.
27
Cf., p. ex., ibid., p. 315, com nota 96.

28
decaem ou podem decair, senão porque foram feitas do nada‖] (Ep. 118, n. 15)
Mas ele é criatura racional, livre e que de fato peca livremente, afastando-se do seu
Criador, que é ―ipsa Bonitas‖ [―a própria Bondade‖], e voltando-se para a criatura
(cf. Eps. 153, n. 12; 118, n. 15). Esta ambivalência moral se radica, afinal, naquela
ambivalência ontológica (a moral se baseia na metafísica). Doutro lado, esta
mesma ―criatura racional‖, naturalmente boa enquanto tal, pode livremente
participar, pela graça da bondade mesma e da justiça de Deus, embora de modo
sempre imperfeito nesta terra, onde ―nemo... vivit sine peccato...; optimus autem
est, qui (peccat) minimum‖ [―ninguém vive sem pecado; o melhor é quem peca
menos‖] (Eps. 167, n. 13; 140, n. 4; 56; 153, n. 12...).
Estas as razões últimas porque não cremos que Agostinho tenha admitido a
existência de um ―Estado dos bons‖ (como ideal político) ou de um ―Estado dos
maus‖, nem tampouco tenha pensado na possibilidade concreta de ―uma única
Cidade política‖, que unificaria todos os Estados terrenos pelo vínculo do fim
comum da ―paz terrena‖.
De fato, o ideal político de Agostinho seria não o de grandes impérios,
tutores de paz, mas o da ―convivência pacífica e feliz‖ de ―muitos pequenos
Estados, sobre a face da terra‖ (DCD, IV, xv).
Em conclusão, parece-nos, pois, claro que a ―civitas‖.política de Agostinho
não pode ser concebida como teocrática. Ela não pode, de fato, por si mesma,
justificar e levar seus cidadãos ao fim último da vida eterna, substituindo-se à
Cidade de Deus. Ela não será também absorvida pela Igreja, na linha de um
―agostinismo político medieval‖ pois o santo Doutor respeita sempre, na prática, a
distinção fundamental entre a Igreja e o Estado, mesmo sob o regime sacral. 28
Doutra parte, não haverá um Estado, totalmente ―autônomo‖, isto é, neutro ou
independente em relação ao fim da ―Cidade celeste‖. Ele será, porém,
relativamente autônomo e suficiente como realidade temporal, que tem por fim
próprio a ―paz temporal‖, a qual ele pode e deve assegurar. Neste sentido, aquele
―ideal Estado justo‖ não só admite mas naturalmente se orienta na direção daquele
último bem supremo que é Deus mesmo ou ―sua Paz que supera todo
entendimento‖, alcançável perfeitamente, por graça, só na outra vida, e do qual
também o bem comum promovido pelo Estado é, de certo modo, uma realização.
É quanto nos ensinam o De Civitate Dei e todo o Epistolário agostiniano.
O Estado de Agostinho será, assim, sempre teocêntrico, na medida mesma
em que for justo e verdadeiro.

3— Pontos controversos

28
Cf. ibid., cap. VI, art. 3º.

29
A filosofia política de Agostinho é, de resto, de uma extraordinária
atualidade. Há nela, evidentemente, questões-fronteira, pontos cruciais em
discussão. Não há espaço para debatê-los aqui. Limitamo-nos a indicá-los,
formulando-os sob o nosso ponto de vista:29
1º) Não há evolução de um ―A gostinho filósofo‖ (platônico,) para um
―Agostinho teólogo‖ (‗antipelagiano, — O seu otimismo político
Comparemos, de início, as duas cartas dos extremos — cronologicamente
falando — por nós examinadas: o bilhete antimaniqueu a Celestino, de 391 (Ep.
18), e a última carta ao valoroso capitão Bonifácio, em desavença momentânea
com o Império, data de 428 (Ep. 220). A primeira já nos traz os principios basicos
da Metafísica do bem e da Ética da felicidade, do dever e do amor, de Agostinho,
postos numa perspectiva de fé cristã. Nela os planos filosófico e teologico
aparecem mais distintamente. Na outra, estes principios continuam presentes – e
quanto a eles creio que não se pode falar em evolução essencial em Agostinho 30 -,
como base de um juizo de valor sobre o ―politico‖, onde predomina um forte
acento escatológico (devido talvez também às circunstancias particulares da vida
pessoal de Bonifácio naquele período).
Talvez deva-se dizer que, com a disputa antipelagiana, a partir de 441, as
cartas de Agostinho passam a acentuar sempre mais, também no tocante ao
politico, a verdade de fé do pecado original com suas sequelas e a necessidade
absoluta da graça salavadora do Mediador. Também a longa querela com os
hereges Donatistas, que praticamente se estendeu até os últimos dias do santo
bispo, leva-o a insistir no mistério da unidade da Igreja de Cristo, único
sacramento de salavação definitiva.
Isto tudo, juntamente com as objeções dos pagãos contra a doutrina cristã,
como pretensa causa da ruína do Império, poderia explicar o juízo por vezes
mais rigoroso de Agostinho sobre o Estado ―terreno, e não celeste‖, com seus
bens passageiros (Ep. 220, 8. 11) e sua paz temporal (cf. Ep. 231, 6) e, em
particular, sobre Roma (cf. Eps. 217, n.10 e 164, n.4). Ele não deixa jamais,
porém, de reconhecer o seu valor natural e a sua função específica de zelar pela
paz terrestre, como vimos em todas as nossas cartas ―politicas‖.
Sem duvida, a pertinácia e crueldade dos ―terroristas‖ Circunceliões, a
progressão devastadora das incursões bárbaras, a própria experiencia cotidiana de
Agostinho com a labilidade humana, como juiz em foro eclesiastico e civil (cf. Ep.
95), ao mesmo tempo que lhe demonstravam a fragilidade e ambiguidade desta
29
Cf. bid. Conclusão. p. 347-353.
30
Cf., neste mesmo sentido, F. CAVALLA, Scienza, sapienza Ed esperienza sociale, Padova. 1974, v.
I, p. 161; R. RUSSEL, ―Introduzione Generale‖ (2ª parte: Filosofia) In: S. AGOSTINO, La Città di
Dio. Roma: NBA, 1978, v. V/1, p. CXIII; E. GILSON, ob. Cit., p.310, nota 1.

30
paz, ajudaram-no também, paradoxalmente, a reconhecer na pratica o valor e a
necessidade do estado com suas leis e instituições, como garantia desta mesma
―pax hujus mundi‖ que nos permitiria viver cá na terra ―in omni pietate et
caritate‖(Eps. 220- 3; 3221, 6).
Doutro lado, ainda para uma avaliação mais positiva do estado, conta também,
ao lado do otimismo metafísico da doutrina da Criação e da Participação de
Agostinho, a sua concepção da graça redentora de Cristo, como as expusemos no
primeiro e no último capítulos do mesmo estudo. De fato, esta graça está presente e
atuante em todos os tempos e em todas as gentes, além das estruturas visíveis da
Sua Igreja (cf Ep. 102), ―sanando as vontades‘ (Ep. 127,5) e não permitindo, assim,
que mesmo a ―civitas impiorum‖ se degrade totalmente. Cremos que esta
perspectiva otimista possa se estender para além do ―Estado pagão‖, que
Agostinho conheceu, ao nosso atual Estado liberal e pluralista.
2º) Teologia e também ―filosofia da história‖ para uma reta compreensão
da doutrina política de Agostinho.
O que poderíamos, nesta conclusão, opinar sobre a questão discutida da
existência de uma ―filosofia da história‖ em Agostinho? 31 Inclinamo-nos a uma
resposta afirmativa e tentaremos justificá-la brevemente.
O duplo preceito do amor do Antigo Testamento, retomado por Cristo, já está
na razão: o homem, para ser feliz, para chegar à paz, à justiça deve voltar ao
Princípio, ao Ser, à Unidade, passando por si mesmo, chegando à ―pulchritudo
interioris hominis‖ (Ep. 120. n. 20: cf Eps. 18.2; 127,5.6): o primeiro mandamento
é a ―rerum divinarum cum benevolentia et caritate consensio‖: o segundo
mandamento é a ―rerum humanarum cum benevolentia et caritate consensio‖
(Eps. 258,4: 137, n. 17). A razão já mostra que o ―pondus naturae‖ é o amor (Eps.
55, n. 18: 157,. n. 9), que este amor é de Deus e do próximo (eu não amo a mim
mesmo, nem portanto ao próximo se não amo primeiro a Deus, que é o que ‗há de
melhor‖ — Ep. 155, n. 13),32 a ―imagem‖ divina que estará no homem pela justiça
da graça supõe a ―imagem‖ divina pela criação que deve ser ―restaurada‘ (refici et
reformari (Eps. 120. n. 19-20: 118, n. 15).33 A paz política supõe a procura da paz
interior do homem, da sua unidade: a ―pax hominum‖ e a ―p civitatis‖ supõem a
―pax hominis mortalis et Dei: in fide sub aeterna lege oboedientia‖ (DCD, XIX,
xiii. 1)34 que, por sua vez, pressupõe ou inclui aquele ―cuidam justus ordo
naturae‖ (DCD, XTX. iv. 4). Isto define já uma moral (independentemente do que

31
Cf. RAMOS, M., ob. cit, cap. V, art. 2º B 3.
32
. Cf. igualmente Eps. 130, n. 14; 167, n. 16.
33
Cf. Ep. 147, n. 44-46.
34
Cf. LAUFS, J. Der Friedensgedanke bei Augustinus (Untersuchungen zum XIX Buch des ―De
Civitate Dei‖, Wiesbaden, 1973, p. 97, com nota 43.

31
a fé possa trazer a mais).35 Bastaria também, para definir um sentido último
racional da História, embora sem que se saiba o seu destino concreto escatológico,
que só a Revelação lhe dá. Mesmo prescindindo desta, o destino último do homem
seria a busca da Verdade, que é Deus — aquela ―amicitia ...veritatis‖ (Ep. 155, 1,
1) —, daquela ―pax plena‖ , daquele Deus em cuja ―fruição‖ estaria o ―unum
atque summum bonum nostrum‖ (Ep. 118, n. 16, 17, 20) que Platão, segundo
Agostinho, já indicava.
Por isso mesmo podemos concluir ainda que a justiça, a paz, a amizade e as
virtudes em geral, que fundam o Estado, são ditas ―verdadeiras‖ não
imediatamente porque levam à Beatitude da vida eterna, ―quae vere vita est‖, mas
porque se conformam ou derivam daquela Verdade que é Deus mesmo, o Criador
do homem, ―bem imutável, que deve ser amado com puríssima e sinceríssima
caridade‖ (Ep. 140, n. 56; n. 18). Com efeito, ―non aliunde beatus homo, aliunde
‗civitas‘‖ porque ―neque... facit beatum hominem, nisi qui fecit homimem‖ (Ep.
155, n. 1. 2). Deus é princípio e fim: é o Fim por que é o Princípio.
3º) O valor do Estado se entende à luz da autonomia ―antropo (proxime)-
teocêntrica (ultime)‖ da ética agostiniana
Deveríamos também definir com mais profundidade aquela ―autonomia
relativa‖ ou teocêntrica que, para nós, traduz bem a mente de Agostinho acerca
do valor do Estado terreno, ou seja, de sua relação com o ideal da ―Cidade
celeste‖.36 Tal conceito se harmoniza, coerentemente, com o sentido profundo
de toda a ética agostiniana, centrada numa Metafísica do Bem. Esta ética
poderia, pois, ser vista em dois planos distintos e sucessivos, mas não opostos:
(a) o plano da autonomia ética, com fundamento próximo na natureza, na
―recta ratio‖ da ―anima rationalis‖, que, diante dos valores da existência, é capaz
de ―dislinguere, eligere, pendere...‖ Ep. 140, n. 4; De util. cred. 12, 27); mas
(b) em subordinação a uma ―superior heteronomia‖, fundada na ―lex
aeterna‖, na ―ipsa bonitas‖ (Ep. 18, 2), na ―aperta simplexque sapientia atque
Veritas quae... Deus est‖ (Ep. 118, n. 26, 23).
Só assim a razão humana será de fato ―recta‖, ―si ordinem servet..., ordinata
caritate..., subdendo minora maioribus corporalia spiritualibus, inferiora
superioribus, temporalia sempiternis‖, numa palavra, orientando ―a felicidade
temporal e corporal‖ e toda criatura‖ ao ―Criador‖ e à ―felicidade eterna‖ (Ep. 140,
n. 3 . 4). Com efeito, ―as coisas humanas só se avaliam retamente a partir das
divinas‖ (Ep. 258, 2). Assim se salva a autêntica liberdade do homem, numa
profunda dependência última de Deus (que propriamente a funda). O livre-arbítrio

35
Cf. RAMOS, M. ob. cit., cap. 1, nota 165.
36
Cf. ibid., cap. VI, art. 2º, D5 e Cap. VI, art. 3.

32
não lhe é tirado, mas precisamente por isso lhe é dado o auxílio da graça (cf Ep.
157, n. 10) A ―ciência‖ só não basta, mas deve ser assumida pela ―sabedoria‖ que é
―caridade‖ (Ep. 55, n. 39).3737 Afinal ―lex ita que libertatis, lex caritatis est‖ (Ep.
167, n. 19). Nem por isso a graça exclui a lei natural da razão, e sim torna o
homem capaz de observá-la (cf Ep. 157, n. 15).38
A autonomia da ética agostiniana é, portanto, ―antropo (proxime)-teocêntrica
(ultime)‖ ou teônoma, e assim não será nunca nem atéia nem neutra,
axiologicamente, em nenhum dos seus campos concretos de aplicação, em última
análise porque a ―recta ratio‖ humana é participação da ―Veritas aeterna‖ pela
qual ela é ―iluminada‖ (Ep. 118, n. 2, 15).39 Isto vale evidentemente, também para
todo o âmbito do ―político‖, já que ―aliud civitas non sit, quam concors hominum
multitudo‖ (Ep. 155, n. 9).
4º) A ―patria carnalis generationis‖ que se fará ―portio... supernae
patriae‖ (Ep. 91, 1. 6). — O autêntico progresso humano está em
relação com o advento do Reino
Tocamos, assim, de novo a outra ―aporia‖ fundamental para a reta
compreensão da idéia de Estado de Agostinho, a saber, a relação do natural e do
sobrenatural (natureza, graça e pecado).40 Reafirmamos apenas, no tocante ao
nosso tema, que Agostinho não contrapõe ‗natural‘ e ‗sobrenatural‘, ‗razão‘ e
‗fé‘, ‗liberdade‘ e ‗graça‘, ‗tempo‘ e ‗eternidade‘, mas os ordena. Assim se
entende que ele possa falar da ―pátria terrena‖, que se fará ―porção da pátria

37
―Sic itaque adhibeautur scientia tamquam machina quaedam, per quam structura caritatis assurgat
quae maneat in aeternum, etiam cum scientia destruetur; quae ad finem caritatis adhibita multum est
utilis; per se autem ipsa sine tali fine, non modo supérflua sed etiam perniciosa probata est‖ (=NBA
21, 494-6)
38
―Quant à La necessite de La grâce rend possible l‘observation de la loi naturelle, mais elle suppose
cette loi. Il est donc aisé et légitime de lire un enseignement philosophique dans une doctrine qui
dépasse cet enseignement. Cela est d‘autant plus facile quand il s‘agit de Saint Augustin que lui-même
distingue parfois ce qui déjà resulte de notre seule nature raisonnable‖ (C. BOYER. In:Essais
anciens..., p. 85).
39
De um lado, sendo Agostinho um gênio metafísico-religioso-teocêntrico, Deus transparece
freqüentemente como fundamento (último) de sua moral. E é este o clima de seus escritos. Doutro
lado, porém, visto que é um autor existencial, experiencial (conhecedor da experiência humana
interior), ele permite também que se afirme uma moral, em si válida, com fundamento próximo na
―recta ratio‖ e, por conseguinte, em sentido relativo, ―autônomo‖ (= absoluto participado) subindo daí,
coerentemente, ao fundamento último (indutivamente). Em suma, a luz divina não obscurece a luz
participada da ―recta ratio‘, que é verdadeira e boa. Nesta mesma linha, tem razão S. KOWALCZIK
quando afirma que o ―teocentrismo cristão‖ de Agostinho, dentro de sua Metafísica do Bem, se
harmoniza com seu ―antropocentrismo moderado‖, conferindo-lhe fundamentos duráveis e dimensão
escatológica (cf. ―La Metaphysique du bien selon 1‘acception de St. Augustin‖. In:
EstudioAgustiniano 8 (1973), p. 51).
40
Cf. RAMOS, M. ob. Cit., cap. V, art. 2º C.

33
celeste‖, já ―peregrina nesta terra‖ (Eps. 91, 6; 104, n. 4) — é a eternidade no
tempo — sem confundir as duas realidades, mas ordenando de certo modo a
primeira à segunda. O cidadão da pátria terrena deve, pelo amor correto para com
a mesma (vera et pia dilectione), pelo qual ―não põe limites aos seus bons
préstimos‖, merecer aquela eterna (ibid.). Ora, a ―pátria terrena floresce
verdadeiramente‖ pelas virtudes, ―pelos costumes castos, honestos e probos‖,
como já o afirmava Cícero; tais costumes, sobretudo a ―Vera pietas‖, são
aqueles pregados pelas Igrejas de Cristo (Ep. 91, 3).
De fato, a ―civitas‖ se redime pela ‗metanoia‘ de seus membros. 41
Agostinho, portanto, sem ser teocrático, põe em relação o autêntico progresso
humano e o advento do Reino.42

4— Perspectivas para hoje — o cristão e o Estado


Devemos concluir. O Estado terreno de Agostinho, concreto e singular, em
qualquer momento e lugar, com qualquer cultura que seja, em regime confessional
ou laical, é antes de tudo uma parte daquela ―Societas... mortalium‖ [―sociedade
dos mortais‖] DCD, XVIII, ii, 1; XIX, xiii, 2) e devedor, moralmente, da ―humani,
generis caritas‖ [―amor do gênero humano‖] (Ep. 153, n. 3), por força da
participação na ―communis natura‖ [―natureza comum‖] Ep. 130, n. 13). Este
amor pelo homem terá, porém, a sua raiz no amor de Deus, criador do homem, ―o
sumo e veríssimo bem comum‖ do mesmo homem (Ep. 137, n. 17); assim, de si o
Estado terreno de Agostinho, enquanto tal, será sempre devedor a Deus da
―verapietas‖ [―piedade verdadeira‘], que é dom seu (Ep. 155, n. 1, 2, 9). Por isso
mesmo o duplo mandamento do amor cristão, no qual se resume a doutrina de
Cristo, e que inclui a mansidão e a misericórdia, já exigidas pela lei da razão, não
poderá jamais ser prejudicial ao Estado, mas ao contrário será a ―laudabilis
Republicae salus‖, ―... magna... salus Reipublicae‖ [―a salvação da louvável
república; a grande salvação da república‖] (Ep. 137, n. 17; 138, n. 15).
Este Estado terreno será, contudo, sempre distinto da ―celeste e divina
República‖, embora a ela se ordene na pessoa de seus cidadãos. Agostinho não
teve em mente uma teocracia romana nem, hoje, propugnaria um regime de
cristandade. ―A Cidade de Deus peregrina‖ transcende todos os regimes. Ele
aceitaria ao invés, quer me parecer, um Estado liberal, aconfessional, pluralista,
como mal menor, na impossibilidade concreta de um Estado ―autônomo-

41
Vd. COTTA, S. ―S. Agostino. Struttura e Itinerario della politica‖. In: Studium 75 (1979), p. 179-
180. Podemos dizer que aqui, particularmente, estaria a ―modernidade‖ de Agostinho: neste aspecto
íntimo da subjetividade do homem. Neste ponto há uma aproximação com Kant.
42
Faríamos pois certa restrição à posição negativa de J. PEGUEROLES no seu ―Sentido dela Historia,
según San Agustín‖. In:Augustinus 18(1971), p. 257-258.

34
teocêntrico‖ (no sentido há pouco explicado). Ele condenaria todo Estado ateu
militante, a ―civitas impiorum‖ que ―generaliter quippe ... caret justitiae
veritate‖ [―a cidade dos ímpios‖ que ―geralmente carece da verdade da
justiça‖] (DCD XIX, xxiv), sem porém enquadrá-lo simplesmente como
―civitas diaboli‖ [―cidade do diabo‖].
Ao cristão, por fim, revestido de autoridade ou simples cidadão de qualquer
tipo de Estado, ao mesmo tempo membro da Cidade de Deus peregrina e desta
concreta cidade terrestre, caberá em particular a obrigação de levar o próximo ao
amor de Deus, ―pela benevolência, pela doutrina, pela disciplina‖, ―corrigindo os
maus ou suportando-os, se não puder corrigi-los‖ (Eps. 138, n. 17; 155, n. 15). Ele
estará assim, o cristão, como de resto todo homem ―pio e justo‖ de todas as épocas
e lugares (Ep. 102, 12), sempre em luta, solicitado pelas ―duas Cidades‖ que se
defrontam, até o ingresso ―na cidade suprema e divina, onde já não haverá
calamidades a suportar com incômodo, nem paixões a refrear com fadiga, mas
apenas o amor de Deus e do próximo a conservar, sem nenhuma dificuldade e com
perfeita liberdade‖ Ep. 137, n. 20; cf. Ep. 140, n. 63).
E enquanto ―aguarda, com paciência e vivo desejo a vinda do seu Senhor‖,
cuja hora ignora, como ―o servo bom e fiel‖ (Ep. 199, n. 52, 54), ele vai
construindo a História: ele faz parte, com efeito, do ―regnum Christi‖ (ibid., n. 35,
37), cujos filhos, ―na sua maioria plantam, constroem casas, compram, possuem,
assumem as honras da magistratura, contraem matrimônio‖... ―são, pois,
agricultores, marinheiros, comerciantes, pais de família, soldados e
administradores, e tudo isso eles o fazem ―oboedientissima caritate... utentes hoc
mundo tanquam non utentes‖ [―com caridade obediente, usando deste mundo,
como se não o usassem‖] (ibid., n. 38).

APÊNDICE
Da carta 137 (A Volusiano — ano 411/12)
―Que discussões, que doutrinas de qualquer filósofo que seja, que leis de
qualquer Estado, se podem de algum modo confrontar com os dois preceitos nos
quais Cristo diz que se compendia toda a Lei e os Profetas: ‗Amarás o Senhor teu
Deus com todo o coração, com toda a tua alma, com toda a tua mente e Amarás o
teu próximo como a ti mesmo‘? Nestas palavras se inclui a filosofia natural, visto
que as causas de todos os elementos da natureza estão em Deus Criador; está
compreendida a filosofia moral, uma vez que uma vida boa e honesta não de outra
fonte recebe o seu específico aspecto senão quando aquilo que é para se amar, a
saber, Deus e o próximo, se ama como se deve; está incluída a lógica, pois a
verdade e a luz da alma racional não são senão Deus; está contida também a

35
salvação de um Estado louvável, pois não se funda nem se conserva melhor o
Estado do que mediante o fundamento e o vínculo da fé e da sólida concórdia, a
saber, quando se ama o bem comum, que na sua expressão mais alta e verdadeira é
Deus mesmo, e nele os homens se amam mutuamente com a máxima sinceridade,
no momento em que se querem bem por amor daquele ao qual não podem
esconder o espírito com que amam‖ (137, n. 17).

Da carta 138 (a Marcelino — ano 411/12)


―Rendemos graças ao Senhor nosso Deus que contra tais males nos enviou um
socorro singular. Aonde não nos arrastaria, a quem não envolveria, em que abismo
não nos submergeria esta torrente da horrenda maldade do gênero humano, se a
cruz de Cristo não se elevasse a alturas sem confronto, plantada como é por assim
dizer sobre a inconcussa pilastra de uma tão potente autoridade, a fim de que
agarrando-nos ao seu madeiro pudéssemos ter um firme ponto de apoio e não ser
arrastados e engolidos pelo vasto sorvedouro daqueles que neste mundo nos
aconselham mal ou a eles nos impelem? Numa tal inundação de péssimos
costumes, numa tal corrupção da antiga educação, era necessário que acorresse a
nos ajudar a autoridade celeste, a qual nos induzisse a abraçar a pobreza voluntária,
a continência, a benevolência, a justiça, a concórdia, a verdadeira piedade e as
outras virtudes que são como a luz e o sustentáculo da vida, não só para transcorrer
esta vida com toda a honestidade, nem apenas para manter a mais completa
concórdia na cidade terrena, mas também para chegar à salvação eterna e à cidade
celeste e divina de um povo, digamos assim, eterno, da qual nos toma cidadãos a
fé, a esperança e a caridade. Enquanto vivermos corno peregrinos sobre a terra, a
autoridade de Cristo nos leva a suportar, mesmo se não conseguirmos corrigi-los,
aqueles que quereriam manter estável o Estado sem punir os vícios, enquanto os
primeiros romanos o fundaram e fizeram prosperar com as virtudes, muito embora
não tivessem para com o verdadeiro Deus a verdadeira piedade, capaz de conduzi-
los, através da salutar religião, à cidade eterna, mas conservaram uma espécie de
probidade da sua estirpe que era suficiente para fundar, aumentar e conservar a
cidade terrena. Deus mostrou assim, no riquíssimo e famoso Império Romano,
quanta força tivessem as virtudes civis também sem a verdadeira religião, para que
se compreendesse que, se a verdadeira religião a elas se une, os homens se tornam
cidadãos da cidade celeste, onde reina como rainha a Verdade, como lei a Caridade
e que tem por duração a Eternidade‖ (138, n. 17).

Da carta 155 (a Macedônio —413/14)

36
―Embora não reconheça em mim a sabedoria que me atribuis, devo agradecer-
te muito por tua benevolência tão sincera para comigo. Alegro-me que o trabalho
de meus estudos tenha agradado a tal e tão ilustre pessoa. Alegro-me muito mais,
porém, porque reconheço que o teu espírito, levado pelo amor da eternidade e da
verdade, bem como o sentimento amoroso do teu coração, aspiram com avidez à
posse daquela divina e celeste cidade, cujo rei é Cristo, e na qual somente se deve
viver para sempre e na beatitude, contanto que aqui na terra se viva na retidão e na
piedade religiosa. Vejo também que te aproximas dela e a abraças com ardor. De
tais sentimentos tem origem também a verdadeira amizade que não se mede por
interesses temporais, mas se avalia pelo amor gratuito. Ninguém, de fato, pode ser
verdadeiramente amigo do homem, se não o for primeiramente da própria verdade;
o que, se não acontece gratuitamente, não acontece de forma alguma‖ (155, n. 1).
―Sobre tal argumento têm discutido muito também os filósofos, mas nos seus
escritos não se acha nenhum aceno à verdadeira piedade, isto é, ao genuíno culto
do verdadeiro Deus, de onde necessariamente derivam todos os ofícios de uma
vida reta. E a causa disso é, a meu ver, que eles quiseram construir a seu modo a
felicidade e pensaram que era preciso antes fazê-la por si mesmos que impetrá-la,
quando aquele que a concede é apenas Deus, visto que, na verdade, somente quem
criou o homem pode torná-lo feliz. Pois, quem a suas criaturas, aos bons e aos
maus, dispensa tantos bens — o ser, o ser homens, os sentidos, a energia e a força,
a abundância de riquezas — Ele se dará a si mesmo aos bons para que sejam
felizes pois já é um dom seu o fato de eles serem bons...‖ (155, n. 2).

Do A Cidade de Deus
(livro XIX — ano 426, aproximadamente)
―Deste modo, a paz do corpo é a harmoniosa disposição de suas
partes; e a da alma irracional, o ordenado repouso de seus apetites. A paz
da alma racional é a ordenada harmonia entre o conhecimento e a ação, e
a paz do corpo e da alma, a vida bem ordenda e a saúde do animal. A
paz entre o homem mortal e Deus é a obediência ordenada pela fé
debaixo da lei eterna. Tive uma infância feliz, simples, mas feliz. Assim
como a maioria das crianças, meu primeiro amor surgiu na escola: era o
guri mais bonito- eu e todas as meninas da turma corríamos atrás dele
enquanto ele preferia o futebol. Bons tempos esses. Passaram, e eu
cresci. Não seria capaz de definir o que ocasionara o meu medo de
relacionamentos, talvez algum pequeno episodio na minha infância que
nem eu mesma seria capaz de identificar. Mas esse medo não me
impediu de criar laços de amizade, que por sinal sempre foram muito

37
fortes. Mas como para toda regra tem que existir uma exceção, ela surgiu
e eu não esperava por isso. Eu estava completamente apaixonada pelo
meu melhor amigo. Enquanto ele me contava suas paixões eu sempre
tentava me imaginar no lugar delas, e o quão melhor eu seria pra ele.
―irmã‖. Tentava de todas formas possíveis não deixá-lo perceber os
meus sentimentos em relação a ele, talvez tenha conseguido. Ou não. O
tempo passou e não o via mais, no inicio pensava neles todos os dias E a
paz dos homens entre a sua ordenada concórdia. A paz da casa é a
ordenada concórdia entre os que mandam e os que obedecem nela, e a
paz da cidade é ordenada concórdia entre os cidadãos que governam e os
governados. A paz da cidade celestial é a comunidade perfeitamente
ordenada perfeitamente concorde no gozo de Deus e no gozo mútuo em
Deus. E a paz de todas as coisas, a tranqüilidade da ordem (pax omnium
rerum tranquillitas ordinis).A ordem, é a disposição dos seres iguais e
dos diferentes, designando a cada qual o lugar que lhe convém (DCD
XIX, xiii, 1).

38
3

LEÃO I: A CÁTEDRA DE PEDRO E O PRIMADO


DE ROMA

DANIEL VALLE RIBEIRO


Universidade Federal de Minas Gerais

INTRODUÇÃO
O papel e o desenvolvimento da Igreja de Roma, no Ocidente, desde o século
II, têm sido normalmente reconhecidos pelos historiadores. O predomínio do bispo
de Roma, entretanto, foi explicado por alguns apenas como reflexo de
circunstâncias históricas. A própria Roma tomou a iniciativa da hegemonia a fim
de assegurar a unidade da Igreja. Segundo essa teoria, o primado da Sé Romana
resultou da necessidade de o cristianismo ter um órgão dirigente. A Igreja de Roma
não usurpou, mas ofereceu como serviço a primazia necessária à boa ordem da
comunidade cristã. Ao assumir a liderança, o bispo de Roma ―passou da posição de
irmão à de pai e senhor‖, diz H. Koch.1
Outra explicação tem sido apresentada para mostrar o crescimento do poder
papal: o prestígio de que gozava a antiga capital do Império. Indiscutivelmente,
Roma desfrutava de excepcional importância. Era o centro do mundo romano, para
onde tudo convergia. A Sé de Pedro tinha facilidade de comunicar-se com as
demais Igrejas. Em decorrência, podia o bispo de Roma ter efetiva soilicitudo
sobre as demais Igrejas e tentar exercer sobre elas mais ativamente sua autoridade.
Para a exegese católica, a missão dos apóstolos é de capital importância para o
estudo do cristianismo primitivo. As comunidades da Igreja dos primeiros tempos
sujeitavam-se à autoridade dos apóstolos, autoridade que se transmitiu ao
episcopado. A propagação do cristianismo processou-se através da criação de
Igrejas ligadas às Igrejas-Mães. Havia um traço de união entre elas. Passou a
existir, pois, a partir de certo momento, uma Igreja das Igrejas. O episcopado

1
Criado por BATIFFOL, Pierre. Cathedra Petri. Paris: Cerf, 1938. p. 12.

39
estabeleceu-se no século II. Sua criação atendia aos apelos da sucessão
apostólica,já que seus poderes derivam dos apóstolos. Essa, a doutrina de
Tertuliano. Existe, portanto, uma ligação histórica do episcopado com os apóstolos.
Deve ser também lembrado que no século II a Igreja Apostólica de Roma,
apostólica em virtude de Pedro e Paulo, distinguia-se das demais Igrejas
Apostólicas. É verdade que a idéia de sucessão apostólica não se ligava somente a
Roma. Mas a estreita associação da Igreja Romana com Pedro imprimia-lhe
autoridade. Em razão disso, Roma distanciava-se das outras Igrejas Apostólicas —
Corinto, Antioquia, Efeso.
A idéia de que a Igreja Romana é a Ecclesia principalis, ou seja, a mais antiga,
a primogênita, aparece já no final do século II. Em texto redigido por volta de 180,
santo Irineu, bispo de Lyon, sustenta que todas as Igrejas devem por-se de acordo
com a Igreja de Roma, em conseqüência da principalitas desta. A Igreja de Roma,
diz ele, é a maior, a mais antiga, conhecida de todos. A ela devem ligar-se todos os
fiéis, em virtude do seu principado mais poderoso — ―propter potentiorem
principalitem‖.2
Já se reconhece certa preeminência do bispo de Roma, e a idéia de sucessão
apostólica segue caminho firme. Carta de Firmiliano de Cesaréia a são Cipriano,
então em conflito com o papa, indica que Estêvão I ―professa ter a cadeira de Pedro
por sucessão‖ e ―glorifica-se do lugar do seu episcopado e de ter a sucessão de
Pedro sobre quem foram estabelecidos os fundamentos da Igreja‖. 3 A despeito de
seu conflito com o papa Estêvão, a propósito da questão batismal, são Cipriano
reconhece que em Roma está a cathedra Petri, a Igreja princeps. Sustenta mesmo
que a investidura de Pedro por Cristo constituía o pilar da unidade da Igreja.
Seguramente não se dá ainda ao papado reconhecimento amplo de jurisdição em
matéria doutrinária e disciplinar. Por isso, o melhor é falar em primado honorífico.
A adesão de Constantino abre novas perspectivas ao cristianismo. O regime
imperial assegura proteção à Igreja, mas também faz dela um instrumento de sua
política. O cristianismo torna-se a religião do príncipe. Protetor do cristianismo,
Constantino arvora-se em mantenedor de sua unidade e ergue-se em árbitro de suas
divisões. O cesaropapismo do imperador inspira, certamente, a política
intervencionista de seu filho, Constâncio II, em questões doutrinárias e produz a
teocracia imperial bizantina. Na verdade, a Igreja do século IV é uma Igreja ―rica e
marginal‖ e o ―cristianismo é periférico ao saeculum, mesmo que agora seja a fé
nominal dos poderosos‖.4

2
Irineu. Adversus haereses, 3, 3.
3
A documentação encontra-se em BATIFFOL. Op. cit. p. 13.
4
BROWN Peter. Antigüidade Tardia. In: ARIÈS, Philippe & DUBY, Georges, org. História da vida
privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. v. 1. p. 265.

40
No Ocidente, onde o Império agonizava, pôde a Igreja preservar a
independência do poder religioso e opor-se à intromissão do príncipe na esfera
espiritual. A Sé Apostólica exerceu melhor sua soilicitudo sobre as demais
Igrejas. Quando se colocava um problema de fé, sobrepunha-se geralmente a
autoridade de Roma.

FUNDAMENTOS DO PODER PAPAL


É absolutamente necessário observar, de início, que não se pode falar de
papado nos primeiros séculos do cristianismo. Mesmo porque papa é um título
comumente usado, do século III ao VI, para designar todo bispo. Esse testemunho
de respeito encontra-se na correspondência de santo Agostinho, são Jerônimo,
Sidônio Apolinário, Fausto de Riez. Por esse tempo, a Igreja compreendia,
verdadeiramente, uma federação de pequenas comunidades. Seitas menores
ameaçavam a unidade. Para fortalecer a organização e impedir o progresso da
heresia, desenvolve-se o episcopado. Bispos passam a chefiar a cristandade
ocidental em Roma, Lyon, Corinto, Atenas e Creta. O bispo aparece, então, como
o defensor da ortodoxia. Sínodos reúnem bispos de cidades próximas para definir a
doutrina e combater as heresias.
Ainda no século II subsiste outro problema: como demonstrar que o
montanismo (que pregava a renúncia ao matrimônio e o jejum rigoroso) e as
demais seitas não interpretavam corretamente a melhor tradição cristã? Santo
Irineu resolve a dificuldade, ao sustentar que os bispos são os herdeiros da
autoridade dos apóstolos. Tertuliano, o mais importante teólogo até o aparecimento
de santo Agostinho, retoma pouco depois a tese de sucessão apostólica: somente as
Igrejas fundadas pelos Apóstolos são intérpretes da verdadeira fé. Em meados do
século III, são Cipriano desenvolve a idéia do Primatus Petri. Seguindo a doutrina
particularmente desenvolvida por Irineu, defende a ―identidade de doutrina e de
autoridade entre os bispos e os apóstolos, e insiste na unidade da Igreja‖. 5
A idéia de sucessão apostólica, fundamento do poder papal, não se identificava
exclusivamente com Roma. As outras Igrejas invocavam o mesmo princípio.
Entretanto, a estreita associação de Igreja Romana com o apóstolo Pedro conferia-
lhe autoridade, pois representava a tradição mais venerável — Roma era local de
peregrinações, onde se acreditava estivessem sepultados Pedro e Paulo.
―Jusqu‘au IVe. siècle‖ — afirma o historiador eslavo F. Dvornik —,―les évêques de
Rome n‘avaient jamais eu besoin de souligner ce fait. Ils avaient, en effet, un autre titre
qui leur assurait la première place dans la hiérarchie. C‘est que leur siège était en
même temps la résidence de l‘empereur et la capitale de l‘Empire romain: raison qui

5
MACCARRONE, Michele. Vicarius Christi. Storia dei titolo Papale. Roma: Lateranum, 1952. p. 7.

41
était alors respectée dans toute la chrétienté, car l‘Eglise, dès les premiers jours de son
existence, s‘était conformée, pour organiser son admninistration, à la division politique
de l‘Empire romain‖.6

Inegavelmente, não deve ser esquecido que Roma era a capital do Império e a
cidade mais importante do mundo romano. O prestígio da Urbs por certo conferia
ao seu bispo situação relevante. Por outro lado, não se deve desprezar o
crescimento da importância de Constantinopla, tornada novo centro da ordem
política após o desmoronamento do Império. Ambrogio Donini, entretanto, insiste
em que a afirmação gradual do poder papal ―está ligada, em primeiro lugar, ao
prestígio de que gozava a antiga capital do Império e só secundariamente à
reivindicação de Roma como Sé Apostólica e à memória de Pedro e Paulo‖.7
De qualquer forma, não seria exagerado dizer que a posição do papa era
ainda modesta.
Papado,papatus, lembra P. Batiffol, é um vocábulo que pressupõe o termo
papa, o qual pertence exclusivamente ao bispo de Roma. 8 Todavia, a existência de
verdadeira federação de Igrejas, cada qual formando pequena sociedade autônoma,
constitui obstáculo à pretendida preeminência da Sé Romana. Na realidade, o
poder do bispo de Roma não está universalmente reconhecido, e a doutrina do
primado da Santa Sé continua por formular-se.
Nesse quadro de federação de Igrejas episcopais, qual poderia ser a função da
Igreja de Roma? Dito de outra maneira: Qual era o papel do papa? Tem-se feito
distinção entre papatus e primatus, noções que se completam mas que são
distintas. A definição de primado é importante para a compreensão dos
fundamentos e da própria evolução do papado. Nos três primeiros séculos firmam-
se dois atributos do papado: sollicitudo e potestas. O primeiro termo evoca as
obrigações do pastor. É empregado por Sirício, ao referir-se à 2ª Carta de Paulo aos
Coríntios (II Cor, 11, 28): ―sollicitudo omnium ecciesiarum‖.9 Aparece também
em Bonifácio10 e em Celestino.11 Mas é com Leão I que se acentua essa noção. Os
bispos também exercem sua soilicitudo, porém a do papa estende-se sobre toda a
Igreja. Potestas confere o poder, o direito de julgar. Algumas vezes, no mesmo
texto, potestas aparece ao lado de auctoritas, o que torna difícil atribuir a cada um

6
DVORNIK, François. Byzance et la primauté romaine. Paris: Cerf, 1964. p. 24.
7
DONINI, Ambrogio. História do Cristianismo. Das Origens a Justiniano. Lisboa: Edições 70,
1988. p. 162.
8
BATIFFOL. Op. cit. p. 24.
9
Ep 1,7. PL 13, 1138.
10
Ep 15, 1. PL 20, 779.
11
Ep 18, 1;22,6. PL 50,505 e 541.

42
desses termos significado próprio.12 Releva observar que as duas palavras definem
o primado segundo o papa Leão I.
Guardiã da unidade, a Igreja Romana pretende ser a principal, a primogênita.
Mas de onde vem essa primogenitura, se existiam igrejas fundadas antes dela? A
questão é praticamente insolúvel, a não ser que se admita ser a Igreja Romana a
Igreja de Pedro. A antigüidade da Sé de Roma não resulta do fato de o Príncipe dos
Apóstolos ter sido seu primeiro bispo. Segundo a exegese católica, Roma tem
primazia particular, especial, em razão de que ela foi instituída por Cristo, e por
Cristo entregue a Pedro. Por isso, nos primeiros séculos a Igreja Romana procurou
exercer uma soilicitudo e uma potestas sobre as outras Igrejas, baseando-se na sua
apostolicidade eminente e na idéia de que, fundada por Cristo na pessoa de Pedro,
todas as demais Igrejas devem estar em comunhão com ela.
Na nomenclatura utilizada para determinar seu papel, o papado recorreu a
uma terminologia própria ou tomada ao direito público romano.13 Esse papel,
diga-se de passagem, é o primeiro. Daí primatus, que se aproxima de
principatus.14 O primado papal decorre da aceitação da idéia do principatus,
palavra que designa um poder que, na sua ordem, é supremo. Desse modo, o
poder do imperador é um principatus. Assim também a dignidade episcopal é um
principatus. A palavra introduziu-se na linguagem eclesiástica no século V para
significar o primado de São Pedro, bem como a soberania ligada à autoridade da
Sé Romana. Imediatamente esse principatus do papa se reconhecerá análogo ao
do imperador, em estreita ligação, logo se vê, com o Direito Romano. No plano
religioso, a plenitudo potestatis papal consiste na identidade dos poderes petrino-
papais com os de Cristo.
O poder de que se reveste o Sumo Pontífice provém da disposição
testamentária de são Pedro, clara e definitivamente manifestada na Epistola
Clementis. Esse poder papal Ullmann o rotula de poder descendente, isto é,
teocrático, absoluto. Assim, o conceito mais significativo do governo papal na
Idade Média cifra-se na noção de auctoritas, idéia carismática que muitos autores
identificam como o elemento constitutivo do principatus. Vemos confundirem-se
aí, nitidamente, o status apostolicus do Papa e seu marcante poder monárquico.
Saliente-se ainda que a característica essencial da auctoritas (romana e papal) se
fundamenta na sua indivisibilidade. A forma era romana, a matéria era bíblica.
Dissociar o direito da História Medieval, sustenta o historiador inglês, implica
desconhecimento de um dos fundamentais princípios do medievo. 15

12
GAUDEMET, Jean. L ‗Église dans l‘Empire romain. Paris: Sirey, 1958. p. 414-15.
13
Id., Ib. p. 412-13.
14
Sobre o principatus da Sé Apostólica, cf. BATIFFOL. Op. cit. p. 83-94. Cf. também ULLMANN,
Walter. Principios de gobierno y politica en la Edad Media. Madrid: Revista de Occdente, 1971. p. 41.
15
ULLMANN. Principios de gobierno... p. 38 ss. e 61 ss.

43
Na correspondência papal, a partir de Bonifácio I (418-422), vemos o termo
principatus aplicado com freqüência à Sé Apostólica. É utilizado para designar
tanto a primazia de Pedro entre os apóstolos como a do papa, seu sucessor, entre os
bispos. O papa Leão I (440- 461), igualmente, estabelece íntima ligação entre o
principatus de Pedro e a autoridade suprema da Igreja.16 Assim, principatus tem
duas acepções: a primeira, designa a primazia de Pedro entre os apóstolos; a
segunda, indica a preeminência do bispo de Roma, seu sucessor, entre os bispos (P.
Batiffol). Por isso, ao tentar impor a primazia da Cathedra Petri, Estevão I (254-
257) valia-se de Pedro, cuja cadeira ocupava por sucessão autêntica, com base no
Tu es Petrus... O mesmo argumento, aliás, já havia sido utilizado por Calisto (217-
222) para tentar impor o primado de Roma. Houve quem pretendesse ver aí não a
primazia de Pedro sobre as outras Igrejas. Ainda uma vez, porém, a condição de
Ecclesia principalis, isto é, a mais antiga, a primogênita, está ligada à pessoa de
Pedro. É aí que se estabelece a Cathedra Fetri, sustenta a tradição. Esta faz de
Roma a Igreja princeps, origem do episcopado, segundo a afirmação de que foi
criada por Cristo na pessoa do Príncipe dos Apóstolos.
Principatus de Pedro e sucessão apostólica constituem pontos nodais para a
exegese católica no estudo do primado de Roma. Dois textos são particularmente
invocados para sustentar a tese do primado de Pedro. O primeiro é o de Mateus,
16,18: Tu es Petrus et super hanc petram aedificabo ecclesiam meam. O segundo é
ode João, 21, 15-17: Pasce agnos meos... pasce agnos meos... Pasce oves meas. O
conceito de Pedro como vigário de Cristo, afirma Michele Maccarrone, domina os
dois versículos. Mais: a sociedade com Cristo não é um privilégio transitório
concedido ao Apóstolo, mas vem do Senhor como elemento originário e essencial
da constituição da [sua] Igreja.17
A noção de primatus terá uma definição mais nítida com Leão I. Além de
determinar-lhe os dois traços marcantes — soilicitudo (soilicitudo omnium
eclesiarum — II Cor, 11, 28) e potestas — o pontífice indica que a primazia assim
entendida não é senão a perpetuidade, na pessoa do bispo de Roma, dos privilégios
conferidos a Pedro sobre os demais apóstolos.

FORMULAÇÃO TEÓRICA DO PRIMADO


O desenvolvimento do primado percorreu, obviamente, diversas etapas de que
ressaltaremos os momentos mais significativos. Seria oportuno lembrar que o
primado não é ainda matéria de definições dogmáticas ou de exposições doutrinais.

16
Ep 9. PL 54, 625.
17
MACCARRONE. Vicarius Christi, cit. p. 14, 16-18.

44
Afirma-se no desenrolar dos acontecimentos e é a forma pela qual os pontífices
expressam sua missão.18
A primeira manifestação do poder papal aparece no século III. Calisto I (217-
222), a propósito da doutrina sobre penitência, tentou impor sua autoridade como
sucessor de São Pedro. Depois Estêvão I (254-257) reivindicou a primazia de
Cathedru Petri.
É com Dâmaso I(366-384) o grande impulso. Os historiadores do papado
sublinham a importância desse pontificado na formulação teórica do primado da Sé
Romana. Autoritário e enérgico, Dâmaso procura firmar a liberdade da Igreja de
Roma mesmo diante do Oriente. Cunhada pelo papa, aplica-se pela primeira vez a
Roma a expressão apostolica sedes.19 O título excluía, naturalmente, as outras
igrejas apostólicas, já que Roma reivindica a suprema autoridade sobre as demais.
Tal afirmação era a resposta de Dâmaso às pretensões da Igreja oriental
expressas no cânon 3 do Concílio de Constantinopla (381), que conferia ao bispo
desta cidade lugar imediato ao bispo de Roma porque Constantinopla era a ―nova
Roma‖. Convocado pelo imperador Teodósio, por razões políticas a ele
compareceram apenas os bispos orientais. Reunido o sínodo romano, no ano
seguinte, o papa afirma: a Igreja Romana não foi fundada por decreto de qualquer
sínodo; sua primazia decorre dos poderes conferidos por Cristo a Pedro e Paulo,
enquanto a Constantinopla falta autoridade para reclamar origem apostólica.
Evidentemente, o prestígio de Roma não era atingido. A reação do papa tinha por
fim conter as ambições de Constantinopla, que se colocava em lugar privilegiado
entre as sés orientais e que por certo viria, aos olhos de Roma, constituir-se em
ameaça futura. Para um estudioso das relações entre Roma e Bizâncio, o cânon 3
destinava-se unicamente a reduzir a influência desmedida do bispo de Alexandria e
a regular os negócios da Igreja do Oriente.20 Ao invocar o versículo de Mateus (16,
18), Dâmaso dava suporte teológico à tese do primado, mas não se limitou às
afirmações teóricas. Adotando uma política hábil e firme, soube utilizar a proteção
imperial. Proclamou que o valor dos concílios dependia da aprovação de Roma.
Nem a forte personalidade de santo Ambrósio, que em Milão ―coloca o imperador
Teodósio no meio dos penitentes‖,21 ofuscou a atividade desse seu contemporâneo.
As primeiras afirmações do primado logo encontram oposição. No Concílio de
Aquiléia (381) circulou um documento que contestava a pretensão de o papa
situar-se em posição especial, acima dos demais bispos, e com o direito de resolver
questões dogmáticas fora do concílio. A mesma tese é retomada por Palladius de
Ratiária, bispo deposto no referido concílio. Afirma ele que o papa não é senão

18
GAUDEMET. Op. cit. p.416.
19
BATIFFOL Op. cit. p. 152.
20
DVORNIK. Op. cit. p. 38-9.
21
BROWN. Op. Cit. p. 267.

45
―um dentre muitos‖ e que são Pedro ―jamais reivindicou uma prerrogativa entre os
apóstolos‖.22 Desse modo, diante das primeiras afirmações firmes do primado,
surgem os primeiros sinais de doutrinas conciliares.
O primado afirma-se também em matéria legislativa. Sirício (384-389) dá-lhe
formas jurídicas romanas, tomadas de empréstimo às constituições romanas. 23 A
jurisdição superior do papado aplica-se no Ocidente através de decretais dirigidas
às diversas regiões. Desde essa época Roma procura também ligar diretamente a si
a zona de fronteira entre o Oriente e o Ocidente.
Os sucessores de Dâmaso insistem na idéia de que o papa goza de prerrogativa
especial, pois Roma possui a Cathedra Petri. Consciente disso, Inocêncio I(402-
417) sustentou, em célebre decretal, que todas as causae maiores devem ser
submetidas à Sé Apostólica,24 isto é, à jurisdição pontifícia. Ao valer-se de
expressão indefinida, o papa, evidentemente, assegurava-se o direito e a
possibilidade de intervir quando quisesse. Por outro lado, nota um historiador, a
ordenação contida na fórmula causae maiores eleva o pontífice à posição de juiz
supremo, própria de Moisés, e dá à pretensão de Roma consagração bíblica. 25
Observam-se os primeiros passos de centralização, que se pode ver também em
matéria litúrgica, quando Inocêncio afirma em outra epístola ser Roma caput
institutionem.26 Na qualidade de sucessor de Pedro, atribui-se o direito de regular
toda questão de fé.27 Em outro documento, Inocêncio revela a mesma noção da
autoridade suprema do papa, ao escrever: ―Quando se discute questão relevante de
fé, estimo que todos os irmãos e co-bispos devem submeter-se ao único Pedro,
àquele de quem procedem seu nome e sua dignidade, e assim todas as Igrejas do
mundo tirarão em conjunto o melhor proveito‖. 28 Manifesta-se também aí a
preocupação com a Igreja do Oriente, que se desembaraçava do poder pontifício,
mas submetia-se à teocracia imperial bizantina.
Bonifácio I(418-422) foi o primeiro a aplicar o termo principatus à Sé
Romana. Em carta aos bispos da Tessália, o papa manifesta-se contra a intervenção
de Constantinopla na Ilíria. ―A Sé Apostólica‖, diz Bonifácio, ―tem um principatus
que lhe dá o direito de acolher as queixas de todos os bispos‖ — ―Ideo tenet sedes

22
A respeito dessa oposição, cf. BATIFFOL, Pierre. La siège apostolique. (359- 451). Paris: Gabalda,
1924. O apelo ao papa foi decidido no Concílio de Sárdica (343).
23
GAUDEMET. Op. cit. p. 417.
24
Ep 2, 6. PL 20,473 A; MANSI 3, 1034.
25
BAUS, Karl & EWIN, Eugen. Storia della Chiesa. L‘Epoca dei Concili. Milano: Jaca Book, 1977.
p. 281.
26
Ep 25,2. PL 2O,551.
27
Ep 29. PL 20, 582.
28
Extrato da correspondência de santo Agostinho. Apud RAHNER, Hugo, L‘Église et l‘État dans le
christianime primitive. Paris: Cerf, 1964. p. 165.

46
apostólica principatum ut querelas omnium licenter acceptet‖.29 O papa salienta
ainda que esse principatus foi concedido por Cristo a são Pedro, em virtude do que
Roma é para todas as Igrejas do mundo o que a cabeça é para os membros. 30
Temos aí, pois, a idéia de Igreja universal fundada na comissão petrina — Tu es
Petrus. Para Walter Ullmann, o papa associou duas idéias: a de principatus e a de
apostolica sedes.31
Note-se que a Igreja adota a estrutura do Império: quadros territoriais,
princípios administrativos e normas de processo, procedimentos judiciais. No
cume da hierarquia, o bispo de Roma publica constituições análogas às do
imperador, inspira-se na Chancelaria e no Senado, persegue sua ascensão com
o apoio de príncipes.32

LEÃO I E O PRIMADO DE ROMA


A afirmação do primado romano tem em Leão I(440-461) a figura de maior
expressão. O papa Leão ascende à cátedra apostólica plenamente convencido de
sua autoridade e persuadido da importância de seu ministério. Seus escritos não
contêm uma exposição sistemática da doutrina do primado, mas seu pontificado
constitui uma permanente afirmação da primazia da Santa Sé. Auxiliado pela
situação do Império que se desagregava e pela impotência do poder imperial diante
dos invasores bárbaros, pôde formular com segurança sua teoria da monarquia
papal. Deve ser ressaltada, paralelamente, a forte personalidade deste papa. Mais
que seus predecessores, Leão Magno contribui para definir a posição eminente do
bispo de Roma.
Leão I é firme partidário da idéia do principatus e da autoridade principesca de
São Pedro. Para ele, Cristo, o verdadeiro e eterno bispo de sua Igreja, havia
concedido a Pedro participação eterna em seu poder. O poder das chaves, ligar e
desligar (et tibi dabo claves regni coelorum, et quodcumque ligaveris super terram
erit ligatum et in coelis, et quodcumque solveris super terram erit solutum et in
coelis), foi conferido apenas a Pedro, que desse modo preside à sua Sé e a
transmite aos seus herdeiros.33

29
JAFFÉ. Reg Pont, 364.
30
Ep 14, 1. PL 2O, 777.
31
ULLMANN. The Growth... p. 7. A origem da expressão apostolica sedes tem acurado estudo
em BATIFFOL. Cathedra Petri, p. 15 1-68.
32
LE BRAS, Gabriel. ―Le droit romain au service de la domination pontificale‖. Revoe hisorique
de Droit Français et Étranger. Paris: 1. p. 377-98, 1949, p. 380-81.
33
Sermo 4,3; 5,2 e 4. PL 54, 151; 153-54. Há uma edição mais recente dos sermões de Leão I no
Corpus Christianorum. Series latina. Turnholti: Typographi Brepols, 1973. Sermo 4, 3. Corpus
Christianorum 138, 19-20; Sermo 5,2 e 4. C C 138, 22-24. Sobre a distinção de poderes, cf. a Ep 14.
PL 54, 676.

47
Apesar de não ter sido o primeiro a invocar a sucessão de Pedro, nenhum
papa antes dele o fez com tanta energia. A idéia de ser o bispo de Roma herdeiro
de São Pedro já havia sido expressa por Sirício (384-399), mas é aprofundada por
Leão Magno, que a vê como o efetivo fundamento do primado papal. Como
herdeiro de São Pedro, o papa assume suas funções, seus plenos poderes e seus
privilégios. Observa-se em Leão I a insistência no fundamento dogmático do
primado: além de sucessor de São Pedro, afirma sua íntima união com o apóstolo
de quem ocupa o lugar34 Sempre ancorado na exegese (Mt 16, 18-19), reconhece
a dignidade de todos os bispos, tuas lembra a diferença de poder existente entre
os apóstolos. Admite a unidade na dignidade, não na posição (ordo), de vez que
os apóstolos tinham a mesma honra mas não a mesma potestas.35 Nessa
semelhança de honra existe uma distinção de poder. Ao elaborar uma concepção
monárquica em que o papa é o legítimo sucessor de Pedro — cuius vice
fungimur36 —, Leão Magno traça com firmeza os contornos do poder pontifício.
Não se esquece, contudo, de suas obrigações de pastor, de sua soilicitudo, que,
por sua qualidade, estende-se a toda a Igreja. O primado fundamenta-se, portanto,
na reunião da soilicitudo e potestas, dois atributos que se firmam nos três
primeiros séculos da história do papado.37
O poder da Sé Romana vê-se ainda reforçado quando o imperador
Valentiniano III (424-445), no célebre decreto de 445, apóia Leão I contra
Hilário de Arles. É a primeira vez que se encontra um texto legislativo dedicado
à doutrina do primado. O ato de Valentiniano (Constitutio Valentiniani III)
destina-se a resolver dificuldades criadas pelo bispo de Aries, o qual, ao afirmar a
independência da Igreja da Gália, pretende fugir à obediência de Roma. O
imperador sustenta que o primado da Sé Apostólica é assegurado pelo mérito de
são Pedro, fundado na dignidade da cidade de Roma e confirmado pela
autoridade do concílio. Valentiniano refere-se, certamente, à interpolação do c. 6
do Concílio de Nicéia. O ato do poder secular tem sido objeto de numerosas
críticas. Não pode ser negado, porém, que ele marca um progresso
extraordinário: reconhece formalmente a jurisdição do pontífice romano. Mais:
afirma o primado da Sé Apostólica. Deve ser lembrado também, como mostrou
Gaudemet, que, longe de fazer concessões, o texto imperial adota o ponto de

34
Sermo 2,2. PL 54, 143; Sources Chrétiennes 74. Segundo Maccarrone, o princeps Petrus de Leão I
seria para um historiador a imitação da concepção romana do optimus princeps. Cf. MACCARRONE.
Op. cit. p. 48.
35
Cf. ULLMANN. The Growth... p. 2-4. Cf. também GAUDEMET. Op. cit. p. 420.Foi Leão I quem
cunhou a expressão plenitudo potestatis (Ep 14, 1. PL 54, 671).
36
Sermo 3,4. PL 54, 147; Sources Chrétiennes 88.
37
BATIFFOL. Cathedra Petri. p. 25-27.

48
vista dos homens da Igreja, que lhe dão por fundamento a sucessão apostólica, a
importância de Roma e os cânones conciliares.38
O papa Leão intervém ativamente nas questões doutrinais do Oriente. De fato,
a região é palco de freqüentes questões religiosas. Querelas cristológicas colocam
frente a frente Antioquia e Alexandria. Grave conflito surge quando Êutiques de
Constantinopla e Dióscoro de Alexandria levantam nova questão cristológica. A
heresia, chamada monofisista, sustenta que só há uma natureza em Cristo — a
divina. Heresia sempre perturbou a vida da Igreja. Leão I age prontamente,
desejoso de superar dificuldades. Escreve a Dióscoro de Mexandria para expressar
claramente que só a Roma pertence fixar a fé. O papa acredita ser necessária a
unidade entre as duas Igrejas, uma vez que Alexandria foi fundada por Marcos,
discípulo de Pedro. Dirige-se também a Flaviano, patriarca de Constantinopla. A
carta do pontífice a Flaviano, de 13 de junho de 449, conhecida como ―Tomo de
Leão‖, é um resumo perfeito da doutrina católica a respeito das duas naturezas de
Cristo e uma afirmação clara de que ao papa cabe definir a doutrina.39
Foi convocado o concílio para solucionar a questão. Os partidários de
Eutiques, que fora anteriormente condenado, prepararam o projetado encontro.
Presidido por Dióscoro, resultou em tumultuosa assembléia, sem que o
documento pontifício fosse examinado. Eutiques acabou inocentado. Afirma-se
terem os delegados do papa sofrido constrangimento e violência.40 O sínodo
recebeu do pontífice a denominação de ―o latrocínio de Éfeso‖. Leão I formulou
enérgico protesto contra o ocorrido ali. Solicitou o apoio de Valentiniano III para
a convocação de novo concílio. Valentiniano endereçou correspondência a
Teodósio II, instando com o imperador que ―defenda a lei e respeite a honra de
Pedro‖ (J. Gaudemet).
Um sínodo papal reune-se em Roma (449). Em carta conjunta, o papa e o
sínodo dirigem-se a Teodósio.41 O tratamento é cordial, mas firme. Leão Magno
narra o episódio de Éfeso e diz ter sido o imperador induzido em erro. Termina
afirmando: ―Defendei contra os heréticos a posição inabalável da Igreja para que o
direito de Cristo defenda também o vosso Império‖. Escreve também a Pulquéria,

38
GAUDEMET. Op. cit. p. 424-25. Cf. LE BRAS. Le droit romain... p. 381. P. Batiffol (Calhedra
Petri. p. 26) vê no texto imperial uma alusão ao Concílio de Sárdica.
39
Epistola dogmatica ad Flavianum, PL 54,755-81. Para F. Dvornik, as dificuldades da Igreja do
Oriente, do século IV à primeira metade do século V, devem ser explicadas pela rivalidade entre as Sés
de Alexandria e Bizâncio, e na pretensão de Alexandria de ocupar o primeiro lugar. DVORNIK, Op.
cit. p. 42.
40
Para uma visão pormenorizada dos acontecimentos de Éfeso, cf. LLORCA, Bernardino. Historia de
la Iglesia Catolica. Madrid: BAC, 1958. v. 1. p. 546 ss. Sobre o conflito entre Roma e Constantinopla,
cf. também a opinião de DVORNIK. Op. cit. p. 42-50.
41
Ep 44. PL 54, 827-31. As cartas de Leão Magno protestando contra os episódios de Éfeso, renovam
a doutrina do primado dogmático de Roma. JAFFÉ. Reg Pont, 437 e 438.

49
irmã do soberano, mas que, no momento, nada podia fazer. Apelos inúteis, já que
Constantinopla continua intransigente.
Altera-se a situação com a morte do imperador. Marciano escreve a Leão
Magno para comunicar sua ascensão e reconhecer a preeminência do papa
sobre o episcopado.42
Por sugestão imperial, novo concílio ecumênico é convocado e reune-se em
Calcedônia (451). Semanas antes Leão escreve a Marciano para solicitar que não
permita discussões doutrinais. Deseja apenas que os padres se limitem às questões
de fé definida em sua carta a Flaviano. Com efeito, o concílio aprova a doutrina
exposta por ele. A Epístola dogmática é reconhecida como norma de fé. É
expressivo o triunfo de Leão I. Na 15ª sessão, porém, sofre sério golpe: por decisão
do concílio (cânon 28), Constantinopla passa a gozar no Oriente a mesma primazia
que a Roma cabe no Ocidente.
O papa Leão protesta, em defesa da autoridade da Santa Sé, em carta ao
imperador Marciano (450-457): ―Que a cidade de Constantinopla tenha, como
desejamos, a sua glória, e possa ela, sob a proteção da mão direita de Deus, gozar
por muito tempo o governo da vossa demência. Todavia o fundamento das coisas
seculares é um e o das coisas divinas outro, não podendo haver edifício seguro
salvo o que assenta naquela pedra que o Senhor deixou como alicerce. Aquele que
cobiça o que lhe não é devido perde o que é de sua própria pertença. Que seja
bastante para o acima mencionado o fato de, pela ajuda da vossa piedade e o meu
consenso favorável, ter obtido o bispado de uma grande cidade. Que ele não
desdenhe de uma cidade real que não pode transformar numa sé apostólica; e que
de maneira alguma espere ser capaz de subir prejudicando os outros. Porque os
privilégios das igrejas, instituídos pelos cânones dos santos Padres e fixados pelos
decretos do Sínodo de Nicéia, não podem ser derrubados por um ato sem
escrúpulos, nem por uma inovação. E na fiel execução desta tarefa é necessário que
eu demonstre, com a ajuda de Cristo, uma perseverante dedicação, porque é um
encargo que me foi confiado. E se as regras sancionadas pelos Padres e
estabelecidas sob a inspiração do Espírito Santo no Sínodo de Nicéia para governo
de toda a Igreja forem violadas com a minha conivência (o que Deus me impeça) e
se os desejos de um só irmão tiverem mais peso em mim do que a utilidade comum
de toda a casa do Senhor, deverei ser condenado‖.43
Observe-se ainda que o concílio tinha promovido a reabilitação póstuma de
Flaviano, (morto a caminho do exílio) e a deposição de Dióscoro. Leão condenou
como herético a este último. O papa somente aprovou as decisões doutrinais. De
42
Ep 73. PL 54, 899.
43
Ep 104. PL 54, 993-95. Apud ESPINOSA, Fernanda. Antologia de Textos Históricos Medievais. 3.
ed, Lisboa: Sá da Costa Editora, 1981. p. 125-26. (1) Anatólio, bispo de Constantinopla. (2) O
primeiro concílio ecumênico (325).

50
sua parte, o imperador Marciano estranhou que Leão não tivesse aprovado
oficialmente o concílio. Manifestou que os partidários de Êutiques duvidaram da
aprovação papal de sua condenação pela assembléia. A atitude imperial é, para
Jean Goudemet, ―la preuve de la reconnaissance par tous, même par l‘empereur et
par les hérétiques, de la supériorité doctrinale de Rome. La décision pontificale est
au-dessus de celle du concile‖44
Leão I deixou enorme contribuição à doutrina do primado papal e lutou
tenazmente para assegurar a emancipação da Sé Apostólica. Fundamentou sua
autoridade jurisdicional no poder das chaves, isto é, na identificação do papado
com Pedro, a quem foi atribuído o poder de ligar. Daí as numerosas intervenções
disciplinares de Leão Magno: o bispo de Besançon, deposto por Hilário de Aries,
recorreu a Roma. O papa reconheceu seu direito e deu conhecimento do caso aos
bispos da Gália. Também na África teve de atender a questão surgida com um
bispo deposto pelos seus confrades. Cuidadoso, o pontífice preferiu decidir após
ouvir o episcopado africano. Mas a intervenção de Leão Magno fez-se sentir
sobretudo quando os bispos orientais,vitimas do ―latrocínio de Éfeso‖ (449),
recorrem à Santa Sé. O papa não quis dar solução pessoal, como se viu, e propôs
a reunião de um concilio ecumênico onde estariam representados o Oriente e o
Ocidente.
Ao lado da notável contribuição à doutrina do primado papal, Leão I deixou
importante subsídio à idéia de colaboração estreita entre os poderes temporal e
espiritual. Essa doutrina de aproximação atendia às necessidades da época e, assim,
não parece estranha a cautelosa adesão do papa. Ainda que favorável à união dos
poderes, Leão magno coloca sempre em primeiro plano os direitos da Sé
Apostólica. Julga que o primeiro dever do soberano é ajudar a Igreja. Vê-se isso,
claramente, quando afirma em carta ao imperador Leão I: ―É preciso compreender
que o poder imperial não foi instituído apenas para que o mundo seja
governado,mas sobretudo para que a Igreja seja protegida‖.45 Essa ajuda traduz-se
por ―intervenções imperiais na vida da Igreja,que o papa admite e às vezes solicita‖
(J. Gaudemet). São numerosos os exemplos de apelo ao imperador,seja para
convocar o concílio, seja para resolver questões disciplinares ou mesmo conflitos
doutrinários. Roma entende, contudo, que a nomeação de bispos, a administração
do patrimônio eclesiástico e matéria de fé devem caber exclusivamente à
autoridade religiosa. Busca-se dessa forma estabelecer o exato limite de
atribuições. Todavia, é extremamente difícil determinar a linha de demarcação
entre os dois ofícios. Deixar à competência da autoridade eclesiástica questões
pertinentes à fé e à disciplina somente tem êxito quando o imperador é dedicado à

44
GAUDEMET. Op. cit. 434.
45
Ep 156. PL 54, 1130.

51
Igreja e capaz de respeitar-lhes os direitos. Por conseguinte,a doutrina sujeita-se ao
perigo, por sinal freqüente, de o soberano decidir sobre matéria religiosa ao arrepio
da lei canônica.

Conclusão
Apesar de Leão I haver realizado muito, a situação do bispo de Roma
continuava dificil. O desmoronamento do Império deixara-o na verdade
desamparado. A luta pela sobrevivencia impeliu o papado a manobras politicas
e mesmo à procura do apoio de chefes barbaros. Não significou, porem, o
abandono da luta para libertar-se. Os homens da Igreja procuraram sempre
assegurar a independencia de Roma. O tratamento cordial que se observa na
correspondencia emanada da chancelaria pontificia,do papa Leão ou de outros
pontifices, reflete tão-somente o alto conceito que da instituição imperial fazia
a Sé Apostólica.
O seculo V revela grandes papas: Inocencio I, Leao Magno, Gelásio. Em
Leão I unem-se sabedoria teologica e habilidade diplomatica. Inspirado nelas,
formula sua doutrina para assegurar a emancipação do papado e o triunfo da
ortodoxia. Com Leão Magno, reconhece Donini, ―toda a estrutura da
Igreja,como uma especie de federação debispos autonomos,muda
radicalmente‖.46 O seculo V mostra a Igreja do ocidente unida em torno da
Santa Sé. O primado de Roma está virtualmente reconhecido nos planos
doutrinário, disciplinar e juridicional. Mas no Oriente é inexpressiva a força do
papado. A posição da Igrejabizantina,quase sempre reticente ou de franca
oposição, abre o caminho para a separação definitiva.

46
DONINI. Op. Cit. 267.

52
4

O PENSAMENTO GELASIANO A RESPEITO


DAS RELAÇÕES ENTRE A IGREJA E O
IMPERIO ROMANO-CRISTÃO

JOSÉ ANTONIO DE C. R. DE SOUZA


Departamento de História da UFG

É incontestável a atuação da Igreja e do Papado em muitos aspectos na Idade


Media. Ate mesmo historiadores coerentes engajados nesta ou naquela ―ideologia‖
aceitam tal fato quer no intuito de questioná-lo e denegri-lo ou no fito de enaltecê-
lo exacerbadamente. É por demais notório que essas posturas não são as únicas,
mas apenas a titulo de síntese genérica queremos englobá-las em dois blocos que
poderíamos classificar como dialéticos ou antagônicos, no intuito de chamar a
atenção dos leitores desavisados.
Gelásio I(492-496) é um desses personagens da Alta Idade Media que
provoca tal espécie de atitude acima descrita, em face de sua não menos célebre
epistola dirigida ao imperador Anastácio (491-518), em 494, sobre as relações
entre os poderes espiritual e temporal.
Esse tema, objeto central do presente artigo, foi e ainda é motivo de
polemicas e controvérsias, de modo que as considerações que nos propomos
fazer a respeito do mesmo tem como propósito não só de esclarecer
modestamente o pensamento gelasiano quanto a formulação da teoria acerca do
poder pontifício a época medieval, mas também salientar a obrigação moral e
religiosa que a Igreja tem para com a humanidade no tocante a fidelidade a Cristo
e a Boa Nova que Ele anunciou.1
Antes de mais nada, a maneira de roteiro histórico introdutório convém
ressaltar alguns aspectos contextuais entre outros, o cesaropapismo imperial, os
Concílios Ecumênicos de Éfeso e de Calcedônia e suas conseqüências, e ainda a
preeminência da Sé Apostólica sobre as demais igrejas particulares, fatos esses que
nos ajudarão a compreender melhor as próprias idéias de Gelásio I.

1
Cf. Mt. XXVIII-18-20: ―Jesus, aproximando-se deles, falou: ‗Toda a autoridade sobre o céu e sobre a
terra me foi entregue. Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando-as em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e ensinado-as a observar tudo quanto vos ordenei. E eis que
eu estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos!‖.

53
I — CESARO-PAPISMO E HERESIAS
O Cristianismo nas províncias orientais do Império Romano sofreu uma
influência natural e marcante da filosofia greco-helenística, particularmente do
Neoplatonismo, graças aos quais se tentou explicar e sistematizar os dogmas
contidos na Sagrada Escritura.2 Aos poucos surgiu o que poderíamos chamar de
Filosofia e Teologia cristãs primitivas, de modo particular nos centros culturais
mais importantes daqueles territórios: Alexandria, Antioquia e Constantinopla.
Entretanto, paralelamente houve teólogos3 que, racionalizando ao extremo os
dados contidos na S. Escritura, descambaram para a heresia, envolvendo questões
relacionadas com o Mistério da Santíssima Trindade, particularmente no que se
refere a Jesus e ao Espírito Santo, A mais grave de todas elas, por causa de seus
desdobramentos ulteriores, foi o Arianismo, elaborada e proposta por Ário,
sacerdote da Igreja de Alexandria.
Ora a essa época o Cristianismo já se havia irradiado por todas as províncias
imperiais e tinha adeptos em todas as camadas sociais. Por esse motivo, e segundo
nos conta Eusébio de Cesaréia em sua obra, 4 como o imperador Constantino havia
derrotado seu rival, Maxêncio, na batalha de Ponte Mílvia, graças ao auxilio do
Deus dos cristãos, resolveu em 313 promulgar o Edito de Milão: ―Eu, Constantino
Augusto, assim como eu, Licínio Augusto, reunidos (...) em Milão para discutir
todos os problemas relativos (...) ao bem público, entendemos dever regular, em
primeiro lugar, entre outras disposições (...) aquelas sobre as quais repousa o
respeito pela divindade, isto é, dar aos cristãos, como a todos, a liberdade e a
possibilidade de seguirem a religião de sua escolha (...) a fim de que a divindade
suprema, a quem rendemos espontaneamente homenagem, possa testemunhar-nos
em todas as coisas o seu favor e a sua benevolência costumados (...).5
A liberdade de culto no império vinha de encontro aos anseios dos cristãos que
haviam sido perseguidos cruelmente ate o governo de Diocleciano (285-305). Mas,
por outro lado, o imperador: ―veio a conhecer perfeitamente a vitalidade invencível
do Cristianismo e concluiu que só ele seria capaz de resistir aos elementos

2
Cf. a introdução e os três capítulos iniciais (p. 10-114) da História da Filosofia Cristã, dos
professores Boehner e Gilson. Petrópolis: Vozes, em 1970.
3
Elencar o número desses teólogos hereges seria por demais enfadonho. A titulo de informação basta
citar Marción (sec. II), Paulo de Samosata, bispo de Antioquia (sec. III) etc. Remetemos o leitor
interessado, as seguintes obras: Nova História da Igreja, v. I (Daniélou), Petrópolis: Vozes, 1966;
História da Igreja, v. I (Bihlmeyer-Tuechle), São Paulo: Paulinas, 1964; História de la Iglesia
Católica, v. I (LLORCA CL at.), Madrid: BAC, 1956; Historie de l‘Eglise, v. II, III, IV (FLICHE-
MARTIN et al.), Paris: Bloud & Gay, 1950.
4
In: História Eclesiástica X, Vita Constantini.
5
In: 900 Textos e Documentos de História, v. I, p. 112.

54
dissolventes que já atacavam a medula do Império (...). Constantino passou, pois
para o lado de quem possuía o futuro (...)‖,6 e viu nessa religião uma forma de
unificar politicamente o Império.
As idéias de Ário perturbavam a unificação religiosa bem como a ordem
pública e social, particularmente no Egito, por isso: ―(...) Constantin estima que la
réunion de l‘episcopat de tout l‘Empire constituerait, pratiquement, le meilleur
moyen de redonner la paix à l‘Eglise (...)‖.7
Constantino então convocou todos os bispos do Império a se reunirem em
concilio na cidade de Nicéia, por ocasião da primavera de 325, após ter descartado
a hipótese de vir a realizá-lo na cidade de Ancara. Nele tomaram parte cerca de 250
bispos, sobretudo orientais, acompanhados de sacerdotes e diáconos, dois
presbíteros romanos representavam o papa Silvestre I(314-335).
A primeira congregação solene ocorreu no palácio imperial e Constantino,
abrindo os trabalhos conciliares, proferiu um discurso conclamando os presentes a
unidade. A presença do imperador nas sessões: ―a apporté aux débats le poids de
son autorité et a fait triompher la cause du parti anti-arien (...). Deux évêques
seulement refusèrent d‘y souscrire: us seront exiles, par ordre de I‘empereur, de
même qu‘Arius (...)‖8
Os bispos Hósio, Alexandre e o diácono Atanásio elaboraram a doutrina
católica, a qual foi oficializada por um dentre os vários decretos ou cânones
conciliares: Jesus Cristo é o Filho unigênito de Deus, nascido do Pai, isto é, da
substância do Pai, verdadeiro Deus de Deus verdadeiro, gerado não criado,
consubstancial (homooúsios) ao Pai.
Entretanto, os gestos de Constantino, se bem que favoráveis a ortodoxia
crista, não deixaram de ter um significado político de acordo com seus
propósitos9 e tais gestos, na opinião do insuspeito Eusébio de Cesaréia, adepto do
Arianismo, eram tipicamente sintomas do césaro-papismo: ―(...) ao ocorrerem
dissensões em quaisquer províncias entre si, ele, como se fosse o bispo comum
para todos, constituído por Deus, reuniu os concílios dos ministros de Deus. E
não se achava indigno de se fazer presente nos mesmos e tomar parte em suas
reuniões, bem como ainda participava dos problemas em questão... no mais
punha-se de acordo, sobretudo com aquelas pessoas que admitiam as opiniões

6
Apud ROMAG. In: Conpêndio da História da Igreja, v. I, p. 149.
7
Apud METZ. In: Histoire des Conciles (QSJ 1149), PUF, Paris, p. 21.
8
Idem, Ibidem, p. 21-22.
9
Cf. o artigo publicado na Revista de História n. 104, P. 741-766, entitulado ―Constantino e o Império
Cristão‖ Cf. ainda as seguintes obras que exploram e analisam muito bem o cesaropapismo:
PIGANOL: L ‗Empire Chrétien. Paris: PUF, 1947; REMONDON. La Crisis del Império Romano de
Marco Aurélio e Anastácio. Barcelona: Labor, 1967.

55
mais justas e que estavam propensas a paz e a concórdia, mostrando claramente
que se comprazia com elas (...)‖.10
Mas efetivamente nem o concilio de Nicéia nem a atuação político-religiosa de
Constantino conseguiram deter o avanço rápido e ativo das idéias propostas por
Ário e seus aderentes, fato esse ocorrido particularmente no seio dos bárbaros
germânicos, os quais aos poucos adentravam nas fronteiras orientais do Império.
Durante a segunda metade do século IV, especialmente na região do Bósforo,
o Arianismo também ganhou simpatizantes e ate mesmo em Constantinopla, a
nova capital. Pelo menos nas províncias orientais, muitas das igrejas estavam nas
mãos de sacerdotes arianos, que chegaram ate a usufruir do apoio dos imperadores
Constâncio II e Valente.
Por volta de 380, quando Teodósio I (379-395) já estava a frente do governo
das províncias orientais, a querela ainda perturbava a paz imperial, também
ameaçada cada vez mais pelos bárbaros que se infiltravam naquelas paragens, ou
como agricultores ou como soldados e ate mesmo como federados, incumbidos de
proteger as fronteiras contra novas hordas invasoras.
Teodósio, no propósito de pelo menos assegurar a paz interna, oficializou a
doutrina cristã estabelecida em Nicéia como religião do Estado Romano, e naquele
intuito, visando também a pôr fim as disputas entre arianos e ortodoxos, convocou
todos os bispos das províncias orientais do Império para um concilio, a realizar-se
em maio de 381, em Constantinopla.
No 2º Concilio Ecumênico, embora se restringisse ao Oriente e não houvesse
nenhum representante do bispo de Roma, a época, o papa Dâmaso, tomaram parte
no mesmo 150 bispos, segundo historiadores do século V e a tradição, mas,
conforme a reconstituição das listas de assinaturas as atas, encontradas em diversos
manuscritos, o número constante é de 146 participantes11
Os aspectos fundamentais tratados naquele concilio resumidamente foram os
seguintes: a) reiterou-se a doutrina de Nicéia. b) Acrescentou-se-lhe a
consubstancialidade do Espírito Santo ―que procede do Pai e do Filho e com o Pai
e o Filho é adorado e glorificado. Ele que falou pelos profetas (...).12 c)
Estabeleceu-se que o bispo (patriarca) de Constantinopla lideraria todos os bispos
das outras igrejas particulares do Oriente, como fazia o bispo de Roma em relação
à Igreja do Ocidente.
Após o término do Concilio Constantinopolitano, Teodósio decretou e
divulgou por todo o Império que todos os súditos estavam obrigados a seguir os
decretos conciliares, sob pena de castigos, de modos que ortodoxia e heresia se
10
Apud ARTOLA, M. In: Textos Fundamentales para la Historia. Madrid: Revista de
Occidente, 1973, p. 28.
11
Histoire des Conciles, p. 23.
12
Apud PRELOT, M. In As Doutrinas Políticas. Lisboa: Presença, 1973, v. I, p. 251-252.

56
transformaram em questões políticas e isso noutras palavras também foi uma
atitude genuinamente césaro-papista, compreensível ate certo ponto, uma vez
que ao se tornarem cristãos, o imperador e o estado romano deixaram de ficar
alheios a tudo que respeitava a Igreja.
Foi justamente durante o governo de Teodósio o Grande que ocorreram as
primeiras investidas eclesiásticas ante o cesaropapismo. Ambrósio (333-397),
bispo de Milão, tanto pelos seus gestos como por seus escritos começou
manifestar-se contra a gerência do estado sobre a Igreja.
Prelot sintetiza claramente os acontecimentos mais relevantes ocorridos então:
―(...) o segundo conflito diz respeito à basílica de Milão, reclamada pelos arianos.
O imperador, ou os seus representantes, tinham dado razão aos heréticos.
Ambrósio protesta. Ordenam-lhe que se cale, uma vez que, segundo suas próprias
palavras, todos os assuntos dizem respeito ao imperador: ‗in potestate ejus sunt
omnia‘. Não — responde Ambrósio — ‗porque uma basílica é bem consagrado a
Deus. Ao príncipe cabe preocupar-se com seus palácios; a nós padres, e portanto a
mim que sou bispo, cabe preocupar com as Igrejas‘(...)‖. O quarto e último litígio e
o mais grave: Em Tessalônica deram-se escaramuças, nas quais foram assassinados
alguns funcionários. O imperador ordenou sangrentas represálias que degeneraram
num verdadeiro massacre. Quando o imperador regressa a Milão, S. Ambrósio
afasta-se da cidade para não se encontrar com ele e proibe-o de participar do culto
divino. E este fato que constitui aquilo a que impropriamente se chamou
―excomunhão‖ de Teodósio. O imperador é obrigado a fazer publicamente
penitência antes de assistir aos ofícios religiosos e receber os sacramentos.
Mais tarde, S. Ambrósio afirmará que reconhece plenamente os direitos do
imperador, mas que este, como cristão, tem deveres para com a Igreja. Esta é a
máxima fundamental, cujo alcance é enorme: ―O imperador faz parte da Igreja, não
está acima dela (...)‖.13
Rommen destaca ainda com mais clareza o pensamento de Ambrósio a
respeito das relações entre Igreja e Estado Romano: ―(...) Ambrósio rejeita com
veemência a teoria de que o imperador seria a lei viva (lex animata), de que o
imperador tenha, por direito divino, poder político absoluto em todos os assuntos
espirituais e temporais (...) e que mesmo quando legisla em seu campo temporal
não é inteiramente legibus solutus; está sujeito não só a lei divina, mas também a
sua consciência, que lhe manda guardar as leis, pois a aplicação objetiva da lei,
uma vez feita a lei, não deve ser impedida pelos caprichos e arbitrariedades do
imperador. Assim fala o grande Ambrósio a Teodósio: ‗Não é digno do imperador
negar a liberdade da palavra, nem é digno de um bispo não dizer o que pensa. Nada
vos faz, a vós imperadores, tão amados como o vosso respeito pela liberdade e até

13
Apud ROMMEN, In: O Estado no Pensamento Católico. São Paulo: Paulinas, 1967, p. 489-490.

57
mesmo dos que vos devem obediência militar. Ha esta diferença entre os bons e os
maus príncipes: os bons amam a liberdade, ao passo que os maus amam a
escravidão. Nada é diante de Deus tão perigoso para o sacerdote e tão ignominioso
diante dos homens como não dizer livremente o que pensa‖. E o renomado
professor alemão conclui seu ponto de vista acrescentando: ―Nessas palavras,
vemos combinadas a libertas christiana e a nobre consciência do poder espiritual,
da independência eclesiástica(...)‖.
Santo Agostinho (354-430), discípulo de santo Ambrósio e bispo de Hipona,
empregando uma linguagem mais sutil, cheia de metáforas, nas quais demonstra
suas qualidades como retórico e escritor, diz a mesma coisa, duma forma bem
singela e edificante: ―(...) Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o
amor de si levado até ao desprezo de Deus, a terrena; o amor de Deus, levado até o
desespero de si, a celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em
Deus, porque aquela busca a gloria dos homens e tem esta por máxima gloria a
deus, testemunha de sua consciência... Naquela seus príncipes e as nações
avassaladas vêem-se sob o jugo da concupiscência de domínio; nesta servem em
mútua caridade, os governantes aconselhando, e os súditos, obedecendo. Aquela
ama sua própria força em teus potentados, esta diz a seu Deus ‗hei do amar-te,
Senhor, que és minha fortaleza‘ (...)‖.14
É importante notar nessa passagem do bispo de Hipona que as pessoas fazem
parte de ambas as instituições, Estado e Igreja. Entretanto, se na primeira as
preocupações de seus governantes restringem-se à orbita profana, terrena,
assentada na força, já na Igreja, as preocupações se revestem de um caráter que
extrapola o imanente; e seus dirigentes, os bispos, e por que não, também as
autoridades cristãs seculares, devem estar sempre dispostos ao serviço da
coletividade, tendo em vista não somente a honra a Deus, mas também a realização
plena do ser humano junto dele.
Outra passagem da mesma obra é ainda mais explícita no que se refere ao
que acabamos de expor e sobretudo às relações entre Igreja e Estado: ―A família
dos homens que não vivem da fé busca a paz terrena nos bens e comodidades
desta vida. Por sua vez a família dos homens que vivem da fé espera nos bens
futuros e eternos segundo a promessa (...). o uso dos bens necessários a esta vida
mortal é portanto comum a ambas as classes de homens e a ambas as casas, mas
no uso cada qual tem fim próprio e modo de pensar muito diverso do outro.
Assim, a cidade terrena, que não vive da fé, apetece também a paz, porem firma
a concórdia entre os cidadãos que mandam e os que obedecem, para haver
quanto aos interesses da vida mortal, certo concerto das vontades humanas. Mas

14
SANTO AGOSTINHO. De Civate Dei, XIV, 28, tradução de Oscar Paes Leme. São Paulo:
Américas, 1961. vol. I, p. 285.

58
a cidade celeste ou melhor, a parte que peregrina neste vale e vive da fé, usa
dessa paz por necessidade, até passar a mortalidade, que precisa de tal paz. Por
isso, enquanto está como viajante cativa na cidade terrena, onde recebeu a
promessa de sua redenção e como penhor dela o dom espiritual, não duvida em
obedecer às leis regulamentadoras das coisas necessárias e do mantenimento da
vida mortal (...). Tais diferenças deram motivo a que essa cidade e a cidade
terrena não possam ter em comum as leis religiosas. Por causa delas a cidade
celeste se vê na precisão de dissentir da cidade terrestre, ser carga para os que
tinham opinião contrária, e suportar-lhes a cólera, o ódio e as violentas
perseguições, a menos que algumas vezes refreie a animosidade dos inimigos
com a multidão de fiéis e com o auxilio de Deus... a cidade celeste... não se
preocupa com a diversidade de leis... nada lhes suprime nem destrói, antes as
conserva e aceita; esse conjunto, embora diverso nas diferentes nações,
encaminha-se a um só e mesmo fim, a paz terrena, se não impede que a Religião
ensine deva ser adorado o deus único, verdadeiro e sumo (...)‖.15
Santo Agostinho no trecho acima também projeta alguns dentre os inúmeros
problemas e inquietações da sociedade romana à sua época, tais como a
desestabilização do Estado romano, pelo menos quanto às províncias ocidentais,
em face da presença bárbara(ostrogodos, visigodos, suevos, vândalos) daí ele haver
insistido na importância de se conseguir e conservar a paz, na necessidade de se
observar as leis civis. Insinua ainda a existência de divergências no plano religioso,
pois os bárbaros haviam aderido em massa ao Arianismo, e, como já se escreveu
acima, houve imperadores que, por motivos políticos, compactuaram com os
arianos e perseguiram bispos e clérigos defensores da ortodoxia.
Não se deve ignorar também que desde aquela época as províncias imperiais
do noroeste da África eram agitadas pela questão donatista, 16 cujos
desdobramentos se refletiam intensamente não apenas nas questões religiosas
como também nos setores sócio-economicos daquelas regiões. Mas o fundamental,
como ensinava o bispo-filosofo, eram a observância e a fidelidade às leis divinas e
o respeito à ortodoxia, pois tal procedimento é o que poderia conduzir as pessoas
ao Sumo Bem, após a fase da sua peregrinação neste mundo.
As principais escolas de catequética e de estudos teológicos, localizadas
principalmente em Antioquia e em Alexandria, foram centros famosos de
discussões e reflexões a respeito de como se uniam as naturezas humana e divina
em Jesus Cristo, devido às idéias arianas. Alguns intelectuais pertencentes à
primeira insistiam na separação das duas naturezas. Por outro lado, um grupo de

15
Idem, Ibidem XIX, 17, tomo III, p. 176.
16
Cf. ROMAG, op. Cit., p.191-194 e o artigo publicado na Revista de História nº 103, entitulado
Donato e Donatismo.

59
teólogos alexandrinos defendia o ponto de vista segundo o qual na pessoa de Cristo
uniam-se as duas naturezas.
Desde 428, Nestório era o patriarca de Constantinopla. Ex-aluno da escola de
Antioquia, levou às últimas conseqüências a tese ali defendida, a ponto de, em seus
escritos e sermões, propor que Maria era apenas mãe de Jesus. Ora, justamente nas
províncias orientais do Império há muito Nossa Senhora era invocada sob o título
de Mãe de Deus, tendo em vista a divindade de Jesus.
Os debates recrudesceram, sobretudo em razão de ser justamente o patriarca de
Constantinopla que zelosamente fazia semelhante afirmação. Em pouco tempo,
Nestório ganhou inúmeros adeptos, de modo especial entre os monges do Egito.
Esse fato veio a perturbar a disciplina eclesiástica na região. Por isso, Cirilo, bispo
de Alexandria, escrevendo a Nestório, solicitou-lhe que reconhecesse seus erros e
passasse a chamar a Virgem de Mãe de Deus. Nestório manteve-se calado e Cirilo
então refutou uma a uma as teses que ele defendia.
Mas o problema não foi resolvido com essa atitude. A controvérsia e as brigas
entre os adeptos de um e outro bispo ganharam todas as províncias orientais,
perturbando ao mesmo tempo a ordem pública e a unidade religiosa, uma das bases
da própria sustentação do poder imperial.
Em face dos acontecimentos, Teodósio II(408-450) e seu colega do
Ocidente, Valentiniano III (425-455) resolveram convocar todos os bispos do
Império no intuito de, reunidos em concilio ecumênico, a se realizar em Efeso,
em 431, discutirem o problema e solucioná-lo.
O prof. Metz observa que ―Le choix d‘Ephèse pour le concile de 431 a été fatal
à cause de Nestorius. L‘empereur Théodose II, qui pourtant avant secrètement des
sympathies pour Nestorius, n‘aurait pas pu faire une meilleure choix pour favoriser
la cause de Cyrille (...) Il s‘agissait de décider au concile si, à l‘encontre des
affirmations de Nestorius, Marie pouvait être appelée véritablement Mére de Dieu.
Or, selon une vielie tradition Marie était morte à Ephêse; la population de la ville...
vouait une vénération particulière à Marie, la Mère de Dieu (...). La population
d‘Ephèse était réputée pour ses réactions contre ceux qui ne respectaient pas ses
traditions (...) Dans ces conditions, on imagine qu‘une assemblée put discuter à
Ephèse, en toute sérénite, une question aussi délicate (...). Cyrille d‘Alexandrie
était sur d‘avoir la foule pour lui, et Nestorius d‘en essuyer les affronts (...).17
O 3º concílio ecumênico foi inaugurado solenemente em junho de 431.
Nele tomaram parte aproximadamente cerca de 180 bispos, inclusive três
legados pontifícios de Celestino I(422-432).
Cirilo abriu os trabalhos corciliares, embora o comissário imperial,
Candidiano, e inúmeros partidários de Nestório houvessem protestado. Esse

17
Histoire des Conciles, p. 72-73.

60
fato deu margem a inúmeras manobras políticas junto ao imperador, contra
Cirilo, que tomara aquela atitude porque muitos bispos, inclusive os legados
pontifícios, haviam se atrasado para a sessão inaugural, por motivos
pessoais ou propositadamente.
As assembléias conciliares se estenderam até outubro do mesmo ano, no meio
de muito desentendirnento e confusão. Assim mesmo, apesar da pressão de
Teodásio II, Cirilo, seus adeptos e os legados papais se mantiveram firmes e ―(...)
frisaram bem clara a doutrina católica: Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro
homem. De Maria não nasceu a divindade, mas tampouco a simples humanidade.
O que dela nasceu é a segunda pessoa da santíssima Trindade, verdadeiro Deus.
Por conseguinte, Maria é a verdadeira Mãe de Deus. Finalmente foi deposto e
excomungado o heresiarca (...).‖18
Os partidários de Nestório, apesar de sua condenação, persistiram em divulgar
aquelas idéias errôneas, perturbando a unidade político- religiosa do império.
Foram então perseguidos e desterrados, passando a pregar os ensinamentos do
pseudo mestre na Armênia, Mesopotâmia, Pérsia e até mesmo na China.
As pesquisas e as discussões teológicas suscitadas não somente pelo
Arianismo, mas também pelo Nestorianismo, a respeito de Jesus Cristo
prosseguiram, embora a doutrina oficial já houvesse sido definida nos três
concílios supraditos.
Nesse meio tempo, Eutíquio, sacerdote constantinopolitano, apoiado pelo novo
bispo de Alexandria, Dióscoro, supervalorizando excessivamente a natureza divina
de Cristo, passou a ensinar que em Jesus só havia aquela natureza.
O patriarca de Constantinopla, Flaviano, convocou então um sínodo
regional (448) para examinar o problema, no qual Eutíquio e sua tese acabaram
por ser condenados.
Entretanto, a controvérsia teológica entre Cirilo de Alexandria e Nestório de
Constantinopla havia contribuído para o desgaste político-religioso do Patriarca da
―Nova Roma‖, a ponto de o cânone do Concílio de Constantinopla, que estabelecia
a preeminência do bispo daquela cidade sobre os demais prelados orientais, não
haver sido levado em conta. Poder-se-ia dizer que prevaleceu a ortodoxia contra a
heresia, fato esse que se adequa à verdade, mas por outro lado não se pode negar
também que o bispo de Alexandria e a escola catequética daquela cidade
assumiram um papel relevante sob os prismas teológico e político, em vista das
idéias propostas e atitudes assumidas.
Eutíquio, ciente disso, imediatamente após sua condenação escreveu ao papa
Leão Magno (440-461), ao imperador Teodósio II e a Dióscoro, sucessor de Cirilo,
justificando seu ponto de vista. O imperador se deixou convencer a ponto de haver

18
ROMAG, op. cit., p. 179-180.

61
escrito ao bispo de Roma solicitando-lhe que revogasse a condenação de Eutíquio
promulgada por Flaviano.
Por que esse pedido? O bispo de Roma, por acaso já tinha a essa época
condições legais e eletivas para revogar a decisão de um outro bispo qualquer?
Noutras palavras já se estava admitindo o primado romano?
A questão referente ao Primado Romano por si mesma é bastante
complexa e, como se sabe, suscitou e ainda provoca discussões entre os
teólogos católicos (Hans Küng, Leonardo Boff), entre os membros de várias
Igrejas cristãs e ainda entre os especialistas em História da Igreja e História
das Idéias Políticas na Idade Média.
Não teríamos, pois, meios de nestas poucas linhas tratar adequadamente do
problema ora apontado sem nos desviarmos do propósito de nosso estudo, embora
o mesmo se relacione indiretamente com o tema em apreço.
Todavia é útil destacarmos alguns fatos ocorridos a respeito do assunto por
nós revisto, considerando que nos fornecem algumas pistas importantes que
vêm de encontro ao nosso trabalho.
Já em 382, o bispo de Roma, Dâmaso (366-384), havia reunido um sínodo na
referida cidade, quando então foi aprovada uma declaração em que os signatários
declararam que a Igreja Romana devia exercer um primado que não podia ser nem
contestado nem compartilhado porque fora transmitido diretamente por Cristo a
Pedro e nele aos seus sucessores. O documento acrescentava que ele é exclusivo da
Sé Apostólica, expressão nova e rica em conceitos subjacentes, conforme observa
Pacaut ―(...) tous les pouvoirs que les Apôtres avaient reçus em commun, tous les
pouvoirs des évêques — le pontife recevant par là, et pour le moins, une autorité
égale à celle du concile oecuménique (...)‖.19
Antes mesmo de Dâmaso, são Clemente Romano (92-101), santo Inácio de
Antioquia e santo Irineu, bispo de Lyon, salientaram a importância da Sé
Romana em relação às demais igrejas particulares.
Santo Ambrósio, contemporâneo do bispo romano, Sirício (384 - 399), o
qual passou oficialmente a se intitular ―papa‖, proferiu a célebre frase que
expressa o respeito à Igreja de Roma: ―Ubi Petrus ibi Ecclesia‖, e
indubitavelmente ao seu titular.
Inocêncio I(401-417) nas palavras de Pacaut: (...) le plus ferme en cette
matière, écrit que c‘est de Pierre, prince des Apôtres, que procèdent son
apostolat et son épiscopat dans le Christ, 20 deu mais um passo importante na
afirmação da idéia em tela.

19
Apud PACAUT, M., Histoire dela Papauté, p. 35, Fayard, Paris, 1976.
20
Idem, Ibidem, p. 35.

62
Progressivamente os bispos de Roma foram tomando consciência de que se
cada fiel ou mesmo cada bispo viesse a adotar normas particulares de conduta
religiosa ou moral jamais se efetivaria o desejo de Cristo: ―Ut omnes unum sint‖21.
Cristo ao fundar sua Igreja concedeu uma autoridade especial, em relação aos
demais bispos, a fim de que pudesse dirigi-la no propósito de realizar sua missão.
Fundamentando essa concepção, havia a célebre passagem de Mateus: ―Tu é Pedro
e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja. Dar-te-ei as chaves do reino do céu e
tudo o que ligares sobre a terra será ligado no céu e tudo o que desligares na terra
será desligado no céu e as portas do inferno não prevalecerão contra ela (...)‖.22
Foi justamente à época do pontificado de Leão I que se adotou o termo
latino ―principatus‖ ao referir-se à Sé Apostólica e se passou a considerar o
papado como uma espécie de monarquia e o sumo pontífice, enquanto herdeiro
dos poderes petrinos, como Princeps da Igreja.
Numa carta endereçada aos bispos da província Vienense, em 445,
encontramos um trecho bem significativo a respeito de nossa asserção: ―(...) Sed
huius muneris sacramentum ita dominus ad omnium apostolorum officium
pertinere voluit, tu in beatissimo Petro, apostolorum omnium summo, principaliter
collocavit et ab ipso quasi quodam capite dona sua velit in corpus omne manare,
ut exsortem se mysterii intellegeret esse divini, qui ausus fuisset a Petri soliditate
recedere. Hunc enim in consortium individuae unitatis assumptum (...)‖.23
Noutra carta, dirigida ao bispo Anastácio de Tessalônica, os termos usados por
são Leão I são bem claros: ―(...) Hortor et moneo, ut quae pie sunt ordinata
salubriterque disposita nulla concertatione turbentur (...). Nec enim poterit unitatis
nostrae firma esse compago, nisi nos ad inseparabilem soliditatem vinculum
caritatis astrinxerit: quia sicut in uno corpore multa membra habemus, omnia
autem membra non eundem actum habent (...). Conexio totius corporis unam
sanitatem, unam pulchritudinem facit et haec conexio totius quidem corporis
unanimitatem requirit, sed praecipue exigit concordiam sacerdotum. Quibus cum
dignitas sit communis, non est tamem ordo generalis, quoniam et inter beatissimos
apostolos in similitudine honoris fluit quaedam discretio potestatis, et cum omnium
par esset electio, uni tamen datum est ut ceteris praemineret. De qua forma
episcoporum quoque orta est distinctio, et magna ordinatione provisium est, ne
omnes sibi omnia vindicarent, sed essent in singulis provinciis singuli, quorum
inter fratres haberetur prima setentia, et rursus quidam in maioribus urbibus
constituti sollicitudinem susciperent ampliorem, per quos ad unam Petri sedem
universalis Ecclesiae cura conflueret et nihil usquam a suo capite dissideret‖.24
21
Jo 17, 11.
22
Mt 16, 16-20.
23
In: PL MIGNE, v. LIV, col. 628.
24
Idem, Ibidem, p. 675.

63
Quanto à herança petrina reinvindicada, sistematicamente afirmada pelos
sumos pontífices, desde essa época, ao se referirem ao munus apostólico exercido
por são Pedro, tratava-se de uma herança quanto aos poderes que o príncipe dos
Apóstolos havia recebido de Cristo. Aplicava-se o princípio jurídico da sucessão
universal, isto é, uma instituição do Direito Romano, segundo a qual o herdeiro
sucedia o falecido em todos os seus direitos, deveres e obrigações, tendo-se em
vista que o heres era tido como sucessor legal do finado. Essa herança não se
referia aos méritos, às qualidades ou aos defeitos da pessoa jurídica, no caso
específico, do apóstolo Pedro.
Nota-se então claramente a distinção entre a função exercida por alguém e a
própria pessoa. Importava, no tocante ao exercício das atribuições pontifícias, a
capacidade plena quanto aos poderes que Jesus Cristo havia conferido a são Pedro
e na pessoa dele a todos os seus sucessores. Isso acontecia através da eleição
pontifícia, todavia o eleito sucedia diretamente a são Pedro e não ao seu antecessor
imediato, em razão da ―potestas iurisdictionis‖. E devido à transmissão da
―potestas ordinis‖ era indispensável a sucessão efetuar-se no tempo no espaço.
Ora, nas províncias ocidentais devastadas pelas invasões bárbaras, a relevância
da cidade de Roma tomou novo impulso em razão de seu papel religioso. Quando
todas as instituições romanas estavam desabando, a organização eclesiástica se
firmava cada vez mais. Convinha, pois, ao imperador reconhecer esse fato e foi
justamente isso que Valentiniano III e Teodósio II fizeram através de um edito
promulgado em 445: ―Os augustos imperadores Teodósio e Valentiniano a Ecio,
varão ilustre, conde, patrício e general supremo de ambos os exércitos: Estamos
convencidos de que a única defesa para nós e para nosso império é a proteção de
Deus, e, a fim de merecê-la, a nossa primeira aspiração consiste em apoiar a fé
cristã e nossa venerável religião. Portanto, visto que o primado da Sé Apostólica é
assegurado pelos méritos de são pedro, o príncipe dos bispos, junto com a posição
especial da cidade de Roma e também pela autoridade do sagrado Sínodo que
estabeleceu a primazia da Sé Apostólica, que ninguém ouse tentar alguma coisa
contra a autoridade da mesma. Porque só agindo daquela forma em todos os
lugares será preservada a paz entre as igrejas, quando toda a Cristandade
reconhecer ao seu príncipe e cabeça (...). Entretanto não queremos somente acabar
com a situação mais grave (...) mas também evitar que se origine no seio da Igreja
a mais leve revolta e a fim de que não pareça que a disciplina eclesiástica foi
minimizada, ordenamos com sanção perpétua que não será permitido nem aos
bispos da Gália nem aos de outras províncias, contrariando ao antigo direito,
atentar contra a autoridade do venerável papa da Cidade Eterna. Tudo que a
autoridade da Sé Apostólica tenha decretado ou venha a decretar, seja considerado
lei para todos. Por conseguinte, qualquer bispo que venha a ser convocado em

64
juízo pelo Romano Pontífice e não se apresentar, seja obrigado a fazê-lo pelo
governador de sua província (...)‖.25
O próprio Estado Romano admitia a preeminência da Sé Apostólica sobre
os demais bispados, embora esse decreto imperial não deixasse de revelar sua
tônica cesaropapista, segundo a qual a unidade eclesiástica era vital para a
manutenção da ordem pública e nesse intuito a espada defenderia a cruz.
A resposta de são Leão Magno às cartas de Eutíquio e de Teodósio II foi
dirigida a Flaviano, na qual o papa reiterava a condenação de 448, feita pelo
patriarca de Constantinopla.
Entretanto, como as dissensões aumentassem, e Dióscoro, Eutíquio e seus
aderentes pressionassem o imperador, este resolveu convocar um concílio na
cidade de Efeso a se reunir em 449, no intuito de examinar o problema e
oferecer-lhe uma solução política.
O concílio se reuniu conforme a convocação de Teodósio e quem o presidiu
foi Dióscoro. Os legados pontifícios nem puderam se manifestar, a carta do papa
endereçada a Flaviano não pôde ser lida. Os padres conciliares, na maioria,
partidários de Eutíquio e de Dióscoro, revogaram a sentença de condenação
proferida contra o monge arquimandrita, depuseram Flaviano e acabaram por
conseguir que Teodósio II confirmasse e ratificasse as atas do concílio.
Leão I, ao saber de tais atos, declarou-os absolutamente nulos, e dirigindo-
se em carta à princesa Pulquéria, irmã do imperador, denominou o concílio de
Latrocínio de Efeso‖ além de não haver confirmado na Sé Constantinopolitana
Anatólio, indicado para substituir Flaviano.
Os protestos dos bispos antimonofisistas se intensificaram, As desordens,
ocorridas por causa das nomeações levadas a cabo pelo partido vencedor em Efeso,
ao invés de manter a ordem pública, agravaram ainda mais a situação. Nesse meio
tempo, Pulquéria foi proclamada Augusta, Teodósio II veio a falecer e o general
Marcion, cristão ortodoxo, foi aclamado imperador (450-457) e, no fito de se
legitimar no poder, casou-se com a imperatriz.
Marcion, a pedido de Leão I e no intuito de pôr fim à querela entre
monofisistas e ortodoxos, convocou todos os bispos do império para se
reunirem em concílio, no ano seguinte, na cidade de Calcedônia (451).
O 4º Concílio Ecumênico foi o mais concorrido na antiguidade cristã. Nele
tomaram parte aproximadamente 600 bispos, na maioria das igrejas orientais,
embora a presidência efetiva dos trabalhos tenha cabido aos legados pontifícios.
Na 6ª sessão, ocorrida a 25 de outubro, a carta de Leão I, dirigida a Flaviano, a
respeito da doutrina ortodoxa, foi lida e aprovada por todos os presentes. Definiu-
se, pois, que em Jesus Cristo há uma só pessoa com duas naturezas, consubstancial

25
Idem, Ibidem, p. 637-638.

65
ao Pai segundo a divindidade e consubstancial aos homens segundo a humanidade,
sem confusão, nem transformação, sem divisão nem separação.
Pacaut observa o seguinte, a propósito desses eventos: “... si l‘on a recours
au pape, si l ‗on reprend sa thèse, c ‗est parce que l‘on a besoin de lui et parce
que, sans son accord, la foi n‘a pas le caractère plein de l‘orthodoxie (...)‖.26
Dióscoro, Eutíquio e os monofisistas em geral foram condenados, depostos
de suas funções e banidos para regiões longínquas do império. Apesar disso
essa heresia propagou-se rapidamente, sobretudo nas províncias orientais.
Todavia, numa das sessões conciliares, justamente em que os legados papais
não se encontravam presentes e se deliberava a respeito da organização geral da
Igreja, ao final da mesma promulgou-se o cânone 28º que veio a suscitar outra
espécie de controvérsia, no tocante ao primado romano. Eis o texto: ―Seguindo em
tudo as decisões dos santos Padres e com o conhecimento do cânone dos 150
bispos o qual justamente acabou de ser lido.., nós também determinamos e
decretamos os privilégios da santíssima Igreja de Constantinopla ou Nova Roma,
porque os padres concederam privilégios, com toda razão, ao sólio da Roma
Antiga, por ser aquela cidade imperial, e os 150 bispos (...), movidos pelas mesmas
considerações, concederam iguais privilégios ao santíssimo sólio da Nova Roma,
pensando com razão que a cidade, honrada pela presença do império e do senado e
gozando de iguais privilégios aos da antiquíssima Roma soberana, deveria
igualmente receber idêntica posição nos assuntos eclesiásticos, sendo apreciada,
estimada e ocupando o segundo lugar depois da mesma.
―Por isso decretamos que os metropolitas, mas apenas os metropolitas das
dioceses do Ponto, Asia e Trácia, juntamente com os bispos daquelas dioceses que
ficam entre os bárbaros, sejam ordenados pela já citada sede da santíssima igreja de
Constantinopla. Que cada metropolita destas dioceses ordene os bispos de sua
província como foi declarado pelos divinos cânones; mas que, segundo foi dito
acima, os metropolitas das dioceses aludidas sejam ordenados pelo arcebispo de
Constantinopla, após realizarem as eleições costumeiras de acordo com a praxe e
de lhes haverem sido comunicadas‖.27
Como se percebe os bispos orientais, apoiados num dos cânones do
Concílio de Constantinopla, referente à preeminência da Sé constantinopolitana
sobre as restantes dioceses orientais, confirmaram aquele decreto conciliar.
Os motivos desse ato foram vários, por si mesmos evidentes no documento
pelo menos alguns dentre eles. No entanto outras razões subjacentes num contexto
mais amplo, tais como a predominância de bispos orientais naquela assembléia,
fato que espelha não somente a impressionante difusão do Cristianismo,

26
Apud PACAUT, op. cit., p. 41.
27
In: Sacrorum Conciliorum Nova et Amplíssiina Collectio (Mansi). Tomo VII, col. 370.

66
particularmente nas províncias orientais do Império bem como a importância
econômica-política das mesmas em relação ao Ocidente, naquela época
relativamente já desestabilizado em face da presença bárbaro-germânica por todos
os cantos. Além disso, em razão do próprio Nestorianismo bem como do
Eutiquianismo havia a necessidade prático-administrativa de se reiterar
oficialmente a preeminência do arcebispo Constantinopolitano sobre os demais
prelados orientais. Além disso tudo, as querelas teológicas também assumiram um
caráter nacionalista, reflexo de antigas aspirações libertárias contra a centralização
excessiva da administração daquelas províncias, a fim de que ao menos uma região
do império, a mais próspera, sobrevivesse em face à turbulência dos novos tempos.
Por isso, a manutenção da ortodoxia, o césaro-papismo eram instrumentos válidos
para o Estado, levando-se em conta o que acontecia.
Leão I aprovou todos os cânones do concílio de Calcedônia, exceto o 28º.
Esse fato provocaria o estremecimento nas relações e na comunhão entre os
bispados de Roma e de Constantinopla.
Numa carta dirigida ao imperador Marcion, Leão Magno foi incisivo a respeito
da questão: ―Que a cidade de Constantinopla tenha, como desejamos, a sua glória,
e possa ela, sob a proteção da mão direita de Deus, gozar por muito tempo o
governo de Vossa demência. Todavia, o fundamento das coisas seculares é um e o
das coisas divinas outro, não podendo haver edifício seguro, exceto aquele que está
assentado na pedra que o Senhor deixou como alicerce. Quem cobiça o que não lhe
pertence, acaba perdendo o que é da sua própria alçada. Que seja bastante para o
acima predito [Anatólio] o fato de, pela ajuda de Vossa piedade e o meu consenso
favorável, ter conseguido o bispado de uma tão grande cidade. Que ele não
desdenhe de uma cidade real que não pode ser transformada na Sé Apostólica; e
que de maneira alguma almeje guindar a uma posição mais elevada prejudicando
os outros. Porque os privilégios das igrejas, instituídos pelos cânones dos santos
Padres e fixados pelos decretos do sínodo de Nicéia, não podem ser derrubados por
um ato sem escrúpulos, nem perturbados por meio de uma inovação (...) e se forem
violadas com a minha conveniência (...) deverá ser condenado (...)‖.28
A disseminação dos movimentos heréticos anti-dogmáticos nas províncias
orientais do império foi um acontecimento que merece uma consideração mais
profunda além do que já se escreveu acima. Entretanto, seu estudo, que não
deve ser negligenciado, viria no momento, a prejudicar nosso propósito inicial.
Tais movimentos não foram contidos em sua expansão graças aos decretos
conciliares ou a repressão militar levada a cabo pelo Estado. As contendas
entre heréticos e ortodoxos ganhou tal proporção nos últimos decênios do
século V que o imperador Zenon (474-491) resolveu, através de um decreto

28
In: PL MIGNE, v. LIV. col. 993-995.

67
chamado Henótico, promulgado em 482, conciliar monofisistas e católicos,
particularmente os que viviam no Egito e em Constantinopla.
Os trechos mais relevantes do mencionado decreto dizem o seguinte: ―Nós
bem como as igrejas existentes em todo o império não possuímos outra
doutrina ou símbolo da fé a não ser a expressa neste santo símbolo a respeito
do qual declaramos que os 318 e os 150 padres assim já definiram (...) pois
acreditamos que somente graças ao mesmo nosso império sobreviverá (...) este
é, pois, o mesmo símbolo que os santos padres reunidos no concílio de Éfeso
proclamaram e foi por essa razão que o ímpio Nestório foi destituído de seu
ministério eclesiástico... junto com Eutíquio, pois ambos recusaram os decretos
sobre a doutrina aos quais aludimos (...)‖.
―Confessamos que o unigênito Filho de Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo,
se encarnou verdadeiramente. É consubstancial ao Pai no que respeita à sua
divindade e no tocante à sua humanidade é consubstancial a nós mesmos; que
ele desceu do céu, é obra do Espírito Santo, tomou seu corpo de Maria Virgem,
mãe de Deus; que ele e um só e não dois. Por isso afirmamos que são obra da
mesma pessoa os milagres que fez e os tormentos que padeceu em sua carne.
―Por conseguinte, excluímos da comunhão aquelas pessoas que o dividem,
ou que confundem suas naturezas ou dizem que tomou um corpo imaginário,
pois a encarnação ocorreu sem a mancha do pecado, e da Virgem Maria não
nasceu um segundo Filho, visto que a Trindade assim permaneceu, embora haja
encarnado uma de suas pessoas.
―(...) E condenamos pelo anátema qualquer um que pense ou, tenha
pensado de outra forma, agora ou noutra ocasião, ou no concílio de Calcedônia
(...). Principalmente a Nestório e a Eutíquio (...)‖.29
À primeira vista o texto cesaropapista assumia plenamente a ortodoxia
niceno-constantinopolitana e efesina. Todavia a condenação do concílio de
Calcedônia revelava uma sinal de ruptura com a doutrina católica, o que na
prática resultou em maiores confusões e discórdias, visto que nenhum dos grupos
religiosos nele mencionados se consideravam legalmente condenados em face de
tanto jogo de palavras diplomáticas. Em suma os ortodoxos sentiram-se traídos,
em razão do Henótico sistematizar a doutrina proposta por Leão I e reafirmada
pelo concílio de Calcedônia. Os monofisificatas, persegui- dos e acostumados já
a reações violentas, não viam com bons olhos a elasticidade da doutrina religiosa
oficializada por Zenon.
Quando as notícias a respeito do que ocorria nalgumas províncias orientais
e o Henótico chegaram a Roma, o papa Félix III (483-492) enviou legados
portando cartas dirigidas ao patriarca Acácio e ao imperador, solicitando-lhes

29
EVAGRIUS, in Historia Ecclesiastica XIII, 14, cit. por Artola.

68
que revogassem tal decreto e permanecessem fiéis à doutrina de Calcedônia.
Mas ambos permaneceram irredutíveis e não aceitaram a orientação pontifícia.
Esse fato obrigou o papa a reunir um sínodo em Roma, em julho de 484, ao
qual compareceram 77 prelados, a fim de estudar a questão acaciana. Os padres
sinodais junto com o sumo pontífice acabaram por destituir a Acácio da Sé
Episcopal de Constantinopla.
Mas o imperador Zenon, apesar de receber os legados papais que lhe
entregaram a carta na qual Félix III destituía a Acácio, ignorou tal fato,
mantendo o aludido patriarca em sua arquidiocese até 489, quando veio a
falecer. Dois anos mais tarde, Zenon faleceu também. Sucedeu-lhe Anastácio,
adepto do monofisismo.

II— GELÁSIO I: AS IDÉIAS E A ATUAÇÃO PONTIFICIAL 30


Quando Anastácio foi sagrado imperador pelo novel patriarca Eufêmio, este
pediu-lhe que revogasse o Henótico e se mantivesse fiel à doutrina formulada e
promulgada no concílio de Calcedônia. Mas o imperador, em face de suas
convicções religiosas pessoais, não se comprometeu em nada com Eufêmio, pelo
contrário, discretamente levado por motivos político-econômicos, protegeu os
bispos monofisificatas e os adeptos dessa heresia que viviam no Egito, na Síria, na
Palestina e na Fenícia.
Esse fato levou Eufêmio a reunir um sínodo em 492 com o propósito de
reconfirmar as teses e decretos estabelecidos em Calcedônia, bem como recusar
a doutrina contida no Henótico e a profissão de fé que Anastácio havia feito,
apoiado naquele decreto imperial quando fora sagrado.
O imperador ficou insatisfeito com aquelas medidas tomadas por
Eufêmio, e, por coincidência ou não, o aludido patriarca foi vítima de dois
atentados misteriosos.
No princípio de março de 492, Gelásio I iniciou sua gestão papal. Esse
pontífice romano era natural da África, mas desde cedo fora educado na Cidade
Eterna e na escola catequética de são Leão I. Além de uma vasta bagagem cultural,
adquiriu enorme experiência nos assuntos e problemas eclesiásticos, religiosos e
políticos existentes naquela ocasião, pois havia sido secretário de Félix III, durante
seu pontificado. Isto lhe havia proporcionado também uma ocasião para redigir
inúmeras cartas a dignitários eclesiásticos nas quais defendia zelosamente a
ortodoxia contra o monofisismo e seus aderentes.

30
Os escritos de são Gelásio I se encontram no volume LIX da Patrologia Latina. A quinta parte da
obre citada é pseudo-gelasinana e remonta à época do papa Dâmaso (382), cujo autor se desconhece.

69
O pontificado de Gelásio I ocorreu justamente no momento em que diversos
povos germânicos haviam se tornado os senhores das antigas províncias do
Ocidente e até mesmo da Itália. Por exemplo, Clóvis, líder franco, conquistava a
Gália palmo a palmo. Teodorico, ariano e rei dos Ostrogodos, desde 493 tornou-se
rei da Itália. Os Visigodos estavam instalados na Península Ibérica, os Vândalos no
noroeste africano. Aos imperadores não restava outra alternativa se não a de
reconhecer seus líderes como reis ―federados‖ daquelas regiões, a fim de que estes
os aceitassem pelo menos nominalmente como único soberano de todos, conforme
a teoria universalista concebida pelos chefes de estado romanos.
Logo que se tornou, papa, Gelásio informou a Anastácio do acontecimento.
Entretanto não fez o mesmo com Eufêmio, por considerá-lo fora da comunhão
com Roma devido ao ter sido pusilânime em relação ao imperador monofisificata e
haver conservado o nome de Acácio nos dípticos da igreja Constantinopolitano.
Foi justamente Eufêmio que tomou a iniciativa de escrever ao papa e o fez por
duas vezes, visto não ter recebido resposta a primeira carta. Ambas não se
conservaram mas a epístola de Gelásio nos sugere o seu conteúdo: ―(...) Gostarias
que nós nos humilhássemos ainda mais? Que consentíssemos que nas celebrações
dos mistérios divinos se recitasse o nome dos hereges, dos que foram condenados e
dos seus sucessores? Deveríamos precipitarmos de olhos abertos no abismo? Não
disseste que recusavas Eutíquio e os outros hereges? Recusa, pois, igualmente os
que estão em comunhão com os sequazes de Eutíquio. Disseste que Acácio foi
condenado, embora permanecesse católico. No entanto, ele estava separado de
nossa comunhão, devido estar em união comum com os hereges. E, levando em
conta que veio a falecer nessa condição, não podemos aceitar que seu nome ainda
seja incluído entre os nomes dos bispos católicos.
―Admiramos que declaraste aceitar a doutrina de Calcedônia e não condenaste,
em geral e particularmente, os que estavam em comunhão com os fautores
daquelas pessoas que haviam sido anatematizadas. O concílio de Calcedônia não
condenou Eutíquio e Dióscoro? E assim mesmo Acácio estava em comunhão com
Timóteo Eluro e Pedro Monge, hereges eutiquianistas. Poderias afirmar que o
aludido Pedro, com quem Acácio estava em comunhão, foi absolvido? Poderias
apresentar-nos provas de como ele se purificou do eutiquianismo e como não
esteve em comunhão com Eutíquio?
―Não deves, pois, olvidar tua declaração, segundo a qual professas a fé
católica, e por isso mesmo de tirar dos dípticos o nome de Eutíquio. Não basta
falar. É teu dever mostrar com gestos que renunciaste à comunhão com os
hereges e com todos aqueles que estiveram em comunhão com eles (...) jamais
um bispo deve se omitir, quando se trata de anunciar a verdade, pela qual na

70
condição de ministro de Nosso Senhor Jesus Cristo, se preciso for, deverás
oferecer tua própria vida (...)‖.31
Cabe indagar: Acácio, patriarca de Constantinopla, era monofisificata ou não?
Quem eram os outros personagens desconhecidos mencionados na carta a
Eufêmio? Na verdade, respondendo à segunda indagação chegaremos à resposta da
primeira. Timóteo Eluro foi um bispo monifisista de Alexandria e igualmente
Pedro Monge. Este e Acácio, segundo Romag,32 teriam auxiliado Zenon a redigir o
dúbio Henótico. O patriarca agira mais em função da política imperial favorável ao
monofisismo do que aos interesses da unidade doutrinária, e por isso Félix III o
excomungou em 484. Ademais, os católicos de Alexandria haviam eleito o
patriarca a João Talaia, e Acácio e Zenon apoiaram a Monge, eleito pelos
monofisistas. O próprio Monge também acabou excomungado por ser usurpador e
adepto de Eutíquio.
Gelásio, em face do exposto, agiu com firmeza não só como papa, mas
também impôs a Eufêmio que, na condição de patriarca, de primaz para o Oriente,
agisse da mesma forma e não se deixasse guiar pelos interesses do Estado em
detrimento da religião, enfim da própria unidade eclesial, notadamente
considerando-se que a doutrina católica estava em questão. Noutra passagem da
carta pontifícia, Gelásio pergunta a Eufêmio porque ele não o informara a respeito
de sua eleição para o bispado de Constantinopla, segundo o procedimento habitual
dos bispos-eleitos em comunhão com Roma.
Os gestos ambíguos de Eufêmio não agradaram nem a Roma nem a
Constantinopla. Dois anos mais tarde (494), Anastácio o desterrou para longe
das fronteiras imperiais e deu-lhe um sucessor nos moldes césaro-papistas.
Noutra carta Gelásio foi mais incisivo ainda quanto aos problemas em questão:
―(...)Eles têm coragem de citar os cânones e são os primeiros a violá-los (...)
fundamentados em qual concílio tinham o direito de destituir João de Alexandria
de sua sede, apesar de o mesmo nem antes nem depois haver admitido sua culpa?
Digamos que foi o imperador que tomou aquela atitude. Perguntamos: baseado em
quais cânones ou regras podia fazê-lo? Por que Acácio permitiu que ele fizesse
uma ação ilegítima? Deus disse que é culpado não somente aquele que erra, mas
também aquele que aprova os que erraram... Se os bispos da segunda e terceira
sedes, podem ser depostos, bem como outros prelados inocentes, por que não se
pode destituir o patriarca de Constantinopla, visto se encontrar em comunhão com
os hereges? (...). Tratando-se da religião, segundo os cânones, compete à Se
Apostólica o supremo pode para julgar (...). Ninguém, mesmo que seja cristão
muito poderoso, se arroga tal direito, exceto se for perseguidor da fé. (...). Por isso,

31
Epístola n. 1. In: PL MIGNE v. LIX.
32
ROMAG, op. cit., p.184.

71
não receamos ver-se extinguir o poder do julgamento apostólico, fundamentado-
nos nas palavras de Cristo, na tradição dos antigos e na autoridade dos cânones, de
modo que a Sé Apostólica deve julgar sempre toda a Igreja.(...)‖ 33
As teses gelasianas são por si mesmas bem claras: o sucessor de Pedro e seus
herdeiros exercem o primado sobre as igrejas particulares. O imperador, mesmo
sendo cristão e desfrutando de um poder ímpar, não tem o direito de se imiscuir e
interferir em assuntos eclesiásticos, devido a não possuir competência e direito para
tal. Se os bispos são coniventes com atitudes dessa espécie, naturalmente
ilegítimas, o sumo pontífice tem o direito de depô-los, porque a Sé Apostólica é
responsável pela fidelidade à ortodoxia, à disciplina eclesiástica, e enfim detentora
do múnus apostólico para julgar os transgressores dos postulados cristãos, pois,
conforme o próprio Gelásio, o papa é o detentor supremo dos poderes legislativo,
executivo e judiciário na Igreja: ―(...) O que a Sé Apostólica afirma em um sínodo
ou concílio, tem valor jurídico, o que ela recusa, não tem força legal (...). 34
A determinação e a firmeza de Gelásio na defesa da unidade eclesiástica, da
integridade doutrinaria, do primado e supremacia da Sé Apostólica, podem
aparentar uma obstinação inflexível, mas por outro lado não se pode olvidar que
ele tinha consciência plena de sua missão como pastor supremo e das
responsabilidades que ela implicava, ademais os profundos conhecimentos
teológicos que possuía garantiam-lhe respaldo para seus gestos, se não nos
esquecermos também da doutrina paulina a respeito da missão episcopal. 35
Prelados de diversas regiões do mundo cristianizado também reconheceram a
autoridade e o zelo de Gelásio e legitimaram seus gestos quanto à defesa da
catolicidade e da disciplina eclesiástica: ―Ao Senhor Santo Apostolo e Bento Padre
dos Padres, Gelásio, papa da cidade de Roma, os humildes bispos da Dardânia:
―Recebemos com o devido respeito e devoção as salutares prescrições do teu
apostolado e rendemos solene ação de graças a Deus onipotente e à tua beatitude,
por haver-se dignado visitar-nos por meio de uma admoestação pastoral, contendo
um ensinamento evangélico.
―Por isso, é nosso desejo obedecer às tuas ordens em todos os aspectos,
conforme recebemos o ensinamento de nossos padres, observando inviolavelmente
os mandamentos da Sé Apostólica e guardando na proporção que convém, fiel e
irrepreensível submissão à fé ortodoxa da qual tu és o guardião.
―Quanto a Eutíquio, Pedro, Acácio e quaisquer que sejam seus sectários e
aderentes, mesmo antes de haver recebido tuas ordens, nós nos esquivávamos deles
como se fossem portadores e transmissores da pestilência. E agora, após havermos

33
Epístola n. 4, dirigida a Fausto, chanceler do rei Teodorico.
34
Epístola n. 8, In: PL, vol. Cit.
35
Cf. as epistolas paulinas dirigidas especialmente a Tito e Timóteo.

72
recebido a admoestação da Sé Apostólica, à qual desejamos servir com dedicação e
sem mácula, conforme os preceitos e estatutos dos padres, ser-nos-á mais
importante ainda afastarmo-nos daquela peste e fugir de qualquer pessoa que fez
ou faz parte da seita proposta por Eutíquio e assumida por Pedro e Acácio, bem
como daquelas pessoas que entrarem em comunhão com seus partidários. (...)‖36.
Em 494 ocorreram fatos importantes que marcaram o pontificado de Gelásio.
Primeiramente convocou um sínodo ao qual compareceram 70 bispos. O
trabalho principal dos padres sinodais consistiu em catalogar e classificar todos os
livros canônicos da Sagrada Escritura, os livros apócrifos da igreja primitiva e os
livros proibidos, escritos por hereges, desde as origens do Cristianismo até aquela
ocasião. O sínodo romano também confirmou novamente as decisões tomadas
pelos 4 Concílios Ecumênicos, aos quais já nos referimos.
Nesse mesmo ano o imperador Anastácio enviou à Itália alguns legados
para tratar com Teodorico assuntos de interesse do Império. Esses legados
tinham ordem expressa de não se avistarem com Gelásio, devido às relações
tensas entre a Igreja e Estado por causa de monofisismo e do cisma acaciano.
O sumo pontífice soube das ordens imperiais e fez chegar aos ouvidos de
Fausto o Irineu, embaixadores de Anastácio, o seu descontentamento por aquele
gesto do imperador. Eles ao regressarem a Constantinopla informaram Anastácio
das queixas do papa. Quando regressaram novamente à Itália, disseram
pessoalmente a Gelásio que o imperador havia tomado aquela atitude porque o
papa não lhe havia comunicado sua eleição ao papado. Esses fatos levaram o santo
padre a escrever a conhecida epístola ao imperador, objeto ainda hoje de inúmeras
interpretações. Vejamos o texto da mesma na íntegra:
―Não foi por causa de minha eleição, mas porque os teus enviados a
Roma espalharam por toda a cidade que não era do teu agrado que se
apresentassem para visitar-me, bem como disseram-me que não te
escrevesse a fim de não ser inoportuno.
―Contudo, pelo que conheço de tua benevolência e diante da ansiedade
revelada pelo fato de não haver recebido uma carta minha, sentir-me-ia culpado se
me mantivesse em silêncio.
―Por isso, nascido romano como sou, amo e reverencio em ti, glorioso
filho, o Príncipe Romano. E como cristão, desejo que aquele que é tomado pelo
zelo divino, conhecendo a verdade, venha a agir como tal.
―Na condição de pontífice da Sé Apostólica que sou, e ao constatar alguma
falha na observância da fé católica, esforço-me para corrigi-la, apesar de
minhas limitações, com admoestações oportunas, visto que me foi imposta a

36
Apud LABBE, Historie Ecciesiastique, tomo IV. col. 1665.

73
pregação da palavra divina, peço-te que me ajudes mais do que S. Paulo,
quando recebeu a missão de anunciar o Evangelho.
―A presunção humana pode erguer a cabeça contra os estatutos divinos,
mas o pretensioso jamais vencerá. E até seria admissível desejar aos
adversários que sua ambição lhes caísse em cima com mais violência desde
quando causasse prejuízos à religião.
―Eu suplico, por conseguinte, à tua piedade, a fim de não condenares pela
arrogância um dever de interesse divino. Não se diga mais que um príncipe
romano considera ultraje dizer a verdade.
―Augusto imperador, são principalmente dois os poderes através dos quais
se governa o mundo: a autoridade sagrada dos pontífices e o poder real. Destes
dois, é mais grave o peso dos sacerdotes, pois estes deverão prestar contas na
ocasião do julgamento divino, inclusive pelos próprios reis da humanidade.
―Na verdade, tu sabes, filho clementíssimo, que em razão de tua dignidade és o
primeiro de todos os homens e o imperador do mundo, todavia sê submisso aos
representantes da religião e suplica-lhes o que é indispensável para tua salvação.
―Com efeito, no que se refere à administração dos sacramentos e à disposição
das coisas sagradas, reconhece que deves submeter-te à sua orientação e não seres
tu quem deva governá-lo, e assim nas coisas da religião deves submeter-te ao seu
julgamento e não querer que eles se submetam ao teu. Ora, no tocante ao governo
da administração pública, os próprios sacerdotes, cientes de que o poder te foi
conferido pela vontade divina, obedecem às tuas leis, pois no que se refere às
coisas do mundo não lhes agrada seguir orientação diferente.
―De que modo deves obedecer àquelas pessoas a quem foi confiada a
administração dos mistérios divinos? Assim como aos pontífices compete uma
responsabilidade não pequena, se omitirem algo que convenha ao culto divino,
assim também lhes compete uma responsabilidade não menor se depreciarem o
que devem obedecer. De modo que a todos os sacerdotes em geral, que
administram retamente os divinos mistérios, convém que os corações dos fiéis lhes
sejam submissos. Tanto mais, por acaso, não se deve prestar obediência à cabeça
da Sé Apostólica, a quem a mesma divindade quis que todos os sacerdotes lhe
fossem submissos e a veneração da Igreja sempre honrou como tal? Como Tua
Piedade sabe, nada pode colocar-se, graças a recursos puramente humanos, acima
da posição daquele a quem o chamado de Cristo preferiu a todos os outros e a
quem a Igreja reconheceu e venerou sempre como seu primado. As coisas
fundamentais por disposição divina podem ser atacadas pela vanglória humana,
mas não podem indubitavelmente vir a ser conquistadas por nenhum poder
humano. Praza aos céus que a audácia dos inimigos da Igreja não lhes seja também
definitivamente perniciosa, visto que nenhum poder terá condições de abalar as
bases estabelecidas pelo próprio autor da nossa religião.

74
―Na verdade, o fundamento divino está firme. Por acaso a religião sucumbiu às
novidades, por enormes que fossem, quando algum dos hereges pontificava em sua
arrogância? Pelo contrário, isso não aconteceu e invencível permaneceu quando
aos olhos dos incrédulos parecia estar próxima de seu fim.
―Portanto, eu te peço que esses homens desistam de se aproveitar das
perturbações que afligem a Igreja, para como pretexto aspirar pretensiosamente
àquelas coisas que lhes são proibidas. Não permitas que eles as consigam, pois
é necessário que guardem sua posição correta perante Deus e os homens‖. 37
Um dos aspectos mais relevantes nesse longo documento pontifício é a firmeza
e a autenticidade de Gelásio. Por que mascarar a verdade dos fatos com
subterfúgios, com desculpas? Os hereges usufruem do apoio imperial, ocupando
bispados que por direito e justiça não lhes pertencem, servem-se da política
imperial em benefício próprio, causando prejuízos à religião e à Igreja, embora
sejam instrumentos dóceis e imorais nas mãos do Estado, que necessita deles para
atingir seus objetivos.
Gelásio, como cidadão romano, respeita a autoridade constituída por
Deus para governar o império e assim considera a pessoa de Anastácio.
Entretanto, não há reciprocidade de gestos. Ele, na condição de pa pa, é o
responsável pela ortodoxia, pela unidade eclesial, chamado que foi pelo
Cristo para exercer o múnus apostólico.
Por isso, agradando ou não, acha-se na obrigação moral do corrigir os que
erram, inclusive ao próprio Anastácio, que se diz cristão.
O santo padre considera uma falha de sua parte não advertir ao imperador a
respeito dos males causados pelo monofisismo e seus fautores, tendo em vista que
o mesmo se mostrou desejoso de reavivar os contatos com o papado. Por tal razão,
mesmo que pareça desrespeitoso usar de franqueza para com o imperador,
supremo governante universal, ele, Gelásio, não se furtará em dizer a verdade,
particularmente no que se refere às coisas de Deus, que naturalmente ocupam um
lugar preeminente em relação às demais.
Os postulados gelasianos referentes de modo específico às relações entre Igreja
e Estado estão enunciados nos conceitos auctoritas e potestas. Em nossa língua e
na terminologia jurídica atual esses termos são sinônimos. Entretanto, em latim e
conforme o Direito Romano cada um deles tinha um significado particular.
Auctoritas designava a própria fonte do poder, una e indivisível, enquanto
potestas significava uma fração da autoridade proveniente da mesma e exercida
por alguém. O supremo mandatário romano era detentor da auctoritas, enquanto,
por exemplo, os governantes das províncias, os duces, os praetores, e até mesmo
os reis bárbaros, exerciam somente a potestas.

37
Epístola n. 8, dirigida ao imperador Anastácio, In: PL, MIGNE, volume citado.

75
Numa sociedade nova, alicerçada na cultura romana e no Cristianismo,
ocorreram algumas alterações importantes. O sumo pontífice recebeu diretamente
de Cristo, na pessoa de são Pedro, a autoridade para dirigir a Igreja, depositária da
Revelação salvífica. O imperador, indubitavelmente, exerce um poder cuja origem
é divina, mas que lhe foi concedido mediatamente pelo desígnio da Providência, de
modo que em razão da origem (mediata e imediata) o poder imperial é inferior
espiritualmente em dignidade à autoridade pontifícia.
O mesmo acontece quanto à finalidade. Os sacerdotes, em especial o santo
padre, são responsáveis pela salvação de todas as almas, mesmo as dos
potentados do universo, e por esse motivo têm a obrigação moral de orientá-los
e adverti-los a respeito do que é certo, segundo os ensinamentos do
cristianismo, e ainda de combater e denunciar o que é ilícito e injusto, de
acordo com os princípios religiosos.
Por outro lado, a competência dos governantes seculares é imanente, pois
restringe-se aos aspectos materiais da vida terrena, quer dizer, à consecução do
bem comum, manifesto no progresso e desenvolvimento sócio-econômico da
população, na ordem pública, no cumprimento e observância da lei e da justiça,
na paz externa, etc. Por conseguinte, nesses aspectos o clero deve acatar as
determinações do Estado.
Mas o propósito de Gelásio, após estabelecer os princípios básicos de sua
argumentação, não foi definir, em razão dos mesmos, a supremacia da Igreja sobre
o Estado ou dos sacerdotes (hierocracia) sobre os governantes seculares. O sumo
pontífice quis mostrar que ocorria uma inversão de valores, suscitada por motivos
econômico-políticos, visto que o monofisismo grassava em províncias (Egito,
Síria, Fenícia) economicamente vitais para a sobrevivência do império, enfim, para
a própria segurança do Estado. E tais motivos, embora politicamente justificáveis,
tornavam-se moralmente ilícitos desde que envolviam um problema religioso, a
preservação da ortodoxia.
Como o império aderiu ao Cristianismo e seu governante supremo se diz
cristão, tem a obrigação moral de restabelecer a ordem natural das coisas e, no
âmbito religioso, observar a ortodoxia, impedir a difusão das heresias, ouvir e
acatar as decisões do clero legítimo, principalmente do sumo pontífice que dirige e
lidera a Igreja universal. Anastácio, ao desejar a unidade e a paz imperial, não deve
ser o primeiro a contribuir para a perpetração do cisma e da heresia e para a
indisciplina eclesiástica. Agindo assim, revela uma atitude contraditória com sua
função, e, o que e mais grave, contrária ao próprio autor da religião cristão e da
harmonia e ordem universal.
Uma outra carta de Gelásio revela e destaca muito bem suas legítimas
intenções: ―(...) Agora não pretendemos demonstrar ou provar novamente se sua
comunhão foi legítima, tendo em conta que não ocorreu de modo regular. Um

76
bispo da Segunda Sé, não pode nem deve ser destituído ou restabelecido por quem
quer que seja, sem a anuência da Primeira Sé, exceto se, por acaso, toda ordem vier
a ser revogada e não se reconhecer mais a distinção, estabelecida pelos antigos
estatutos de nossos Padres, entre a primeira, a segunda e a terceira Sés, e se ignorar
que o corpo, estando privado de sua cabeça, faz com que todos os membros se
digladiem entre si... fundamentados em quais razões deveríamos obedecer às outras
sedes, as quais negligenciaram a reverência devida à Sé Apostólica(...)?‖38
Gelásio I exerceu as funções pontifícias por mais dois anos, com a mesma
dedicação e coragem a serviço da Igreja. Para alguns autores, será relembrado
como o ‗pai‖ da hierocracia medieval, para outros, como o primeiro autor que
soube precisar e distinguir com exatidão os âmbitos de atuação da Igreja e do
Estado. Apesar de seus esforços, o cisma acaciano e suas conseqüências vieram a
ser resolvidas apenas durante o governo de Justino I(518-527), após muitas
conversações entre Roma e Constantinopla.

38
Epístola n. 14, dirigida aos bispos gaudeses, In op. Cit.

77
5

SACRALIZAÇÃO DO PODER TEMPORAL


Gregório Magno e Isidoro de Sevilha

DANIEL VALLE RIBEIRO


Universidade Federal de Minas Gerais

A SÉ ROMANA E BIZÂNCIO
O desmoronamento do sistema político ocidental (476), decorrente da queda
do Império Romano diante das populações germânicas, deixou a Igreja
desprotegida, em meio extremamente hostil. Demais, a autoridade do bispo de
Roma não era reconhecida pelos bárbaros que ocuparam a Itália, a Espanha e a
África do Norte, por adotarem o arianismo.
A presença do bárbaro e querelas religiosas não interessam nem ao papa nem
ao imperador. Malgrado pequenas oscilações, as relações entre a Igreja e o Estado
tendem para o equilíbrio, no final do século V. Prevalece a tentativa da superação
de dificuldades, que o objetivo é comum. As relações harmoniosas entre os dois
poderes dependiam, evidentemente, do reconhecimento mútuo das prerrogativas de
cada um. Várias razões, porém, concorriam para dificultar a separação dos ofícios:
o prestígio de que gozava a monarquia sagrada e, sobretudo no Ocidente, a
destruição da antiga idéia romana de Estado e a penetração progressiva do
espiritual na esfera do Estado, cujo papel é posto a serviço da Igreja. 1
Diante das dificuldades no Ocidente, a Sé Romana busca apoio em Bizâncio.
Mas fica entre dois fogos: de um lado, sofre a pressão dos bárbaros; do outro, está
Bizâncio, que chamada a protegê-la, tem de ser tratada com absoluta cautela. Entre
a Igreja e o Estado imperial existirá sempre uma desconfiança oriunda daquilo que

1
FOLZ, Robert, L ‗idée d‘Empire en Occident du Vle. auXie. siècles. Paris: Aubier, 1953. p. 17. Sobre
a noção romana de Estado, cf. FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. Histoire des institutions
politiques de l‘ancienne France. La Gaulle romaine. Paris: Hachette, 1888-1892. p. 147-63.

78
um historiador chamou, com singular propriedade, ―l‘incontro di una religione
troppo giovane con uno stato troppo vecchio‖.2 De sua parte, a Igreja de Roma
nada pode contra a poderosa teocracia bizantina. Houve mesmo momentos de
intervenção violenta do poder temporal, da qual resultou a deposição, o exílio e a
morte de papas. O século V tinha sido o da luta pela emancipação do papado e da
edificação da liberdade da Igreja com Inocêncio I, Leão I e Gelásio. O século VI
apresentará dificuldades, mas, apesar de alguns momentos graves, sobretudo na
época de Justiniano, as relações com o Império Bizantino tendem a distender- se.
Justiniano (527-565) dá uma definição clássica do poder imperial (basileia)
e do poder espiritual (sacerdotium), na 6ª Novela do seu Código, publicada a
16 de março de 535: ―Os maiores dons que Deus, na sua infinita bondade, fez
aos homens são o sacerdotium e o imperium. O sacerdócio cuida dos interesses
divinos, o Império dos interesses humanos, cuja fiscalização lhe cabe. Ambos
procedem do mesmo princípio e conduzem a vida humana à sua perfeição. Eis
porque os imperadores têm em alta consideração a honra dos sacerdotes, pois
estes rezam continuamente a Deus por eles. Quando o clero possui um espírito
justo e se entrega inteiramente a Deus, quando o imperador governa a república
que lhe é confiada, então resulta uma harmonia muito proveitosa ao gênero
humano. Assim, então, os verdadeiros dogmas divinos e a honra do clero estão
à frente de nossas preocupações‖.3
Na verdade, Justiniano jamais abriu mão do direito de exercer vigilância sobre
a Igreja e velar pelos ―verdadeiros dogmas divinos‖. Embora afirmasse a
superioridade do sacerdotium, de forma alguma subscreveu a doutrina gelasiana.
Seu interesse pela teologia não lhe parece ter propiciado uma convicção pessoal em
matéria de fé. Autocrata nato, não tinha dúvida da preeminência do poder imperial.
Eram freqüentes as manifestações de veneração à Sé Romana: ―Nós nos
esforçamos para nos manter em união com vossa Sé Apostólica e manter as Igrejas
no seu estado. Porque em todas as coisas, nosso cuidado é aumentar a glória e a
autoridade de vossa Sé‖,4 asseverava ao Sumo Pontífice. Entretanto, considerava o
papa simples patriarca do Ocidente, ou seja, no mesmo plano do patriarca residente
em Constantinopla. Sua política religiosa pode não ter sido deliberadamente contra
Roma, mas sem dúvida suas intervenções em matéria religiosa tornaram
dramáticas as relações entre o papado e o Império. Sobretudo o conflito gerado
pela querela dos ―Três Capítulos‖ tem sido considerado pelos historiadores da
Igreja como ―uma das mais ignominiosas derrotas do papado‖. 5

2
ARCARI, Paola Maria. Idee e sentiment politici dell‘Alto Medioevo. Milano: A. Giuffrè, 1968. p. 53.
3
Citada por DVORNIK, François. Byzance et la primauté roinaine. Paris: Éd. du Cerf, 1964. p. 62.
4
Justiniano ao papa Júlio II (533). Coll. Avellana, 84.
5
RAHNER, Hugo. L ‗Église et l‘État dans le christianisme primitive. Paris: Éd. du Cerf, 1964. p. 224.
A documentação encontra-se às p. 244-57.

79
As pressões de alguns imperadores contra os papas provocou um
distanciamento entre os dois poderes, mas propiciou o rumo da Igreja romana, que
passou a ter mais firmeza diante das questões com o Império. Para François
Dvornik, o que favoreceu o rompimento entre Roma e Constantinopla, ou, se
preferirmos, a ruptura da ordem eclesiástica estabelecida por Justiniano, foi a
destruição do Ilírico pelos ávaros e eslavos, juntamente com a perda do
Mediterrâneo por Bizâncio. Por outro lado, as invasões germânicas introduziram
elementos novos na civilização romana, enquanto substratos helenísticos e
orientais tomaram na cultura e na vida bizantina lugar preponderante. Isso fez com
que Roma e Constantinopla seguissem rumos diferentes. O afastamento que se
operou entre o Oriente e o Ocidente talvez pudesse ter sido evitado se o ponto do
Ilírico, nos Balcãs, não tivesse sido destruído.6 Contudo, não se pode esquecer que
o cânon 28 do Concílio da Calcedônia (451), ao afirmar a plena igualdade entre os
bispos da Nova e da Antiga Roma,7 fazia prever o choque agudo entre os dois
grandes centros religiosos.
Foi exatamente a presença dos lombardos na planície do Pó (568) um dos
fatores favoráveis ao papado. Ocupado com o avanço dos búlgaros, persas e
árabes, o Império Bizantino não pôde desguarnecer suas defesas orientais e atender
o pedido de socorro que lhe chegava da Itália. O outro fator foi a expansão do Islã.
A queda da Síria, do Egito e da África nas mãos dos árabes aumentou o prestígio
do papa no Ocidente e acabou por eliminar importantes rivais do bispo de Roma —
os patriarcas de Alexandria, Antioquia e Jerusalém. O triunfo do Islã, como
acertadamente afirmou Ferdinand Lot, propiciou indiretamente o
―engrandecimento de Roma em virtude da ruína das grandes cidades do Oriente,
berço do Cristianismo‖.8 Sua rival agora era apenas Constantinopla.
De onde vem esse poder temporal do papado? Sabemos pela correspondência
de Gregório Magno que a Igreja possui considerável patrimônio, recursos
econômicos de monta, e beneficia-se de donativos. O papado é o maior
proprietário da Itália. Outro fator favorável: inexiste um poder civil em Roma. E o
papa quem socorre a população menos favorecida, protege os prisioneiros e os
escravos, aprovisiona e defende a cidade contra as invasões. Torna-se a única força
capaz de opor-se aos lombardos, De tudo isso lhe advém grande prestígio. O papa
é o senhor da cidade e o único representante do Império. A Igreja, a herdeira da
auctoritas de Roma.

6
DVORNIK. Op. cit. p. 68-9.
7
MANSI. 7, 445.
8
LOT, Ferdinand. La fin du monde antique et le début du Moyen Age. Paris: Albin Michel,
1951. p. 329.

80
GREGÓRIO MAGNO E A REALEZA CRISTÃ
É nesse quadro de enormes transformações que transcorre o pontificado de
Gregório Magno (590-604). O novo pontífice é um romano perfeitamente
convencido de que o Império permanece como a expressão política ideal do
universalismo cristão. É súdito fiel do imperador. Essa fidelidade toca por vezes à
humildade, que a muitos parece subserviência.
Colocado entre ―as agitações do mundo e as obrigações do governo‖, esse
místico trocaria de bom grado o trono pontifício pela vida monástica. Como tentou
fazer, aliás, quando declinou dc sua eleição em carta ao imperador, a quem cabia,
segundo o costume, ratificar a escolha do pontífice.
Perfeitamente identificado com a dura realidade do seu tempo, é levado a
aproximar-se das monarquias que se constituem no Ocidente, de cujos reis assume
a direção espiritual. Teve o mérito de elevar-se ―acima das contingências e de
propor aos seus contemporâneos uma concepção cristã do homem e do mundo na
qual a reflexão sobre o poder ocupa lugar especial. 9 Com efeito, a exegese prática
de Gregório Magno transparece na sua teoria da realeza cristã.
Algumas obras do papa — Homilias sobre Ezequiel, Moralia in Job — foram
iniciadas antes de sua ascensão ao pontificado, mas concluídas quando já era
pontífice.10 Isso mostra que para ele sua atividade intelectual ligava-se
estreitamente à sua função episcopal.
O pontificado gregoriano transcorrerá entre o sentimento de fidelidade à ordem
antiga, ou seja, à estrutura imperial romana, e o apelo à ordem que se estabelece —
os remos nascidos das invasões bárbaras. Gregório teve o mérito de ―descobrir‖ o
Ocidente, de trazer a Igreja para a Europa, que será o palco principal de sua
atuação. Decepcionado com o Império, agora representado por Bizâncio, busca
apoio de reis e rainhas para exercer sua missão evangelizadora. Estende ao clero
sua autoridade e firma a jurisprudência do papado sobre a Igreja, que passa a ter
efetivo controle sobre a disciplina eclesiástica. Após o choque com o imperador

9
REYDELLET, Marc. Gregoire le Grand: la royauté et l‘ordre du monde. In: —. La royauté dons Ia
litterature latine de Sidoine Apollinaire à Isidore de Sévilie. Roma: Ecote Française de Rome — Patais
Farnése, 1981. p. 442.
10
GILLET, Robert Introduction à traduction des Moralia. In: ——. Gregoire le Grand. Morales sur
Job. Paris: Éd. du Cerf, 1952. p. 10. (Sources Chrétiennes). Sobre Gregório Magno, cf. BATIFFOL,
Pierre. Saint Grégoire le Grand. 3. ed. Paris: Ed. du Cerf, 1938; DUDDEN, F. Homes. Gregory the
Great, his place in History and thought. London: Longmans, 1905. 2 v. Mais recentemente: Robert
GILLET. Introduction à sua tradução das Moralia, cit.; REYDELLET, Marc. Grégoire le Grand: la
royauté et l‘ordre du monde, cit. O pensamento político de Gregório é também analisado por
ARQUILLIRE, H.-XAVIER. L‘augustinisme polilique. Essai sur la formation des théories politiques
da Moyen Age. 2. ed. Paris: J. Vrin, 1956 e por ARCARI, P. M. Idee e sentimenti politici..., cit. Sobre
as questões com o Oriente, cf. BERTOLINI, Ottorino. Roma di fronte a Bisanzio e ai Longobardi.
Bologna: Licinio Cappleti Editore, 1941.

81
Maurício e com o patriarca de Constantinopla (595) retoma o poder sobre o clero
da Gália. Fixa com precisão a doutrina oficial da Igreja, segundo o que está
expresso nos quatro concílios ecumênicos.11 Ao precisar matéria doutrinária,
pretendia dissipar qualquer dúvida do clero gaulês.
Conselheiro moral dos soberanos, Gregório dirige-se aos príncipes para
adverti-los e lembrar-lhes seus deveres de governantes cristãos. Assim, exorta
Childeberto da Austrásia a não promover leigos ao episcopado e a lutar contra a
simonia.12 É ampla a correspondência com Brunilda, mãe de Childeberto, com a
corte de Toledo e com os demais príncipes europeus. Manifesta-se, aí, o propósito
deliberado de trazer ao rebanho povos ainda não cristianizados, chamar à ordem
reis convertidos, mas pouco atentos às coisas da fé. A atitude de Gregório é, porém,
a do pastor zeloso que aconselha. O que o anima é a vontade de estreitar a
colaboração, não a de subordinar o Estado à Igreja. Ao que aspira é que o poder
secular sirva ao desígnio divino da salvação do homem, numa retomada da
doutrina gelasiana de dualismo e cooperação dos poderes.13
Gregório Magno tem sido visto mais como um papa da Idade Média ou como
um soberano do que propriamente como bispo de Roma. De nossa parte, julgamos
que ele ainda está preso à Antiguidade, é o último papa do período. Sofre da
nostalgia de Roma. Permanece ligado ao Império, política e sentimentalmente. Há
em Gregório, porém, uma nova concepção de poder. Para ele, o poder é uma
missão, não um atributo pessoal, um privilégio, e deve ser exercido em benefício
da coletividade. Surge, aqui, a idéia de serviço. Essa idéia é nova e com ela
Gregório rompe com a Antigüidade e torna-se um papa medieval. Marc Reydellet
percebeu muito bem que Gregório adquire a estatura de soberano espiritual do
Ocidente porque emprega sua autoridade episcopal sobre toda a Europa, promove a
reconquista espiritual dos anglos e se corresponde com monarcas para o benefício
das igrejas locais.14
Gregório, baseado na doutrina antiga, sustenta que o bispo de Roma é o
depositário da fé e o responsável pela doutrina. Seu desentendimento com o
imperador Maurício (582-602) insere-se nessa visão do pontífice. A primeira
desavença ocorreu quando o soberano interditou a funcionários e militares o acesso
à vida monástica. O papa publicou o texto imperial e apresentou seu protesto a
Maurício.15 Fato mais grave verificou-se em 595. O bispo de Constantinopla, João,

11
Registrum V, 59. As cartas de Gregório Magno citadas neste trabalho estão na Monumenta
Germaniae Historica, edição EWALD & HARTMANN. Registrum Epistolarum.Berolini,
1889.v. 1.
12
Reg V,60.
13
PACAUT, Marcel. La théocratie. L‘Église et le pouvoir au Moyen Age. Paris: Dcsclée, 1989. p. 27.
14
REYDELLET. Op. cit. p. 452.
15
Reg III,61.

82
o Jejuador, atribuía-se o título de patriarca ecumênico. A reação de Gregório foi
enérgica. Em carta ao imperador afirma que somente Cristo é o Mestre universal e
não existe em toda Igreja, que se estende pelo mundo, quem possa chamar-se
ecumênico. A indignação do papa contra a atitude da Sé de Constantinopla explica-
se pela sua idéia de que existem dois princípios de universalidade para um único
mundo: a Igreja e o imperador. Sendo a universalidade, segundo ele, um atributo
da Igreja, nenhum patriarca pode arrogar-se esse direito. Para anular a pretensão de
Constantinopla, o papa Gregório sustenta, como Leão I, o fundamento dogmático
do primado papal, ou seja, ―Tu es Petrus et super hanc petram‖... Diz ainda a
Maurício: ―Tendes o dever de refrear um homem que insulta a Santa Igreja
Universal, que está cheio de orgulho, que se inflama por desfrutar de um título que
o torna diferente dos outros, que se coloca ele próprio acima do vosso Império,
apropriando-se de um nome‖.16
Curiosamente, essa soberania universal na ordem espiritual, que Gregório
agora denuncia, será mais tarde reivindicada pelos seus sucessores e culminará na
rivalidade entre o sacerdotium e o impenum. De qualquer forma, o violento
protesto do papa foi exagerado. Não havia na atitude do patriarca oriental a
intenção de usurpar a jurisdição sobre a Igreja universal nem de recusar a primazia
de Roma, segundo o que entende um especialista da questão entre Roma e
Bizâncio.17 Aliás, a designação de patriarca ecumênico, da titulatura bizantina, era
bem anterior a Gregório e não designava o universo, mas o império.
Como se afirmou, o papa Gregório votava particular estima ao Império, que
julgava universal por sua natureza e vocação. Em sua correspondência, designa-o
sancta Respublica ou christianissimum Imperium. Em seu pensamento, a
universalidade é atributo da Igreja. Daí existirem dois princípios de universalidade
— a Igreja e o Império. Embora se confundam, constituem campos distintos que se
completam para a plena realização de um objetivo comum, isto é, o de empreender
o projeto divino da salvação. Desse modo, cabe ao papa conduzir o rebanho e ao
imperador assegurar a paz à Igreja para que ―o reino terrestre esteja a serviço do
reino dos céus‖ — (―terrestre regnum coelesti regno famuletur‖)18 — o que seria,
segundo a fórmula de Arquillière,19 ―a concepção ministerial do Império cristão‖.
Consciente da superioridade do sistema imperial, o papa sublinha em duas
oportunidades o contraste entre ―o imperador, senhor de [homens] livres‖ e os ―reis
das nações, senhores de escravos‖ — ―imperator dominus liberorum‖ e ―reges
gentiuin domini servorum‖. Assim, em setembro do ano 600, reprova a brutalidade

16
Reg V, 37; JAFFÉ. Regesta Pontificum Romanorun. 1360.
17
A questão é muito bem estudada por DVORNIK. Op. cit. p.70-2. Segundo Batiffol, houve um mal-
entendido porque o título ―não designa o universo, mas o Império‖. BATIFFOL. Op. cit. p. 205.
18
Reg I, 61.
19
ARQUILLIÉRE, Henri-Xavier. L‘augustinisme politique, cit. p. 124. Reg XI, 4.

83
do ex-cônsul Leôncio, que fizera açoitar funcionário acusado do crime de
malversação. O papa declara que tal procedimento ofende a Deus, mancha a
reputação do seu autor e sobretudo obscurece a glória do imperador porque ―entre
os reis das nações e o imperador dos romanos existe a diferença de que os reis das
nações são senhores de escravos, enquanto o imperador dos romanos é senhor de
homens livres‖.20 Três anos depois, ao cumprimentar Focas pela sua ascensão ao
trono imperial, Gregório sugere algumas reformas indispensáveis após o reinado
tirânico de Maurício: ―Que todos retomem a posse tranqüila de seus bens a fim de
que se alegrem sem temor do que adquiriram honestamente. Que cada um
reencontre sua liberdade sob o vosso piedoso governo. Porque, entre os reis das
nações e os imperadores da República, há essa diferença — os reis das nações são
senhores de escravos, enquanto os imperadores da República são senhores de
homens livres‖.21 Portanto, aos olhos do pontífice, o Império aparece como forma
moral superior aos remos que se constituem no Ocidente. A esses diferentes remos,
segundo a óptica do papa, opõe-se o Império, fundado no direito. Por isso,
Gregório encara o velho sistema político romano como protetor da libertas. Sabia
perfeitamente, entretanto, que a tirania floresce em qualquer parte, sob o imperador
ou sob os reges. Conhecia também, por experiência pessoal, a fragilidade da teoria
em que repousava sua crença no Império universal. Pode ter-lhe escapado a
profundidade das alterações que se processavam; estas, como vimos, somente se
operaram na segunda metade do século VII, quando os árabes se apoderaram do
Mediterrâneo e os eslavos ocuparam o Ilírico, cortando a comunicação entre o
Oriente e o Ocidente. Mas viu, seguramente, que no Ocidente o mundo desabava:
foi obrigado a enfrentar sozinho os lombardos às portas de Roma.
Aspecto particularmente importante é o da realeza cristã em Gregório Magno.
O papa renova a tradição patrística e apresenta uma teoria sobre a origem e o fim
do poder. O que busca, evidentemente, é outra justificativa do poder. O que oferece
é uma nova imagem da sociedade política. Para ele, caso subsista, o Império será
oriundo de uma necessidade do mundo. Sua visão é a do rex ideal, fundado na
moral. Nessa realeza terrena, preparação para a realeza divina, todos são
convidados, ninguém está excluído — imperator ou reges gentium.
Recorde-se, de passagem, que a idéia de universalidade do Império vem da
Grécia. Filósofos helenos e sobretudo os estóicos dão relevância à noção de
comunidade humana. Das conquistas de Mexandre extraem a idéia de missão
universal da civilização grega. Roma atribui-se, por assimilação, a mesma tarefa
civilizadora. Essa noção de Império como centro fundamental da civilização acaba
―purificada‖ pelo cristianismo, cuja missão é essencialmente ecumênica. A medida

20
Reg XI,4.
21
Reg XIII, 34.

84
que o Império se cristianiza, a idéia imperial penetra os meios eclesiásticos. Leão I
representa a síntese acabada desse universalismo romano-cristão,22 que terá na
liturgia o principal instrumento de propagação.
Retomemos o pensamento gregoriano. Sua visão do mundo é menos linear
ou menos histórica que a de santo Agostinho, escreveu Marc Reydellet.23 Mas
depois da queda do Império do Ocidente foi o primeiro a reatar a patrística e a
extrair dos textos sagrados uma linha política. Ora, a conjuntura política
reclamava uma síntese, uma ideologia. Gregório procurou uma explicação e uma
solução para os problemas do mundo. Sua época é a do nascimento da Europa,
quando a emergência dos regna assinala uma nova etapa nas relações entre a
Igreja e o Estado. Os príncipes católicos ortodoxos marcham em bom
entendimento com Roma. Essa é a realidade nova que se abre ao papado e
propicia a expansão da Igreja. É nessa perspectiva que o pensamento político de
Gregório Magno deve ser interpretado.
Gregório não foi, certamente, um inovador, mas o cristianismo lhe deve, após
séculos de espera, a oportunidade de inspirar a vida política. Apoiado nas Sagradas
Escrituras, e tendo por mestre Santo Agostinho, elabora teoria sobre as atribuições
do poder. De fato, suas idéias resultam de sua grande experiência como pastor e
administrador. Antes dele a doutrina política estava ―implícita‖, refletia a
observação que se fazia da realidade social. Era uma espécie de adaptação ou de
transfiguração. Com ele, ao contrário, existe uma forma teórica de abordagem
política. Vivendo no Ocidente e voltado para o Ocidente, a monarquia aparece em
torno dele como a única forma de governo existente. O papa não tem escolha: é
―monarquista por necessidade‖.
No pensamento gregoriano, o poder é uma missão, um dever, não um
privilégio pessoal. Funda-se na noção de serviço. Diante dos deveres do seu cargo,
o imperador não se beneficia de qualquer privilégio, não escapa à norma geral,
equipara-se ao rei ou ao bispo. A doutrina gregoriana estabelece princípios e
exigências aplicáveis a todos, sem exceção, ao Imperium e aos regna, No seu
entendimento, a autoridade episcopal reveste-se das mesmas características da
autoridade leiga— ―quem detém o título de pastor está carregado de pesadas
inquietações, de sorte que é difícil saber se exerce os deveres de pastor ou de um
grande da terra‖.24 Gregório mostra aos governantes que, em virtude da origem do
seu poder, devem exercê-lo em benefício da coletividade. Prevalece, aqui, a idéia
de serviço. Veja-se, por exemplo, o seguinte texto:

22
LEÃO I. 82 Sermão. In Natali Apostolorum. Sources Chrétiennes, 69.
23
REYDELLET. Op. cit. p. 466.
24
Reg 1, 24; JAFFÉ. Reg Pont 1092.

85
―Todos os homens são iguais na sua essência. Mas, por uma questão de
ordenamento, uns sobrepõem-se aos outros. Então, se depreendemos pela razão o que
aconteceu no plano temporal, mais justamente descobrimos o que somos no plano
natural. Muitas vezes, o poder que nos foi conferido impressiona a alma e a envaidece
com pensamentos arrogantes, O tumor da vaidade deve ser, portanto, extirpado pela
humildade. Se a razão desce das alturas para seu próprio nível, mais prontamente
encontra a planície da igualdade natural. Ora, como falamos, a natureza fez todos os
homens iguais, mas, com a diversificação de méritos, uma ação oculta pospôs uns aos
outros. A mesma diversidade que veio do erro foi retamente ordenada pelos desígnios
divinos, de tal modo que um homem seja dirigido por outro, já que nem todos vivem
igualmente. Os homens justos, quando estão no poder, não se vestem da força do mando,
porém da igualdade de natureza; nem se vangloriam de governar os homens, mas de
servi-los, Ora, eles sabem que os antepassados são lembrados não tanto por terem sido
reis de homens quanto por terem sido pastores de seus rebanhos. Em verdade, na natureza
o homem tem precedência sobre os animais irracionais, não sobre os outros homens.‖25

Gregório preocupa-se com a ética dos governantes, inquieta-se com os males


que o poder pode acarretar. Princípios devem ser respeitados para preservar a
dignidade dos que exercem função de mando público. Por isso, adverte dos perigos
que cercam o poder, alerta sobre os sonhos do ambicioso, 26 comenta a soberba e
fala do tirano, isto é, do mau príncipe. Mais pastor do que teólogo, preocupa- se
com a salvação dos reis, pelos quais se crê responsável perante Deus.
A doutrina do papa precisa a atribuição dos poderes em termos de estreita
unidade, ou seja, sem distinguir o temporal do espiritual. Sua Regula Pastoralis
destina-se, igualmente, a reis e a eclesiásticos. Gregório repete são Paulo,
reafirmando que o poder, bom ou mau, tem aos seus olhos uma justificativa.
Sempre preocupado com a doutrina antiga, exalta a utilidade do poder e afirma que
―a boa administração encontrará recompensa junto de Deus‖.27 Observação
oportuna, numa época em que o poder real se origina da conquista militar.
O tema do príncipe a serviço da Igreja aparece na correspondência com os reis
e o imperador. Nas Moralia depara-se-nos a exegese alegórica do rinoceronte.
Gregório compara esse animal aos poderosos deste mundo e faz referência à sua
observação pessoal: ―Lembro- me, freqüentemente, de ter visto este espetáculo:
como o rinoceronte se irritava para atingir duramente e, levantando seus chifres,
aterrorizava os pequenos animais, ameaçando-os de morte, de exílio e de
condenações; de repente, pelo sinal da cruz impresso em sua fronte, todo o fogo de
sua cólera se apagou e, convertido, pôs fim às suas ameaças‖.28 A alusão a
testemunho pessoal, expressa no início do texto, afasta a possibilidade de

25
GREGORIO MAGNO. Moralia. 21, 15. PL 76, 203. Trad. TURRA Jr., Dante & MAFRA,
Johnny José.
26
Mor 4, 30. PL 75, 688.
27
Mor 26, 26. PL 76, 374.
28
Mor 3l, 2.PL76,574.

86
referência à conversão de Constantino, e parece indicar a lembrança de
acontecimento contemporâneo. Trata-se provavelmente da conversão do visigodo
Recaredo (589), ato político e religioso de capital importância. A conversão do
imperador Constantino aparece explicitamente adiante: ―Quem teria, então,
acreditado, no começo da Igreja nascente, que esse principado terrestre indomado,
esse rinoceronte, que nos primeiros tempos desencadeava ameaças e tormentas,
devolveria a Deus sua semente, isto é, responderia com seus atos à pregação
recebida... eis, com efeito, que ele promulga leis em favor da Igreja‖. 29 Vemos, aí,
com iniludível clareza o Império.
Note-se que o rinoceronte não é somente o Império. Os remos nascentes,
cristianizados e ortodoxos, estão igualmente associados à missão da Igreja. Marc
Reydellet é lúcido ao observar que o Império perde sua especificidade, já que
funda sua legitimidade na História.30 A noção de serviço que o cristianismo
confere ao poder, transfere a pessoas muito do peso da instituição política e acaba
por anular a idéia de missão providencial. Imperador e reis têm agora tarefa
comum em benefício dos súditos. Esse ministerium Dei faz do Estado um
instrumento de salvação.
Fique claro, porém: Gregório não pretendia submeter os príncipes à sua
autoridade. Em outros termos: respeita a jurisdição monárquica. Ao atribuir um
grau de sacralidade ao poder civil, tem em vista a concepção de uma ordem cristã
do mundo. Nesse sentido, não restringe a dinâmica do Estado, como tende, aliás, a
fazer quando de seu choque com o Império. Marcel Pacaut 31 vê em Gregório
Magno uma ruptura da ―tradição constantiniana‖e uma opção deliberadamente
extraída das idéias contidas no sistema gelasiano. Ruptura e escolha, diga-se, que
irão informar o caminho do político do papado medieval. Temos, pois, que as
concepções políticas do papa refletem sua visão mística do mundo. A doutrina
gregoriana não conflita com a soberania de Estado, mas é uma tentativa no sentido
de estreitar a colaboração entre os poderes. Fazer de Gregório Magno um campeão
da ideologia Igreja-Estado toca o anacronismo. Não existe a suposta teocracia de
Gregório Magno. Ao ―legitimar‖ o poder temporal pela devoção à Igreja, abria
espaço às monarquias que se formavam e rompia os laços que privilegiavam a
união Império-Igreja. O papa sabe muito bem que, pelo menos no Ocidente, a
vocação universal do Império está arruinada.
De resto, o pensamento político de Gregório Magno presta-se a interpretações
exageradas. A.-X. Arquillière insiste na concepção ministerial de poder e faz dele
um fervoroso adepto do agostinismo político.32 Paola M. Arcari sustenta que ele é
29
Mor 31,7. PL 76, 577.
30
REYDELLET. Op. cit. p. 477.
31
PACAUT. Op. Cit. p.29.
32
ARQUILLIÈRE. Op. cit. p. 121-41.

87
o apóstolo da teocracia, que despreza as autoridades civis e sonha com um ―Stato
nuovo, non nato, come gli Stati pagani, dalla divisione del lavoro, ma dalla unità
della fede: eccolo erigire la Chiesa come Stato‖. 33 Ora, Gregório jamais expressou
seu pensamento de forma tão áspera e desconcertante. Como mostrou Marcel
Pacaut, a preocupação de Gregório era evitar a fragmentação religiosa que poderia
favorecer a dispersão e o isolamento políticos decorrentes do estabelecimento dos
bárbaros no Ocidente. Para isso tornava-se imperativo gerar certa coesão em torno
de um pólo único, a saber, a Igreja. Não via outro meio de alcançar esse objetivo
senão reafirmando as prerrogativas do papa, a primazia romana. Essa tendência
simplificadora conduzirá no futuro a outro caminho que fará do bispo de Roma o
principal, o único promotor e defensor da autoridade eclesiástica, da autoridade da
Igreja. Quanto a ele, propriamente, considera-se, segundo a tradição, sucessor de
Pedro e por isso com autoridade moral para liderar a vida religiosa no Ocidente. 34
Fazer de Gregório, como se pretendeu, um instrumento da teocracia, é um exagero.
Um século separa Gregório Magno de Gelásio I. A realidade agora é outra.
Alteram-se as relações entre o bispo de Roma e o imperador. Ao afirmar a
dualidade de poderes, Gelásio enfatizara a autoridade dos pontífices, mais pesada
porque têm de prestar a Deus contas dos próprios reis. Essa noção de auctoritas,
diferente da de principado, origina-se da própria função episcopal, mais
particularmente do papa, guia espiritual dos soberanos. As condições do
momento são outras. A Igreja Ocidental conheceu o peso do cesaropapismo
bizantino. Coube a Gregório estabelecer as atribuições em termos mais amenos.
E ele o testemunho da substituição do fundamento ―providencialista‖ pelo
fundamento racional do poder.
Sublinhe-se, ainda uma vez, que Gregório não concebeu a priori sua doutrina.
Ela resulta de sua experiência pessoal de pastor e administrador. Seu pensamento
tem raízes na tradição romana e ocidental. A concepção ministerial de poder
encontra-se já em santo Ambrósio e expressa uma recusa das teorias orientais.
Como salienta Arquillière, o esforço do bispo de Roma ―é para subordinar a
política à moral, ao contrário do imperador bizantino que fazia da religião um
departamento da política‖.35 Gregório abre ―uma via que será amplamente seguida
na Idade Média — a via da razão e da nação, ao lado da qual os Carolíngios
abriram uma outra: aquela em que o papa e o imperador deveriam caminhar juntos
para dominar o mundo‖ (M. Reydellet). Herdeiro embora da concepção de
principatus da Sé Romana, Gregório não deseja ser o omnium dominus.

33
ARCARI. Op. cit. p. 339.
34
PACAUT. Op. cit. p. 27.
35
ARQUILLIÈRE. Op. cit. p. 137.

88
O PENSAMENTO POLÍTICO DE ISIDORO DE SEVILHA
A Espanha visigótica do século VII oferece a primeira contribuição objetiva à
idéia de realeza no Ocidente medieval. Coube a Isidoro de Sevilha traçar-lhe a
doutrina. O bispo espanhol procurou orientar seu trabalho para a solução de
problemas concretos, na tentativa de edificar uma teologia moral adequada às
estruturas sociais de seu tempo.36 Isidoro é o grande mestre da teologia política da
Alta Idade Média. Tanto quanto Gregório Magno, e mais que Santo Agostinho,
provavelmente, ele foi ―um homem de ação e mesmo um homem político‖. 37
Dividiu o seu tempo entre os negócios da corte e o estudo dos manuscritos antigos.
Isidoro deixou importante contribuição. Sua obra mantém unidade de
inspiração, continuidade de pensamento. Quer se trate de estudo profano, quer de
erudição ou de exegese, o objetivo é sempre a elevação de espírito de clérigos e
leigos letrados de sua terra. Notoriamente apaixonado pela Espanha, esta ocupa
importante papel na sua História dos Godos. Tem consciência do passado histórico
de sua terra sob o Império. A Espanha não é, assim, para ele uma criação dos
godos. Sem o estabelecimento destes na Espanha o regnum Gothorum teria sido
apenas um sonho. A realeza gótica encontrou ali ambiente favorável ao seu
desenvolvimento. Estabelece sempre uma expressão de continuidade entre os
romanos e os godos. Revela incontida admiração pela obra construtiva dos
príncipes visigodos. Parece não experimentar nostalgia pela grandeza de Roma e
afirma que César foi ―o primeiro que deteve o poder monárquico‖ 38 o que leva J.
Fontaine a concluir que ―o ancestral dos monarcas visigodos é, para Isidoro, o
próprio César‖.39 Na verdade, não é homem preso à Antigüidade como Gregório
Magno. Isidoro vive seu tempo, liga-se à sua contemporaneidade.
Momento expressivo da evolução do reino ibérico é a formulação, pelo 8º
Concílio de Toledo, do seguinte princípio: ―O que faz o rei não é a sua pessoa, é o
direito‖. Esta frase resume o processo que se desenvolve ao longo do século VII e
que submete a monarquia visigótica a regras cada vez mais severas. A essa
evolução Isidoro esteve de certo modo ligado, mesmo após sua morte.
Evidentemente, a realeza da época isidoriana difere da que se desenvolve
posteriormente. Não há dúvida, porém, de que a doutrina política de Isidoro resulta
de seu contacto com a realidade social.
Ao lado da sua História dos Godos e das Etymologiae, esta de grande sucesso
nos primeiros séculos da Idade Média, Isidoro concorreu para o desenvolvimento

36
A obra fundamental é a de FONTAINE, Jacques. Isidore de Séville et la culture classique dans
l‘Espagne wisighotique. Paris: Etudes Augustiniennes, 1959-93. 3 v.
37
FONTAINE. Op. cit. v. 2. p. 705.
38
ISIDORO. Etyimologiae V, 39, 25.
39
FONTAINE, Op. cit. v.2. p. 820.

89
da teoria política. Desde o final da Antiguidade, por sinal, o príncipe cristão
aparece como o protetor da Igreja e o defensor da fé. O respeito ao cristianismo era
a noção básica. Com Isidoro as teses de Gregório Magno têm uma definição mais
clara. Como escreveu Marc Reydellet, ―a novidade essencial consiste em conceber
a realeza não mais como o produto do direito natural, mas como o governo do
povo cristão‖.40 Acentua-se, desse modo, a noção de serviço. Evidentemente
inspirado em Gregório Magno, o autor espanhol identifica-se com o seu tempo,
mais precisamente com as transformações por que passava o reino visigodo, que
necessitava de uma ideologia nova. Recorde-se, a propósito, que a realeza visigoda
se instalou pela conquista pura e simples. Na Espanha, a Igreja não pôde, diante do
conquistador ariano, socorrer-se de uma colaboração leal: não há nem um são
Remígio espanhol nem um Clóvis visigodo. (M. Reydellet) Só mais tarde chegam
Leandro e Recaredo.
E nas Sentenças que se encontra o essencial das idéias isidorianas acerca da
realeza. A obra foi escrita algum tempo depois da morte de Recaredo, rei visigodo
que renunciara ao arianismo (589) e se ligara à Igreja. Ao que se crê, redigida no
reinado de Sisebuto, cujo excessivo zelo contra os judeus é condenado por
Isidoro,41 que vê neste príncipe uma esperança para a solução dos problemas que
afligiam a Espanha após a morte de Recaredo. O princípio de monarquia eletiva de
base hereditária, estabelecido pelo IV Concílio de Toledo (633), mostrava falhas.
Isidoro compreendeu a necessidade de uma doutrina mais sólida. Prestou
inestimável serviço à realeza que dominava a Espanha, livrando-a do seu ―pecado
original‖:42 libertou-a de sua inferioridade diante do Império.
Com efeito, em face da tradição imperial romana, os remos [bárbaros] que se
constituíram no Ocidente pareciam uma fatalidade histórica absurda. A idéia
imperial permanece e exerce constante fascínio sobre as mentes, em sonho que se
projeta pelos séculos da Idade Média. Os homens da Igreja procuram ―humanizar‖
os reis bárbaros e criar o ideal de uma realeza cristã. Assim foi com Gregório de
Tours, que exerceu grande influência na vida política da Gália merovíngia, e
também com Gregório Magno. Essa dificuldade de desembaraçar-se do ideal do
Império levou o erudito latino Cassiodoro a mascarar Teodorico de princeps.
Isidoro foi mais feliz. Teve a seu favor o advento tardio da monarquia cristã na
Espanha. Ao promover a renovação da realeza espanhola, Isidoro exorcizou as
lembranças nocivas.

40
REYDELLET, Marc. Isidore de Séville: tradition et nouveauté. In: . La royauté dans la
lttierature latine de Sidoine Apollinaire à Isidore de Séville. Paris: École Française de Rome,
1981. p. 554-55.
41
ISIDORO. Goth 60, 291.
42
A expressão é de Reydellet.

90
O pensamento político de Isidoro repousa no princípio de que a realeza está a
serviço da Igreja. A monarquia não aparece mais como uma imitação fraudulenta
do Império, porém como uma instituição a serviço da causa cristã, segundo a
vontade de Deus. A Igreja assume o princípio da universalidade do Império, em
virtude da nova concepção do mundo. No entanto, ao contrário da idéia original de
Império, que é, por definição, unitária e totalitária, a Igreja admite pluralidade:
sustenta a unidade da realeza de Cristo, luas, sendo universal, compõe-se de
múltiplas células. Esse pensamento já havia sido, aliás, exposto por Gregório
Magno na polêmica com o patriarca oriental João, o Jejuador.
Ao conceber a realeza como um serviço do povo cristão, Isidoro,
indiscutivelmente, assimilava-a ao episcopado. ―Inventando‖ a realeza cristã —
escreveu M. Reydellet — ―ele libertava do Império as realezas nacionais e lhes
conferia uma legitimidade própria‖.43 Tal sistema político parte da afirmação de
que a Igreja constitui o regnum Christi. A teologia política de Isidoro é cristológica
por excelência. Ao tornar-se cristão o príncipe, altera-se a natureza do seu poder.
Modifica-se, igualmente, a maneira de exercê-lo. Estabelece-se, dessa forma,
estreita relação entre a realeza e a Igreja, vale dizer, entre o Estado e a Igreja; do
mesmo modo, criam-se novos laços entre governantes e governados. Esse traço de
igualdade entre todos, de comunhão sob a autoridade de Cristo, dá especial
originalidade à teoria isidoriana de poder.
A realeza de Cristo ocupa, pois, lugar preeminente no pensamento de Isidoro.
O sevilhano não é movido por razões políticas, mas pela necessidade da luta
doutrinária que iria liderar na reconstrução da realeza visigótica. Essa realeza não
aparece aos seus olhos como uma espécie de Império universal modelado segundo
a imagem do Império terrestre, porém se perpetua através dos séculos. A realeza de
Cristo, de que a realeza judaica é imagem, não exprime poder e dominação: não é a
do Cristo pantocrático dos mosaicos bizantinos. Essa realeza de Cristo se exerce no
interior da Igreja de que Cristo é o Esposo. Segundo Marc Reydellet, Isidoro
assimilou de maneira admirável o sentido dessa imagem de Rei e Esposo
consagrados pela mesma unção. A crítica moderna explica a unção real como um
rito de participação, de interação. Isidoro soube traçar a especificidade dessa
realeza tal como ela se define, ideal e figuradamente, na unção dos reis judeus. A
unção em si é tão somente um símbolo. Diferentemente do Antigo Testamento —
em que a unção real expressa a vontade divina e pode permanecer secreta —, a
realeza cristã é concebida na Igreja e fundada na noção de devotamento e

43
REYDELLET. Isidore de Séville. p. 557. O sistema político-religioso isidoriano parte da
afirmação de que a Igreja constitui o regnun Christi e, portanto, da realeza de Cristo. Diferente
da concepção de monarquia divina, que servia de fundamento ao antigo poder imperial romano.

91
subordinação recíprocos.44 Não existe qualquer comprovação da existência do rito
de unção real na Espanha visigótica da época de Isidoro. Não há dúvida, porém, de
ter sido o reino ibérico o primeiro a realizar tal cerimônia. Convertidos ao
catolicismo, seus reis foram os primeiros a receber a sagração, isto é, a unção
sacramental que lhes conferia excepcional prestígio. 45
O rito é, com efeito, secundário e reflete o simbolismo, lembra Pierre Batiffol.
Dele se vale Isidoro para concretizar o conjunto de representações, ao retomar os
ensinamentos de Gregório Magno e santo Agostinho. A única unção que conta
verdadeiramente é a unção batismal, que torna o povo cristão um conjunto
harmonioso sob a autoridade de Cristo. Dessa idéia fundamental do cristianismo,
Isidoro formulou verdadeiro sistema político. Sabemos que a noção de que o rei faz
parte da Igreja vem da Antigüidade, mais precisamente de santo Ambrósio. Com
Isidoro a realeza aparece como expressão política do corpo místico.
Sempre próximo do pensamento de Gregório Magno, Isidoro preocupa-se
com os perigos do poder. Por isso, dirige-se aos reis, futuros soberanos e
pretendentes à realeza. Tece considerações acerca de acontecimentos
contemporâneos. O poder para ele não é sinônimo de perdição. Apenas exige do
seu detentor uma força espiritual superior. As reflexões que aparecem nas
Sentenças a propósito da realeza demonstram sua preocupação de pastor. Assim
é que, ao retomar a teoria cristã sobre a origem do poder, ligando-a ao plano da
salvação, põe em relevo a modificação introduzida pelo cristianismo no plano
social. Não se trata apenas de colocar o príncipe a serviço da Igreja. E a própria
essência da realeza que se transforma — a instituição real é na verdade uma
função no interior da sociedade. Embora o fundamento das idéias de Isidoro

44
J. de Pange salienta que é necessário distinguir na unção hebraica o ato declarativo e o ato
constitutivo, O primeiro realiza-se sempre secretamente. O segundo é um rito coletivo, cujo agente é
―toujours pluriel‖. PANGE, Jean de, Le roi très chrétien. Paris: Arthème Fayard, 1949. p. 49. Na
realeza cristã a unção é um rito unicamente declarativo. Existe, portanto, significativa alteração em
relação aos costumes judaicos, pois é através do ato declarativo que se manifesta a coesão do povo,
que, na Bíblia, se expressa pelo ato constitutivo. Decorre daí que a unção do príncipe cristão não
poderia ser considerada como mera reconstituição do rito judaico. Cf. REYDELLET. Isidore de
Sáville. p. 562, nota 220.
45
Marc Bloch crê que a a introdução do rito de sagração na Espanha visigótica seja anterior a Wamba.
Baseia-se em Juliano de Toledo, que atesta sua existência desde 672. BLOCH, Marc. Les rois
thaumaturges. 3 ed. Paris: Gallimard, 1983. Marcel David refutou o argumento. Afirma que Juliano de
Toledo apresenta como uma instituição em vigor apenas o juramento prestado pelo rei. O fato de o rei
Wamba ter sido sagrado na Igreja pretoriana de Toledo, não prova a existência de uma tradição
anterior. DAVID, Marcel. ―Le serment du sacre du IXe. au XVe. siècle. Contribuition à 1‘étude des
limites juridiques dela souveraineté.‖ Revue de Moyen Age Latin. Strasbourg: nº 6, p. 5-272. janv.-
mars, 1950. p. 39-46.

92
estejam sobretudo em santo Agostinho e Gregório Magno, foi ele o primeiro a
dar formulação mais nítida a esses princípios.46
Nas Etymologiae, sua obra ―mais completa pela concepção e realização‖ (J.
Fontaine), o prelado revela seu ideal do rex ao indicar a origem do nome: ―o
nome de rei vem de agir com retidão‖.47 Ao tecer considerações sobre as
virtudes do rei, assevera: ―As virtudes reais essenciais são em número de duas:
a justiça e a piedade. Mas, entre os reis, a piedade é a mais louvável; porque a
justiça, por si própria, é mais severa‖ — ―Regiae virtutes praecipuae duae:
iustitia et pietas. Plus autem in regibus laudatur pietas; nam iustitia per se
severa est‖ (Isidoro. Etym IX, 3,5). Nas Sentenças, obra pastoral, cuida de
como deve agir o soberano. Em Gregório, a palavra rex tem interpretação
laudatória. Isidoro não foge muito a isso e segue de perto a tradição legada pelo
estoicismo segundo a qual sábio é o rei.48
Para Isidoro a realeza deve ser, antes de tudo, uma realeza em si mesma; o
verdadeiro rei sabe dominar seus instintos e resistir a si próprio. Saliente-se que,
em Isidoro, rex é a única palavra carregada de um peso metafórico. Princeps, que
aparece várias vezes nos capítulos das Sentenças, parece ter um valor puramente
institucional; o sevilhano não acompanha a Gregório Magno, que via, por detrás do
princeps, um repositório de espiritualidade. De resto, ao formular o seu ideal de
rex, Isidoro não lhe empresta o alcance de um princípio constitucional. Não prega
que o rei que peca deva ser destronado. Seu ponto de vista é o da gramática e da
metafísica: o rei que falta a seus deveres trai seu nome e sua missão (M. Reydellet).
O perfil do príncipe cristão isidoriano acompanha o modelo esboçado por
Gregório. Parece que Isidoro considera a exegese de Gregório mais adequada à
moral política que ele tenta impor no reino ibérico. É impelido a Gregório
possivelmente por razão particular. A óptica de santo Agostinho, de duas cidades
em confronto, reflete a observação de um mundo pagão; a perspectiva de Gregório
e de Isidoro é a de uma sociedade cristã. A transferência que se processa aplica-se
ao novo povo de Deus, isto é, o povo cristão. Em suma, no que diz respeito aos
perigos do poder, ao ideal do rex ou à doutrina do mau rei, o pensamento
isidoriano fundamenta-se intimamente em Gregório Magno. Assim é que pede ao
rei que refreie sua cupidez e adverte que o bom príncipe ―não despoja ninguém
para fazer um pobre rico‖.49 Quem encarnaria a imagem do príncipe cristão de
Isidoro? O retrato que nos oferece parece ser o de Recaredo.

46
J. Fontaine afirma que Isidoro ―tentou construir uma teologia moral adaptada às estruturas
sociais do reino visigótico‖. FONTAINE. Op. cit. v. 1. p. 10.
47
Etym IX, 3, 18.
48
Para um estudo aprofundado do sentido da etimologia em Isidoro, cf. FONTAINE. Op. cit. v.
1. p. 43.
49
Sent III, 49, 2.

93
O grande problema que se coloca a Isidoro é o de saber o caminho a tomar
depois da conversão de Recaredo. Em outros termos: qual o significado da realeza
em uma sociedade cristã? Não se tratava apenas, como observa M. Reydellet,
definir as relações entre a Igreja e o Estado. O grande perigo era ver o soberano
visigodo tentar submeter a Igreja, a exemplo dos imperadores. No momento em
que a realeza espanhola procurava seu caminho era importante revesti-la de uma
justificação ideológica, ou seja, daquilo que um historiador das idéias políticas
chamou de helenismo cristão. Essa teoria; originada de Eusébio de Cesaréia, autor
de importante História Eclesiástica, era a doutrina oficial do Império Bizantino, a
partir de Justiniano e seus sucessores.
Esse foi o quadro de que se valeu Isidoro para elaborar sua concepção política.
É dentro dessa perspectiva que esboça seu modelo do príncipe cristão. 50 Antes de
definir as qualidades do príncipe, ele pergunta a que critérios deve o rei responder
em uma sociedade cristã.Diante da gravidade do momento, assume a orientação da
realeza. Com efeito, toda a doutrina política de Isidoro fundamenta-se na interação
Igreja-Estado. O texto que trata das relações entre os dois poderes tem sido objeto
de interpretações exageradas. Não será, pois, demais repeti-lo:
―Os príncipes seculares ocupam, por vezes, a supremacia do poder na Igreja a fim de
proteger, através desse poder, a disciplina eclesiástica. De resto, na Igreja esses poderes não
seriam necessários se não impusessem o terror da disciplina, o que os sacerdotes são
impotentes para conseguir com sua pregação. Freqüentemente o reino celeste vale-se da
realeza terrena: quando aqueles que estão na Igreja vão contra a fé e a disciplina, são
destruídos pelos príncipes. Que estes saibam que Deus lhes pedirá contas a respeito da
Igreja, por ele confiada à sua proteção. Pois, quer a paz e a disciplina eclesiástica se
consolidem pela ação de príncipes fiéis, quer periguem, aquele lhes pedirá contas, já que
confiou sua Igreja ao seu poder‖51

Examinado isoladamente, este texto parece indicar o esvaziamento o conteúdo


próprio do Estado, isto é, presta-se a uma interpretação teocrática. O trecho que
precede essa citação é particularmente importante. Nele afirma Isidoro: ―Os
poderes seculares estão sujeitos à disciplina religiosa; e não obstante disponham da
supremacia real, continuam ligados pelos laços da fé‖.52
Se ligarmos as duas passagens, vemos que, em relação à Igreja, o príncipe lhe
deve sujeição; em alguns casos, não obstante, conserva seu poder dentro da Igreja
— isso quando chamado a assegurar a disciplina diante da impotência da
50
DVORNIK, Francis. Early Christian and Byzantine Political Philosophy.
The Dumbarton Oarks Center for Byzantine Studies. Washington: Harvard
University, 1966. v. 2. p. 611 ss.
51
Isidoro. Setentiae III, 51. PL 83,723-24. Apud ARQUILLIÈRE. Op. cit. p.
142.
52
Isidoro. Sent III, 51, 3, PL 83,723.

94
autoridade eclesiástica. O texto abrange os limites da intervenção do poder civil no
interior da Igreja. Não se trata, portanto, de submeter o Estado ao poder religioso.
As intervenções do poder leigo nos negócios da Igreja resultam dos deveres desse
mesmo poder, que os príncipes receberam de Deus ―para afastar os povos do mal‖.
Não objetivam transformar esse poder de natureza secular em poder eclesiástico ou
supra-eclesiástico. Mas é inegável: estamos bem distantes do dualismo gelasiano.
Marcel Pacaut viu com lucidez o postulado isidoriano ao escrever: ―Portanto,
não se diz mais que a Igreja dá ao Estado seu dinamismo nem mesmo que o Estado
está na Igreja (o que implicaria subordinação), mas simplesmente que, sem o
serviço da Igreja e sem a fé cristã, não há nenhuma razão para haver o Estado, não
há o Estado justo‖.53 O belo estudo literário de Marc Reydellet do texto de Isidoro
sustenta que o prelado espanhol, ―bien loin de vouloir vider l‘État de son contenu
propre, met ici en garde contre les empitements du prince sur le domaine
ecclésiastique. Il lui reconnait seulement le droit d‘intervenir pour suppléer à
l‘impuissance des clercs‖.54 Tenha-se em mente que Isidoro vive numa Espanha
tardiamente convertida. À vista disso, acautela-se contra os males de uma
interferência indevida do Estado em matéria doutrinária. É infenso ao príncipe
travestido de teólogo. De qualquer forma, porém, essa filosofia política irá
sustentar, um século mais tarde, o edifício carolíngio.
Nota-se em Isidoro, como se afirmou, uma definição mais precisa dos
postulados expressos por Gregório Magno no que concerne ao papel do poder leigo
na manutenção da disciplina e da moral cristãs. A monarquia isidoriana torna-se
um ministério, uma função na sociedade. Estamos diante de uma sacralização do
poder temporal. Pode-se dizer que, como Gregório, o pensamento de Isidoro é
dominado por um desejo de ―unificação‖, que não deve confundir-se com um
projeto teocrático.55 Pode-se até admitir uma negação do direito natural, mas não
uma absorção do Estado pela Igreja. Certamente, ao atribuir ao poder temporal

53
PACAUT. Op. cit. p. 30. A primeira edição desta obra é de 1957. Dvornik tem opinião bem
próxima: ―In these words the notion of the state built on natural law had almost disappeared. The
state is necessary only for the protection and defense of the Church. If the Church did not need
such protection and defense, the secular power would not be necessary, since this is its sole
reason for existence‖. DVORNIK. Eearly Christian and Byzantine... v. 2. p. 848.
54
REYDELLET. Isidore... p. 590.
55
Ao sustentar a concepção ministerial de poder, Arquillière atribui a Isidoro poderosa influencia
teocrática e estabelece estreita relação entre o pensamento do sevilhano e o de Gregório VII. Cf.
ARQUILLIÈRE. Op. cit. p. 42 e 142. Por sua vez, Ullmann acredita ter sido Isidoro um dos
principais arquitetos da ideologia hierocrática e o mais perfeito continuador das idéias de
Gelásio. ULLMANN, Walter. The Growthh of Papal Government in the Middle Ages. London:
Methuen, 1955. p. 28-31. Cf. ainda a opinião de CARLYLE, A. J.A History of Mediaeval
Polilical Theory in the West. London: W. Blackwood and Sons, 1903. v. 1. p. 171 ss.; cf.
também ARACARI. Op. cit. p.717 ss.

95
função religiosa, a doutrina eclesiástica gerou certa confusão entre os poderes.
Todavia, não era ainda chegado o momento de substituir a teocracia imperial pela
teocracia pontifícia.
Na realeza de Isidoro há duas fontes de poder: Deus e o povo cristão. É Deus
quem dá o poder, mas o rei é também convocado pela comunidade de fiéis. O rei
representa, no domínio leigo, o sinal da unidade orgânica do povo, da mesma
maneira que o bispo o é no plano espiritual. Temos, assim, uma realeza fundada,
não nas pessoas, porém na comunhão de fiéis. Esta concepção distingue-se
nitidamente da ideologia imperial, que repousa na idéia de que a realeza é
imitação de Deus. A noção de poder originado do alto por delegação, Isidoro cria
uma realeza cuja origem é Deus, mas que tem sua causa final no corpo místico
dos fiéis unidos no Cristo. Em vez de ser apenas uma delegação divina, a realeza
é, ao mesmo tempo, uma participação com a humanidade. Em resumo, o poder
de Deus encarnado em certos homens iguais a outros homens, ligados pela união
em Cristo.56
O rei está obrigado a respeitar as leis, afirma Isidoro. 57 A questão já havia
ocupado os melhores círculos romanos: o princeps sobrepõe-se ou não às leis? A
teoria segundo a qual o soberano é a ―lei viva‖ aparece no primeiro século do
Império, por influência helenística.58 A noção de que o imperador está sujeito às
leis é traço marcante do principado, que desde suas origens procurou exorcizar a
má ascendência das idéias orientais. Santo Ambrósio adotou posição ambígua: ao
mesmo tempo em que fazia concessão ao princípio helenístico da ―lei viva‖ exigia
do imperador obediência às leis. Embora pareça hesitante em alguns traços, Isidoro
submete o príncipe ao ordenamento legal. Nesse sentido, liga-se ao ideal de
civilitas do Alto Império.
É importante salientar, pois, a transformação que se opera na noção de poder
pessoal, substituída pela idéia de poder como missão. É a Igreja o agente dessa
transformação, que faz do poder não um privilégio, mas um serviço a ser
exercido em benefício da coletividade. Esse ministerium Dei torna o Estado um
instrumento de salvação. Consubstancia-se na elaboração teórica de um Império
Cristão. Como afirma Marcel Pacaut, é essa doutrina política que vai presidir, um
século mais tarde, à construção do edifício carolíngio e mostrar de maneira
significativa que existem muitos meios para um Estado cristão assim definido e
sacralizado situar-se diante da autoridade eclesiástica.59 Louve-se, entretanto, o
meritório esforço de Isidoro de criar uma nova imagem de soberano necessária
ao nascimento da Europa.
56
REYDELLET. Isidore... p. 592-93.
57
Sent III, 51, 1—2.
58
DVORNIK. Early Christian and Byzantine... v. 2. p. 536.
59
PACAUT. La théocratie. p. 30.

96
6

EL PENSAMIENTO POLITICO PAPAL EN LA


“DONATIO CONSTANTINI”
Aspectos históricos, potiticos y filosóficos del Documento Papal

FRANCISCO BERTELLONI
Univ. de Buenos Aires. Diretor de “Patristica e Mediaevalia”

La reconstrucción Del contenido político de la donatio1 puede realizarse a


partir de ella misma y con ayuda de las interpretaciones históricas acerca de su
origen que resumiremos brevemente en lo que sigue.
La primera interpretación2 se articula en torno del peligro lombardo que
amenazaba al Papado y del riesgo que, como consecuencia de aquel pelígro,
corrían las aspiraciones ecuménicas del obispo de Roma si ésta era anexada por los
lombardos. Esta interpretación señala tres aspectos importantes que resumen el
contenido específicamente político del documento. En primer lugar alude a la
universalidad a que aspiraba el obispado romano. Este carácter universal se
corresponde con el primado sobre las restantes iglesias que la donación reconocía
al obispo de Roma. En segundo lugar la interpretación alude a una restitución de
presuntos derechos papales sobre Ravena, de jurisdicción oriental. Tambien esa
restitución era acorde con las insinuaciones de la donatio referidas a la cesión que
Constantino habría hecho, en favor de Silvestre, del imperium sobre Oriente. Pués
si según el documento de donación, Constantino lleva su corona hacia Oriente con
el consentimiento papal, con ello el falsario quería significar que Constantino era
Emperador porque el Papa así se lo había permitido, es decir porque era el Papa
quien tenha efectivamente la soberanía sobre Oriente. Y en tercer lugar la
interpretación señala la restitución al Papa de todos los territorios y derechos sobre

1
Sobre los aspectos jurídicos y políticos de la donatio pueden consultarse los clásicos trabajos de
LAEHR, G., Die konstantinische Schenkung in der abendländischen Literatur dês Mittelalters
biszur Mitte des 14. Jahrhunderts, Berlin, 1926, y MAFFEI, D., La donazione di Costantino nei
giuristi medievali, Milano, 1964.
2
Cfr. HALPHEN, L. Charlemagne et l‘empire carolingien, Paris, 1949, p. l4ss.

97
la república,3 es decir la soberanía sobre Occidente. Con ello hace referencia, por
una parte, a la soberanía territorial sobre la zona occidental del Imperio — tambien
aludida en la donatio — y por la otra al imperium que recibe el Papa es decir al
poder político propiamente dicho que lo autoriza a otorgar — como la historia
testimonia que efectivamente lo hizo — a Pipino y a sus hijos el título de patricius
romanorum. Esta facultad tambien estaba prevista en el documento de donación.
En resumen, para esta interpretación la donatio acudía a justificar la posesión por
parte del Papado de toda la soberania, política y territorial, sobre Oriente y
Occidente, es decir dia debía legitimar derechos papales anteriores al encuentro en
Ponthion (754), que habrían sido recibidos por el Papa en el acto de donación. Esta
interpretación de la donatio la considera, en consecuencia, como el título jurídico
en virtud del cual el Papa posee la plenitudo potestatis sobre todo el Imperio.
La segunda interpretación4 prácticamente coincide com la primera, salvo en
dos aspectos: el primero referido al móvil que condujo al Papa a recurrir a los
francos; el segundo referido al fin último de la donatio que, en este caso, es más
definidamente determinado como un directo golpe contra Bizancio. En relación
con el primer aspecto, el Papa Esteban II no habría solicitado el socorro franco a
causa de la amenaza lombarda — que habría sido solo un pretexto encubridor de
los verdaderos motivos — sino con el propósito de independizarse de la égida de
la soberanía de Bizancio dela que el Papa, según la teoría imperial bizantina, era
un súbdito más. En lo que hace al contenido político de la donatio, que és lo que
interesa destacar aquí, es fundamental tener en cuenta que, si bien la ayuda de los
francos al Papado apoyaba en forma directa las pretensiones de este último sobre
Ravena y sobre Roma, es decir sobre territorios de jurisdicción bizantina y
occidental, sin embargo indirectamente esa colaboración franca apoyaba
fuertemente el propósito que había sido el verdadero móvil de la solicitud de
ayuda a los francos. Aqui aparece el segundo aspecto — propósito último de la
donatio — estrechamente relacionado con el primero, el verdadero móvil del
recurso papal a los francos. El acento de esta interpretación en relación con el
objetivo de la donatio está puesto en la inveterada confrontación papal con
Bizancio. La donatio habría sido creada, sobre todo, como un instrumento
jurídico sobre el que el Papa pudiera apoyarse no solamente para reivindicar sus
presuntos derechos sobre Ravena y Roma sino para oponerse con argumentos
sólidos a la política bizantina y poder liberarse finalmente de una soberanía que
obstaculizaba sus aspiraciones sobre Occidente. Por ello, creando en Cariomagno
un nuevo Emperador que no rechazara la política del Papa, éste podía

3
Cfr DUCHESNE, L. Liber Pontificalis, T. I, Paris, 1986, p. 448ss.
4
Cfr. ULLMANN, W. Historia del pensamiento político en la Edad Media (trad. esp. de R.
Villaró), Barcelona, 1983, p. 57ss.

98
desvincularse políticamente del Imperio oriental apoyándose sobre el Imperio de
Occidente y reivindicando al mismo tiempo su soberanía sobre todo el Imperio
por más que, en la práctica, hubiera abandonado toda esperanza de poder
participar activamente en las decisiones bizantinas.
La tercera interpretación5 centra su exégesis en la coronación de
Cariomagno. Esta habría tenido una doble consecuencia: la primera fue la
transformación del patricius romanorum, Carlomagno, en Imperator
Romanorum; la segunda fue el renacimiento de un Imperio que, en lo sucesivo,
será romano-cristiano y cuyo progenitor fue el Papa. Este, sin embargo, debía
contar con un título que acreditara la legitimidad del papel supraimperial que él
mismo habia desempefiado en el acto de coronación y que lo había facultado
para volver a dar vida a la institución imperial. En otros términos, el Papa
necesitaba justificar de alguna manera su activo protagonismo en la translatio
imperii desde Oriente hacia Occidente. Asi, la donatio, que habría existido desde
alrededor del 775 habría prestado al Papa un doble servicio: por una parte, para
acreditar la translatio imperii que Constantino había efectuado en favor de
Silvestre y sin la cual era imposible que el Papado transfiriera el Imperio en favor
de Carlomagno; por la otra, para que el Papa pudiera actuar jurídicamente
cuando procedió a efectuar la translatio en la persona del nuevo Emperador.
Según esta exégesis, pués, la donatio habría desempefiado un papel fundante de
la translado imperii operada por el Papado in personam Magni Caroli y habría
sido inventada como condición necesaria y suficiente de dicha translatio. Sin
donatio Constantini no podia haber habido una legítima translatio imperii es
decir, no podría haber tenido lugar una legítima coronación de Carlomagno.
Aunque la cuarta interpretación6 no coincide con la quinta (Ohnsorge) en
cuanto a la fecha de aparición de la donatio, existe sin embargo entre ambas un
acuerdo parcial, pero importante, en cuanto a las conclusiones a que ellas llegan
como consecuencia de sus respectivas lecturas políticas de la donatio. En efecto,
para Schnürer, el hecho de que el Papa reciba — entre otros emblemas imperiales
— la corona, aunque no la use, significa que podia entregaria a quien quisiera. De
allí que el Papa pudiera elegir a quien quisiera entre muchos aspirantes a ese cargo.
De esta interpretación puede colegirse, aunque de hecho su autor no lo haya hecho
explícitamente, que poseyendo la corona, el Papa tiene la soberanía en Occidente
— porque allí se quedó — y en Oriente — porque autoriza a Constantino a llevarse
la corona a Bizancio.

5
Cfr. DUCHESNE, L. Les premers temps de l‘état pontifical. Paris, 1904, p. 173ss.
6
Cfr. SCHNÜRER, G. Kirche und Kultur im Miltelalter. T. II, Paderborn, 1929, p. 29.

99
A esa conclusión llega con una excelente fundamentación, que la convierte en
la mejor articulada de todas, la interpretación de Ohnsorge. 7 Para éste la donatio
aparece como un recurso papal que debía servir para dar cuentas a Carlomagno de
la situación llamada ―de dos Emperadores‖. La reconstrucción de esta
interpretación debe partir de un hecho histórico: el traslado de Constantino a
Oriente. Para el pensamiento político bizantino ese traslado habia significado una
translatio imperii y ésta, a su vez, tenía un contenido triple: en primer lugar, desde
el punto de vista estrictamente material, la translatio equivalía a la instalación Del
Imperio en Constantinopla; en segundo lugar, desde el punto de vista político, la
translatio implicaba el traslado de la soberanía imperial desde Occidente hacia
Oriente; y en tercer lugar, desde el punto de vista de las relaciones entre Oriente y
Occidente, el hecho de que la soberanía tuviera su sede en Oriente otorgaba a éste
una clara supremacía sobre aquél.
Frente a esta doctrina, el Papado, que para conservar el primado sobre las
restantes Iglesias necesitaba seguir siendo obispo de la capital del Imperio, debía
encontrar una respuesta que actuara como contradoctrina de este pensamiento
bizantino. La respuesta papal aparece, pero ella no es doctrinaria sino fáctica, ya
que se articula en dos hechos históricos — uno real, la coronación de
Carlomagno, otro falso, la donación de Constantino. Recién detrás de ellos
aparece el pensamiento político papal. El Papa, pués, responde con hechos que
encubren toda una doctrina.
El primer hecho es la coronación de Cariomagno. Aprovechando la vacancia
del trono de Oriente el Papa crea un nuevo Emperador. Con ello León III habría
querido recuperar la supremacía occidental perdida con el traslado de Constantino
a Bizancio. Pero luego, ante la aparición de un Emperador en Bizancio, el Papa
crea la donatio, que habría sido inventada con posterioridad a la coronación de
Carlomagno pero que tenía la función de testimoniar un hecho que había tenido
lugar antes de dicha coronación. La donatio tenía como objetivo plasmar de
juridicidad y de legitimidad política a la coronación de Carlomagno. Con la
donatio el Papa habría querido legitimar la situación que se presenta ante la
existencia de dos Emperadores y así ella acudía en auxilio de la legitimidad de la
actuación del Papado en la coronación de Carlomagno. Pués en efecto, si éste tiene
el imperium en Occidente, lo tiene porque lo recibió de un Papa que, como lo
acreditaba la donatio, lo había recibido de Constantino que había sido Emperador
en Occidente. Y por otra parte, si otro Emperador, en este caso Nicéforo II, tiene el
imperium en Oriente, lo tiene porque cuando Constantino quiso entregar a Silvestre

7
Cfr. OHNSORGE, W. ―Die konstantinische Schenkung. Leo III und die Anfänge der kurialen
römischen Kaiseridee‖. In: Zeitschrift der Savigny Stiftung für Rechtsgeschichte. (Germ. Abt.),
LXVIII (1951), p. 78/109.

100
la corona imperial, éste la rechazó y consintió en que Constantino la llevara
consigo a Bizancio para transmitiria allí, a partir de él, a sus sucesores.
En consecuencia la donatio legitimaba, por una parte a Carlomagno en cuanto
Emperador occidental coronado por el Papa; por la otra legitimaba a Nicéforo II
como Emperador oriental y como sucesor legítimo y portador de la corona de
Constantino. Independientemente de las relaciones de subordinación política entre
ambos Emperadores — a las que nos referiremos de immediato — el Constitutum
había logrado una explicación satisfactoria de la situación ―de dos Emperadores‖,
que era la función que se le habría atribuído al crearla.
Para esta interpretación, sin embargo, aún cuando la donatio presuponía la
existencia de dos coronas y de dos Emperadores, curiosamente no admitía la
existencia de dos Imperios, entendidos como instituciones paralelas e
independientes entre sí, sino que el Constitutum establecía una neta diferencia entre
ambos soslayando al Imperio de Oriente, al que colocaba en la provintia y
anteponiendo a éste el Imperio occidental, al que colocaba en la urbs. En esta
contraposición entre la centralidad del Imperio occidental y la marginalidad del
oriental se escondía el fundamento dela subordinación de Bizancio a Roma
planteada y exigida por la donatio. Con todo, esta subordinación no significaba la
sujeción de un Imperio a otro Imperio soberano que, en sentido absoluto, fuera
superiore carens, sino de un Imperio a otro Imperio que recibe su soberanía del
Papa. En última instancia la donatio habría logrado presentar en forma jurídica la
subordinación de una de las coronas a la otra y a su vez habría podido demonstrar
ia subordinación de la corona occidental a un poder político supraimperial, como lo
era el Papado en la concepción doctrinaria de la donatio.
Numerosos son los análisis posibles del origen histórico de la donatio.
Numerosas son tambien las lecturas de su contenido político formuladas a partir
de aquellos análisis. Las interpretaciones a que nos hemos limitado son, sin
embargo, suficientes para colegir de ellas el significado político mínimo
implicado en el Constitutum. Resulta claro que el propósito dela donatio
fue,primero, confirmar el primado del obispo de Roma; segundo, asegurar su
soberanía sobre el Imperio occidental, y tercero garantizar que el Imperio
oriental declinara su rebeldia político-religiosa frente al Papado. En la medida en
que el contenido político de la donatio implicaba a la Iglesla, al Imperio de
Occidente y al de Oriente, sus consecuencias políticas abarcaban toda la realidad
política conocida. De allí que la doctrina política contenida en el documento bien
pueda ser calificada como totalitaria en el más genuino sentido de la palabra. La
donatio se presentaba, pués, como un instrumento jurídico que consagraba las
aspiraciones papales al ejercicio de una soberanía total y ella era la primera
expresión de una doctrina que, sigios más tarde, será formulada através de la
teoría de la plenitudo potestatis papal, es decir de la potestas in temporalibus e in

101
spiritualibus. El Constitutum fue, pués, la primera expresión formal del propósito
del Papa de convertirse en soberano absoluto.
No puede escapar al lector de la donatio la habilidad con que ella había sabido
integrar, dentro del amplio espectro de temas de que se ocupaba, el problema que
podríamos llamar el verdadero origen del pensamiento político-medieval, es decir
el conflicto entre el Imperio de Oriente y el Papado de Roma. Si cuando el
documento hablaba del reconocimiento del primado a Silvestre o cuando
mencionaba la donación de la soberanía en Occidente lo hacía a través de
referencias explícitas, en cambio cuando se refería a Oriente lo hacía
indirectamente, a través de insinuaciones y de simples gestos que, a pesar de su
cautela, estaban cargados de un tácito y fuerte significado político que debía caer,
con todo su peso, sobre el más difícil opositor del Papado. El amago constantiniano
de entregar al Papa la corona imperial y el rechazo por parte del Papa de esa corona
constituían todo un lenguaje de gestos que, como ya se ha señalado, querían
insinuar que, si Constantino instalaba el Imperio en Bizancio, lo hacía con
consentimiento papal.8 A su vez ello significaba que la soberanía sobre Oriente
pasaba antes por el Papa que por el Emperador. De ese modo reaparecía, una vez
más, el carácter supraimperial del Papado, pero ahora sobre el Imperio de Oriente
que, puesto que seguía sosteniendo su propio caráter de heredero político y
religioso del viejo Imperio Romano, era El elemento más rebelde de todas las
piezas políticas que el Papado quería tutelar.
Si admitimos que el documento de donación fue redactado dentro del periodo
que se extiende entre mediados del siglo VIII y mediados del IX, puede concluirse
que él aparece en un momento en que el agustinismo político ya había actuado
suficientemente en Occidente como para que sus estructuras políticas hubieran
padecido su fuerte influencia y como para que, en virtud de ella, las instituciones
occidentales no resuitaran problemáticas para la política Del Papado. El problema,
pués, no residía en Occidente si recordamos que, de hecho y a pesar de su
descontento, Carlomagno había aceptado ser coronado. Ello significó el triunfo
más logrado y la culminación del esfuerzo varias veces secular del agustinismo
político.9 El problema real estaba en Oriente. La creación del Imperio Occidental
había sido, quiérase o no, una verdadera duplicación de la institución imperial,
pués el nuevo Imperio actuaba como contrafigura que hacía para debilitar el poder
político de un Imperio ya existente. De allí que no parezca arriesgado afirmar que
la donatio constituía, ante todo, un argumento dirigido indirectamente pero
principalmente contra la reticencia bizantina a reconocer las aspiraciones papales.
8
A la importancia de los gestos en la simbología política medieval ha hecho referencia
ULLMANN (cfr. op. cit. p. 105).
9
Cfr. ARQUILLIÈRE, H.X. L‘augustinisme politique. Essai sur la formation des theóries
potiliques du moyen-age, Paris, 1972, esp. p. 117/143.

102
Para concluir con los aspectos políticos de la donatio, debemos hacer ahora
una breve referencia a la doctrina imperial, es decir a la teoría acerca del Imperio y
de su soberanía que, aunque esbozada elementalmente, estaba contenida en el
Constitutum. Dado que éste tenía como objetivo fundamental legitimar la sujeción
de toda la Igiesia y de todo el Imperio a la soberanía supraimperial del Papado,
forzosamente el Constitutum debía hacer alguna referencia al alcance de la
soberanía que había poseído Constantino con anterioridad al acto de donación.
Pues si el documento tenía el propósito de justificar la plenitudo potestatis papal
por medio del traspaso de la sede de la soberanía universal del Imperio al Papado,
entonces no podia evitar aludir, aunque fuera en forma tácita, a la situación en que
se encontraba la soberanía imperial antes de que ella hubiera sido transferida al
Papado. Es precisamente en esas referencias donde se esconde el pensamiento
imperial de la donatio; más aún, allí se esconde incluso la verdadera paradoja de un
documento cuyo origen es papal y curialista pero que contiene, como presupuesto,
una doctrina imperialista de cuñio romano acerca del poder político.
No puede pasarse por alto la importancia de esta teoría papal acerca del
imperium, sobre todo teniendo en cuenta que alguno de los intérpretes imperialistas
de la donatio, que hemos estudiado en otros trabajos,10 fundamentó sobre esa
misma doctrina imperialista su propia exégesis del alcance y del significado del
acto de donación. Más aún, puesto que los autores imperialistas no dudaban de la
autenticidad de la donatio—que defendía, mediante el recurso a un hecho histórico,
la plenitudo potestatis papal — y puesto que sin embargo, frente al fail accompli de
ese hecho histórico, debían encontrar en él algún argumento en favor de su propia
concepción del Imperio, en algún caso llegaron a encontrarlo en la misma donatio,
ya que ésta presuponía una concepción acerca de la soberanía del Imperio cuyo
alcance, por lo menos hasta el momento de la donación, coincidía plenamente con
la concepción de los teóricos laicos del Imperio. Así fue como la donatio que había
nacido para ratificar puntos de vista doctrinarios del curialismo llegó a ser
utilizada, paradojalmente, para sostener las perspectivas doctrinarias de los
defensores de la independencia de la soberanía del Imperio respecto de la Iglesia.
La teoría acerca del Imperio contenida en la donatio estaba construída sobre la
base del reconocimiento a Constantino de facultades para donar en favor del
Papado. Con ello se reconocía al Emperador el carácter de sede originaria de la
soberanía sobre todo lo que se donaba, antes de que se hubiera producido el acto
de donación. De allí que el Constitutum admitiera implícitamente que, todo lo que
el Emperador cedía al Papa, había preexistido antes en aquél. Ello comprendía, en

10
Cfr. BERTELLONI, F. ―‗Constitutum Constantini‘ y ‗Romgedanke‘. La donación constantiniana en
el pensamiento de tres defensores del derecho imperial de Roma: Dante, Marsillo de Padua y
Guiliermo de Ockham‖. In: Patristica et Mediaevalia, IV-V (1983/4), p. 67/99.

103
primer lugar la soberanía sobre toda la Iglesia, ya que es Constantino quien
concede al Papa el primado sobre las restantes Iglesias del mundo; en segundo
lugar la soberanía sobre el Imperio occidental, ya que Constantino cede el palacio,
la ciudad de Roma y los territorios occidentales; y en tercer lugar la soberanía
sobre el Imperio oriental, ya que la corona que el Papa rechaza, que Constantino
lleva consigo a Bizancio y que lo faculta para ser Emperador oriental, era la misma
que ese Emperador había poseído desde antes de la donación y que, del mismo
modo como lo facultó después de la donatio para ser Emperador en Oriente así
tambien lo facultaba antes para ejercer allí la soberanía imperial.
Fácil es percibir, en consecuencia, que ni siquiera la ideología curialista y
papal, de la que, obviamente, estaba impregnado todo el documento de donación,
se había podido desprender de una concepción de la soberanía que estaba
identificada con la ya mencionada idea de la soberanía total. La concepción de la
donatio acerca de la soberanía partía de una soberanía que no se divide y que, aún
cuando puede ser enajenada — como de hecho, según la donatio, lo había sido en
favor del Papado — era transferida en forma integral y sin admitir participaciones
ni enajenaciones parciales. En otros términos, para la donatio el Imperio podía
cambiar de sede, es decir podía estar sujeto a la translatio, pero no podía disminuir.
Así, el autor de la donatio había incluído eu su falsificación una verdadera doctrina
imperial redactada sobre la base de una idea romana de la soberanía del Imperio.
Esa doctrina convertía a la donatio imperii en una translatio imperii. En última
instancia el Constitutum no era más que una de las tantas formas de translatio a las
que el Imperio habia estado sujeto durante el medioevo. Él fué una falsa translatio.
El nacimiento y autoría de esta doctrina imperial acerca de la soberanía total
suele atribuirse a Carlomagno. Sin embargo, las reservas de éste frente a su
coronación y sobre todo el hecho de que aquella doctrina estuviera ya
potencialmente contenida en el mismo documento de donación muestran las
dificultades que surgen cuando se atribuye aquella teoría a Carlomagno. Ella no
fue elaborada en la corte imperial sino en la curia papal y su insinuación en el
Constitutum tenía el objetivo de que ella actuara como base juridica para
legitimar el traspaso al Papado de toda la soberanía. No es el caso determinar
aquí si la donatio aparece antes o después de la coronación de Carlomagno.
Independientemente de ello sí debe tenerse en cuenta, en primer lugar, que el
Constitutum Constantini fue el primer documento que registra una teoria imperial
y, en segundo lugar, que éste nació, paradojalmente, no a instancias del Imperio
sino del Papado: ―Carlomagno no ha inventado la concepción de la que se ha
beneficiado‖,11 el mérito de dicha invención no pertenece, en efecto, al Imperio,
sino al Papado.

11
Cfr. ARQUILLIÈRE, op. cit. p. 154.

104
* * *
Independientemente del origen, autor y fecha de la donatio, es indubitable que
el común denominador de las interpretaciones que hemos analizado más arriba
acerca de las circustancias históricas que dieron origen al Constitutum es que ese
documento procuraba fundamentar la dependencia del Imperio y de toda la Iglesia
respecto del Papado en un falso hecho histórico: la transferencia de toda la
soberanía de Constantino al Papa Silvestre. Es precisamente este carácter falso de
la donatio el que nos permite introducirnos ahora en el problema que se refere a sus
aspectos filosóficos. Ello surgen como respuesta a la pregunta acerca de los
motivos que apremiaron al Papado a procurar la legitimación de su carácter
supraimperial recurriendo a una falsificación. Pués si en el momento de aparición
de la donatio el Papado ya contaba con una nutrida serie de argumentos con los
que podía defender teórico-teológicamente su supremacía sobre la Iglesia y sobre
el Imperio, ¿qué necesidad le obligaba a recurrir a una falsificación de un hecho
histórico para sostener aquella supremacía?
Es precisamente en la respuesta a esa pregunta donde se esconde el sentido de
Constitutum Constantini. Allí, en efecto, se concentra todo el contenido filosófico
del documento. Pués si bien es verdad que la donatio se enrola como un argumento
más en la larga serie de razones esgrimidas en favor de la supremacía del Papa, sin
embargo el tipo de argumentación a que se apela en ella es diferente de las
argumentaciones teóricas. Esta nueva argumentación se presenta, en primer lugar,
como un recurso a un hecho histórico que, alegado como verídico, actúa como
legitimante de una situación determinada y, en segundo lugar ese hecho histórico
debe coincidir con la doctrina que justifica teóricamente esa situación. En otros
términos, en primer lugar el hecho histórico ―donatio Constantini‖ debe legitimar
la situación ―carácter supraimperial del Papa‖ y en segundo lugar ese hecho
histórico ―donatio‖ debe coincidir con la teoría que legitimaba ese carácter
supraimperial del Papa. Es por ello que aún cuando la donatio fuera solamene un
argumento entre otros, con todo, eu la medida en que ella recurre a la historia como
legitimadora, se presenta como un argumento bien distinto de los argumentos de
carácter teórico que hasta ese momento había esgrimido el Papado. El carácter
atípico de la donatio es, pués, evidente.
Este carácter atípico de la donatio exige determinar la función que el falsario
quiso atribuir a su invención dentro del conjunto, de los argumentos papales.
Porque es evidente que si esta vez se apelaba a la fuerza probatoria de la historia y
no a la de las doctrinas, no se lo hacía en vano. Más aún, si se falsificaba un hecho
histórico para que él probara algo, no se lo hacia sin objetivos precisos. Parece
indudable que si el Papado recurria ahora a la historia a pesar de que contaba con
una sólida doctrina que apoyaba teóricamente sus pretensiones políticas, no se

105
trataba de nu procedimiento superfluo, sino que lo hacía con el propósito de poner
de manifesto que la historia coincidia con lo afirmado por la doctrina. En otros
términos, en la mentalidad del falsario la donatio cumplía una función muy
concreta: ella debía mostrar que la historia había respondido fielmente a lo
prescripto por la doctrina. Y aunque se hubiera debido apelar a una falsificación
para lograrlo, ello aparentemente no importaba mientras se consiguiera adaptar
por cualquier medio, el curso de la historia real al curso que la doctrina
prescribía que esa historia debía haber tomado.
Este breve análisis puede extenderse. Una conclusión segura, sin embargo,
permite afirmar hasta aquí que, aún independientemente de las intenciones del
falsario, las consecuencias de la donatio pueden llegar bastante más allá del punto
hasta el que han llegado sus valoraciones por la crítica, pués un documento que, en
primera instancia, se presenta solo como una invención con objetivos que parecen
limitarse a la sola legitimación de una situación política y a la ratificación de un
pensamiento político, aparece recién en su verdadera magnitud cuando, frente a un
análisis más profundo, se lo considera desde la perspectiva de la antitesis historia-
sistema. Tres son, en consecuencia, los aspectos filosóficos que la donatio
Constantini invita a descubrir en dia: el primero es su carácter de argumento
atípico y la función que, en tanto tal, le corresponde en las intenciones del falsario
que usó de ella para que la doctrina coincidiera con la historia; el segundo es el
hecho de que la donatio reitera una vez más en la historia del pensamiento el
binomio historia-razón; y el tercero es el papel que la donatio como falsificación
desempefiaba dentro de la mentalidad del hombre medieval que privilegiaba la
doctrina frente a la facticidad, adaptando ésta a aquélla.
* * *
La comprensión del problema referido a la función que su autor atribuyó a la
donatio debe partir del hecho de que, ante todo, ella acudía en auxilio de un
factum histórico concreto que necesitaba de una justificación. Ese factum puede
ser expresado con la fórmula Imperium dependet a Papa, en la que Imperium
debe entenderse en el sentido amplio que le atribuía la concepción bizantina, es
decir concentrando en él tanto la politicidad imperial como la Iglesia. En
consecuencia, la dependencia de todo el Imperio respecto del Papa convertía a
éste en una instancia supraimperial que lo colocaba tanto sobre el Imperium
propiarnente dicho como sobre la Iglesia. Hasta la aparición de la donatio esa
supraimperialidad había sido defendida por el Papado fundamentalmente
mediante el recurso a argumentos construídos a partir de sus propias exégis del
dado bíblico. Ellos constituían, pués, un cuerpo teórico cuyo dato inicial era
escriturario pero cuya articulación era racional. Se trataba, en última instancia, de
una teorización que, aunque era política, formalmente estaba mui cerca del

106
modus operandi de la teología, ya que, como ésta, aquélla tomaba sus datos
iniciales de la Bíblia y, sin pretender racionalizarlos o demostrarlos
racionalmente, extraía de ellos sus conclusiones políticas ayudada por la razón.
En la medida en que esta argurnentación política deducía racionalmente sus
conclusiones a partir del dato bíblico, ella era teología política. Pero por otra
parte, mientras el Papado disponía de un patrimonio doctrinario constituído por
esa teología política, el Imperio bizantino en cambio, contaba con un patrimonio
histórico que actuaba como sostén de su estructura y de su concepción político-
religiosa. Este patrimonio histórico de Oriente estaba constituído, precisamente,
por la misma evolución del Império Romano cuya historia había culminado con
la transformación de Bizancio en su nueva capital: Constantinopla.
El peso que la posición de preeminencia de la Constantinopla imperial sobre la
Roma papal tenía en la justificación de la política bizantina de supremacía religiosa
era tan grande12 que el Papado comenzó a percibir la necesidad de sustituir el
argumento imperial basado en la historia — como causa de la transformación de
Constantinopla en capital del Imperio — por el argumento basado en la voluntad
papal, como causa de dicha transfomación. Se trataba pués, de sustituir un
argumento histórico imperial por otro argumento histórico papal pero que era
acorde con la doctrina del Papado acerca del alcance de su propia jurisdicción. El
Papado debía probar de alguna manera que, si Constantinopla se había
transformado en capital de un Imperio político-religioso y si había logrado
alcanzar esa preeminencia, no había sido en virtud de su misma evolución
histórica sino a causa del consentimiento papal, lo cual era bien compatible con la
misma doctrina papal acerca de la supremacia del obispo de Roma en cuestiones
de gobierno eclesiástico y, consecuentemente — dada la identificación entre
Imperio y Cristandad — de gobierno civil. Para lograr sus objetivos el Papado
debía encontrar un argumento histórico, es decir un hecho que pusiera de
manifiesto que había sido la voluntad papal la causa de que el Imperio tuviera su
continuidad en Constantinopla. Y este hecho no debía hacer otra cosa que ratificar
fácticamente la doctrina que el Papado sostenía teóricamente.
Esta doctrina del Papado, opuesta a la historia esgrimida por Bizancio,
muestra que la lucha entre Imperio y Papado no fue solamente una lucha política

12
Cfr. ULLMANN, W. Il Papato nel medioevo (trad. itai. de I. Cherubini), Roma-Bari, 1975, p. 37.
Dicha preeminencia y la consiguiente supremacía tenían su origen no solo en la ya mencionada
superioridad de facto que Constantinopla asumía sobre Roma como consecuencia del traslado de la
capital del Imperio sino tambien en la legislación del Concilio de Calcedonia (451). Éste establecía que
Constantinopla tenía el mismo rango que Roma y que el rango eclesiástico de una ciudad dependia de
su rango civil, lo que implicaba una pérdida de jerarquia de Roma y del Papado. Sobre el tema v.
ULLMANN, Historia del pensamiento político en la Edad Media, cit. p. 38, y The Groiwth of Papal
Government in the Middle Ages, London, 1955, p. 10s. 42s. y 77.

107
sino que, en la medida en que cada uno de ellos se apoyaba en argumentos de
naturaleza diferente fundados a su vez en concepciones radicalmente distintas
entre sí respecto del alcance de los sendos poderes, el enfrentamiento entre
ambos era filosófico. Se trataba de dos cosmovisiones13 opuestas que se
enfrentaban, de una lucha entre dos principios sobre los que se apoyaban cada
una de esas cosmovisiones: el principio bizantino era la historia mientras que el
papal era la Cristiandad. Al principio bizantino según el cual el Imperio debía
someterse al Emperador, fundado en razones históricas, se oponía el principio
papal según el cual la Iglesia debía someterse al Papa, fundado en razones
doctrinarias. Pero puesto que el apogeo del Imperio cristiano condujo a una total
identificación entre el cuerpo que quería gobernar el Emperador — que
comprendía a la Igiesia — y el cuerpo que quería gobernar el Papa — que
comprendía al Imperio — éste y aquél terminaron queriendo gobernar el mismo
cuerpo.14 La clave de esta confrontación estaba, pués, en la concepción imperial
bizantina que, por una parte, no reconocía la primacía del Papado, y que, por la
otra, tampoco reconocía el carácter del Emperador romano asumido por el
Emperador de Occidente. En última instancia era el mismo Imperio Romano,
ahora en Constantinopla, el que se enfrentaba, por un lado, con el Papado de
Roma, y por el otro, con el Emperador occidental creado por el Papado.15

13
―Por una parte la presunción de los Emperadores de Oriente de ser los sucesores de los Emperadores
romanos era puramente histórica y, por onde, nada tenía que ver con la Cristandad, en tanto que, por la
otra, la presunción del Papado no se fundamentaba y no podía fundamentarse en la historia sino más
bien en la consideración ahistórica de la preeminencia papal en virtud de la comisión petrina... En otras
palabras, lo que para uno era un axioma de importancia primaria era para el otro de significación
secundaria. Para el Emperador de Oriente la historia estaba en primer plano y la Cristandad tenía que
someterse a ella, en tanto que para el Papa la doctrina cristiana estaba en primer piano y la historia se
subordinaba a ella‖ (cfr. ULLMANN. Principios de gobierno y política en la Edad Media, trad. esp. de
G. Soriano, Madrid, 1971, p. 110).
14
Teniendo en cuenta que para el Emperador ese cuerpo era el Imperio que abarcaba a la Iglesia y
que para el Papa ese cuerpo era la iglesia que abarcaba el Imperio, puede afirmarse, con
ULLMANN, que ―el Emperador de Oriente veía en dicho cuerpo al Imperio; el Papa a la iglesia‖
(cfr. ULLMANN, loc. cit.).
15
Ullmann ha resumido el papel protagónico del imperio Romano histórico em el nacimiento de las
ideas políticas medievales: ―... cuando en el año 1204 Constantinopla cayó en manos de los cruzados,
Inocencio III pudo por fin exclamar que la iglesia de Constantinopla había vuelto a su madre, la Iglesia
de Roma. Lo que importaba al Papado, desde comienzos del siglo V hasta el siglo XIII, era el no
reconocimiento de su primacía por parte de Bizancio. Más aún, precisamente la negativa de este papel
por parte del gobierno de Constantinopla entrañó... serias consecuencias para el Papado que vió en la
creación de un Emperador de Occidente el único médio efectivo para hacer real su papel político de
primacía jurisdiccional. Asimismo lo que importaba a los emperadores de Occidente era el no
reconocimiento por parte de Bizancio de su papel de único César romano. Bizancio es la clave para la
comprensión del desarrollo de las ideas ‗políticas‘ del Papado y del Imperio de Occidente. La pura
ideologia determinaba el rumbo de los acontecimientos históricos y esta ideología arrancaba de la

108
La donatio aparece como una directa consecuencia de ese confieto. Ella es la
expresión más acabada de la dicotomía entre historia y doctrina pero tambien es, al
mismo tiempo, la mejor expresión del intento de superarla. El objetivo de su autor
habría sido terminar definitivamente con la oposición entre los argumentos
doctrinarios del Papado y los argumentos históricos del Imperio; pero puesto que
para ello necesitaba destruir estos últimos, recurrió a la donatio a la que dotó de un
argumento histórico cuya función era, por una parte, mostrar que el sistema
gubernamental bizantino padecía de un error intrínseco16 constituído por los falsos
argumentos históricos que apoyaban ese sistema y, por la otra, probar ―que la
continuidad histórica del Imperio Romano en Oriente era consecuencia, no de la
historia sino de a voluntad del Papa y, por ende, del mismo orden cristiano‖.17 En
lo sucesivo y a la luz del documento de donación, los títulos históricos esgrimidos
por el Imperio no solo debíam desvanecerse como argumentos sino que además
debían perder su carácter histórico. Para el Papado, si el Imperio había tenido su
continuidad jurídica en Oriente, había sido gracias al arbitrio papal. Pero puesto
que además ese arbitrio no podía ser contrario a la doctrina cristiana acerca del
problema — ya que dia había sido elaborada por el mismo Papado — en
consecuencia la voluntad papal debía coincidir con esa doctrina. De este modo la
donatio unía entre sí dos instancias hasta ese momento separadas: historia y
doctrina. La atipicidad del argumento contenido en la donatio y la solución de
continuidad que él introducía en relación con los argumentos utilizados hasta ese
momento por el Papado provienen, precisamente, de su carácter histórico y de la
función que, en tanto argumento fundado en la história, le había sido atribuído por
su autor: poner un punto final a la dicotomía entre la historia y la doctrina. De la
donatio podía concluirse que historia y doctrina coincidían en apoyo del factum —
Imperium dependet a Papa.
* * *
La donatio entendida como disolución de la discontinuidad entre historia y
doctrina y como punto de unión entre ambas nos facilita el ingreso en su segundo
aspecto filosófico: la donatio como expresión del clásico topos historia-razón o
historia-doctrina. Hemos visto que la supremacía del Papa y su carácter

noción de Emperador de los romanos como único ‗Señor del mundo‘‖ (cfr. ULLMANN. Historia del
pensamiento político... p. 93ss. El subrayado es nuestro).
16
Cfr. ULLMANN, Reseña MAFFEI, D. La Donazione di Costantino nei giuristi medievalli, Milano,
1964, en Journal of Theological Studies, XVI (1995), p. 526.
17
Cfr. ULLMANN, Principios de gobierno... p. 116, nota 38 y Historia Del pensamiento político... p.
59: ―lo que el autor de la donación decía explícitamente era que el traslado del gobierno imperial desde
Roma a Constantinopla había tenido lugar con el acuerdo y aprobación del Papa Silvestre. Un echo
histórico se interpretaba en términos puramente ideológicos‖.

109
supraimperial, cuya fundamentación teórica se había logrado ya a través del
recurso a una doctrina, era fundamentada por la donatio en un hecho histórico
coincidente con aquélla. Mientras que la doctrina era un producto de la razón — no
entendida como resultante exclusivamente de la razón sino como un producto
ideológico construído deductivamente a partir de la exégesis papal del dato biblico
— el hecho histórico aludido por la donatio se transformaba en una suerte de
norma de derecho positivo resultante de la voluntad del Emperador. En otros
términos, a partir del hecho de la donación llevado a cabo por Constantino se
deducía con carácter normativo el principio según el cual la soberanía Imperial
corresponde al Papa. De ese modo tanto la doctrina papal como la historia que el
Papado había construído con ayuda de la donatio coincidían en afirmar que
Imperium dependet a Papa. En consecuencia la norma positiva originada en el
factum constituído por la voluntad del legislador — en este caso Constantino —
coincidía con los preceptos del orden eterno puestos de manifiesto por la doctrina
racional que se había originado en la hermenéutica papal del orden eterno querido
por Dios. Por ello la donatio desempeña un papel protagónico como instancia que
reitera el topos historia-razón, recurrente en la historia del pensamiento.
Corrigiendo el curso de la historia, la donatio procura superar la antítesis que
presenta ese binomio. En lo sucesivo la historia ya no debe presentarse como
antítesis de la doctrina sino que, solidaría con dia, debe someterse a sus
prescripciones. De hecho, la donatio cumplía con esos requisitos y lo hacía tan bien
que por ello se transformaba en el nexo entre la filosofía y la realidad, entre la
teoría y la facticidad histórica.18
* * *
Como tantas otras falsificaciones que vieron la luz en el medievo, tambien la
donatio procedía a hacer depender la facticidad de la historia humana respecto del
derecho divino y a subordinar el curso de los hechos al programa de la
Cristiandad.19 Se trataba, en última instancia, de anteponer el orden que se suponía
querido por Dios al rumbo que efectivamente había tomado la historia. El
historiador se siente casi obligado a preguntarse si acaso la mentalidad medieval
favoreció la aparición de tales falsificaciones y si existía en el medievo algún tácito
motivo que fomentara la profusión de esos pseudodocumentos. En la respuesta a
estos interrogantes se resuelve el tercer aspecto filosófico que percibimos en la

18
―... la donación fue inventada para que ella fuera la milagrosa confirmación de los puntos de vista
[de los canonistas, es decir de los teóricos del Papado]. A través de su incuestionable veracidad
histórica, la donacián constituía el vinculo entre su abstracto razonamiento filosófico [de los
canonistas] y las realidades de la vida (Cfr. ULLMANN, Medieval Papalism. The political theories of
lhe medieval canonists, London, 1949, p. 108.
19
Cfr. ULLMANN, Principios de gobierno... p. 110.

110
donatio: su papel en cuanto faisificación, es decir su función en relación con la
forma mentis del hombre medieval.
Cuando se trata de estudiar los productos culturales de una époea histórica, uno
de los procedimientos más eficaces para acceder a su comprensión integral es
colocarse dentro de sus propios criterios para dejar aflorar a partir de ellos sus
creencias y modos de pensamiento. Si ello logramos con la donatio Constantini,
ella no solo aparecerá como paradigma intelectual de ese período sino que además
ofrecerá un hilo conductor fundamental para interpretar el medievo.
Revisando los distintos niveles de análisis que ofrece la donatio observamos
que ella cubre un vasto espectro de posibilidades que van desde la donatio
considerada simplesmente como documento falsificado para satisfacer una
necesidad concreta surgida de esta coyuntura política, hasta la donatio considerada
como integrante de un extenso cuerpo de falsificaciones que reflejan un aspecto de
la mentalidad medieval. La donatio puede ser analizada, pués, como documento
único e irrepetible — pués sirve solo para un caso — y como concepto, es decir en
tanto falsificación en general. En efecto, en una primera caracterización la donatio
aparece como un documento espúreo que presenta como verdadera, entre otros
datos falsos, una supuesta cesión de derechos en favor del Papado. En esta
instancia la donatio sirve exclusivamente — y de hecho así se analiza — para
legitimar el factum del carácter supraimperial del Papado. Luego la donatio
aparece como un argumento que, a causa de su peculiariedad — es decir en la
medida en que ella recurre a la historia — no se compatibiliza fácilmente con la
naturaleza puramente teórica de los argumentos utilizados hasta ese momento por
el Papado. En este caso la donatio debe mostrar la coincidencia del curso de la
historia con los preceptos de la doctrina. En una tercera instancia la donatio pierde
algo del carácter individual y único que había asumido en los dos niveles anteriores
— es decir pierde su individualidad como documento destinado a resolver un caso
— para enrolarse en la historia del binomio historia-razón y para superar las
antítesis implícitas en él. En una última caracterización aparece el ya anunciado
tercer aspecto filosófico de la donatio: su integración como un episodio más dentro
de un modus operandi medieval manifesto a través de las falsificaciones. Función
de estas últimas, tan abundantes en el medievo, es adaptar un estado de cosas
histórico a una concepción ideal y objetiva de la verdad: las cosas deben ser y
suceder tal como indica ese orden objetivo.20 En este cuarto caso la donatio ha

20
La tesis referida a las faisificaciones como instancia que adecúa la facticidad a la idealidad fue
sostenida por Horst FUHRMANN en un extenso trabajo, Einfluss und Verbreitung der
pseudoisidorischen Fälschungen, 2 v. Stuttgart, 1972/4. Como el título del libro lo indica,
FUHRMANN se dedica allí sobre todo a las decretales pseudoisidorianas, es decir a un cuerpo jurídico
que recogía un conjunto de faisificaciones que, presentadas como verdaderas, estaban destinadas a
apoyar el pensamiento hierocrático y papal (Sobre el problema ofrece una primera información

111
abandonado totalmente su individualidad para pasar a convertirse en un documento
más de un enorme conjunto de falsos documentos destinados a mostrar la
concordancia entre historia y razón.
¿Qué significan entonces ias falsificaciones y la donatio entre ellas desde y
para la perspectiva medieval? Desde la perspectiva medieval ellas adquiren su
significado a partir de una determinada concepción de la verdad vinculada, por una
parte, con la idea de auctoritas y vetustas y por la otra con un orden objetivo y
trascendente cuya norma no son los hechos sino el orden divino. En consecuencia
un hecho o una realidad, cuanto más respaldados se encuentren por una auctoritas
y cuanto más reflejen aquel orden divino, tanto mayor grado de verdad ilevarán
consigo. Si para conformar, ratificar o promover ese orden es necesario alterar
nombres, cambiar fechas o inclusive fabricar un documento proveyéndolo del
respaldo que suministra una vieja auctoritas cercana al origen, ―... por medio de
ello no se hace otra cosa que ayudar a triunfar la verdad‖.21 Para la perspectiva
medieval una falsificación de ese tipo no será calificada como falsa en relación con
esos datos sino en cuanto ella contenga una no-verdad que objetivamente se juzga
como tal en relación con un orden tenido por verdadero. Por ello, lo que desde
nuestra moderna perspectiva es considerado científicamente como una
falsificación, ―...puede ser, en condiciones históricas de otro tipo, la manifestación
del acuerdo entre lo que es un hecho y el orden auténtico‖.22 Y tambien la donatio
Constantini se había propuesto y, como las falsificaciones, había conseguido
mostrar, que los hechos eran manifestación de ese orden. Ella es, pués, en cuanto
falsificación, una expresión paradigmática de la forma mentis de un período que
recurre a la falsificación en forma casi programática. En este sentido la donatio es
el refiejo de una mentalidad y de una concepción de la verdad identificada con una

ULLMANN, Historia del pensamiento político... p. 78/83). Las decretales pseudoisidorianas han sido
publicadas por P. HEINSCHIUS en Decretales Pseudo-Isidoriae et capitula Angilramni, Leipzig,
1863, cuya páginas iniciales ofrecen tambien una rica información acerca de su contenido. Un informe
bastante detallado del contenido del libro de Fuhrmann ofrece Y. CONGAR en ―Les fausses
décrétales, leur réception, leur influence‖, en Revue des Sciences Philosophiques et Théologiques, 59
(1975), p. 279/288. Aunque Fuhrmann y Congar se refieren exclusivamente a las falsas decretales, sus
afirmaciones pueden hacerse extensivas a todas las falsificaciones medievales. Congar resume la tesis
de Fuhrmann en los seguiente términos: ―¿Cómo explicar que tantos hombres religiosos, sacerdotes y
monges, dedicados a la búsqueda de la perfección cristiana, conociendo las exigencias morales de
Dios, hayan producido tal cantidad de falsificaciones? La respuesta es extremamente interesante.
Paradojalmente es la idea misma de Dios y la manera de concebir lo que, según él, son el orden, el
derecho, la justicia y la equidad, lo que explica un hecho que, ante todos nos asombra y escandaliza...‖.
De allí que ―... hombres leales y virtuosos hayan fabricado en masa y con tranquilidad de consciencia
falsificaciones de diverso tipo‖ (Cfr. CONGAR, op. cit. p. 280).
21
Ibid.p.282.
22
Ibid.

112
norma objetiva y trascendente cuyo criterio de verificación no son los hechos sino
su correspondencia con el orden divino.
La función de la donatio como legitimante de la situación de dependencia del
Imperio respecto del Papado, su papel vinculante de la historia con la doctrina, su
reiteración del leit-motiv historia-razón, y finalmente su carácter de falsificación
que adecúa la realidad histórica a un orden objetivo son todas notas que, resumidas
en una, podrían ser sintetizadas así: la donatio debía adecuar la historia política e
institucional del Imperio Romano a lo que el pensamiento cristiano curial y papal
afirmaba acerca de esa historia. No se trataba, sin embargo, de enunciados
puramente teóricos acerca de su texto ni de características que se coligían de su
contenido pero que limitaban su validez exclusivamente a él. Lo que el curialismo
atribuía a la donatio debia tener repercusión, es decir, esas notas habían sido
puestas en la donatio para que pudieran ser usadas, pues se trataba de notas que se
le habían asignado para que sirvieran de ayuda a la defensa curialista del
pensamiento y de las pretensiones políticas papales. De allí que la presencia de esas
notas en toda interpretación curialista del Constitutum resulte inevitable, y de allí
que toda exposición curialista del pensamiento político que apoyaba la supremacía
papal recurriera a la donatio, ya que ésta ofrecía la versión curialista de un
importante episodio de la historia del Imperio Romano. Es el caso, por ejemplo, de
la exposición de Tolomeo de Luca.23
* * *
Contemporâneo de Dante24 y enrolado en las filas del curialismo más
extremo, Tolomeo de Luca (1236-1326)25 explicitó, como aquél lo había hecho
en el De Monarchia, un esbozo de teología de la historia que incorporó al Libro
III del tratado inconcluso De Regimine Principum de Tomás de Aquino.26 La
teología de la historia de Tolomeo incluye el episodio de la donatio Constantini,
a la que entiende como una cesión del Imperium, es decir como una efectiva
cesión de la soberanía en favor del Papa. Con ello Tolomeo interpreta la donatio
desde la más ortodoxa perspectiva papal. Para Tolomeo, en efecto, el dominium,
es decir la soberanía del Papa, no se limita a su potestas espiritual. Para
demostrarlo recurre a un locus clásico de la antropología medieval: la distinción

23
Sobre el pensamiento de Tolomeo de Luca v. especialmente BAUERMANN, i. Studien zur
politischen Publizistik in der Zeit Heinrichs VII, u. Ludwigs d. Bayern. Diss. Brelau, 1921.
24
Para las relaciones entre Dante y Tolomeo, v. nuestro ―Constitutum Constantini...‖ (como nota
10) en Patristica et Mediaevalia, III, 1982, p. 44ss.
25
Datos biográficos de Tolomeo en Karl KRÜGER, Des Tolomäus Lucensis Leben und Werke,
Göttingen, 1874, p. 9/24.
26
Utilizo el texto incluído en Opuscula Philosophica Divi Thomae Aquinatis, Marietti, Roma,
1973, p. 253/258. De esta edición cito parágrafo y página.

113
entre cuerpo y alma. Del mismo modo como aquél se subordina a ésta y puesto
que lo corporal y lo temporal dependen de lo espiritual,27 el dominium del Papa
es superior a todo otro dominium28 en cuanto este último depende siempre de
aquél.29 Es obvio que para Tolomeo, que como vimos sostenía la doctrina de la
supremacía papal incluso en lo temporal, el episodio de la donatio no podía tener
otro significado que la confirmación en la historia [in actis et in gestis]30 de
aquella doctrina que él había demostrado antes teóricamente: ―Un argumento en
favor de ello nos ofrece la historia (in actis et in gestis) de los Sumos Pontífices y
de los Emperadores (...) en primer lugar Constantino, que cedió el Imperio a
Silvestre (...) como lo atestigua la historia‖.31
Como es fácil percibirlo, puesto que, según la interpretación que Tolomeo
hace dela donatio, Constantino había cedido a Silvestre nada menos que el
Imperium,32 la donatio no era para él un acto jurídico de índole privada, sino que
ella constituía una cesión que afectaba directamente el derecho público y, por ello,
en esa cesión estaba implicada la misma soberanía o dominium superius. Para
Tolomeo era pués la misma historia la que actuaba en favor de los argumentos
teóricos y eran los mismos hechos los que ratificaban esos argumentos. Si
comparamos ahora la interpretación que Tolomeo hace de la donatio con el
propósito que el falsario se había propuesto al crearla, es decir con el mismo
contenido de la donatio, se observará que, del mismo modo como sucedía con la
interpretación de Tolomeo, la donación acreditada por el Constitutum tambien
afectaba a la historia del Imperio Romano en un punto nuclear, pues tambien en
este caso se trataba de una cesión de soberanía: en efecto, mediante episodio de la
donatio, el Constitutum se proponía, como ya lo hemos mostrado, adaptar esa
historia a la doctrina curialista acerca de la sede de la soberanía imperial que la
donatio hacía residir en el Papa. De ese modo, la posición de Tolomeo respecto de
la donatio coincidía plenamente con el espíritu que había movido al falsario a
inventarla; la coincidencia se verificaba en que, para ambos, un episodio de la
historia del Imperio Romano constituía la restitución al Papa, de facto, de lo que a
él correspondía teóricamente, es decir de iure. Con todo, si en el caso de la donatio
esa restitución fáctica ha sido ya ampliamente probada, resta ahora probar en forma
más contundente y a la luz de los textos de Tolomeo, que tambien para él se trató
de la confirmación histórica — mas aún, providencial! — de un ius. Si ello
logramos, habremos probado el êxito de la donatio, pues dia habría sido usada y

27
Cfr. op. cit. L III, 10. n. 980, p. 309.
28
Cfr. Ibid. p. 308.
29
“La jurisdicción temporal depende de la espiritual de Pedro y sus sucesores‖ (ibid. p. 309).
30
Cfr. Ibid. n. 981, p. 309.
31
Ibid.
32
El texto dice ‗in Imperio cessit‖.

114
aprovechada por uno de los más importantes teóricos del curialismo tal como el
falsario se propuso que lo fuera.
Para Tolomeo, cada uno de los momentos de la historia del Imperio Romano
había respondido a un designio providencial. Del mismo modo él consideraba
providencial la causa del dominium ejercido por los romanos sobre el resto del
mundo.33 Asi tambien la donatio Constantini había sido un episodio directamente
provocado por la providencia, pues de hecho la milagrosa curación de Constantino,
que fue el antecedente inmediato de la donatio, había escapado a toda causa
natural: ―Llegado el momento de manifestar al mundo la disposición del reino de
Cristo, el poder de Jesucristo nuestro principe utilizó al principe del mundo,
Constantino, hiriéndole con la lepra y curándolo más allá de toda posibilidad
humana‖.34 Pero hay todavía más: además de identificar la causa del episodio que
involucraba a Constantino y a Silvestre con la providencia, Tolomeo afirma que,
mediante la donatio, esa providencia había querido confirmar fácticamente, es
decir en la historia, lo que desde siempre correspondía al Papado de iure, es decir
según la doctrina: ―Luego de lo cual, Constantino cedió a Silvestre, vicario de
Cristo, el dominio político [la soberanía] sobre lo que, según las razones y
argumentos más arriba determinados, le debía de iure‖.35
La donatio Constantini había sido, pués, para Tolomeo como para todo el
curialismo, el punto en el que confluían historia y doctrina y el puente que unia el
hecho y el derecho. En el factum de la donatio, la voluntad divina manifestada en
el tiempo hacía uso de un elemento temporal (‗utilizó al príncipe del mundo,
Constantino‖) para ordenar el curso de los acontecimientos históricos en forma
coincidente con el orden objetivo que el curialismo suponía querido por Dios. De
ese modo ese orden objetivo, que no era otra cosa que el reino de Dios, debía
realizarse en el tiempo: ―En esa cesión el reino temporal se agregó al reino
espiritual de Cristo... y se cumplió lo escrito por Isaías: ‗se ampliará su Imperio y la
paz no tendrá fin‘‖.36 Así, la providencia operaba la realización histórica de lo que
en sí mismo correspondía que sucediera: la subordinación del poder temporal al
espiritual implícita en lo que el curialismo entendía por ‗Reino de Dios‘. En suma,
tanto el ánimo del autor de la donatio como el espíritu que inspiró las
falsificaciones y el motivo que condujo a Tolomeo a incluiria donatio dentro de su
proyecto histórico-teológico providencial, todos ellos participaban de una misma

33
―Su dominio político (potestas dominandi) no les fue dada [a los romanos] sino por la providencia
del sumo Dios‖ (Cfr. Ibid., n. 945, p. 300).
34
Cfr. Ibid., L. III, 16, n. 1006, p. 317.
35
En otros términos: el plan y orden providenciales divinos se cumplian histórica y temporalmente en
el hecho de la donatio. Ésta confirmaba en el tiempo lo que debía suceder según criterios
extratemporales.
36
Ibid.

115
mentalidad: lo contingente debe adecuarse a lo absoluto y lo que acaece en el
tiempo debe compatibilizarse con el orden objetivo y verdadero que prescribe lo
que debe acaecer. Tal es lo que hemos llamado la ―filosofía de la donatio
Constantini‖. Ésta satisfacía así los objetivos que le había atribuído el curialismo:
facilitar la argurnentación que defendía la supremacía papal in temporalibus y
consolidar la situación supraimperial de Papado.ibid.

116
7

O DEVER DA FIDELIDADE NO MANUAL DE


DHUODA

RUY NUNES
Professor aposentado da FE — USP

No original e valioso Manual para meu filho, escrito por Dhuoda, uma senhora
alemã, a fim de instruir o seu filho mais velho sobre as verdades religiosas, e de lhe
inculcar o dever de fidelidade para com o Rei e o Senhor, depara-se um precioso
documento, muito esclarecedor sobre vários aspectos da crença e da vida na
conturbada época do final do reinado de Luís, o Piedoso, quando os aristocratas
carolíngios começaram a revoltar-se contra o Imperador, e quando se iniciou a
precoce e inesperada desagregação do império formado por Carlos Magno. Meu
intento, porém, é sobretudo salientar na obra de Dhuoda o papel desempenhado na
educação de um nobre pelo senso do dever de fidelidade para com o Senhor, e pela
própria noção de vassalidade que, nessa época, começa a possuir conotação
profundamente religiosa e não apenas política e social.
I
No dia 25 de dezembro do ano 800, realizou-se o sonho de Carlos Magno, o
plano longamente concebido de ser proclamado soberano da Cristandade e o
sucessor dos imperadores romanos do Ocidente. Depois de haver defendido e
beneficiado o Papa Leão III, o rei Carlos, Patrício dos Romanos, dirigiu-se à igreja
de São Pedro, em Roma, onde se prostrou a rezar antes da celebração da Missa.
Quando ele se levantou, o Papa se aproximou e lhe colocou na cabeça uma coroa,
enquanto o ―povo romano‖ fazia estrugir na igreja a aclamação: ―A Carlos
Augusto, coroado por Deus, grande e pacífico imperador dos Romanos, vida e
vitória!‖.1 Eginhardo conta, na sua biografia de Carlos Magno, que este ficara
1
In die natalis Domini ante confessionem beati Petri apostoli, cum rex ab oratione surgeret, Leo papa
coronam capiti eius imposuit, et a cuncto Romanorum populo adclamatum est: ―Carlo Augusto a Deo
coronato magno et pacifico imperatori Romanorum vita et victoria‖. Annales Fuldenses sive Annales

117
muito aborrecido com essa coroação, e que ele declarara que se tivesse sido
prevenido, nem teria comparecido à igreja naquele dia, apesar de ser um dia santo
tão festivo.2 Começou, então, Carlos Magno a agir como o representante de Deus
que, escreveu ele ao Papa Leão III, ―tem por missão proteger e governar todos os
membros de Deus‖.
No início de 806, o imperador promulgou um ato determinando o modo como
deveria processar-se a sua sucessão em caso de morte, e declara esperar que os
seus filhos continuem a proteger a Igreja, tal como ele próprio, seu pai e seu avô o
fizeram, assegurando a defesa da Igreja de São Pedro, e fazendo-lhe prestar justiça.
Numa das suas Capitulares, outrossim, estatuiu a forma de juramento de fidelidade,
que ligava individualmente à pessoa do imperador todos os habitantes masculinos
do Império, desde os 12 anos. ―Prometo, reza o texto, a partir deste dia, ser fiel ao
senhor Carlos, imperador muito piedoso, filho do rei Pepino e da rainha Berta,
sinceramente, sem mentira nem más intenções, e pela honra do seu reino, como o
dever impõe que um homem o seja ao seu senhor e amo; que Deus e os santos
cujas relíquias aqui estão me protejam, porque, em todos os dias da minha vida,
com toda a minha vontade e toda a inteligência que Deus me der, nisso o
empregarei e a isso me consagrarei‖.
Comentando esse juramento de fidelidade, escreve Luis Halphen: ―Um
compromisso deste tipo, numa sociedade impregnada de espírito religioso, era
considerado indissolúvel, Infringi-lo significava perjurar. Era, por conseqüência,
perder o direito a recorrer, a partir de então, ao juramento para se justificar contra
as acusações, ver-se desqualificado como testemunha perante os tribunais; era o
mesmo que expor-se à amputação da mão direita, cúmplice do juramento falso; era
colocar-se na categoria dos infiéis, fora da lei, cujos bens e vida não tinham
proteção; e, o que é mais grave, era a certeza da condenação eterna‖.3

Regni francorum Orientalis (In usum scolarem). Post editionem G. H. Pertzil recognovit Fridericus
Kurze. Pars Prima auctore Einhardo. Hannover, 1891, p. 15.
―Alcuin and a few other clerics had developed an idea linked with ancient traditions. To protect the
church against many corrupt practices and dangers. The realization of the will of God on earth required
the reestablishment in the West of an imperial power that would protect faith and church.
Charlemagne, in their eyes, fulfilled the necessary conditions to be that Roman Christian emperor; to
be, indeed, an emperor quite different in their minds from the historical Constantine and Theodosius.
Favorable circumstances occurred... It was, I believe, owing to Alcuin that he went to Rome with the
idea of putting order into the affairs of the church; it was under the same influence that he accepted
there the imperial dignity. Pope Leo III crowned him emperor on 25 December 800‖. François L.
Ganshof, Charlemagne in Speculum, v. 24, obtober 1949, p 524.
2
ÉGINHARD, Vie de Charlemagne, p. 80. Éditée et traduite par Louis Halphen. Troisième édition,
revue et corrigée (Les Classsiques de l‘Histoire de France au Moyen Age). Paris: Les Belles Lettres,
1947, p. 80.
3
Louis HALPHEN, Carlos Magno e o império Carolingio. Tradução de Artur Pinto. Lisboa:
Editorial Início, 1971, p. 151.

118
Um ano antes de sua morte, ocorrida em 814, Carlos Magno transmitiu a
coroa imperial ao seu único filho sobrevivente, o mais novo, Luís, que veio a ser
cognominado de Piedoso, Pius, devido ao seu espírito religioso e à sua dedicação
às coisas da Igreja. O imperador Luís, o Piedoso, que ainda em vida fizera reis
seus três filhos, Lotário, Luís, o Germânico, e Carlos, o Calvo, teve de lutar
contra eles, passou por enormes vexames, e até mesmo pela deposição do cargo,
particularmente devido ao seu casamento em 819, após enviuvar de Irmengarda,
com a bela e fogosa Judite da Baviera, que passou a lhe influenciar a política.
Para mal de seu pecados, Luís, o Piedoso, em julho de 817, havia proclamado
imperador o seu filho mais velho, Lotário, de 22 anos, associado desde então ao
pai no exercício do poder, e nomeara seu filho Pepino rei de Aquitânia, e o filho
Luís, rei da Baviera.
Eleito o Papa Eugênio II, após a morte de Pascoal I(11/2/824), um ato
imperial de 824 regulamentou as relações do Papado com o Império, colocou o
Estado Pontifício sob a proteção dos Francos e sujeitou o Papa à autoridade
imperial. Vieram, depois disso, a revolta dos filhos de Luís, o Piedoso, o golpe
de estado dado por Lotário, a restauração do imperador, e a sua morte aos 20 de
junho de 840.
A despeito do juramento de fidelidade, preconizado por Carlos Magno, os
filhos de Luís, o Piedoso, se engalfinharam após a morte do pai. Depois das
guerras entre os irmãos, e após a partilha dos territórios e os juramentos de
Estrasburgo em 842, entre Carlos e Luís, o Germânico, os três irmãos chegaram a
uma composição no acordo definitivo, selado em Verdun em agosto de 843 e que,
embora alterado, continuaria a balizar por muito tempo os territórios da Europa.
Ora, exatamente de 2 de fevereiro de 843 é datado o Liber Manualis
Dhuodane quem ad filium suum transmisit Wilhelmum, O Manual de Dhuoda,
dedicado ao seu filho Guilherme.
II
Os ligeiros acenos feitos às relações entre o Papa e o Imperador, entre a
Igreja e o Império, no período carolíngio, compelem-me a lembrar ao leitor
desavisado quanto à mentalidade dessa época, que não se pode falar, como hoje
na nossa sociedade, de distinção entre Igreja e Estado como, aliás, nem se pode
pensar em tal distinção e no relacionamento das duas esferas, como se viria a
fazer no fim da Idade Média. Seria uma incongruência, e um grave erro de
interpretação histórica, aplicar ao império carolíngio certas categorias do
pensamento político que por então nem se cogitavam. Como observa Dawson,
na Idade Média ―a realidade social última não era o reino nacional, mas a
unidade comum do povo cristão, do qual o mesmo Estado não era mais que o
Órgão temporal, e o rei, o guardião e defensor nomeado pela divindade‖. O

119
Estado medieval, segundo Dawson, conservava a herança dos povos bárbaros,
as instituições dos povos germânicos, enquanto a Igreja mantinha a tradição da
cultura latina e da ordem romana. O império carolíngio diferia do bizantino por
não possuir uma burocracia seleta ou classe de advogados e, por isso, o
imperador intervinha nos assuntos eclesiásticos, e o clero atuava
predominantemente na administração secular do Império. O rei tinha a
primazia do poder e do prestígio, mas os domínios senhoriais usufruíam de
notável autonomia local, de modo que o máximo suzerano temporal se devia
equilibrar entre a sociedade universal da Igreja, guardiã da cultura, e o poder
dos aristocratas que lhe juravam fidelidade por livre escolha, e em troca de
favores e benefícios.4
III
Dhuoda era alemã, de cepa aristocrática, e de família aliada à dinastia
carolíngia.5 Ao terminar o seu Manual, em 843, tinha 40 anos. Casara-se com
Bernardo de Septimânia aos 29 de junho de 824, na capela do palácio de Aix-la-
Chapelle. Bernardo era filho de Guilherme de Gellone, primo-irmão de Carlos
Magno. Comandou a Marca de Espanha, defendeu-a contra os muçulmanos,
obteve importante vitória em 827, tornou-se camerarius na corte de Aix, e
ajudou o imperador Luís, o Piedoso, quando das intrigas do seu filho Lotário.
Dhuoda deu à luz o filho, em 29 de novembro de 826, que recebeu o nome de
Guilherme em honra do avô, São Guilhem. Dhuoda e o filho seguiram Bernardo
nas suas andanças, impostas pelas tribulações do reino. Finalmente, Dhuoda
instalou-se em Uzès, capital do condado pertencente à Marca de Gótia e, após a
morte do imperador Luís, seu marido achava-se com ela. Aos 22 de março de
841 nasceu-lhes o segundo filho, Bernardo. No conflito entre os filhos de Luís, o
Piedoso, Bernardo apoiou Pepino II de Aquitânia, mas, após a batalha de
Fontenay em Puisaye (22/6/841), ele se passou para o lado de Carlos, o Calvo, e
como penhor desse apoio, enviou seu filho Guilherme para a corte de Carlos. De
Uzês foi levado, também, o filho Bernardo, ainda bebê, para ficar junto do pai na
Aquitânia. Solitária, sem os filhos e o marido, Dhuoda, aos 30 de junho de 841,
começou a escrever o Manual, dedicado a Guilherme que deveria, mais tarde, dá-
lo a conhecer ao irmão.

4
Christopher DAWSON, Ensayos acerca de la Edad Media. Traducción del inglés por Justo
Fernández Buján. Madrid: Aguilar, 1956, p. 103-108.
5
Esses dados biográficos de Dhuoda são extraídos da excelente Introdução escrita por Pierre
Riché para a edição do Manuel pour mon fils (Sources Chrétiennes n 225). Introduction, Texte
critique, Notes, par Pierre Riché. Traduction par Bernard de Vregille et Claude Mondésert s. j.
Paris: Cerf, 1975.

120
Em 844, o marido de Dhuoda foi acusado de traição por Carlos, o Calvo, e
condenado por ele à morte em Toulouse. Guilherme, seu filho, reuniu-se então ao
rei Pepino de Aquitânia, que lhe concedeu em 845 o condado de Bordeaux. Em
848, Guilherme tentou apoderar- se da Marca de Espanha, que seu pai comandara,
tomou Barcelona mas acabou preso e decapitado em 849.
O outro filho de Dhuoda, Bernardo, parece ter sido mais bem sucedido, se
é que ele se identifica com o célebre Bernardo de Plantevelue, pai de
Guilherme, o Piedoso, fundador de Cluny.
IV
No tempo de Dhuoda, e já em épocas anteriores, os clérigos soíam escrever
livros de aconselhamento político para os príncipes e para os jovens nobres.
Essas obras pertenciam ao gênero literário dos ―espelhos‖.Na época carolíngia os
termos manual e espelho eram empregados geralmente como sinônimos. Aliás,
como observa Riché, esse gênero literário remonta à antiguidade egípcia e
hebraica, passou às civilizações bizantina e árabe. Os ―espelhos‖ apresentavam-
se como guias de orientação política, de educação física, moral e literária para os
jovens aristocratas.
No prólogo do seu livro, Dhuoda diz a seu filho Guilherme, que assim como o
jogo de dados, tabularum lusus,6 era o mais indicado para a distração dos jovens, e
assim como as mulheres costumavam examinar o seu rosto num espelho para
limpá-lo das manchas e torná-lo bonito para os seus maridos,placere maritis, assim
ela espera que o filho se entretenha com o seu livrinho, como se se tratasse de um
espelho e de um jogo de dados. ―Nele encontrarás, diz ela, tudo o que desejares
saber em poucas palavras como, também, um espelho no qual poderás contemplar
sem hesitação a salvação de tua alma, de modo que possas em tudo agradar não só
ao mundo, mas àquele que te formou do limo da terra‖.7
O Manual de Dhuoda, diz Riché, destaca-se pela originalidade,já que o seu
autor não foi um clérigo mas uma mulher leiga, nobre e casada, ―o que lhe confere
um lugar único na literatura latina da alta Idade Média‖. O Manual é um livro de
educação que uma zelosa e erudita mãe escreve para o filho, e nesse gênero é uma
obra literária única, que Dhuoda redigiu como o seu testamento espiritual, sobre
possuir caráter autobiográfico que os outros espelhos não apresentam, assim como

6
Tabularum lusus é o jogo de tabuleiro. Tal, o ensinamento da Sto. Isidoro de Sevilha: ―De
tabula. Alea, id est lusus tabulae, inventa est a Graecis in otio Troiani belli a quodam milite Alea
nomine, a quo et ars nomen accepit. Tabula luditur pyrgo, calculis tesserisque‖. Etymologiae sive
Origines. Lib. XVIII, cap. 60. Edição Lindsay, Oxford, Tomo II, 1966.
7
―Inuenies in eo quidquid in brevi cognoscere malis, inuenies etiam et speculum in quo salutem
animae tuae indubitanter possis conspicere, ut non solum saeculo, sed ei per omnia possis placere
qui te formauit ex limo‖. Dhuoda, Manuel pour mon fils, p. 80.

121
importância histórica, já que foi composto entre a morte de Luís, o Piedoso, em
840, e a partilha de Verdun, em 843. O Manual de Dhuoda foi escrito entre 30 de
novembro de 841 e 2 de fevereiro de 843, e dedicado ao seu filho Guilherme, de 16
anos. Ele revela o nível de cultura profana e religiosa de uma mulher leiga, na
metade do século IX.
V
Para certos leitores de hoje, não familiarizados com a vida e a cultura na Idade
.Média, o Manual de Dhuoda pode causar espécie, dado o seu teor profundamente
religioso e católico, Dhuoda ensina ao filho as verdades fundamentais da fé, fala do
amor de Deus, do mistério da Trindade, das virtudes teologais, dos dons do
Espírito Santo, das beatitudes, do combate aos vícios, da aquisição das virtudes, da
oração, das tribulações, da morte temporal e eterna, da vida espiritual e do seu
sustento, das preces que deve elevar a Deus pelos pais, pelo rei, pelo senhor, pelos
parentes vivos e defuntos, e chega até mesmo a dissertar sobre a aritmologia
sagrada, em moda na sua época. Alguns pontos de suas recomendações religiosas
merecem especial realce. Assim, Dhuoda inculca ao filho a recitação das horas
litúrgicas, a prática da Confissão, e a devoção pelas almas do Purgatório.
Além das orações que ela sugere ao filho, tiradas dos livrinhos de oração
privada, Precum libelli, muito difundidos em sua época e existentes noutras
bibliotecas de leigos, Dhuoda aconselha ao filho recitar as ―horas canônicas‖, o
breviário, tal como os monges; no que não ia novidade, já que, desde os albores da
Igreja, os fiéis comuns entoavam os louvores a Deus, associados às pessoas
consagradas, os bispos e os padres e, depois, os monges. ―Recita as horas
canônicas, diz Dhuoda ao filho, desempenha teu dever conforme está escrito: Sete
vezes por dia entoei o teu louvor‖ (Salmo 119-118, v. 164).8
Depois de recomendar o respeito aos ministros de Deus, Dhuoda acrescenta:
―Faze-lhes, em segredo, do melhor modo possível, a tua confissão sincera, com
suspiros e lágrimas‖.9 E esse passo revela como na época carolíngia era habitual a
prática da confissão individual e auricular.
Por fim, Dhuoda inculca ao filho a devoção pelas almas do Purgatório, Depois
de indicar todas as espécies de pessoas pelas quais o filho deve rezar, ela escreve:
―Ora, também, por todos os fiéis defuntos, a fim de que o Cristo misericordioso

8
DHUODA, Manuel pour mon fils, p. 130.
9
―Da illis, ut melius nosti, tuam occulte cum suspirio et lachrymis ueram confessionem. Nam, ut aiunt
doctores, uera confessio a morte liberat animam et non patitur ire ad ima‖. Ib., p. 196.

122
lhes venha em socorro e se digne lhes acolher as almas no seio de Abraão, para que
mereçam receber mais tarde, com os santos, o repouso e o refrigério‖. 10
VI
O laço jurídico do relacionamento, de subordinação de um homem livre a um
senhor, estabelecia-se, nos séculos VIII e IX, por meio de dois atos: a
recomendação e o juramento de fidelidade. No primeiro, quem se recomendava, a
saber, o futuro vassalo, colocava as mãos juntas entre as mãos da pessoa a quem se
submetia, em troca de favores, segundo as fórmulas: in vasatico se coininendare
per manus, recomendar-se em vassalagem pelas mãos; manus suas commendare,
recomendar as suas mãos: in manus ou in manibus N. se commendare,
recomendar-se nas mãos de um tal. Como observa Ganshof, ―estes últimos textos
mostram que as mãos do futuro senhor tinham igualmente um papel a
desempenhar no ritual do ato‖.11 O duplo gesto das mãos, immixtio manuum,
constituía o ato da recomendação, quer de um homem pobre e humilde, quer de um
rico e guerreiro, ao senhor, um rei ou um nobre.
Na segunda metade do século VIII e no IX, acrescentou-se à recomendação o
novo ato do juramento de fidelidade, a promessa de ser fiel, apoiada num
juramento em que se apelava para Deus, e se tocava numa res sacra, relíquia,
evangeliário etc. ―O juramento de fidelidade, explica Ganshof, deve ter-se ajuntado
à recomendação, o mais tardar, em 757, quando o duque da Baviera, Tassilo III,
entrou na vassalidade do rei Pepino III‖ e, a partir da época carolíngia, em virtude
do caráter religioso do ato, passou a existir uma mística da vassalidade: ―uma vida
interior forjando em inúmeros vassalos a dedicação absoluta pelo seu senhor, razão
de ser essencial da instituição‖.12
Em troca do serviço devido pelo contrato de recomendação, tal como o
fornecimento de víveres, de soldados, de armas, ajuda financeira etc., e pelo
juramento de fidelidade que implicava ser leal e não mentiroso, o vassalo recebia,
como usufrutuário, um benefício que podia ser um domínio, terras, palácios ou
dignidades que representavam cargos lucrativos. E era, principalmente, pelo desejo
de enriquecer e de obter mais benefícios, nota Ganshof, que certos vassalos
abandonavam ou traíam o seu senhor.
Por outro lado, a concessão, feita pelo rei aos seus vassalos leigos, de
certas dignidades eclesiásticas como uma abadia, está na raiz dos abusos que

10
―Ora etiam et pro omnibus fidelibus defunctis, ut eis pius subueniat Christus, et in sinu Abrahae
animas eorum collocare dignetur, ut requiem et refrigerium in futurum mereantur accipere cum
sanctis‖. ib., p. 312.
11
F. L. GANSHOF, Que é o fedaulisino? Tradução de Jorge Borges de Macedo, 2ª edição (Coleção
Saber). Lisboa: Publicação Europa-América, 1968, p. 42.
12
Ib.,p.46 e 51.

123
determinaram o aparecimento da questão das Investiduras, que tanto prejudicou
a Igreja e amimou as relações dos Imperadores com os Papas na Idade Média.
VII
Ao começar a tratar do tema da fidelidade, Dhuoda exorta primeiramente o
filho Guilherme a tributar respeito, durante toda a vida, ao seu pai. ―Não me
canso, escreve, de insistir, quanto o posso, em que deves respeitar, amar e
guardar fidelidade a Bernardo, teu senhor e pai, em todas as coisas, tanto em sua
presença quanto em sua ausência‖. De seguida, Dhuoda cita para o filho os
sábios conselhos de Salomão, concernentes à reverência devida aos pais e, ao
chegar ao versículo 15 do cap. 3º do Eclesiástico que diz: Não o menosprezes, tu
que estás em pleno vigor, lembrada decerto das recentes revoltas dos filhos de
Luís, o Piedoso, exclama: ―Longe de ti, um tal desprezo! Antes a terra me cubra
o corpo do que teu pai tenha de passar por isso, o que acredito não virá a
acontecer. Não falo disso, porque o tema, mas cumpre te acauteles para que
jamais passe pela tua mente a idéia de semelhante crime, cometido, nós o
sabemos, por muitas pessoas que não se assemelham a ti‖. E, a reforçar o
conselho, Dhuoda evoca os infortúnios de Hofni e Finéias, filhos de Eli (I Sam.
4, 11) e de Absalão, filho de Davi (II Sam. 18, 15).
Depois de outras citações bíblicas, Dhuoda acrescenta: ―Quem quer que seja
deve considerar, meu filho, que se um dia atingir a idade madura, quando Deus se
dignar de lhe conceder descendência, a sua alegria consistirá em ter filhos
humildes, mansos e obedientes, e não teimosos, soberbos e gananciosos, de tal
modo que, ao vê-los, ele se rejubile e seja feliz, depois de ele próprio ter sido,
quando pequeno, um filho submisso‖. Dhuoda prossegue, apoiada na Bíblia, nos
seus conselhos de reverência que o filho deve tributar ao pai, observando que, se
aos olhos dos homens a primeira honra cabe ao poder real ou imperial, a sua
vontade expressa é que o seu filho em primeiro lugar, in primis, não negligencie
durante toda a vida o dever de prestar ao pai uma homenagem conveniente, fiel e
segura, pois ninguém pode ter acesso aos grandes senhores e ao máximo suzerano,
a não ser que receba o seu posto de seu pai. Por isso, Dhuoda conclama o filho:
―Ama primeiramente a Deus, segundo o mandamento e, em seguida, estima,
respeita e ama teu pai, de quem procede a situação de que desfrutas no mundo‖.
O ponto alto do Manual, tocante à fidelidade, acha-se nesse capítulo III em que
Dhuoda, depois de ter salientado a importância do respeito ao pai, trata da
reverência quanto ao senhor, e discorre sobre o papel dos conselheiros, e sobre a
atitude quanto à família dos senhores, aos grandes e aos pequenos, e ao respeito
devido aos sacerdotes.
VIII

124
Na Advertência sobre a conduta a manter quanto ao senhor — Admonitio erga
seniorem tuum exhibenda — afirma Dhuoda: ―Carlos (Carlos, o Calvo), a quem
tens como o senhor que Deus, segundo creio, e teu pai Bernardo escolheram para
que tu o sirvas no começo da tua vida e na flor da juventude, procede pelos dois
lados de grande e nobre linhagem. Presta-lhe teu serviço, não apenas para seres
agradável aos seus olhos, mas com toda a tua dedicação de corpo e alma. Guarda
para com ele, em todas as coisas, uma fidelidade sincera e segura‖. 13
Dhuoda passa a aduzir, então, os exemplos louváveis do serviçal de Abraão
que se dirigiu a um país longínquo, a fim de buscar uma esposa para o filho do seu
senhor; de Joab e Abner para com o rei Davi, e de tantos outros que, segundo a
Sagrada Escritura, se submeteram fielmente às ordens de seus senhores, seniorum
iussa fideliter obtemperantes. ―Sabemos, de feito, segundo o texto das Escrituras,
diz Dhuoda, que toda honra e toda autoridade são um dom de Deus. Por isso,
devemos servir aos nossos senhores fielmente, sem desagrado, sem moleza e sem
preguiça, pois, como diz São Paulo, ‗não há autoridade que não venha de Deus, e
quem se revolta contra a autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por Deus‘ (Rom,
13, 1-2). Por isso é que eu te exorto, meu filho, a guardares, durante toda a vida, a
fidelidade de corpo e espírito. Teu progresso crescente será, como cremos,
utilíssimo para os teus familiares. Jamais, uma vez sequer, saia de ti uma afronta
maldosa devido à loucura da infidelidade; jamais nasça nem cresça em teu coração
a idéia de seres infiel ao teu senhor seja no que for. Fala-se dura e malissimamente
daqueles que agem assim, mas não creio que isso venha a ocorrer contigo nem com
os teus companheiros de armas; esta conduta jamais se viu nos teus antepassados;
não existiu, não existe, e não existirá no futuro.
―Portanto, tu, meu filho Guilherme, oriundo da sua raça, sê para com o teu
senhor, como eu te disse, veraz, vigilante, útil e importante. Em todo negócio que
interesse ao poder do rei, trata, enquanto Deus te der forças, de mostrar-te o mais
prudente possível, interna e externamente. Lê as máximas e as vidas dos santos
Padres (as personagens bíblicas já referidas) que nos antecederam, e aí tu
descobrirás como, e de que forma deves servir ao teu senhor, e assisti-lo fielmente
em tudo. E quando o houveres descoberto, aplica-te a executar fielmente as ordens
do teu senhor. Considera, também, e observa aqueles que o servem assiduamente
com a máxima fidelidade, e deles aprende as lições de serviço; ilustrado pelo
exemplo deles, com o socorro e a ajuda de Deus, conseguirás mais facilmente
atingir o objetivo que te indiquei. Que o teu Deus e Senhor te seja em tudo propício
e benigno; que ele seja o teu defensor, teu chefe benfazejo, teu protetor, e em todas

13
DHUODA, Manuel pour mon fils, p. 148.

125
as tuas ações ele se digne te assistir continuamente como teu amparo e defesa.
Como ele o quiser no céu, assim seja! Amém.14
O servidor atilado, entretanto, deve ser humilde e dócil para pedir conselhos
a quem os possa dar. Para bem servir ao senhor muito importa receber sábios
conselhos de pessoas experientes, assim como dá-los oportunamente a ele. ―Se
um dia, escreve Dhuoda, Deus te elevar ao honroso posto de conselheiro entre os
grandes do reino, examina com cuidado o que podes dizer, de modo conveniente
e oportuno, quando e a quem. Isso requer ponderação do juízo, reflexão e
prudência. Quem se aplicar sensatamente a essa busca da sabedoria, atrairá
decerto as bênçãos de Deus, os favores dos homens e agradará fielmente em
todas as coisas ao senhor‖.15
Dhuoda, então, aconselha o filho a temer e a amar a Deus, a apegar-se a ele na
flor da juventude e a pedir-lhe a sabedoria, que ele a concederá: Pete illi
sapientiam et dabit eam tibi.16 Na sua misericórdia afável e gratuita, ele
proporciona sabedoria, o conselho e todo o necessário à vida corporal a quem crê
que o receberá e o impetra. Ademais, cumpre freqüentar não só os mais velhos
como, também, os jovens que amam a Deus e adquirem a sabedoria, porque é da
flor da juventude que a velhice retira a sua força. 17 Atestam-no os antigos
exemplos de excelentes conselheiros, como os de José junto ao Faraó, de Daniel
diante de Nabucodonosor, de Baltazar, de Dano, dos chefes dos Persas e dos
Medas; de Jetro, o sogro de Moisés; de Aquior, o conselheiro de Holofernes, chefe
dos exércitos pagãos. ―E preciso, no entanto, observa Dhuoda, atinar com os sábios
conselheiros, pois muitos que se julgam sábios, não o são; uns dão bom conselho,
mas não o dão bem, e outros dão maus conselhos, inviáveis. Na incerteza da
escolha cumpre descobrir os descendentes daqueles antigos que, com a ajuda de
Deus, sabem ministrar um conselho útil para si próprios e para os seus senhores,
um conselho válido, benvindo e oportuno. Para isso, se atingires a idade madura,
deverás acautelar-te contra as pessoas desonestas e escolher as de bem; fugir dos
maus, aderir aos bons, e não aconselhar-se com um homem malévolo, covarde ou
colérico... Portanto, meu filho Guilherme, toma cuidado, e foge dos malvados
dessa espécie, une-te às pessoas honestas que buscam o bem, àqueles que por
sincera sujeição às vontades dos seus senhores, ao proporem um bom conselho,
mereceram receber de Deus e do mundo uma digna e grande recompensa‖. 18
X

14
Ib., p. 148.152.
15
Ib., p. 152-154.
16
Ib., p. 154.
17
Ib., p. 156.
18
Ib., p. 158-164.

126
De seguida, a zelosa mãe estende-se sobre as normas de conduta no
convívio social, ad propinquos senioruni tuorum.
―Em relação aos ilustres, gloriosos e nobres parentes e próximos do teu
poderoso e régio senhor, diz Dhuoda, se chegares à honra de compartilhar do
serviço na corte real ou imperial com os teus companheiros de armas, ou se
chegares a ocupar em qualquer parte um cargo, testemunha-lhes estima, respeito,
amor e veneração, e em qualquer negócio atinente aos seus interesses, mostra-lhes
em tudo uma dedicação firme, desprendida e oportuna, que comprometa a tua
inteira fidelidade, de corpo e alma. Lembra-te da atitude exemplar de Davi quanto
a Jônatas, filho do rei Saul‖.19
Dhuoda aconselha ao filho a submissão às regras do serviço, a fidelidade ao
seu senhor, Carlos, sisque fidelis seniori tuo Karolo, quem quer que ele seja,
quisquis ille est, observa, já que, então, a realeza de Carlos, o Calvo, não era
reconhecida na França meridional, em virtude da sua luta contra Pepino de
Aquitânia. Essa obediência deveria estender-se aos seus nobres parentes dos dois
sexos, nascidos da linhagem real. Guilherme, como todos aqueles que estavam a
serviço do poder real, deveria secundá-lo fielmente com todas as forças. Dhuoda
roga ao Deus Altíssimo que ilumine e inspire a todos, para que saibam promover a
paz, reger, proteger e governar energicamente o mundo e o povo, a serviço de Deus
e dos santos, assim como defender os súditos dos ataques das tropas inimigas que
irrompiam de todos os lados, e unificar firmemente em Cristo a santa Igreja de
Deus na verdadeira religião.
No capítulo IV do Manual, acrescenta Dhuoda que, se Guilherme se consevar
no temor e no amor inspirados pela fidelidade para com o seu pai e o seu senhor,
para com os grandes e todos os seus pares, mais velhos e mais novos, sem ofendê-
los e sem se imiscuir nas suas contendas, o espírito de temor do Senhor repousará
certamente sobre ele.20
Na corte real, o jovem Guilherme convivia com os aristocratas mais ilustres,
assim como com outros jovens servidores, semelhantes a ele, e com oficiais mais
modestos, incumbidos de múltiplas funções. Dhuoda, sabendo disso, previne o
filho quanto à maneira de agir em relação aos nobres mais ilustres, ad optimates
ducum, aos grandes e aos pequenos, ut cum maioribus et minoribus flectas.
Tocante aos grandes dignitários e aos seus conselheiros, ela recomenda que o filho
lhes testemunhe afeição e devotamento e lhes observe humildemente os nobres
exemplos, procurando aprender deles e dos homens criteriosos, sensusque capaces,
tudo o que ele puder apreender de bom com o auxílio do Pai Todo Poderoso.
Dhuoda adverte, ainda, Guilherme a que proceda de tal forma que, sem incorrer em

19
Ib., p. 166.
20
Ib., p. 216.

127
infidelidade para com os seus senhores, possa levar uma vida feliz, digna de elogio,
na dignidade e na distinção.
Dhuoda aconselha ao filho a atenção para com as pessoas mais novas e de
posição mais modesta, dizendo-lhe para colaborar com elas, trocar grandes e
pequenos serviços, e honrá-las não só com palavras mas com ações, tudo fazendo
com uma expressão afável. Em suma, Guilherme deve esforçar-se por ser sempre
caridoso para com todos, os grandes e os pequenos, pois assim receberá um
benefício recíproco e a honra conveniente. Ademais, sempre e em qualquer
ocasião, é preciso saber exercer a compaixão fraterna.
XI
Na última parte do capítulo III do Manual, discorre Dhuoda, de modo afetuoso
e inteligente, sobre o respeito devido aos sacerdotes, De reverentia sacerdotum.
Ela mostra cuidadosamente ao filho Guilherme a distinção sobrenatural dos
ministros de Jesus Cristo. É preciso venerá-los, diz ela, pois eles foram escolhidos
por Deus para o seu serviço, e foram constituídos como intercessores pelos nossos
pecados. São os bispos e os padres que abrem para os homens as portas do céu,
alimentam-nos com a palavra de Deus e com o pão eucarístico, perdoam em nome
de Deus os seus pecados e rogam constantemente pela sua salvação. Pode ser que
alguns deles, observa, revelem não estar à altura do caráter sagrado do seu
ministério, mas nesse caso ―não os julgues temerariamente, nem te compete
repreendê-los, como muitos o fazem... Deus é quem lhes conhece o coração, assim
como os de todos nós. Reconhecemos, no entanto, a dignidade da vida deles,
transparente através da sua palavra, do seu pensamento, do seu olhar, da sua
atividade e dos seus frutos. Respeita-os e ama-os sempre, recomenda Dhuoda.
Escolhe entre eles os teus conselheiros e escuta os que vires estarem especialmente
unidos a Deus. Se a conduta de algum sacerdote não te parecer conveniente
(repete), não a critiques jamais, pois diz a Sagrada Escritura ‗Não toqueis nos meus
cristos, nos meus ungidos, isto é, naqueles que me são consagrados; não façais
mal aos meus profetas‘ (Salino 115, 15)... Tu, meu filho, venera-os, como já te
disse, e se porventura tiveres prevaricado, corrige-te‖.21
Dhuoda tinha a convicção profunda do cristão lúcido e fervoroso, de que
fomos criados para Deus, e de que só nele o nosso coração pode encontrar repouso,
como dizia Sto. Agostinho. Sabia estarmos neste mundo de passagem, num campo
de experimentação, de prova, de tribulações, mas de esperança, de aprendizado da
verdade e do caminho da salvação. A nossa luz vem de Cristo, imagem palpável do
21
―Tu tamen, fili, uenerare eos, ut praedixi, et si aliquid deliqueris, emenda‖. Dhuoda, Manuel pour
mon fils, p. 194-196. Numa alusão feliz à ―recomendação‖ que o futuro vassalo faz ao suzerano pela
immixtio manuum, Dhuoda diz ao filho que não titubeie em ―recomendar-se‖ aos sacerdotes da sua
confiança: In manus honestorum sacerdotum, te non pigeas commendare. Ib. p. 194.

128
Pai, que nos ilumina e fortalece com o dom do Espírito Santo. Se seguíssemos os
seus mandamentos, poderíamos viver em paz e na concórdia, apesar de todos os
tropeços e fraquezas. Em todas as épocas, no tempo de Dhuoda, como nos dias de
hoje, o escândalo dos cristãos e as misérias da parte humana da Igreja defluem da
incoerência de vida dos que se dizem cristãos mas não pautam a vida, de feito, pela
doutrina de Jesus Cristo. Foi o que percebeu muito bem um contemporâneo de
Dhuoda, Jonas, bispo de Orleães que, no capítulo XI do seu tratado De institutione
regia, denuncia a incoerência existencial de tantos cristãos da época carolíngia,
exortando-os à conversão sincera e à emenda da vida.
XII
Jonas morreu no ano de 842 ou 843, talvez precisamente quando Dhuoda
terminava a redação do seu Manual. No seu tratado De institutione regia,
composto em 831, Jonas dirige-se ao seu antigo rei, Pepino de Aquitânia, como um
bispo que escreve sobre política, para lhe dizer o que deve ser um rei, um
governante, e as obrigações que lhe incumbem, enquanto cristão.
No capítulo XI do opúsculo, Jonas disserta sobre a incoerência existencial de
muitos cristãos que professam a fé com palavras, mas não a traduzem nas ações,
não a manifestam na conduta. ―A lei de Cristo, escreve, não se destina a ser
observada apenas pelos clérigos, mas por todos os fiéis. Todavia, prossegue, a
profissão de fé é negligenciada em muitas coisas e por muitos, por causa dos
prazeres carnais, das múltiplas vaidades do mundo e de perversíssimos costumes.
Em muitos cristãos de hoje, afirma, a prática da vida cristã deixa muito a desejar.
Assim, à doutrina dos Apóstolos antepõe-se o amor dos negócios terrenos; ao
espírito de desapego e de beneficência, a avareza. O resfriamento da caridade e a
cobiça dos bens alheios são preferidos à distribuição misericordiosa dos próprios
bens. Em vez de orações, prefere-se o prazer da carne, a curiosidade dissipadora e
as formas de divertimento mais variadas. Em vez da primitiva comunidade dos
bens, aferram-se os cristãos, com raríssimas exceções, às suas posses, olvidados da
função social da propriedade.22 Os primeiros cristãos faziam as suas refeições com
alegria e simplicidade, entoando louvores a Deus, enquanto agora poucos são os
que as fazem sem se entregarem à maledicência, ao fingimento, aos insultos, de
olhos postos nos bailarinos, entretidos com piadas torpes, conversas desonestas e
com outras inúmeras futilidades que entorpecem e desfibram o espírito cristão. Os
antigos cristãos tomavam o alimento e louvavam a Deus; os atuais exigem
variedade de acepipes, preparados refinadamente, e louvam a habilidade dos
22
Jonas D‘Orléans et son De Institutione Regia. Étude et Texte critique par Jean Reviron. Paris,
Librairie Philosophique J. Vrin, 1930, p. 168: ―Ouae autem illis erant communia, nunc quibusdam ita
sunt propria ut perraro in alterius ex hiis quicquam retorquetur usus‖. A tradução deste passo, feita com
certa largueza, e fiel ao pensamento do autor.

129
cozinheiros... Homens promulgam leis que os súditos acatam; Deus, o Criador de
todas as coisas, Providência eterna e imutável, promulgou a lei, visando à salvação
das almas e, no entanto, os homens a desprezam, não a querendo ouvir, e se,
porventura, a escutam com o ouvido do corpo, não a captam com o da alma; e se
lhe prestam atenção, não a põem em prática (...) Percebe-se, pois, claramente que a
profissão de fé cristã nos tempos modernos (sic) não é feita por muitos de modo
religioso e devoto, tal como o faziam os primeiros cristãos.23
Dhuoda tinha plena consciência dessa situação e, por isso, cuidou de
orientar o filho Guilherme, e de alentá-lo na trilha da autêntica vida cristã,
insistindo em que a fidelidade ao pai e ao senhor só se pode assegurar, quando
enraizada no conhecimento e na prática da doutrina de Cristo.
Dhuoda permanece como exemplo para as mães cristãs de todas as épocas
e o seu Manual não tem apenas interesse histórico, mas continua a ser fonte de
inspiração e modelo de educação cristã.

23
―Perspicue sane animadverti potest quod professio Christiana modernis temporibus a plerisque
non sic devote ac religiose colitur, sicut a priscis colebatur Christianis‖. Ib., p. 169.

130
8

AS RAÍZES DA HIEROCRACIA NO “DE


INSTITUTIONE REGIA” DE JONAS DE
ORLEANS

JOSÉ ANTÔNIO DE C.R. DE SOUZA


Dptº de História da U.F. de Goiás

Marcel Prelot define magistralmente a hierocracia ou sacerdotalismo como


doutrina e regime político, segundo o qual ―determinados homens consagrados a
Deus pelo sacramento da Ordem exercem sobre os outros homens, por instituição
divina, um poder mais eminente que existir possa (...)‖ 1
Embora essa teoria tenha sido aperfeiçoada e ampliada na Baixa Idade Média e
ganho uma sistematização completa e definitiva no século XIV, especialmente nas
obras políticas de Egídio Romano, Tiago de Viterbo e Álvaro Pais, suas origens
indiscutivelmente remontam aos escritores da Alta Idade Média.
Pretendemos mostrar e analisar neste artigo a contribuição de Jonas de
Orleans, através de seu tratado De Institutione Regia, à elaboração posterior da
mencionada doutrina.
Entretanto, o bispo aurelianense, muito mais do que um filosofo-
politico no sentido escrito da palavra, foi um pastor dedicado não a penas às
questões relevantes da época em que vivieu, como também extremamente
zelosos e preocupado com a salvação eterna do rebanho que lhe havia sido
confiado por Deus.
Hauriu ele suas idéias na Escritura e nos ensinamentos dos Padres da Igreja,
fato esse que sugere aparentemente que desconhecia a literatura filosófico-político-
jurídica elaborada pelos pensadores greco-romanos. Havia, no entanto, urna razão
para essa atitude assumida por nosso antístite.
Por tais motivos estruturamos este trabalho em três partes, de modo a
facilitar a compreensão do leitor e também do estudioso.

1
As doutrinas políticas. Lisboa: Presença, 1973, v. 2, p. 283.

131
1 — JONAS DE ORLEANS E SUA ÉPOCA
Jonas Aurelianense nasceu na Aquitânia no último quartel do século VIII. Na
mesma região cresceu, estudou e foi ordenado sacerdote. Durante algum tempo
esteve a serviço de Pepino, monarca daquele território, localizado no centro-sul e
ocidental da Gália. No entanto, logo preferiu afastar-se da corte, devido à inveja e
às calúnias levantadas contra sua pessoa por outros funcionários palatinos.
Governava o Império Romano do Ocidente, Luís ―O Piedoso‖, filho e
herdeiro de Carlos Magno (768-800/814). Todavia, ―l‘édifice politique construit
par Charlemagne était grandiose et fragile... lês forces centrifugues dês vieilles
traditions germaniques travaillent contre l‘unité realisée, le développement de la
recommendation et de la vassallité orientaient lês institutions vers le
particularisme... au temps de Charlemagne, la justice et la paix, avec tout leur
sens religieux, étaient sauvegardées par le toutpuissant empereur. Il s‘était
attribué ce rôle... Il avait confudue l‘Église et l‘Empire em as personne, Il avait
voulu promouvoir la justice chrétienne et assurer la paix religieuse, au même
titre qu‘il levait lês impôts et dirigeait sés armées: son pàle sucesseur devait en
subir les conséquences...‖2
Luís ―O Piedoso‖ foi ungido e coroado imperador pelo papa Estêvão IV (816-
817) em Reims, cidade onde normalmente eram sagrados os antigos reis
merovíngios. Com esse gesto, o sumo pontífice reafirmou o destacado papel do
papado na condição de restaurador do império do Ocidente, fato esse realizado por
seu antecessor, Leão III (796-816), no Natal de 800, quando coroou Carlos Magno.
O imperador, embora não possuísse os dotes de estadista de seu pai, mostrou-
se bem mais piedoso do que ele, guardando enorme respeito para com a Sé
Apostólica, fazendo inúmeras doações às igrejas e aos mosteiros e, influenciado
por são Bento de Aniano, apoiou efetivamente uma reforma religiosa e cultural,
principalmente no âmbito do clero regular.
Em 817, Luís I firmou um pacto com o papa Pascoal II(817-824), pacto esse
que reiterava as doações que primeiramente seu avô Pepino ―O Breve‖ e depois
seu pai, tinham feito à Igreja Romana, relativas à formação territorial do
―Patrimonium Petri‖. E ficou estabelecido também que os imperadores não se
imiscuiriam no governo do Estado Pontifício, exceto em caso de rebelião, e
tampouco interfeririam nas eleições papais, direito esse que cabia exclusivamente
ao clero e ao povo romano.
O papado, por sua vez, assegurava novamente à casa de Heristal o direito
sobre as coroas franca e imperial. A aliança entre a Cruz e a Espada ia se
consolidando firmemente.

2
2 ARQUILLIÈRE, H. X. L‘augustinisme politique. Paris: J. Vrin, 1972, p. 170-176.

132
Ainda naquele mesmo ano, Luís I, após uma enfermidade longa e grave,
repartiu seus domínios entre os filhos. Lotário, o mais velho, seria co-
imperador, herdando, após a morte do pai, a coroa e o cetro imperiais. Luís ―O
Germânico‖, recebeu a Baviera, a Caríntia e a Boêmia, Pepino governaria a
Aquitânia, e Bernardo, um sobrinho, que já exercia o governo da Lombardia,
nele permaneceu. Lotário, na condição de primogênito deveria exercer uma
suserania sobre os irmãos mais novos, medida essa que assegurava, ao menos
na aparência, uma unidade imperial. Tais disposições estão contidas na
Ordinatio Imperii promulgada em 817.3
Mas em outubro de 818, Luís I ficou viúvo e cinco meses mais tarde casou-
se com Judite, uma nobre alemã. Quatro anos mais tarde, nasceu dessa união,
Carlos, herdeiro sem herança, porque todas as terras imperiais já haviam sido
repartidas entre seus irmãos mais velhos.
Em 821, o presbítero Jonas foi eleito e sagrado bispo de Orleans, sucedendo a
Teodulfo à frente daquele bispado. Luís I necessitava para aquela metrópole um
prelado sábio, piedoso, culto e leal à coroa imperial, face às tendências etno-
culturais impregnadas de separatismo e às rebeliões promovidas freqüentemente
pela nobreza há muito tempo. E Jonas soube comprovar e retribuir a confiança
depositada em sua pessoa: ―estimé des grands ecclésiastique ou laïques, à quelque
parti qu‘ils appartinssent, universellement respecté pour l‘élévation de son
caractère, son talent, sa pieté et son érudition, il sera frequemment amené à
prendre part aux affaires générales de l‘Empire, sans cesser d‘accorder tous ses
soins au peuple qui lui est confié, et particuliérement aux monastères qui relèvent
de son autorité (...)‖.4
Na Páscoa de 823, o sumo pontífice Pascoal II coroou imperador o jovem
príncipe Lotário, herdeiro presuntivo, na basílica de S. Pedro, como que lhe
sugerindo que o império era uma criação do papado. No ano seguinte, aquele
pontífice romano faleceu, sucedendo-lhe Eugênio III(824-827), candidato da
nobreza romana e apoiado também por Wala, monge de Corbie, primo do
imperador, e um dos próceres da tese política relativa à unidade imperial. O novo
papa solicitou a Luís I a aprovação de sua escolha para ocupar a Sé Apostólica,
fato esse que não havia acontecido nas duas últimas eleições pontifícias. Lotário foi
enviado a Roma para presidir às cerimônias de entronização papal.

3
GIORDANI, M. C. História do mundo feudal, v. 1. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 115: ―(...) mais que
uma partilha, essa ordinatio representava um verdadeira Constituição sobre a imediata sucessão ao
trono de Luís, na qual se consagrava um princípio intermediário entre a antiga idéia bárbara, que
considerava o poder como um bem privado ao qual cada filho tinha direito por ocasião da morte do pai
e o conceito unitário, que recusa todo o direito aos irmãos mais moços (...)‖.
4
REVIRON, J. Les idées politico-religieuses d‘un évèque du IXe. siècle. Jonas de Orleans et son ―De
Institutione Regia‖. Paris: J. Vrin, 1930, p. 26-27.

133
Nesse interim, Jonas dedicou-se principalmente às atividades inerentes ao
seu ofício de pastor. Dirigiu sua atenção de modo especial à abadia de S.
Maximino, contribuindo não apenas para a ampliação de seu edifício e para o
embelezamento de sua igreja, mas também para o reforço da disciplina
monacal, incentivando os monges à prática das virtudes cristãs e deles exigindo
o cumprimento do tríplice voto e ainda a observância do lema proposto por S.
Bento de Núrcia: ―Ora et labora‖.
Em março de 825, o prelado aurelianense, com a autorização de Jeremias,
arcebispo de Sens, seu metropolitano, e com a anuência de Luís ―O Piedoso‖,
assegurou à abadia de São Maximino o direito de promover livremente as eleições
abaciais, e ainda o de poder administrar com autonomia os seus próprios bens,
direitos esses que contribuíam para afastar qualquer espécie de ingerência laica em
assuntos de competência eclesiástica, bem como frear a cupidez da nobreza. No
entanto, o fato mais importante é que a obtenção desses privilégios redundavam na
preservação dos valores espirituais e morais da vida religiosa.
Pouco depois, apesar dos protestos dos habitantes de Orleans, Jonas autorizou
a transferência das relíquias de S. Maximino, fundador do mencionado mosteiro,
da referida cidade para a igreja da abadia.
Ainda em 825,o bispo Walcaud de Liège, conhecedor da erudição de Jonas,
solicitou-lhe que escrevesse um livro concernente à biografia de S. Huberio, cujos
restos mortais iam ser trasladados do oratório de S. Pedro para o monastério de
Andaine. Nosso antístite prontamente atendeu à solicitação do colega bispo,
escrevendo a Vita Sancti Huberti et Historia Translationis.5
Ao que consta, dentre as obras do prelado aurelianense, tais opúsculos são os
mais antigos de toda sua produção literária, que chegou a nossos dias e a Vita
―n‘est qu‘une refonte d‘une Vita plus ancienne (du VIIIe siècle) écrite en un latin
barbare dont les hommes de la Renaissance carolingienne avaient peine à
s‘accommoder...‖.6
Ludovico I, sumamente inclinado às questões e aos assuntos religiosos,
estava preocupado com as repercussões do ―Movimento Iconoclasta‖ no
Ocidente, por causa das teses defendidas por Cláudio de Turim, adversário
convicto do culto prestado às imagens.
A referida questão havia ganho tão grande número de simpatizantes que o
imperador, com a aprovação do papa Eugênio II, em novembro de 825, convocou
o 6º sínodo de Paris, a fim de solucionar definitivamente o problema no âmbito da
Cristandade latina. O monarca e o arcebispo Jerernias incumbiram Jonas de, a
partir das atas da assembléia, elaborar uma síntese da mesma, que seria

5
ED. SMEDT, VAN HOOFF DE BACKER, Acta Santorum I, Paris, 1887, p. 806-817.
6
REVIRON, J. Op. cit., p. 39.

134
encaminhada à Sé Apostólica, a fim de que o sínodo pudesse vir a ser aprovado
pelo santo padre.
Ludovico I na carta de encaminhamento ao papa da citada síntese, teceu
muitos elogios a Jonas e a Jeremias, sugerindo ao sumo pontífice que, se o
mesmo assim o desejasse, poderia enviar os dois prelados a Constantinopla, a
fim de ambos poderem tomar parte naquela controvérsia que agitava o Império
Bizantino há quase cem anos, com a certeza de que a defesa da veneração das
imagens sairia vitoriosa, graças à erudição e à habilidade na arte de argumentar,
possuídas por aqueles bispos. 7
É bem possível que nessa época, devido a tais circunstâncias, Jonas tenha
escrito a obra intitulada De Cultu Imaginum,8 na qual de modo especial externou
seus pontos de vista acerca dessa e de outras questões teológico-pastorais. Mas seu
objetivo primordial consistiu em refutar as teses do herege Cláudio de Turim.
Nosso prelado fundamentou-se com grande brilho na tradição cristã, alicerçada
parcialmente na Patrística, e de outro lado mostrou uma vez mais sua erudição
clássica, citando inúmeros autores pagãos que discorreram sobre a importância
estética da iconografia greco-romana.
A citada obra se compõe de três partes. Na primeira delas, Jonas demonstra
que Cláudio de Turim, recusando venerar as imagens, se opunha à tradição
cristã, devendo, pois, ser tido na conta de herege.
Na segunda parte, nosso bispo justifica a razão de ser do culto prestado à Santa
Cruz, por se tratar do símbolo mais importante da redenção humana, e na terceira
parte defende o tradicional costume cristão relativo às peregrinações aos lugares
santos de veneração religiosa.
Durante esses primeiros anos como pastor dos orleanenses, Jonas escreveu
também a obra De Institutione Laica1i.9
O conde Matifrid, governante do condado, solicitou ao seu antístite que o
ensinasse a respeito dos deveres cristãos concernentes ao estado matrimonial.
Nosso prelado logo o atendeu, escrevendo o citado livro. Tal obra de natureza
moral e didático-pastoral pode ser resumida nos seguintes pontos essenciais: 1 —
O Cristianismo estabelece várias normas sobre o matrimônio, normas essas
comentadas, ampliadas tanto pelos Padres da Igreja quanto pelo Magistério
eclesiástico. 2—O batizado tem a obrigação de conhecê-las e observá-las. 3 —
Deve fazer isso, tendo sempre diante de si mesmo a salvação eterna, e se vier a
transgredir as referidas normas, estará fadado à condenação perpétua.

7
Op. cit., p. 31.
8
MIGNE, PL., CVI, p. 307-388.
9
MIGNE, PL, CVI, p. 121 -1 80.

135
Jonas, nesse tratado, além de apresentar seus pontos de vista originais sobre
outros assuntos relacionados com o tema principal, nos oferece ainda preciosas
informações históricas acerca do longínquo século IX.
O imperador Luís I também serviu-se do bispo aurelianense como diplomata,
incumbindo-o de resolver inúmeros desentendimentos entre nobres e eclesiásticos.
Um deles particularmente merece nossa atenção. Os monges de Fleury-sur-Loire
haviam recebido em doação de Pepino ―O Breve‖ (742-768) os direitos sobre a
―villa‖ de Surchamps. Todavia, alguns nobres da vizinhança passaram a cobrar
impostos dos religiosos sobre a mesma, agindo ilegalmente.
Jonas com muita habilidade os convenceu a respeitar a força do direito e o
problema foi resolvido a contento. Tal episódio demonstra claramente a atitude
da nobreza franca em querer aumentar seus domínios ou tentar resolver o
problema dos secundogênitos, ou ainda ampliar suas rendas, à custa do que
pertencia à Igreja.
Um outro fato digno de nota ressalta os dotes diplomáticos do piedoso bispo.
Os monges da abadia de Saint Denys não conseguiam se entender quanto à melhor
pessoa para exercer o encargo de abade. Em 829, por ocasião de duas assembléias,
não chegaram a nenhum acordo, mas posteriormente, em 832, Jonas conseguiu
apaziguar os religiosos e encaminhar satisfatoriamente a solução do agitado
problema, possibilitando assim a continuidade do programa de reformas
concernentes à vida monástica.
Em 829, Luís I promoveu vários sínodos com esse mesmo objetivo, os quais
se realizaram em Lyon, Mogúncia, Toulouse e Paris, este último ocorreu em junho
daquele ano. Nesse sínodo entre outros assuntos discutiu-se também sobre a
origem e o fundamento do poder régio e novamente Jonas foi incumbido de redigir
as atas da assembléia. Tais documentos foram aprovados na dieta imperial ocorrida
em Worms, no mês de agosto seguinte. No decorrer da mesma o imperador
resolveu oficializar a idéia que acalentava há algum tempo, isto é, repartir
novamente seus domínios, anteriormente distribuídos entre os filhos mais velhos,
de modo que o caçula, Carlos, viesse igualmente a possuir um reino. Tal território
abrangeria a Alsácia, a Récia, parte da Alemanha e parte da Borgonha.
A Dieta de Worms, não sem alguma resistência, aprovou a idéia do imperador.
Os ideólogos da unidade imperial, especialmente Wala e o bispo Agobardo de
Laon, achavam-na um absurdo. Assim, pouco depois, Lotário e seus dois irmãos se
rebelaram contra Luís I, declarando-lhe guerra.10

10
GIORDANI, M. C. Op. Cit., P. 129: ―Para compreendermos o caos e a rebeldia resultantes da
partilha de 829 convém esclarecer que a mesma não implicava somente em modificação territorial
das partes já atribuídas aos três filhos mais velhos. Na realidade essa modificação acarretava o
rompimento de uma longa cadeia de juramentos de fidelidade que se havia estabelecido em torno de

136
O imperador foi derrotado pelos três filhos mais velhos e aprisionado, mas um
bom número de nobres germânicos que lhe era fiel conseguiu primeiramente
resgatá-lo e depois reconciliar os adversários. Ludovico I, em seguida, castigou
alguns dos vassalos rebeldes, a fim de que o mau exemplo não propalasse.
A fidelidade e a devoção de Jonas para com o imperador, face a tão graves
acontecimentos, levaram-no a tomar da pena e escrever a Epístola ao Rei Pepino e
o De Institutione Regia, oferecidas ao mencionado rei, com vista a sedimentar a
reconciliação entre pai e filho e a evitar um novo conflito entre os membros da
família imperial, divergência essa que geraria inúmeros prejuízos à população do
império, à Igreja e ―pour l‘exhorter à accomplir son devoir de prince chrétien. Ce
devoir, il l‘a déjà formulé lui même — selon toutes probabilités — dans le livre II
des Actes du concile de Paris, et il lui suffira de transformer en traité cette oeuvre
de circonstance (...)‖.11
Como o problema político não havia sido resolvido, nova rebelião de Lotário,
Luís e Pepino ocorreu em 833. O choque decisivo entre Ludovico I e seus filhos
revoltosos deu-se entre Basiléia e Estrasburgo. O imperador foi traído por seus
vassalos, os quais se bandearam para o lado dos príncipes rebeldes. O soberano,
percebendo que uma vitória havia-se tornado impossível, preferiu a 30 de junho
daquele ano se entregar a Lotário como prisioneiro.
O papa Gregório IV havia acompanhado o co-imperador à Gália em abril.
Alguns bispos, fiéis a Luís I, entre os quais podemos presumir com alguma
probabilidade de certeza se encontrava Jonas, escreveram uma carta ao sumo
pontífice, censurando-o por querer interferir pessoalmente num problema de
natureza política que não era de sua competência e fazendo-o lembrar-se de que
agiam dessa forma por serem vassalos do imperador.
O fato é que o santo padre, ao tomar a decisão de ir à Gália e envolver-se
naquela contenda familiar com graves conseqüências para o império, tinha a
intenção de salvaguardar a paz e a unidade indiscutivelmente proveitosas à Igreja,
ao papado e a todos em geral, apoiando-se no que havia sido estabelecido na
―Ordinatio‖ de 817, e quiçá demonstrar igualmente que o império era uma criação
de fato e de direito da Sé Apostólica.
Um outro aspecto, ao menos ligado indiretamente ao tema que nos
propusemos abordar, é a controvérsia referente ao princípio de autoridade que, no
interior da ordem clerical, não devia sob hipótese alguma ser quebrada, isto é, o
sumo pontífice, chefe dos clérigos e na condição de sucessor legítimo de S. Pedro,
detém e exerce os poderes que o Príncipe dos Apóstolos recebeu de Cristo, quer

cada um dos três herdeiros. Essa transferência de suserania provocava descontentamentos e irritava
uma multidão de interessados (...)‖.
11
REVIRON, J. Op. cit., p. 56.

137
dizer, possui a plenitude do poder, enquanto os demais prelados tem somente uma
parcela do mesmo, exercendo seus poderes sacramental e jurisdicional apenas em
suas respectivas dioceses.
Respondendo àqueles bispos, Gregório IV é incisivo nesse aspecto: ―(...) Vós,
escrevendo ao romano pontífice (...) o chamais de irmão e de papa, enquanto teria
sido muito mais conveniente manifestar-lhe exclusivamente a reverência devida a
um pai (...). Não podíeis ter-vos esquecido de que a direção das almas que compete
ao sumo pontífice é mais importante do que o governo imperial, que é algo
temporal (...). Acrescentais — o que é digno de vergonha — ter receio de que
viemos, sem motivo algum, lançar uma excomunhão presunçosa, ultrajante e
aviltante à autoridade imperial (...). Pergunto-vos (...): o que é mais humilhante
para o poder imperial, realizar obras dignas de uma excomunhão ou sofrer a
própria sentença? (...) Com referência específica a este caso, vos indago: como
pode ficar intacta a honra da Sé Apostólica, quando vedes em nossa atitude apenas
motivos de repreensão e de censura. Com efeito, não há maior ofensa injusta ao
representante do bem-aventurado Pedro, quando a sua própria Sé é aviltada (...). É
verdade que acrescentais que devemos nos lembrar do juramento de fidelidade que
prestamos ao imperador. Se o fizemos, queremos de fato evitar sermos perjuros, ao
denunciar tudo que vem fazendo contra a unidade e a paz da Igreja e do reino (...)‖.
―Alegais ainda que a primeira divisão do reino deve agora ser mudada
segundo a conveniência da situação. Ora, isso é duplamente falso. Em primeiro
lugar porque não é oportuno, antes pelo contrário, inconveniente, pois tal
mudança é a causa e a origem de perturbações, de dissensões, de agitações, de
pilhagens e de todos os outros males, o que seria muito enfadonho citá-los
detalhadamente, sem contar as inumeráveis quebras de juramento de fidelidade e
as lutas praticadas contra a paz.
―Em segundo lugar, porque não sabeis ainda se a ‗Ordinatio Imperii‘ será
alterada ou mantida inviolável pelo verdadeiro rei e senhor, pois a mudança que
declarais realizada conforme a oportunidade dos acontecimentos se revela
manifestamente contrária à vontade de Deus, visto a mesma ser a causa de
muitos pecados (...)‖.
―Tivestes a ousadia de acrescentar em vossa carta que, se não ficarmos de
acordo convosco, vossas igrejas não estarão unidas a nós, ao contrário, far-nos-ão
tamanha oposição que não teremos condições de cumprir com nosso encargo de
Pastor em vossas dioceses e não poderemos excomungar ninguém (...). Como
podeis opor-vos a nós bem como vossas igrejas, quando cumprimos uma missão
de paz e de unidade, que são dons de Cristo, e ainda exercemos o ministério do
próprio Cristo! Ignorais que os anjos cantaram que a paz havia sido prometida na
terra aos homens de boa vontade? (...) Não podeis separar aquela pessoa, que é
verdadeiramente um membro de Cristo, do corpo e da cabeça que é o próprio

138
Senhor (...). Dizemo-vos tudo isto para vos fazer cientes de que não podeis separar
a Igreja das Gálias e da Germânia da Unidade (...)‖.
―Quanto às ameaças que dirigistes aos vossos irmãos no episcopado, que nos
seguem, dizendo-lhes que vossa posição é irrevogável, manifesta igualmente vossa
espantosa presunção... Por acaso as decisões tomadas por homens devotados não
devem ser retratadas em face daquelas outras pessoas que perseveram no caminho
reto? Ou melhor, as ações julgadas más nesta vida por acaso não virão a ser
reexaminadas no momento do julgamento de Deus? (...)‖.12
Em seguida à prisão de Ludovico I e de seu filho caçula, Carlos, os três irmãos
mais velhos, seus vassalos Wala e os bispos Ebbon de Reims e Agobardo de Laon,
decidiram que o imperador devia abdicar em favor de Lotário, o Primogênito.
Os bispos decidiram também que o monarca devia fazer uma penitência
pública em face de seus crimes-pecados, em conseqüência dos quais, segundo os
especialistas em Direito Eclesiástico daquela época, se tornava incapaz de estar à
frente do império, legitimando-se dessa forma a transferência do poder, aos olhos
da sociedade. Ficou decidido igualmente que tais procedimentos viriam a ocorrer
numa Assembléia a realizar-se no mês de outubro, na cidade de Compiègne.
A assembléia do alto clero e dos grandes vassalos fiéis a Lotário se reuniu no
lugar e na ocasião acertados. As atas da mesma se perderam. Restou o processo
concernente à penitência pública imposta a Ludovico I. Face à crise política,
foram aqueles prelados, liderados por Wala, Ebbon e Agobardo, que atuaram
como juízes do governante.
Apresentaram eles como justificativa para tal procedimento em primeiro lugar
o fato de, na condição de sucessores dos Apóstolos, serem vigários de Cristo e
detentores do ―Poder das Chaves‖; em segundo lugar, estavam a exercer um dever
e um direito inerente ao seu encargo pastoral, pois o imperador, na condição de
membro da Igreja, se afastara do caminho reto, sendo passível de tal sanção
eclesiástica; em terceiro lugar, o múnus episcopal lhes impunha vigiar e cuidar de
que nenhum membro do seu rebanho viesse a se perder eternamente; e por último,
o interesse e o bem-estar de todas as pessoas que viviam no Império e a Igreja
estavam ameaçados se a unidade e a paz fossem rompidas. Finalmente, referidos
bispos frisavam que o registro daquela medida, seu fundamento e as causas que a
motivaram, deviam ser anotados e conservados para o futuro, com vista a dirimir
todos os equívocos possíveis.
As acusações contra o imperador se resumiam nas seguintes: 1 —
incompetência para governar o império que lhe foi confiado por Deus; 2— culpado
de homicídio por ter deixado que Bernardo, seu sobrinho e rei da Itália, fosse
assassinado em 818; 3— ―Perturbator Pacis‖, ao contribuir para que as pessoas,

12
In: MGH. Epistolae, v. 5, p. 228-230.

139
seus súditos, cometessem perjúrios, transgredindo a ―Ordinatio Imperii‖; 4 —
desprezo a religião cristã, pelo fato de não ter observado as tréguas pascais, ao
realizar uma expedição militar desnecessária em 830, contra os inimigos
fronteiriços; 5 — ter cometido injustiças contra alguns de seus vassalos, ao violar
as leis divina e humana, se apossando de seus bens, apesar de os mesmos estarem a
avisá-lo de que seus inimigos lhe preparavam armadilhas; 6 — ter empreendido
inúmeras expedições militares sem motivo, causando assim homicídios, perjúrios,
sacrilégios, adultérios, roubo e opressão aos pobres; 7—ter falhado na missão de
guia do povo cristão quanto ao mesmo poder vir a alcançar a salvação eterna. 13
No fundo, o julgamento do imperador era uma questão política, mas naquele
distante momento histórico em que interesses, ideais e perspectivas religiosas e
temporais se confundiam, que os âmbitos de atuação das autoridades espiritual e
secular se compenetravam, os prelados haviam tornado aquela decisão, movidos
pelo zelo da justiça cristã, impondo-a na esfera secular.14
Ludovico I abdicou solenemente na igreja de S. Medardo de Soissons e em
seguida, na condição de penitente público, se retirou para um mosteiro. ―Tantos
ultrajes y afrontas disponen al pueblo en su favor. Contra los vehementes
opúsculos de Agobardo escribe Rabano Mauro De Reverentia filiorum erga
patrem et subditorum erga reges‖.15
Os bispos fiéis a Luís ―O Piedoso‖ conservaram do regime carolíngio a
fidelidade ao princípio de suserania e vassalagem e à ordem hierárquica
estabelecida. Mais do que isso, tinham eles em suas mentes, de modo claro, que a
política é uma ciência e uma arte com vista a promover o bem comum e
individual, segundo a conjuntura possível. Realistas como eram, sabiam muito
bem das peculiaridades etno-culturais das populações que habitavam os
territórios que constituíam o império, e como o mesmo havia sido estruturado por
Carlos Magno, com o passar do tempo e de acordo com as circunstâncias
históricas, tornava-se impossível manter uma unidade rigidamente
centralizadora, que aliás não dispunha de meios, tais como um exército e um
aparelhamento jurídico para superar a estrutura feudal.
O monismo proposto e alegado pelos ideólogos da almejada unidade
imperial, por Lotário e seus partidários e por Gregório IV, era contraditório em si
mesmo, porque na prática um problema bem sério, com desdobramentos

13
Cf. ARQUILLIÈRE, H. X. Op. cit., p. 172-174.
14
Idem, ibidem, p. 179: dès lors que Louis le Pieux s‘en acquittait mal, qu‘il laissait péricliter l‘unité
politico-religieuse réalisée par l‘Empire, dès lors que le bien public se confondait avec les vertues
chrétiennes, la logique reprenait ses droits, et les juges officiels du péché devaient — timidement
d‘abord — affirmer la prépondérance du Sacerdoce sur le prince prévaricateur, dans l‘Empire
christianisé (...)‖.
15
LLORCA et al. Historia dela Iglesia Catolica. Madri: BAC, 1963, p. 95.

140
ulteriores, surgia sem uma perspectiva de solução: quem devia possuir e exercer
a preeminência política nessa sociedade ou nesse império: o sumo pontífice ou o
imperador? Ainda era possível tentar aplicar a solução apresentada pelo papa
Gelásio alguns séculos antes?
Jonas conhecia muito bem a fonte de inspiração às teses de Gregório IV, mas
preferiu ficar ao lado de Luís I e contra o papa, em primeiro lugar porque julgava
que o romano pontífice estava a extrapolar o âmbito de sua atuação específica,
violando também os antigos cânones eclesiásticos. Em segundo lugar, ainda que
pesassem contra o imperador suas limitações pessoais, ele era justo, humilde e
havia-se empenhado em restabelecer a disciplina monacal, em proteger a Igreja
contra as espoliações e as arbitrariedades da nobreza, em assegurar a realização
com autonomia das eleições episcopais e abaciais, em praticar a justiça, fonte de
toda a paz verdadeira. Ademais, nosso prelado era muito justo e fiel para
abandonar seu amigo num momento difícil, visto ser muito mais pastor de almas
do que filósofo-político.
Em 834, Luís ―Germânico‖ e Pepino da Aquitânia, temerosos pela falta de
apoio unânime do episcopado e de boa parte da população do império, se
rebelaram contra Lotário e marcharam contra o mesmo. O novel imperador,
sem condições militares de vencê-los, preferiu fugir para a Itália.
Ludovico I foi então novamente coroado imperador na catedral de Metz em
março de 835 e pouco depois, apesar de uma aparente reconciliação com os bispos
que lhe haviam infligido a sanção eclesiástica, ―au concile de Thionville (Jonas) fut
chargé de dicter la sentence de déposition d‘Ebhon, archevêque de Reims,
coupable d‘avoir trempé dans la revolte de Lothaire (...)‖.16
Em 837, Ludovico I, repartindo novamente o Império, concedeu ao seu caçula,
Carlos, uma vasta região que compreendia as antigas Austrásia e Nêustria da época
merovíngia. Nesse mesmo ano, Jonas escreveu um outro opúsculo intitulado De
Rebus Ecclesiasticis non Invadendis,17 cujo teor se aproxima bastante do conteúdo
registrado nas atas do sínodo celebrado em Aix-la-Chapelle, redigidas pelo próprio
bispo aurelianense. Nessa oportunidade, os prelados gauleses, retomando as
decisões do sínodo de Paris, protestaram enfaticamente contra a nobreza,
especialmente a da Aquitânia, que tentava se apossar das terras e dos bens
eclesiásticos para resolver seus problemas, recorrendo inclusive à violência.
Não sabemos se tais documentos influenciaram Pepino a resolver efetivamente
esse problema, pois o rei veio a falecer em dezembro de 838 e a Aquitânia em 839
foi confiada a Carlos, por ordem de Luís ―O Piedoso‖, que desrespeitou os próprios

16
REVIRON, J. Op. cit, p. 33.
17
Tal obra também foi dedicada ao rei Pepino da Aquitânia.

141
direitos dos netos àquela herança territorial. Na mesma ocasião, Lotário foi
novamente reconhecido como futuro imperador.
A 20 de junho de 840 Ludovico I morreu. Desta vez, Carlos e Luís II, como
também iria passar à História, não aceitando a preeminência do irmão mais velho
sobre eles, declararam-lhe guerra. A batalha decisiva entre os rivais deu-se nas
proximidades de Auxerre, a 25 de junho de 841. Os irmãos mais novos,
vitoriosos, celebraram um pacto de aliança mútua contra Lotário. Essa aliança
ficou conhecida como ―Juramento de Estrasburgo‖, tendo sido assinada em 14 de
fevereiro de 842 e redigida em duas vias, uma delas em ―francês‖ arcaico e a
outra em ―alemão‖ arcaico, misturados com palavras latinas, de modo que os
respectivos vassalos e súditos dos dois reis pudessem saber claramente o que
havia sido estabelecido entre ambos.
Finalmente, em agosto de 843, Lotário, Luís e Carlos assinaram o tratado de
Verdun (sur Meuse), repartindo entre eles, de comum acordo, o império carolíngio.
Lotário conservou o título imperial e ficou com um território que se estendia da
Frísia à Campânia, na Itália. A região a leste do mesmo, que abrangia parte da atual
Alemanha e porções de alguns países vizinhos, coube a Luís ―O Germânico‖. A
região a oeste da parte da que coube a Lotário, abrangendo a Marca da Espanha e a
França, menos a Provença e Borgonha atuais, coube a Carlos.
Não se sabe ao certo quando Jonas de Orleans faleceu. Os estudiosos divergem
entre si propondo várias datas. Sua morte ―est certainement antérieure au concile
de Germigny (septembre ou octubre 843) où, comme signataire des résolutions,
figure Agius, évêque d‘Orleans élu en 843 d‘après les Actes de Verneuil...‖.18

2- UMA NOVA COSMOVISÃO POLÍTICO-SOCIAL E O “DE


INSTITUTIONE REGIA”
Como tivemos ocasião de ver na parte imediatamente anterior deste trabalho, a
primeira metade do século IX foi um período histórico em que houve muitas
soluções políticas contraditórias para os problemas emergentes no interior da
Cristandade latina.
Essas contradições decorreram em parte devido às novas transformações pelas
quais a sociedade passava, mas também ao modo como os homens daquela época
refletiam sobre a mesma, a partir de uma bagagem cultural de idéias e valores,
cujos princípios haviam sido estabelecidos há muitos séculos e aos poucos estavam
a ganhar nova interpretação.

18
REVIRON, J. Op. Cit., p. 34.

142
Examinaremos agora rapidamente algumas dessas transformações no plano
sócio-político no domínio do pensamento, a fim de tornar mais fácil a compreensão
do De Institutione Regia.19
Uma longínqua e importante mudança consistiu no seguinte: os reis
merovíngios, e depois os carolíngios, eram cristãos e procuraram bem ou mal agir
como tal, e assim igualmente a alta nobreza. Todavia, quando os interesses
pessoais ou familiares ou ainda os do reino estavam em jogo, não hesitavam em
transgredir os princípios ditados pelo Cristianismo e desrespeitavam os direitos da
Igreja, por exemplo, sendo omissos no cumprimento dos seus deveres, ou não
apenas lançando mão das terras e bens eclesiásticos, como também interferindo
direta ou subrepticiamente nas eleições episcopais e abaciais. Esses fatos irão se
repetir com enorme freqüência nos séculos X e XI, especialmente nos territórios
pertencentes ao ―reich‖ germânico.
Um outro dado relevante é que, apesar do ―Renascimento Carolíngio‖, os reis
e os nobres continuaram, sob o ponto de vista intelectual, vivendo na ignorância, e
os prelados e os monges, embora súditos dessas personalidades, tendo consciência
de sua superioridade cultural, tanto no que tange ao saber divino quanto profano,
continuaram a desempenhar uma parcela do poder político, direta ou
indiretamnete, não paenas em suas dioceses e domínios abaciais, mas ainda
exercendo a função de assessores ou inspetores (missi dominici) dos monarcas.
Quanto ao pensamento político, os autores daquela época, inspirando-se na
Bíblia, em Agostinho, em Gregório Magno e Isidoro de Sevilha, ao mesmo tempo
em que defendiam a tese de igualdade humana, admitiram igualmente a escravidão
como decorrência da queda de nossos primeiros pais e das injustiças que advieram
posteriormente de tal acontecimento.
Os pensadores daquela época não aludiram em seus escritos à origem natural
do estado, tratada amplamente pelos filósofos e juristas greco-romanos, mas
consideram inprescindível a existência da autoridade publica, pois em seguida ao
pecado original e à desordem causada pelo mesmo, não houve outro meio eficaz,
ao longo da Historia da Humanidade, para manter a segurança coletiva e
individual, através das leis e das armas, e proporcionar a todos o bem comum.
Todos os sutores comumente admitiram que o poder político tinha uma origem
divina, de modo que os súditos em geral deviam respeitá-lo, considerando assim a
rebelião como um pecado. No entanto, o exercício desse poder não era ilimitado e
absoluto, porque os homens aos olhos de Deus são iguais e os batizados só tem um
Senhor, que é o próprio Criador do universo. Tal concepção explica o fato de os
escritores da época em exame terem recorrido com tanta freqüência à Historia de

19
Neste trabalho nos servimos da edição de J. REVIRON, publicada em seu estudo.

143
Israel narrada na Escritura, como uma lição e ao mesmo tempo modelo para a
Cristandade, especialmente quanto ao comportamento político-social, estabelecido
pela Antiga Lei, que devia ser imitado não só pelos reis, mas também pelos
súditos, porque Israel prefigurava a Igreja/Cristandade e os israelitas o novo povo
de Deus, de forma que, à semelhança do que havia acontecido outrora, a má
conduta e transgressão à lei de Cristo traria aos fiéis desgraças e infortúnios.
Por causa também desse paradigma os autores da época detiveram-se muito
mais na análise dos deveres do rei para com os seus usditos, do que na reflexão
acerca dos direitos e privilégios inerentes à sua condição de monarca,
enfatizando que ele tinha o dever de observar a Justiça, fazer com que a mesma
fosse respeitada por todos, através do cumprimento das leis seculares e cristãs
por todos. Pouca importância deram ao patrimônio jurídico romano, visto não
estarem mais a viver no tempo dos Padres da Igreja, cidadãos do Império
Romano. Outra era a ocasião histórica, outra a sociedade com novos valores,
hauridos especialmente no Cristianismo.
Como tais autores refletiram sobre essa sociedade mais concretamente? Para
um bom número deles, entre os quais nosso antístite, a única sociedade que
admitiam como tal era a Igreja, à qual leigos e clérigos pertenciam desde o instante
de seu Batismo, pois a Igreja é o Corpo Místico de Cristo, cuja Cabeça é o próprio
Senhor ressuscitado e cujo corpo é constituído pelos fiéis. A doutrina em questão é
de são Paulo,20 mas a compreensão que dela tiveram não era mais restrita, como à
época do Apóstolo, mas total e abrangente.
Os poderes espiritual e secular haviam sido estabelecidos no interior da Igreja
e não no mundo, conforme o papa Gelásio I, ao final do século V, havia escrito ao
imperador Anastácio. O poder secular estava sob o controle do rei e o espiritual sob
a responsabilidade dos bispos, incluindo o papa.
E tendo-se em vista a mentalidade profundamente religiosa do homem do
medioevo, imbuído de uma visão transcendente da realidade, como perante a
missão salvífica desempenhada pelos sacerdotes, missão essa mais relevante do
que a exercida pelo rei e demais autoridades seculares, os presbíteros, se assim
ojulgassem necessário, podiam interferir na atuação meramente secular dos
monarcas, aconselhando-os, censurando-os e questionando sua conduta.
Ademais, insistimos novamente, política e religião caminhavam lado a lado,
sendo que às vezes se interpenetravam, outras vezes se confundiam, visto a Pátria
Celeste consistir na meta final, por excelência, que devia ser alcançada por todas as
pessoas. O fim imediato, isto é, os meios e condições materiais e espirituais para
que o objetivo maior fosse atingido, tinham de ser proporcionados pela realeza e
pelos ministros do altar. Dessa maneira, pensamento político e ação significavam a

20
Cf. 1Cor 2. 14-15 idem 12, 12-13; Rm 8,8-11; Ef2, 15; Gal 6,5.

144
práxis de uma moral a ser vivida através da prática das boas obras que a fé
impunha (e impõe) a todo batizado.
Entretanto, é importante ressaltar que as mudanças na maneira de pensar,
especialmente a que mencionamos no último parágrafo, não principiaram a ocorrer
somente no século IX. Na verdade, remontam inicialmente ao longínquo século IV
e, mais tarde, ao período em que as províncias ocidentais do império romano foram
se transformando nos reinos bárbaros.
Primeiramente, quando o Estado romano passou a interferir nos assuntos
doutrinários e disciplinares da Igreja, porque os mesmos tinham desdobramentos
políticos, sociais e econômicos na vida do Império. E, à guisa de ilustração, basta
mencionar como exemplos as heresias ariana e monofisita; então bispos
começaram a propor uma teoria segundo a qual as duas esferas jurisdicionais de
poder tinham que estar separadas, conforme a natureza específica de sua função. O
contexto político era bem outro daquele ao qual nos referimos nas últimas páginas.
S. Ambrósio identificou as aportações ciceronianas (estóicas) com as bíblicas
acerca da ordem natural com a ordem cristã, no que tangia à origem dos poderes
espiritual e secular, ambos originados em Deus, e à lei moral que norteia o ser
humano peregrino neste mundo.
S. Agostinho deu um passo mais longe, transformando a lei, ou melhor o
conceito de lei estóica no conceito de lei eterna, universal, imutável e fruto da
vontade divina, abarcando tanto a ordem natural quanto a moral. Esta lei está
inscrita como lei natural na alma racional do homem. Entretanto o bispo de Hipona
havia constatado que em muitas circunstâncias a lei positiva, promulgada pelas
autoridades constituídas, não se adequava plenamente à lei eterna, fato esse que o
levou a criticar severamente o Estado romano, considerado por ele como o mais
perfeito dos estados seculares, isto é, não cristianizados.
S. João Crisóstomo foi mais longe ainda, afirmando explicitamente a
superioridade do sacerdócio em relação à realeza: ―... Ao rei foram confiados os
corpos, ao sacerdote as almas... aquele impõe, este exorta... um utiliza as armas
materiais, o outro possui as espirituais. Este principado é maior do que o primeiro.
Daí o rei inclinar sua cabeça perante as mãos do presbítero, e através da leitura de
todo o Antigo Testamento constatamos que os sacerdotes ungiam os reis...‖.21
Mas tanto os acima referidos Padres da Igreja bem como, antes deles, Cristo,
os apóstolos e apologistas, sempre admitiram a legitimidade do poder secular e a
sociedade politicamente organizada no Estado, exortando os fiéis a obedecerem às
autoridades constituídas. Igualmente não se nota nos seus escritos, muito menos no
Novo Testamento, a intenção ou o desejo de impor ao Estado romano a lei cristã

21
MIGNE, PG, LVI; p. 125.

145
no lugar da lei civil e substituir os fins próprios da política pela meta sobrenatural
da religião ensinada por Nosso Senhor Jesus.
Algum tempo mais tarde, com o esfacelamento da região ocidental do império,
paralelamente à cristianização e romanização dos povos germânicos, levada a cabo
pela Igreja, o novo contexto histórico veio possibilitar a transformação da natureza
soteriológica da ―lex christiana‖ em ―lex publica‖.
Ademais, como a lei sempre é formulada a partir de uma concepção própria a
respeito da sociedade que ela mesma pretende ordenar, não se pode olvidar que as
nações germânicas, ao se organizarem em remos autônomos, tinham absorvido
muito mais os valores culturais e morais cristãos do que os romanos: ―EI
pensamiento jurídico está siempre orientado por un pensamiento político, o por lo
menos siempre debe ser entendido dentro de ese marco (...)‖.22
Nesse novo contexto histórico, Isidoro Hispalense foi o grande mentor das
transformações a que estamos aludindo. Afirmava ele que o poder temporal e a
lei ditada pelo mesmo estavam subordinados à religião. O soberano temporal não
é completamente independente na sua esfera de atuação própria, porque, na
condição de batizado, estava subordinado e vinculado aos princípios doutrinários
e morais definidos pela fé, ensinados e interpretados pelo magistério eclesiástico.
A única realidade social que existia era a Igreja, não este ou aquele reino, e da
mesma faziam parte todos os fiéis, pouco importando sua função social ou a
ordem a que pertenciam.
Para Isidoro de Sevilha o principal dever do rei consistia em fazer com que a
lei cristã fosse observada fielmente, e quem a transgredisse tinha de ser punido
com severidade pelo príncipe, pois Deus lhe confiou esse ministério, bem como o
de proteger a Igreja (instituição)/Cristandade e os ministros eclesiásticos a fim de
que estes desempenhassem o melhor possível a sua missão de conduzir todos a
Pátria Eterna. Em suma: ―los fines naturales de la sociedad cuyo cumplimento
debería cuidar y velar el gobernante temporal han desaparecido para quedar
totalmente absorvidos por los flues sobrenaturales. La lex cuyo guardián es el
príncipe, es ahora la lex christiana y el logro de los objectivos de esta última
posterga toda otra meta socio-política que no tenga que ver directamente con las
metas de la sociedad cristiana. (...)‖.23
O De Institutione Regia perfilha essa mundividência, essa nova forma de
pensar. O tratado é precedido de uma epístola dedicatória ao rei Pepino da
Aquitânia. Convém observar que, embora a mesma se apresente eivada de
expressões de humildade da parte do próprio autor, relativas a si próprio, e de

22
BERTELLONI, C. F. ―La memamórfosis de la ‗Lex Data‘ em la Segunda Patristica.‖ In:
Anuário de Filosofia Jurídica y Social, 6 (1 986):82.
23
Idem, ibidem, p. 101.

146
excessivos louvores ao monarca a que se destina, não se trata de urna atitude
bajulatória gratuita; de fato, além de tal procedimento fazer parte das normas de
etiqueta daquela época, é principalmente uma ―captatio benevolentiae‖ de um
soberano que já demonstrou repetidas vezes estar a transgredir a práxis cristã, e,
por isso mesmo, terá que vir a ser advertido com severidade pelo pastor, a quem
compete o dever de contribuir incisivamente para que todos os fiéis de seu
rebanho, inclusive o próprio rei, alcancem a bem-aventurança. A epístola contém,
pois, belíssimos ensinamentos filosófico-morais e religiosos, antecipando aspectos
do conteúdo que será tratado na obra.
O opúsculo tem 17 capítulos e ―sostanzialmente ripropone una parte degli
atti del concilio regionale tenutosi a Parigi l‘anno 829...‖.24 Esta é uma das
fontes próximas do Prelado aurelianense ao redigi-lo. A outra é o De
Institutione Laicali. A propósito do que estamos a comentar, o especialista J.
Reviron cotejou os três textos, tendo em vista mostrar as semelhanças e os elos
de ligação entre os mesmos. 25
A Bíblia é, no entanto, a fonte por excelência onde nosso prelado hauriu seus
conhecimentos e inspiração. Encontramos na obra em exame 55 transcrições do
Antigo Testamento, especialmente do Deuteronômio, dos Provérbios, do II Livro
dos Reis, do Exodo e dos profetas Isaías, Amós, Daniel e Jeremias. Há 37 citações
literais do Novo Testamento, tiradas particularmente dos Evangelhos de Mateus,
Lucas e João, da 1ª Epístola de S. Pedro, das cartas de Paulo aos Romanos, a Tito,
da 1ª a Timóteo e da 1ª de S. João.
Jonas cita os Padres da Igreja 31 vezes, especialmente S. Isidoro de Sevilha
(Etimologias e Sentenças), S. Agostinho e S. Gelásio, papa.
O De Institutione, de acordo com seu conteúdo, pode ser dividido em duas
partes. A primeira compreende os oito capítulos iniciais, cujo conteúdo reveste-se
de mais de uma característica filosófico-moral, onde o autor discorre, entre outros
assuntos, sobre a sociedade cristã, como ela está organizada e é dirigida, quais as
pessoas que no seu interior desempenham a função ou encargo social mais
relevante, o que significa para a mesma o ministério da realeza, qual deve ser a
conduta de um rei cristão, quais são as suas principais obrigações, quais são as
conseqüências de um bom ou de um mau governo para o soberano e para os seus
súditos, qual a origem do poder secular, e enfim como os súditos têm de se
comportar cm relação ao rei.
A segunda parte da obra se estende do capítulo 9º ao 17º e reveste-se
essencialmente de um caráter religioso-moral. Jonas dirige-se não apenas ao rei

24
PAPES, A. ―Dottrine Politiche nell‘Età Carolingia e nel Secolo Décimo‖. In: Salesianum,
40(1978):504.
25
Op. cit., p. 48-50.

147
Pepino, mas aos fiéis em geral, falando da importância da prática da caridade,
da obediência às leis divinas, considerando-as inclusive com o melhor caminho
para solucionar os problemas e conflitos cotidianos e meramente seculares, da
oração comunitária na igreja, do respeito que se deve ter para com Deus,
especialmente em sua casa.
O 17º e último capítulo, em perfeita consonância com a epístola, haurido no
livro V, capítulo 24 da Cidade de Deus de S. Agostinho, nos apresenta a figura, o
modelo perfeito de um soberano cristão que efetivamente pode se considerar feliz.
De conformidade com nosso propósito inicial, nós nos ateremos à análise dos
8 primeiros capítulos na próxima parte deste estudo. Mas, a fim de
compreendermos melhor o opúsculo de Jonas, prestemos atenção à oportuna
observação de H. X. Arquillière, renomado conhecedor do pensamento político
medieval: ―Du commencement à la fim de son traité, Jonas évolue dans une
atmosphère surnaturelle. Morale et politique sont pour lui intimement unies. On
peut même dire qu‘elles ne se distinguent pas. La politique est une application de
la morale chrétienne. Il a composé son De Institutione Regia avant tout pour
assurer le salut du roi. Il ne peut entrevoir cette fin suprême que dans la fidelité la
plus complète aux enseignements de l‘Église(...)‖.26

3 — ASPECTOS DA HIEROCRACIA NO DE INSTITUTIONE REGIA


Alcançar a paz neste mundo e a vida eterna são os objetivos primordiais do
homem medieval, de forma que seus valores se hierarquizaram a partir desta
concepção e perspectiva. A Igreja, o Corpo Místico de Cristo, a sociedade cristã,
cuja cabeça é o próprio Senhor, tem como objetivo precípuo proporcionar-lhe,
enquanto membro da mesma, desde o instante em que foi batizado, os meios para
alcançar a Pátria Celestial.
Deus estabeleceu para o governo da Igreja os poderes sacerdotal e secular. 27
Os prelados, detentores do poder das chaves (―O que ligardes sobre a terra será
ligado nos céus (...)‖ Mi. XVIII, 18) e pregadores da Boa Nova (―Ide, pois, e ensinai
a todos os povos batizando-os (...)―, Mt. XXVIII, 28), ocupam nesta sociedade um
lugar mais importante em relação aos reis, porque no dia do julgamento hão de
prestar contas a Deus também pelos monarcas que estiveram sob os seus cuidados,
na condição de pastores de todos os fiéis, que fizeram parte do rebanho que lhes foi
confiado por Deus.

26
L‘augustinisme politique. Paris: J. Vrin, 1972, p. 151.
27
PAPES, A. art. cit., p. 505: ―I vescovi della Francia settentrionale hanno condotto il mondo a
semplice momento terreno della Chiesa, hanno cosi ridotto l‘intera storia ecclesiastica (...)‖.

148
Mas a preeminência do sacerdócio sobre a realeza repousa principalmente
nas finalidades da missão episcopal, entre outras, no caráter ético da mesma,
quer dizer, na supervisão ou vigilância que deve ser exercida sobre a atuação
política dos reis e de seus auxiliares, de acordo com os princípios estatuídos
pela religião e moral cristã, das quais são ao mesmo tempo os pregadores,
mestres, intérpretes e juízes.
Essa atitude de vigilância e supervisão no que concerne ao comportamento do
rei quanto ao dos fiéis é perene, não ocasional, porque o mistério da salvação só
terminará na ―consumação dos tempos‖, visto os homens necessitarem
freqüentemente de guias ao trilharem o caminho da fé rumo à bem-aventurança, a
fim de que ―nenhuma das ovelhas se perca‖ devido às suas fraquezas.
Os bispos, no entanto, limitar-se-ão a admoestar e a aconselhar os fiéis e no
caso de transgredirem a Lei de Cristo, deverão sofrer as sanções eclesiásticas, isto
é, castigos de natureza espiritual, como os jejuns, as mortificações e outras formas
de penitência, conforme a gravidade das faltas cometidas, isto porque a natureza da
autoridade sacerdotal é essenciahmente espiritual.
É indiscutível que Jonas sabia muito bem que o rei é o chefe do povo, e cada
prelado, incluindo ele mesmo, era um súdito como as demais pessoas, de modo
que nas questões seculares, tinha a obrigação de acatar suas ordens; mas nosso
antístite tinha consciência, melhor do que ninguém, de que, se as medidas
tomadas pelo poder temporal comprometessem a salvação, devia obedecer mais a
Deus do que aos homens, porque os ―jura coelestia‖ sobrepujam infinitamente
as ―mundanae leges‖.
O bispo aurelianense salienta que, apesar de em seu tempo, como também
acontece em todos os momentos históricos, haver sacerdotes indignos e negligentes
quanto à fidelidade ao desempenhar sua missão, merecem toda honra e respeito,
por causa do carisma indelével recebido no dia da ordenação presbiteral e do
encargo recebido inerente ao mesmo. É por esse motivo, lembra ele ao rei Pepino e
aos seus subordinados, que as pessoas que ofendem ou fazem mal aos servos de
Deus estão a injuriar o próprio Cristo. Além disso, a própria autoridade eclesiástica
dispõe de meios para advertir e corrigir os relapsos ministros do altar, não
precisando normalmente que a realeza interfira nesse problema e noutros assuntos
relativos ao âmbito clerical.
Nestes dois primeiros capítulos da obra em apreço vêem-se esboçados
claramente o suporte básico do sacerdotalismo e as suas teses mais relevantes.
O final do segundo capítulo do De Institutione Regia introduz a preocupação
especial do pastor aurelianense: O que é ser rei na Cristandade? — Antes de mais
nada, o soberano é um cristão, um batizado, e como tal está sob a responsabilidade
espiritual dos bispos, tendo a obrigação de ouvir e executar seus conselhos, à
semelhança dos demais fiéis.

149
Em segundo lugar, o rei tem o compromisso de proteger e defender a Igreja e
seus ministros. Portanto, a realeza é um ―ministerium‖ no interior da ―Ecclesia‖ da
mesma forma que o sacerdócio. Aliás, a unção régia, ministrada aos monarcas
francos desde Clóvis (496), indicava que os mesmos exerciam um encargo
especial, em nome de Deus, junto ao povo, encargo esse semi-religioso, sem, no
entanto, transformá-los em membros do clero.
Apesar de Jonas não fazer referência explícita à unção dos reis, é por
estas razões que o soberano deve ser piedoso, justo e misericordioso ao
exercer seu encargo, pois se não possuir tais virtudes será um tirano, isto é,
um mau governante.
É evidente que é a justiça cristã que o rei deve cultivar e praticar
cotidianamente, a qual absorveu a antiga justiça natural, porque a Revelação
esclareceu os dados fornecidos pela luz da razão, da mesma maneira que a Igreja,
àquela época, tinha absorvido no seu interior a sociedade política organizada, sem
tentar, ainda ao menos naquele momento histórico, controlar as funções próprias e
específicas do poder secular.
O rei para governar bem deve observar primordialmente a lei de Cristo contida
no Novo Testamento, e justamente com toda sua família empenhar-se na prática
das virtudes cristãs, dando assim um ótimo exemplo para os súditos. O
Deuteronômio contém igualmente algumas normas de comportamento que o bom
soberano tem de respeitar se quiser viver com retidão. Deve pois, guiar-se pela
palavra de Deus, julgar os subordinados com eqüidade, ser misericordioso para
com todos, esforçando-se ao máximo, com o auxílio da graça celestial, para
assegurar ao povo a concórdia, a paz e os outros recursos, através dos quais possa
vir a atingir seu fim último. A piedade, a justiça e a misericórdia são as três
virtudes morais que um bom soberano cristão deve praticar se quiser ser
reconhecido como tal e se almeja merecer a plenitude da vida.
Pelo contrário, se o rei for devasso, ambicioso, parcial ao proferir seus
julgamentos, soberbo e orgulhoso, hípócrita e incorreto, não cumprindo as
obrigações inerentes a seu ministério, incluindo-se entre seus deveres, o de zelar
pela salvação dos cidadãos do reino, merece a denominação de tirano.
A transcrição de uma longa passagem atribuída a S. Cipriano, bispo de
Cartago e mártir do século III, no corpo do 3º capítulo da obra em tela, mostra
claramente qual deve ser o comportamento ético-político de um soberano cristão,
quanto à observância e à prática da justiça.
Jonas a considera algumas vezes num sentido distributivo, por exemplo, a
defesa das viúvas, dos órfãos, dos forasteiros, a aplicação do castigo a ser imposto
aos adúlteros, aos assaltantes, aos parricidas, aos ímpios, aos perjuros. Outras vezes
toma a justiça como a eqüidade judiciária, por exemplo, o monarca deve sempre

150
julgar sem fazer acepções, não oprimindo quem quer que seja, coibindo os abusos
do poder e as arbitrariedades eventualmente cometidas por seus filhos ou parentes.
A observância de tal programa indiscutivelmente conduzirá o trono, o reino e a
população à paz, à concórdia e à prosperidade. Aliás, a paz é fruto da justiça e esta
equivale à lei divina, e quando a mesma não é respeitada, Deus, que é a própria
justiça, castiga o soberano e a coletividade infligindo-lhe várias espécies de
punições: os inimigos avançam sobre as fronteiras, as adversidades climáticas
prejudicam a lavoura, a pecuária e o comércio, e se o Senhor permite que tudo isso
aconteça é porque ele também é o criador e o ordenador de tudo o que existe.
O antístite aurelianense concebe e atribui à justiça cristã um sentido mais
globalizante ainda, considerando como obrigação do rei, não apenas a defesa da
pátria, como proporcionar alimento para o povo, cuidar dos desvalidos, assegurar o
direito à herança aos que fazem jus à mesma, manter o equilíbrio da natureza,
enfim propiciar a paz e o bem-estar para todos.
No entanto, se o rei não praticar a justiça, além de pessoalmente não vir a ser
recompensado por Deus com a eternidade feliz, deverá arcar também com o ônus
das falhas e omissões cometidas por seus súditos, face à sua irresponsabilidade.
Seus filhos e descendentes correrão o risco de não vir a herdar o trono, talvez pelo
fato de a dinastia vir a ser destituída do poder.
A insinuação referida acima, nos parece uma admoestação sutil ao rei Pepino,
em vista não somente de sua negligência com relação às arbitrariedades
perpetradas pela nobreza contra a Igreja da Aquitânia, como também e
principalmente ao seu desrespeito para com o próprio pai, Luís ―O Piedoso‖.
―Jonas voit son devoir — qui est de faire avancer le règne de la justice, par la
sanctification des consciences, royales ou autres (...), Il se pose en conseiller
responsable plutôt qu‘en homme d‘Êtat (...)‖.28
A seguir, o bispo de Orleans, inspirando-se em Isidoro de Sevilha, recomenda
que o rei seja humilde e simples, porque o Mestre impôs a todos os seus discípulos
que também praticassem as virtudes da humildade e da simplicidade e ainda
porque, como se sabe muito bem, o fastígio, os privilégios, as benesses
proporcionadas àqueles que exercem o poder os levam quase sempre a agir
arrogante e orgulhosamente, esquecendo-se de que um dia, como as demais
pessoas, pouco importando sua condição sócio-econômica, se transformarão em
comida para os vermes.
Por último, nosso prelado afirma que o rei cristão, semelhantemente a alguns
dentre os antigos reis de Israel, há de ser santo, isto é, seja capaz tanto de se
autogovernar quanto coibir os impulsos e inclinações sensuais de seu povo, visto
que o desregramento moral do soberano, além de ser um péssimo exemplo para os

28
REVIRON, J. Op. Cit., p. 87.

151
súditos, pode induzi-los igualmente a se comportar de maneira muito pior do que o
próprio monarca. Mas esse comportamento da população atrairá sobre si mesma o
castigo divino, de ter que suportar os maus governantes.
Portanto, o rei é juiz e deve ser justiceiro e assim tem que proceder sempre.
Notamos, de acordo com esta concepção, o amálgama de duas correntes de
pensamento, de um lado a idealizada pela Filosofia Política greco-romana e de
outro a produzida pela Teologia Política hebraica, aperfeiçoada com os valores do
Cristianismo, modelo esse que acaba prevalecendo. Por isso Jonas pensa que o rei
―doit être un juste, et un roi juste, au sens où ces expressions sont données dans
l‘Ancient Testament, en y ajoutant toute la perfection qu‘apporte l‘Evangile, et
comportant jusqu‘à la protection des églises, la vie selon Dieu, et même la
regularité dans la prière (...)‖.29
A missão específica do rei consiste em governar com justiça e eqüidade a
parcela do povo de Deus que lhe foi confiada pelo próprio Criador, esforçando-se
com todo empenho para que o mesmo viva em paz e concórdia. Ele a concretiza
efetivamente protegendo, em primeiro lugar, as igrejas locais organizadas em seu
território bem como os seus ministros, de modo que possam desempenhar a
contento o ministério sacerdotal, e depois zelando também pela segurança e bem-
estar das viúvas, dos órfãos e de todos os indigentes.
Seus súditos devem respeitá-lo e temê-lo de tal forma que não atentem contra a
justiça, mas se isto vier a acontecer, o criminoso terá de ser corretamente punido, a
fim de que ninguém pense que, se por ventura transgredir as leis, ficará impune.
O governante, não se esquecendo de que recebeu aquela missão de Deus, tem
de cumpri-la fielmente e lembrar-se a cada instante de que no dia do Juízo há de
prestar contas a Deus de todos os seus atos. Por essa razão ainda é necessário e
oportuno que o rei seja muito criterioso ao escolher entre as pessoas de bem seus
colaboradores, pois quando estes são maus, negligentes e relapsos no cumprimento
de suas tarefas, os desvalidos e os pobres são os mais prejudicados face à penúria
singular em que vivem. Daí o monarca ter igualmente a obrigação de fiscalizar a
atuação de seus funcionários.
Jonas fundamenta e comprova suas teses citando passagens dos Provérbios e
do Livro da Sabedoria, não sem falar também a respeito do que acontecerá com os
maus soberanos, após esta caminhada terrena.
O quarto capítulo da obra em exame termina com uma citação textual de
Isidoro de Sevilha, na qual transparece uma vez mais, de forma bem evidente, a
absorção do objetivo imanente do poder régio no fim transcendente em que a Igreja
foi investida. Em resumo ―le pouvoir séculier n‘est qu‘un prolongement nécessaire

29
Idem, ibidem, p. 85.

152
de l‘autorité ecclésiastique. C‘est le bras séculier. Le sacerdoce a pour mission
faire prévaloir dans le monde la justice surnaturelle, condition du salut (...)‖.30
Os capítulos 5º e 6º do De Institutione Regia continuam a tratar a respeito dos
funcionários reais, pois o monarca sozinho não poderá desempenhar bem todas as
tarefas inerentes à sua missão e encargo específico.
O bispo aurelianense propõe e insiste que o rei, ao escolher os duques e os
condes, que tinham de fazer principalmente justiça em seu nome nas regiões que
lhes fossem confiadas, deveria ser muito criterioso, por vários motivos: a fim de
que os cargos a serem desempenhados pelos mesmos redundassem no proveito
geral de todos e da nação; em segundo lugar, para que os bons pudessem viver em
paz e os maus recebessem as necessárias punições; por último, de maneira que o
próprio soberano, o responsável único e exclusivo pela escolha dos colaboradores
mais diretos, não tivesse de vir a prestar contas a Deus pelas omissões, injustiças e
desmandos por eles cometidos, na ocasião do julgamento derradeiro. É evidente
que o Senhor os castigará por causa das faltas individuais que vierem a cometer,
mas o rei será punido com muito mais severidade porque tem uma obrigação
pessoal bem maior, particularmente em relação às pessoas econômica e
socialmente menos favorecidas.
Jonas enumera, a seguir, as qualidades que o rei tem de considerar ao
escolher os condes e duques, de forma que possam vir a desempenhar
satisfatoriamente os encargos que lhes forem confiados. Exclui ele de imediato
que tal designação se fundamente nos laços de parentesco, de amizade e na troca
de favores, sugerindo que as pessoas sejam prevalentemente cristãs verdadeiras,
nos atos e nas palavras, dignas a toda prova, incorruptíveis, magnânimas,
imparciais e equânimes, de modo especial quando estiverem a julgar o seu
próximo, não se esquecendo jamais de que são a ele idênticas em natureza e de
que irão desempenhar esta ou aquela função em benefício de todos e não para
explorar e dominar os outros em proveito próprio.
Se o rei e seus auxiliares forem injustos, falsos, impiedosos, avarentos,
soberbos e corruptos, mais cedo ou mais tarde, atrairão os castigos divinos. As
Sagradas Páginas ensinam e alertam os governantes que o Senhor pode tardar ao
agir, dando mais uma oportunidade ao pecador de se converter, mas nunca deixará
de fazê-lo. Portanto, se quiserem de fato que a monarquia seja estável, que a nação
e o povo vivam em paz, felizes e prosperem, têm de desempenhar-se na prática do
bem, manifesta no amor a Deus e aos pobres, as viúvas e aos órfãos, de acordo
com o que preconiza a lei cristã.
A preocupação fundamental do bispo aurelianense no 7º capítulo da obra em
tela, consiste em salientar enfaticamente que os poderes secular e espiritual, no

30
ARQUILLIÈRE, H. X. Op. cit., p. 150.

153
interior da Cristandade, se originam e provêm de Deus, Senhor e Ordenador do
universo. Trata-se, pois, de uma graça celestial, a qual o Pai concede, movido por
amor e bondade, a quem deseja. Esta é, por sinal, uma doutrina paulina, 31 e Jonas
arrola como provas a alicerçar sua tese inúmeras passagens da Escritura Sagrada,
descartando assim a concepção greco-romana democrático-ascendente, acerca da
origem imediata da autoridade política.
Os progenitores até podiam ser o meio natural utilizado por Deus para que o
poder régio fosse transmitido a alguém. Entretanto, o bispo de Orleans sabia muito
bem que, de acordo com o pensamento comumente aceito em sua época, uma
pessoa se tornava efetivamente apta a reinar após ter sido ungida com o óleo do
Crisma, sinal visível de que a mesma havia-se tornado recipiendária de uma graça
divina específica para desempenhar aquele ministério singular.
A unção transformava o rei numa espécie de ―Vicarius Dei‖ não só colocando-
o numa ―estrecha relación con la misma divindad y inversamente (o) desligaba
cada vez más del pueblo (...)‖,32como lhe assegurava a obediência relativamente
irrestrita de todos os súditos, clérigos e leigos, e lhe facultava naquela condição
interferir, se lhe parecesse necessário, nas questões e assuntos pertinentes ao
âmbito espiritual.
Assim, visto o poder régio ser uma graça divina, o monarca tinha de
corresponder à mesma, governando os súditos com Deus e em seu nome, de modo
justo, piedoso, reto e misericordioso, de forma a no outro mundo reinar para
sempre com o Rei dos reis.
Ora, se nosso prelado tivesse feito qualquer referência, por mínima que
fosse, à unção régia, estaria minando sua teoria, especialmente não perdendo de
vista que Pepino da Aquitânia vinha agindo de tal maneira que demonstrava não
estar correspondendo à graça divina que recebera. Não é à toa que Jonas repete
insistentemente ao longo do tratado que o soberano tinha como principais
obrigações cuidar da salvação eterna de seus súditos, proteger a Igreja e seus
ministros, aplicar retamente a justiça e velar pelos pobres, viúvas, órfãos e
demais necessitados.
Quanto ao fato de haver maus governantes, o antístite aquitânio, o explica
recorrendo uma vez mais à Bíblia e a Isidoro Hispalense: Deus somente permite
que eles reinem como um castigo para expiar os pecados cometidos pelo povo.
É por causa desses motivos, citados nos parágrafos anteriores, que Jonas, ao
discorrer no 8º capítulo de seu tratado, a respeito dos deveres do povo para com o
soberano, enfatiza não apenas a obrigação da obediência, da submissão, do apoio e

31
1Cor 15, 10: ―Pela graça de Deus sou o que sou‖.
32
ULLMANN, W. Principios de gobierno y política em la Edad Media, Madrid: Ed. Revista de
Occidente, 1971, p. 123.

154
do auxílio, mas ainda o compromisso de rezar pela salvação do governante,
atitudes essas queridas e estabelecidas por Deus na lei cristã (a fim de que isso tudo
venha a reverter em proveito geral da nação) sobretudo se o rei for mau, pois
suportar as provações com amor e confiança na misericórdia celestial é igualmente
uma prova de aceitação da lei evangélica. Essa devia ser a atitude de Pepino em
relação a seu pai, Luís ―O Piedoso‖, e o bispo de Orleans é perfeitamente coerente
ao desenvolver sua teoria, a partir dos princípios que estabeleceu para a mesma.
A prova mais notória dessa coerência entre os princípios teóricos e a ação no
De Institutione Regia está enunciada no capítulo 3º. A lei cristã impõe como
primeiro mandamento o amor a Deus e a prática da caridade fraterna. O Senhor
deu-nos um exemplo de amor infinito enviando à terra seu Filho para nos redimir.
O que falta, especialmente nos círculos mais elevados do poder, é a
caridade, também da parte de alguns membros do clero, pois muitos altos
funcionários do reino, hipócritas, levados pela ganância, inveja, astúcia e
maldade, estavam se digladiando uns aos outros, causando assim enorme
prejuízo à Cristandade e ofendendo a Deus e ao próprio rei. Eles, no entanto,
jamais deviam se esquecer de que, se continuassem a se comportar dessa
forma, ao invés de receber a recompensa duradoura na eternidade, estariam
fadados a sofrer castigos atrozes para sempre.

155
9

HINCMAR, ARCEBISPO DE REIMS, E OS DOIS


PODERES

NACHMAN FALBEL
Universidade de São Paulo

A história literária da Alta Idade Média teve momentos de raro brilho, através
de figuras humanas que marcaram seu tempo pelos debates que provocaram e
deixaram à posteridade um legado de idéias que serviram para alicerçar atitudes e
posturas das instituições que compunham a sociedade daquele período.
Hincmar, arcebispo de Reims (c. 806-882) deve ser incluído na galeria dos
homens que fizeram sua época, ainda que a historiografia, através dos tempos, o
tenha visto como uma personalidade controvertida que escapa a uma compreensão
unilateral mas, ao contrário, se presta a múltiplas interpretações, onde luzes e
sombras se revezam com o mesmo peso e a mesma importância, para definir a sua
atuação. Talvez possamos dizer, que sua atuação eclesiástica suplantou a sua obra
literária que no fundo seria julgada como um complemento, ou melhor definido,
como inteiramente associada às questões que o preocuparam e tivera que enfrentar
durante sua tormentosa vida e carreira eclesial.
Desvendar o pensamento de Hincmar sobre os dois poderes, o espiritual e o
temporal, e suas mútuas relações exige uma leitura ampla de sua obra, pois o nosso
arcebispo não focalizou o tema em um escrito especial, mas aqui e acolá nos
deparamos com expressões, frases longas, bem como capítulos que refletem uma
preocupação em definir e delimitar o papel e o relacionamento entre regnum e
sacerdotium, partindo de uma observação, muitas vezes apriorística, e assentada na
tradição, sobre os objetivos e as funções que cabe a cada um preencher na
sociedade humana e cristã. As inúmeras batalhas que teve de enfrentar e os
confrontos que marcam a sua biografia com as resultantes literárias dos mesmos
abrangem escritos de caráter teológico, litúrgico, homilético, canônico e histórico
que propiciam informações sobre sua ampla atividade e influência, bem como
revelam as múltiplas facetas de seu pensamento quanto à questão central que nos
preocupa em nosso estudo.

156
De origem nobre, ele foi educado em Saint Denis e passaria a fazer parte da
famosa abadia beneditina que o levaria, graças ao seu talento pessoal, a
ascender em 845 ao arcebispado de Reims. Após ter recebido uma educação
primorosa sob a orientação do abade Hilduino, a quem honrará como tendo
sido seu mestre, ele será tirado do mosteiro para a corte de Luís ―O Piedoso‖,
que o serviu com sua amizade ao ponto de o levar a reformar aquele mosteiro e
restabelecer a disciplina monástica.
As circunstâncias da ascensão de Hincmar ao bispado de Reims são ainda
matéria para controvérsias historiográficas e alguns estudiosos acreditam que ele
foi imposto por Carlos ―o Calvo‖, no sínodo de Beauvais, por estar muito próximo
ao imperador, como conselheiro que era e homem da corte real. Mas suas atitudes
provam que ele tinha um espírito independente e não poderia ser considerado
apenas como um mero funcionário da política real. A descrição que temos de sua
eleição mostra que ela foi inteiramente regular: ―um decênio havia passado após a
deposição deste mesmo Ebon, quando os bispos diocesanos da província de Reims
se reuniram no sínodo de Beauvais e obtiveram o consentimento do senhor
glorioso rei Carlos e com o acordo do arcebispo de Sens e do bispo de Paris e o
consentimento de todos os co-bispos... Hincmar, monge do venerável mosteiro de
Saint Denis, que com um decreto canônico do clero e do povo da igreja de Reims,
foi ordenado bispo daquela igreja metropolitana‖.1
Ebbon, antecessor de Hicmar, havia sido deposto dez anos antes e os seus
partidários, que eram clérigos ordenados após a sua deposição, estariam
interessados em difundir rumores sobre a ilegitimidade da ordenação de Hincmar.
Sabemos que Ebbon nunca se conformou com sua deposição e uma luta partidária
entre os dois homens continuou durante muito tempo até o falecimento do
arcebispo deposto, em 851. A questão também foi levada a Roma, como não
poderia deixar de ser e, na época, o imperador Lotário I havia assegurado ao papa
Sérgio II(844-847) a autorizar a convocação de um sínodo em Trier para decidir
quem deveria ser considerado o verdadeiro arcebispo. O sínodo de Trier na
verdade nunca chegou a se reunir naquele local, mas em Paris, no fim de 846 e a
questão foi decidida em favor de Hincmar. Carlos ―o Calvo‖ enviou em seguida as
atas do sínodo a Sérgio II, que havia nesse ínterim falecido, sendo sucedido por
Leão IV e que se inteirou de seu teor. Hincmar ainda no primeiro ano de sua
função episcopal enfrentaria a hostilidade de Lotário I, que no fundo derivava do

1
PL 125.392: Transacto autem decennii tempore post depositionem ipsius Ebonis, convenerunt
episcopi remorum dioceseos ad synodum belvacensium civitatis et obtinuerunt consensum domini
Karoli regis gloriosi, quendam ex diocesi Sennensi et parrochia Parisiaca, apud archispiscopum et
civitatis ipsius episcopum, caeterosque provinciae elusdem coepiscopos (...). Hincmarum venerabilis
monasterii sanclorum Dionysii sociorumque eius monachum, quem cum decreto canonico cleri et
plebis remorum ecclesiae eidem metropoli ordinaverunt episcopum‖.

157
atrito existente entre os descendentes da casa carolíngia, ou melhor, das más
relações entre aquele imperador e seu irmão, Carlos ―o Calvo‖. Um motivo de
atrito entre o arcebispo e o imperador foi a conduta de um vassalo de Lotário I,
Fulkrich, que repudiou injustificadamente sua esposa, desposando ilegalmente uma
outra mulher. Hincmar o excomungou e possivelmente o imperador não acatou de
bom grado a iniciativa do arcebispo de Reims. Mas o difícil relacionamento
mudaria a partir de 847, quando o imperador intervém em seu favor, escrevendo a
Leão IV para recebê-lo da melhor forma possível, pois pretendia ir a Roma, ao
mesmo tempo que solicita o pallium para o arcebispo.2 Essa mudança pode-se
explicar em boa parte devido ao encontro havido entre os dois irmãos, Lotário e
Carlos, naquele mesmo ano de 847, em Meersen, onde ambos os reis
restabeleceram as pazes, renunciando às hostilidades anteriores. O arcebispo de
Reims afirmar-se-á na verdade como um mediador acatado entre os descendentes
da casa carolíngia e nesse papel ele se destacará como mentor do poder espiritual
até o fim de seus dias. Fulkrich, o vassalo indisciplinado de Lotário será perdoado
e fará penitência mas cairá novamente em pecado e será novamente excomungado,
mas este procurará o papa Leão IV em Roma e será um dos fautores que levará a
envenenar o relacionamento entre ambos.
O papa Leão IV não teve um bom relacionamento com Hincmar e mesmo que
houvesse motivos objetivos para tanto — como o caso de Fulkrich — nos parece
que a causa primordial residia na excessiva independência do arcebispo em relação
ao primado de Roma. E isso se revela claramente na reação papal ao chegar aos
seus ouvidos o rumor de que Hincmar, no caso de Fulkrich pretendia, se fosse o
caso, de excomungar a Lotário. Aqui se tratava já de atingir, segundo o papa,
direitos ou prerrogativas que competiam somente a Roma, o que explica a epístola
que Leão IV enviou aos bispos do reino de Carlos ―o Calvo‖, onde ele ataca
acremente a atitude de Hincmar, recriminando o orgulho do ex-monge que havia se
proposto a viver sob a regra de São Bento mas, movido pela ambição, usurpou,
contra os cânones, a sede de Reims‖. 3 Porém, mais importante é outra carta
endereçada a Lotário, que Leão IV escreveu ao imperador, dizendo que o arcebispo
―se apropriou da unção do Senhor, que consagrou publicamente a sé apostólica
com o óleo da bendição, como se fosse um bem pessoal e teve a audácia de lançar
o anátema sobre todo ser humano contra todo o direito divino, bem como
humano‖.4 Trata-se, para Leão IV, de manter um princípio com implicações mais
profundas, que é o direito exclusivo de Roma excomungar e absolver e que não
deve ser usado com leviandade ou abuso, pois se trata da comunhão com a

2
MGH Epistolae Aevi Karolini III, p. 609-611.
3
MGH, E. A. K. III, p. 605.
4
MGH, E. A. K. III, p. 605.

158
cristandade, que visa à salvação das almas. Possivelmente o arcebispo de Reims
via a excomunhão ou o anátema como um meio pedagógico para manter as
ovelhas no bom caminho, seguindo uma tradição presente já há séculos passados
na igreja gaulesa e também na espanhola. Mas há algo mais significativo atrás da
questão da excomunhão e que é a concepção da qual o papa Leão IV é seguidor, de
que no mundo cristão há duas cabeças que a regem, isto é, a do papa e a do
imperador, que devem ter a exclusividade de atender as questões mais importantes
que tangem a cristandade. Quando meses mais tarde, Leão IV se recusa a aceitar as
decisões do concílio de Soissons (853), que depôs os clérigos ordenados por
Ebbon, vemos que a argumentação, para não o fazê-lo, se assenta sobre três tipos
de argumentos: a) o sínodo reunido não é suficientemente amplo ou considerado
geral; b) os legados pontifícios não foram convidados; e c) ―nenhuma carta
imperial não nos foi apresentada que nos chamasse a atenção especialmente sobre
a vossa atuação‖.5 Podemos inferir que as palavras da resposta papal são coerentes
com a doutrina que acentua o papel do imperador, como o único interlocutor entre
os demais reis e príncipes e que se deve reconhecer como intermediário para a
Santa Sé. Em outras palavras, o imperador Lotário, ungido pelo Papa, está acima
dos demais reis e é dele que se deve esperar qualquer sinal de entendimento sobre
questões que concernem à cristandade, assim como a última palavra deve caber a
Roma, ―a fim de que o privilégio da sede apostólica não se desfaça‖.6 No fundo
encontramos aqui uma acusação ao arcebispo de Reims de atentar contra os
direitos da sé apostólica e que faz parte de um processo que vem sendo elaborado
desde Gregório IV, que tem por finalidade restaurar o prestígio de Roma, e do
poder pontifical, o que se pode constatar pelos atos de intervenção na Gália e
outros gestos daquele sumo pontífice, e que atingiria seu clímax durante o
pontificado de Nicolau I. Nesse sentido, no arcebispado de Hincmar notamos ainda
um conflito de concepções entre Leão IV e o clero da França Ocidental, que quer
afirmar que para Roma o império é uno e o único responsável é o que recebeu a
unção pontifical e que a Igreja é una e Roma é o centro de todas as decisões, em
especial aquelas que concernem ao imperador e ao destino comum do império. A
realidade do século IX não facilita e nem sempre permite a concretização dessa
concepção, devido à fragmentação geográfica que em boa parte é provocada pelas
invasões de vários povos vizinhos que exigem a reação militar dos príncipes locais,
bem como o estabelecimento de alianças políticas que criam ―estados‖
independentes, com poder local assessorado por clérigos que participam no jogo do
poder. Mesmo Roma se encontra nessa situação, mas a doutrina dos direitos e da
competência jurídica de Roma, ou a afirmação de seu primado, vem de longe, pelo

5
Sobre o concílio da Soissons e a resposta de Leão IV, veja-se MANSI, XIV, col. 886-887.
6
MGH. E. A. K. III, p. 590.

159
menos desde Gelásio I, no século V. Este havia introduzido os princípios do direito
romano na instituição eclesiástica, tomando-o como base de seu legalismo através
de uma elaboração doutrinária, que se faz com o decorrer do tempo, com o auxílio
de resoluções conciliares que estabelecem os textos que servirão de modelos
usados para todo e qualquer caso e quando for necessário. Em sua essência tal
postura jurídica é conservadora, pois se apóia sobre tradições estabelecidas e
consagradas nas resoluções conciliares, que servem de fundamento à lei canônica.
O papel de Roma nesse sentido é o de zelar pela lei, ao par do direito papal de
intervir universalmente para manter a uniformidade da doutrina e impedir a difusão
ou a aceitação dos erros que bispos ou clérigos venham a cometer nos locais onde
atuam. A compilação de decretos do tipo, assim chamado, Decretum Gelasianum
ou de um corpus de leis canônicas como a Dionysio-Hadriana, e que são aceitos
como possuidores de autoridade jurídica por todos, permitem a intervenção romana
para assentar questões ou problemas que normalmente eclodem na sociedade
cristã, seja no ordo laicalis ou no ordo sacerdotalis.
A proteção da ortodoxia exige, portanto, um corpusjurídico tirado do
Direito Romano, dos concílios e da compilação de Decretais que justificam e
fornecem os argumentos para a intervenção papal, para as sentenças e sanções
que serão promulgadas.
Mas no século IX, além do juridismo gelasiano tradicional e já incorporado à
atuação da sede apostólica, vemos a introdução de um novo elemento adicional
àquele, que é o valor e o papel da unção imperial realizada pelas mãos do sumo
pontífice e que na interpretação de Leão IV, bem como na dos papas que o
sucedem, como veremos mais adiante, outorga o direito exclusivo de
responsabilidade moral do primeiro sobre o segundo. Hincmar aceitará e respeitará
esta concepção, que estabelece o tipo de relações que deverá haver entre clérigos e
laicos, mas sua atuação independente, como arcebispo de Reims, porá em guarda
muitas vezes o papado contra si. O hábito de se dirigir diretamente a Roma, sem
passar pelo imperador Lotário, poderia ser também uma causa para aumentar a
hostilidade de Leão IV, imbuído das prerrogativas do papado, conforme
assinalamos acima. Podemos compreender o espírito de Hincmar ao lermos na
crônica de Flodoard, a Historia Remensis ecclesiae,7 que Hincmar estava convicto
de que o bispado de Reims, entre os privilégios que possuía, desde tempos antigos;
tinha também a primazia entre os primados da Gália, e ele não conheceu nenhuma
que fosse superior a ela, senão a de Roma, que confirmou e reconheceu os direitos
da igreja de Reims, esperando que essa postura nunca mudaria.
A convicção da primazia da igreja de Reims não é suficiente para explicar a
conduta do arcebispo em vários momentos de sua agitada vida episcopal.

7
PL, 135 e MGH SS, XIII, p. 405-599.

160
Encontramos, em vários de seus desencontros com clérigos e laicos de seu tempo,
a manifestação de traços de caráter e personalidade que revelam excessiva dureza
para com os seus coepíscopos, como no caso de Gottschalk, contra o qual moveu
uma cruel guerra teológica sobre a questão da predestinação, escrevendo tratados
polêmicos e condenando-o nos concílios, sem mostrar qualquer sentimento de
piedade cristã. A obstinação em não aceitar os clérigos ordenados por Ebbon, que
levou a demarches prolongadas ao ponto de indispor Hincmar com alguns papas,
mostra um homem com um nível de intransigência fora do comum. Os choques
havidos com Rothado, bispo de Soissons, com Hincmar de Laon, seu sobrinho, e
outros, tendem a revelar traços de pouca humanidade.
A participação de Hincmar em assuntos seculares se deu naturalmente a partir
da sua ordenação como arcebispo de Reims, e nessa condição Carlos ―o Calvo‖ o
levou a ser um dos mentores importantes do reino que se encontrava
convulsionado por lutas internas que os filhos de Luís ―o Piedoso‖ herdaram. O
talento de Carlos ―o Calvo‖ em administrar o reino já havia se manifestado no
período da guerra civil, que exigiu do jovem monarca coragem e inteligência para
enfrentar uma situação particularmente difícil, onde dever-se-ia assegurar a defesa
das fronteiras, conquistar vassalos fiéis, que se mostravam inseguros e impor o seu
governo. A partilha de Verdun, de 843, não eliminou a questão da fidelidade das
grandes famílias aristocráticas, que se bandeavam de um reino a outro, segundo
uma disposição do jogo de alianças em que entravam interesses locais. Grandes
famílias que não se identificavam com Carlos passaram a outros remos e se
instalaram em outros territórios, e pequenos nobres que permaneceram em seu
reino, nem sempre mantinham-se fiéis, se bandeando de um campo a outro. A
reorganização administrativa era um imperativo, nessas circunstâncias, e essa
tarefa implicava inevitavelmente no destronamento do poder de famílias
tradicionais que aumentavam a sua hostilidade contra o novo rei. Poucas foram as
famílias poderosas que se mantiveram ao seu lado, e quando o fizeram a luta entre
elas para manterem sua influência na corte e em relação ao rei contribuía para
aumentar os distúrbios do reino. Os Welffs, aparentados com a casa real e os
parentes de Ermentrude, esposa do soberano, constituíram-se em grupos que
procuraram liderar essa influência e os choques acabaram por ser inevitáveis,
alternando-se no poder. O alto clero, o único preparado e capaz de assumir um
papel mentor numa sociedade rude e guerreira, ao mesmo tempo que caótica e
contraditória, se preocupava em criar normas e critérios morais para orientar o
reino e os homens que estavam à testa do poder. Loup de Ferrières, um dos
clérigos ilustres daquele tempo, escrevia a Carlos ―o Calvo‖, 8 lembrando ao rei

8
Loup de FERRIÈRES, Correspondance. L Levillain, T. I, Paris, 1927, p. 145 apud J. Devise,
Hincmar, Archevêque de Reims, 1976, t. 1, p. 287.

161
―que todos possuem a noção que o bem comum e o interesse geral são preciosos
entre todos, de modo que procurem se esforçar de o alcançar acima de seus
próprios desejos. Que ninguém permita desprezar as leis divinas e as leis humanas,
pelo menos aquelas que são justas, para que a impunidade dos malfeitores não
provoque a multiplicação dos vícios‖. Os clérigos mais atentos ao estado de
desagregação social, que as lutas internas provocavam, procuraram impor o critério
da lei e do bem público como um modelo social a que o monarca deveria aspirar e
que poderia encontrar seu paradigma na sociedade bíblica, entre o povo de Israel.
Nithard, em sua crônica, História dos filhos de Luís ―o Piedoso‖ também
lembrava que em tempos anteriores, isto é, de Carlos Magno, a paz e a concórdia
reinavam em todo lugar, mas no presente, ao contrário, as discussões e as querelas
eclodem incessantemente.9
O que se nota, nessas circunstâncias, é o esforço do clero em moralizar a
função real e também o esforço em colocar a importância da realeza como um
árbitro que permita a consolidação social, garantindo o respeito e assegurando a
estabilidade. O tema do respeito à lei não somente era necessário para evitar o caos
em que a sociedade carolíngia havia mergulhado, mas também para se chegar à paz
a que desde o tratado de Verdun e Coulaines, em 843, aspiraram no momento em
que fora estabelecido. Em 858, o ano em que se deu a crise mais aguda daquele
regime, era mais do que natural reforçar o conceito de rei justo como sendo aquele
que respeita as leis e evita toda e qualquer ação arbitrária. 10 O respeito às leis
aparece como um momento de importância no acordo de Coulaines onde Carlos ―o
Calvo‖ declara que ―Deus me ajudando, respeitarei a lei particular de cada um, tal
como foi conhecido aos vossos antepassados no tempo de meus predecessores‖. 11
O capítulo IV do acordo de Coulaines repete explicitamente que cada um deverá
zelar para ajudar o rei a não cometer atos de arbitrariedade,12 o que em outras
palavras significa colocar como aspiração ideal terminar com a anarquia e impor o
reino da lei. Os precedentes mais próximos dessa linha de pensamento, que emana
fundamentalmente do clero da época, poder-se-ão encontrar no concilio de Paris,
de 829, inspirado em idéias de Jonas de Orleans, que podem ser interpretadas como
uma tentativa de impor limitações ao poder real. Mas, mais do que essa, conforme
podemos observar em Hincmar de Reims, se encontra subjacente uma idéia moral
de restabelecimento das virtudes através da ordem ou da lei que tem muitas vezes
um significado prático de restituição de bens e propriedades espoliadas das igrejas

9
NITHARD, Histoire des fils de Louis le Pieux, p. 143-145 apud J.D. op. cit., p. 287.
10
J. DEVISSE, ―Essai sur l‘histoire d‘une expression qui a fait fortune: consilium et auxilium au IXe.
siècle‖. Le Moyen Age, 1968 p. 179-205.
11
MGH Capitularia II, 398: ―Legem vero unicuique competentem, sicut antecessores sui in tempore
meorum praedecessorum habuerunt, faciente deo, me observaturum perdono‖.
12
MGH Capitularia II p. 398.

162
pelo poder real e pelos grandes senhores, e a garantia de que as honras e as
dignidades não estarão mais sujeitas à arbitrariedade do imperador ou de seus
conselheiros, o que de fato se deu durante os últimos anos antes de 843.
Para Carlos ―o Calvo‘, impor uma política de conciliação social atendendo os
interesses dos grupos mais influentes dentro de seu reino não era fácil,
considerando-se principalmente a delicada situação política em que se encontrava
devido à invasão dos normandos, à rebelião na Aquitânia e ao jogo de interesses
particulares que moviam os grandes senhores. Foi em 855 a morte de Lotário I, que
era um fator de equilíbrio entre os remos e suas nobrezas durante vários anos,
mesmo levando-se em conta os sucessos militares entre 848 e 851 e após a
tentativa de estabelecer a ordem no reino em 853-854, em particular com a
legislação de 853, que previa a restituição dos bens da Igreja e a participação do
clero na imposição da paz social, bem como na fixação de regras para evitar a
passagem de criminosos de um reino a outro e tudo isso com o auxílio da
legislação canônica emanada dos concílios ou sínodos locais. 13
A crise desses anos se acentua à medida que as invasões escandinavas se
intensificam a partir de 856,14 aliada aos perigos que recaem sobre o reino com a
revolta aristocrática na Neustria, com o despertar da guerra na Aquitânia e os
apelos que são feitos para que Luís ―o Germânico‖ intervenha nos negócios do
reino. Hincmar desempenha um papel vital como conselheiro e diplomata que
procura conciliar os sediciosos. Um sínodo e uma assembléia, convocados em
Quiersy, em 857, dão instruções aos bispos e comitês sobre as sanções eclesiásticas
que deverão recair sobre os homens livres que encorajam a indisciplina e as
desordens, obrigando-os a levar os faltosos ao juízo real. Os missi dominici
também deverão ―anotar todas as sentenças jurídicas que se lhes fazem conhecer;
que divulguem a todos os capítulos consagrados a tais questões por nossos
antecessores, reis e imperadores, e por nós mesmos‖. 15 A organização de textos ou
compilações jurídicas se faz notar nesse tempo e a política adotada para restaurar a
ordem também apela para a educação moral e a ameaça espiritual, onde se
lembram as penas eternas que sofrerão aqueles que são culpados de morte sem se
reconciliarem a tempo. Além da coleção de textos jurídicos que as novas
capitularia freqüentemente citam, tais como a de Ansegiso (827) e a de Benedictus
Levita (prov. 848-850), interessante é um documento sinodal emanado de Quiersy,
que provavelmente foi inspirado por, senão de direta autoria de Hincmar, 16 onde se
encontra uma admonitio recheada de textos escriturísticos, canônicos e patrísticos,

13
MGH Capitularia II p. 268.
14
F. Lot, ―La grande invasion normande de 856 a 882‖. Bibliothèque de L École de Charres,
1908, p. 5-62.
15
MCII, Capitularia II, p. 286.
16
PERTZ, Neues Archiv, XVIII, p. 303ss.; MCH, Capitularia II p. 287-289.

163
condenando os fautores de desordens e em especial aqueles que se apropriam dos
bens alheios. Era o momento de lembrar e admoestar aqueles que se haviam
apropriado dos bens eclesiásticos, como uma preocupação constante do
episcopado, dos clérigos em geral, e de Hincmar de Reims. Entre 857 e 860, se
examinarmos os escritos de Hincmar, veremos que se desenvolve já uma doutrina
que visa a assegurar e defender a propriedade eclesiástica da rapina e da
intervenção do poder secular, que se encontra na adinonitio citada, e que penetra
também nas Falsas Decretais, uma compilação que foi elaborada com o mesmo
fim de eliminar a interferência do poder secular em assuntos eclesiásticos e já se
encontra em uso no concílio de Soissons de 853. Há vários indícios que apontam a
origem das Falsas Decretais como sendo da região de Reims e proximamente ao
ano de 850, isto é, em pleno período do arcebispado de Hincmar: do mesmo modo
como o arcebispo a preocupação central da coleção é a eleição canônica dos
bispos, assim como a isenção dos clérigos de serem submetidos às cortes civis,
bem como a questão que era objeto das preocupações maiores do clero da época,
isto é, a apropriação dos bens eclesiásticos.
Desde 829, ou seja, no concílio de Paris, os vários sínodos fazem referências e
formulavam suas queixas em relação a propriedades ou bens eclesiásticos e fazem
exortações para que sejam devolvidos, após terem sido alienados pelo rei e os
potentiores da sociedade carolíngia. A propriedade eclesiástica passará a ser
definida como patrimônio dos pobres, votos dos fiéis e preço dos pecados, como o
diz o concílio de Paris: ―res ecciesiqe... vota... fidelium pretia peccatorum et
patrimofia pauperum‖17 provavelmente sob a influência de um tratado de autoria
de Juliano Pomerus,18 retórico e gramático africano do século V e que escreveu o
De vita contemplativa19 A influência de Pomerus, sem dúvida, se fez sentir sobre o
clero carolíngio do século IX, que formula a idéia de que o clérigo deve abandonar
qualquer ambição de propriedade por ser apenas o seu preboste ou administrador,
ao qual ela é confiada, pertencendo a mesma à coletividade. O clérigo deve deixar
os seus bens aos seus familiares, aos pobres ou à sua igreja e se faz pobre entre os
pobres por amor à pobreza: ―... Qui omnia sua aut parentibus relinquit aut
pauperibus distribuit aut ecclesiae rebus adiunxit et se in numero pauperum
paupertatis amore constituit‖.20 A mesma concepção encontramos no concílio de
Aix, de 836: ―Convém que os prelados saibam que os bens eclesiásticos lhe são
confiados não como bens próprios, mas pelo Senhor, para atender as necessidades
dos outros; e que eles saibam também, de acordo com um texto de Prósper (o De

17
MGH, Concilia II p. 623.
18
Sobre ele vide P. RICHÉ, Education et culture dans l‘Occident barbare. VIe-VIIIe. siècles.
Paris, 1962, p. 70.
19
PL 59, p. 411-520.
20
PL 59, p. 455.

164
vita contemplativa, atribuído muitas vezes a Próspero de Aquitânia do século V,
c.390-c.465), que os bens da Igreja não são senão os votos dos fiéis, o preço dos
pecados, o patrimônio dos pobres‖.21
Em oposição ao apetite cada vez maior de bens materiais da nobreza, a Igreja
da época opunha uma concepção do uso coletivo dos bens que a mesma detinha,
tentando refrear a cobiça dos setores laicos e imunizando o clero dos males que
assolavam o século. O desmembramento dos bens eclesiásticos e a sua
introdução no sistema feudal contradizia esses ideais de auto-contenção social,
mas que, por isso mesmo, procurava disciplinar-se e ao mesmo tempo proteger-
se da cupidez generalizada entre os homens. Hincmar se referia, e os autores da
admonitio de 857 a essa questão assim como outros clérigos o farão em seu
tempo com a mesma ênfase, incluindo-se entre eles Loup de Ferrières e Wenilon
de Sens.22 De outro lado, nesses anos em que o processo de feudalização da
Igreja, e da sociedade carolíngia como um todo, é extremamente acelerado,
devido ao desmembramento interno e à grande repartição de terras, em que
fervilham as ambições da aristocracia, não é fácil conduzir uma política que
harmonize os três remos e os descendentes de Luís ―o Piedoso‖. Hincmar se vê
colocado no centro dos acontecimentos e o rei Carlos necessita e solicita o seu
conselho para poder agir corretamente no meio desse redemoinho que envolve
associações de famílias poderosas, ou ―partidos‖ que disputam o poder. O
casamento de Lotário II, sobrinho de Carlos ―O Calvo‖ e Teutberga, é resultado
dessas tentativas de associações por interesse e que visa a reforçar o poder, mas
que levará em pouco tempo ao repúdio da esposa e exigirá uma posição firme do
arcebispo de Reims. O seu escrito De divortio Lotharii regis et Teutbergae
reginae ele redigirá em 860, e lá também encontraremos elementos para se
conhecer sua concepção sobre a realeza. Do mesmo modo, a política de
casamentos levou anteriormente a que Carlos ―o Calvo‖ casasse sua filha Judith
com Edilulfo, rei dos saxões ocidentais. A grande fermentação partidária fez com
que o rei Carlos tolerasse o desejo de divórcio de seu sobrinho, justamente às
vésperas da crise do ano 858, Hincmar e Rodolfo, tio de Carlos ―o Calvo‖, nobre
que caíra em desgraça, são vistos como suspeitos de apoiarem a Luis ―o
Germânico‖, que mantém contatos e tratativas com o arcebispo de Reims, devido
à permanência de uma situação de conflito generalizado entre os carolíngios.
Ademais, a suspeita em relação ao arcebispo de parte de seu rei aumenta na
medida que Hincmar pede a Luis ―o Germânico‖ para proteger os bens que a
Igreja de Reims possui nas fronteiras orientais. A invasão de Luís naquela região
é condenada por Hincmar, que procura dissuadi-lo a não interferir militarmente

21
MGH, Concilia II, p. 709.
22
LEVILLAIN, op. cit. I p. 183, p. 201 -203, p. 105; também PL 125, p. 793-794.

165
nos territórios pertencentes ao seu irmão, propondo uma conferência geral entre
as partes interessadas, incluindo os grandes senhores, os bispos e os reis, para
chegarem a uma solução pacífica em relação às questões que os separam.23
Do inverno de 857 em diante os vassalos de Carlos ―o Calvo‖ demonstram a
sua infidelidade, debandando para o lado de Luís ―o Germânico‖, entre eles Alard,
abade de Saint-Omer, os descendentes do duque Childebrando, de Roberto ―o
Forte‖ e outros, ao ponto de, na primavera de 858, restarem ao seu lado nobres de
menos importância, além da poderosa família dos Welffs. Hincmar atuará para a
convocação, em março de 858, de um conselho para assegurar a fidelidade dos que
restaram e ao mesmo tempo preparar as operações militares contra os Normandos
que assolavam o reino e faziam numerosas vítimas, entre as quais se encontravam
vários bispos. Em Quiersy se procuram retomar os compromissos assumidos
anteriormente em Coulaines, mas com a garantia, através da renovação da
fidelidade, de respeitar as relações estabelecidas entre rei e vassalos para o bem do
reino. O compromisso de fidelidade é dirigido na verdade ao poder real e não à
pessoa de Carlos ―o Calvo‖, e como veremos mais adiante, essa distinção é parte
da concepção que Hincmar tem da realeza ou do poder secular. Pois o
compromisso não é em relação a uma pessoa mas em relação à instituição, e por
isso mesmo a traição é condenada como um ato em favor de alguém, isto é, de um
indivíduo, que no caso é interpretado como um ser egoísta que não visa ao bem
coletivo ou à ordem social. Essa ordem social é que está em jogo, e é preciso
defendê-la, pois ela se legitimou pela vontade divina, que confiou a Carlos a gestão
de seu reino, sem que ele se impusesse pela força ou por qualificação honorífica
em relação aos outros homens. Há aqui uma nuance de pensamento que merece a
nossa atenção sob o aspecto da teorização de Hincmar sobre o poder secular que é
o da visão particular da dissolução ou quebra de fidelidade a uma ordem social
desejada por Deus, como num esforço de separar o poder da pessoa que o exerce e
estabelecer um novo tipo de relação entre o poder e os que lhe são sujeitos. Sob a
perspectiva desses últimos vemos que as formulações no compromisso de Quiersy
também são inovadoras, pois elas adotam noções que não são comuns na época
sob o prisma conceitual, prometendo conservar o lugar que foi atribuído a cada um,
no reino, e a ordem à qual pertence cada pessoa: ―... unumquemque vestrum
secundum suum ordinem et personam honorabo et salvabo...‖24 Do mesmo modo
se acentua o que já havia se definido em Coulaines sobre o arbítrio da lei que
deverá se manter para cada um assim como a justiça à qual tem direito:
―...unicuique competentem legem et iustitiam conservabo...‖25 Misericórdia e
23
PL 126 10: ‗...ut frater vester et omnes fideles illius ante fideliumque vestrorum praesentiam in
rationes tempore et loco congruo venissemus (...)‘.
24
MGH, Capitularia II, p. 296.
25
MGH, Capitularia II, p. 296.

166
eqüanimidade serão as qualidades que o rei deverá exibir em seu governo após esse
compromisso: ―...qui illam necesse habuerit et rationabiliter petierit, rationabilem
misericordiam exhibebo... Et pro nullo homine ad hoc... per studium aut
malivolentiam vel alicuius indebitum hortamentum deviabo...‖26 O rei confirmava
sua responsabilidade pelos compromissos assumidos obrigando-se a reparar todo e
qualquer dano que venha causar ou qualquer injustiça que venha a cometer: ―...et si
per fragilitatem contra hoc mihi subreptum fuerit, cum hoc recognovero voluntarie
illud emendare curabo‖.27
Um elemento ainda que não inteiramente inovador aparece no Pacto de
Quiersy de 858, e que de certo modo levou os historiadores a interpretarem de
maneira diversa o seu significado, é o fato de ele se ater mais a valores abstratos do
que a mencionar vantagens políticas concretas ou atendendo as exigências e
interesses dos participantes, se bem que esse objetivo, como em todo pacto, não
ficou obliterado. A mão de Hincmar segurou o cálamo que redigiu o texto, porque
encontraremos em outros escritos seus o mesmo mosaico de idéias e valores que
devem orientar o poder temporal, sobre o regnum. A lei, a justiça, a misericórdia, a
ordem social, acatada e respeitada pelos fiéis, permitirá ao rei governar o reino que
lhe foi confiado pela divindade e por sua vez ele, como rei, deverá garantir sua
estabilidade eliminando qualquer arbitrariedade. O arcebispo de Reims parte de
valores morais cristãos para formular um compromisso e um comportamento
social sacramentado por textos e não por pessoas, ainda que seja impossível
desconhecer o papel importante e de primeira ordem que exercem os laços de
dependência pessoal que caracterizam o feudalismo emergente na época. A
expressão ―consilio et auxilio‖ que aparece no texto redigido por Hincmar, e
lembrado no acabado estudo que Jean Devisse fez sobre o nosso personagem, é
parte primordial do juramento de fidelidade que o vassalo deve prestar ao seu
senhor,28 ainda que o autor não considere no caso o valor do juramento feudal, mas
a moral cristã que o rege.
Não podemos no marco limitado de um estudo, que visa apenas a entender as
concepções ou idéias de Hincmar sobre os dois poderes, nos deter na descrição da
atividade multifacética do arcebispo de Reims e acompanhar os desenvolvimentos
políticos dos filhos de Luís ―o Piedoso‖, e seus descendentes nos remos
carolíngios. O que nos levou a esboçar a ligeira descrição dos eventos feitos até
aqui foi preparar o pano de fundo para uma compreensão melhor de suas idéias. E
os acontecimentos nos interessam na medida em que eles permitem a Hincmar

26
MGH, Capitularia II, p. 296.
27
MGH, Capitularia II, p. 296.
28
J. Devisse HINCMAR. Archevèque de Reims, t. I. p. 309.

167
expor seu pensamento em confronto com os mesmos e a apresentar os
fundamentos espirituais para chegar às soluções.
O pensamento eclesiológico de Hincmar nesse sentido pode ser extraído de
seus escritos e certos autores, como Y. Congar, o fizeram com extrema
competência29 e a quem devemos a elucidação de alguns aspectos de seu
pensamento. Para os homens da Alta Idade Média a Igreja, em um sentido mais
limitado, deve ser vista como uma societas sanctorum, na medida em que os
pecadores não a integram, mas ela é uma societas sacramentorum, num sentido
mais amplo, incluindo a todos os que vivem e estão ligados a ela pelo menos até
que seus atos não os tenham levado aojulgamento divino. Por outro lado, essa
Igreja universal transcendente encerra duas partes, uma já salva, que são os anjos,
os puros, os justos e que em parte já se encontram junto à divindade, e que
podemos considerá-la invisível, e de outro lado a grande multidão de homens que
ainda peregrinam na terra e aspiram pelos céus. 30 Segundo J. Devisse, Hincmar
designa somente a esses últimos depopulus christianus e constitui a sua parte
visível, conceito esse que deve ser entendido em todas as suas implicações.
Hincmar usa o conceito como denotando um corpo coletivo que tem a vocação
para a salvação, ainda que a falta adâmica tenha liberado forças que lutam contra a
harmonia da Criação sob a liderança de Lúcifer. O drama universal da luta entre o
bem e o mal no tempo e no espaço, da luta metafísica no plano individual e social,
é um reflexo do que se trava entre a ordem divina e o caos diabólico,
compreendendo a Igreja visível como um todo, incluindo sacerdotes e laicos.
Como outros pensadores, Hincmar explica a existência de uma hierarquia social se
dever ao pecado: ela é necessária à salvação do populus christianus, do mesmo
modo que os órgãos de um corpo onde cada um preenche uma função para a saúde
de todo o organismo. Ordem e paz são qualidades indispensáveis para uma
sociedade normal, pois são valores desejados por Deus e mantêm o ser humano
próximo à divindade, longe do pecado, e tudo que contribui para alterar este estado
de coisas é na essência diabólico, levando a romper a própria aliança com Deus. A
falta individual pode ser reparada pela confissão, mas ela pode também ter uma
dimensão social que leva a romper a ordem e a paz ao ponto de ameaçar toda a
vida social. Sob esse aspecto, a guerra desenfreada e sem sentido, o roubo, a
violência constituem uma séria ameaça a toda a cristandade ou ao povo cristão. A
sociedade pode, no plano terrestre, se manter solidária no pecado ou na observação
da lei divina que, se forem respeitadas e obedecidas, a levarão à redenção, porém

29
L‘Ecclésiologie du haut Moyen Age. Paris, 1968.
30
PL 126, 455 ―(...) ab universali ecclesia quae partim iam in caelo cum deo regnat, partim
autem adhuc in terris peregrinatur et ad patriam caelestem suspirat (...)‖.

168
se não o forem a levarão à destruição, pois o diabo a pressiona interruptamente
para que isso aconteça.
O conceito de povo cristão aqui se configura como uma entidade elevada
acima de toda organização social ou de sua composição humana pelo fato de se
destinar a um fim, isto é, à salvação ou à redenção. Mas o ―antigo inimigo‖,
expressão usada freqüentemente por Hincmar para designar o diabo, sempre está à
espreita para fazer perder os homens no pecado e tem um papel primordial na vida
social, pois o forte desejo de grandeza, avaritia sublimilatis,31 a falsificação, o
engano, são os meios de que ele se utiliza para subverter a harmonia entre os
homens, desde o dia em que ele se separou da caridade divina e com seus ardis
resolveu escarnecer das palavras de Deus: ―façamos o homem à nossa imagem‖,
propondo a Adão e Eva que se assemelhassem à divindade. Com a queda de Adão,
que o transformou em ser humano sujeito ao pecado, o diabo passou a se fazer
presente na história, adquirindo um poder atuante, devido ao pecado individual,
caminhando através do tempo, desde a Criação. O diabo intervém na vida do
homem individual para eliminar-lhe o desejo de fazer o bem, mas ele também é a
causa para a origem e difusão da heresia. 32 Todo o imaginário medieval sobre a
figura do diabo podemos encontrar na obra de Hincmar, onde se multiplicam as
citações de autores anteriores a ele e que lhe servem de fonte de consulta, desde
Sto. Agostinho até Gregório ―o Grande‖. O diabo está presente no cotidiano da
vida social e é ajudado em sua ação múltipla por um exército de auxiliares visíveis
e invisíveis. Eles são os monstros que os homens desenham em sua imaginação,
mas que se manifestam na realidade e convivem com os seres terrestres. Eles
perturbam a vida conjugal e provocam desavenças e malentendidos entre as
criaturas, e por trás dos desvios e pecados humanos encontraremos a sua ação. 33
Mas o homem pode se opor às suas ações maléficas, se assim o quiser, pois ele tem
o dom do livre arbítrio e portanto é responsável em querer aceitar a caridade ou o
dever perante Deus para combater o demônio, ainda que nem sempre o homem
possa distinguir com clareza a sua intenção, podendo, nesse caso, fracassar no
intento de impedir sua ação.34 Porém, isso implica num questionamento inevitável
sobre a responsabilidade única do ser humano frente aos acontecimentos, e na
medida em que ele é ignorante ou não informado em relação ao pecado, menos
responsável ele será. Daí a importância do sacerdote, do arcebispo que deverá
advertir canonicamente um pecador e do pároco que na sua função deverá advertir
aqueles que estão sob sua orientação, a fim de preveni-los contra o pecado e as

31
PL 126, p.617.
32
PL 125, p. 481 e482.
33
PL 125, p. 683, 684, 717, 906.
34
HINCMAR, nos Annales Bertiniani, In MGH, SS 1 p. 105 relata uma situação na qual Carlos
―o Calvo‖ é ferido por um jovem por obra do diabo, ―diabolo operante‖.

169
faltas que poderão praticar. Prevenir, informar e corrigir faz parte do sacerdócio em
todos os níveis da Igreja, e também é o modo pelo qual se pode e deve lutar contra
o diabo. E no fundo a questão maior na vida social é de impedir que os homens
caiam nas malhas do demônio e para tanto é necessário aproximá-los das normas
divinas e humanas, para que as respeitem e as sigam. Os fracos, os orgulhosos, os
que roubam os bens eclesiásticos são os predispostos a caírem em suas mãos e
serem subjugados por ele, conseguindo escapar, se renunciarem em ato e intenção
de suas atitudes35 e para tanto o homem deve ter consciência do demônio, que
muitas vezes lhe promete em troca de uma má ação certas vantagens materiais ou
de outra natureza. Portanto, para Hincmar o diabo está presente na vida dos
homens por dois tipos de ação, isto é, na primeira ele não é diretamente o
responsável e somente o malefício diabólico se manifesta em forma natural, tal
como nas catástrofes da natureza. Na outra o demônio procura a adesão e a
cumplicidade do homem individual e que acaba resultando em danos sociais pela
amplitude que poderá adquirir. Mas qual será o papel da divindade em relação ao
demônio? Para Hincmar, Deus todo-poderoso impõe limites a sua atuação ainda
que sua tolerância escape ao entendimento humano. 36 O homem, porém, tem um
modo seguro de se proteger dele, estando próximo a Deus através da oração, que é
o melhor instrumento para se afastar da presença diabólica, e o demônio sabe
muito bem disso!37
Mas voltemos à concepção de Igreja, ou de poder espiritual que se pode
vislumbrar através da obra de Hincmar, a começar do conceito de populus
christianus, que vimos anteriormente. Podemos inferir que para ele a Igreja não se
restringe às ordens clericais, mas ela é o imenso corpo dos que creram e crêem em
Cristo, seja qual for sua situação social.38 Sob esse aspecto existe apenas um
soberano, o Cristo-rei, onde todas as hierarquias não são senão seus ministros, e a
unidade da Igreja depende da vontade de Cristo em orientar os homens, e sem
nenhuma dependência do poder de um homem seja lá quem for. 39 Esta Igreja, cuja
unidade essencial se faz pela fé em Cristo e através de Cristo, por ser seu corpo
místico, é chamada nas Escrituras Sagradas por múltiplos nomes: reino dos céus,
mulher, esposa, esposo, pomba, dileta, vinha, ovelha, cidade, torre, coluna,
firmamento, casa, templo, corpo de Cristo, e muitos outros mais40 e ela não se

35
PL 126, 130-131, 125, 1075; 125, 759.
36
PL 126, 123; 125 677.
37
PL 125, 906.
38
PL 125, 458.
39
PL 125, 817.
40
PL 125, 817.

170
localiza em nenhum lugar em especial, mas está espalhada pelos quatro cantos do
mundo, simbolizados pela túnica de Cristo, distribuída em quatro partes iguais. 41
Essa unidade essencial que se faz pela vontade e o ensinamento de Cristo e
pela ação do Espírito Santo também se manifesta no plano doutrinal e no material.
No plano doutrinal, todas as resoluções para Hincmar encontram um instrumento
de expressão, que é o sínodo ou o concílio, onde a ação divina atua para ordenar a
vida da Igreja, o que sob esse aspecto é uma concepção dominante no século IX.
No plano material ou concreto, Hincmar dá uma importância primordial à
aplicação universal à legislação que regulamenta o cotidiano da instituição
eclesiástica e sua atuação social, o que já vimos anteriormente quando se trata de
eliminar as barreiras diocesanas que limitam a ação de excomunhão ou outra
qualquer que leva os fautores a escaparem, fugindo para outro lugar. Nessa visão,
Hincmar vê nos clérigos os ministros espirituais da ordem divina sobre a terra, e
constitui a Igreja visível, distinta da república ainda que não inteiramente
separada.42 Esta Igreja visível se divide em ordens, ou constitui uma ordem, como
vimos mais acima, e as funções mais importantes são exercidas pelos bispos, ainda
que na sua concepção a Igreja seja o conjunto dos clérigos e laicos que são fiéis a
Cristo. Aparentemente Hincmar, como boa parte dos pensadores eclesiásticos do
seu tempo, desconhece e não dá a devida importância à atuação dos padres
paroquiais, pois poucas são as referências que se fazem nos textos sobre os
mesmos. De fato, a grande anarquia reinante na Igreja, que caracterizou os séculos
anteriores, é superada paulatinamente e a partir de Leão IV se dá uma afirmação
cada vez maior do primado jurisdicional de Roma e sua supremacia. O processo
não foi simples, pois era necessário se livrar da tutela bizantina, fazer frente à
pressão militar dos Lombardos e sanear financeiramente a Santa Sé, e tudo isso foi
conseguido com a aliança feita com os carolíngios, com um controle dos territórios
e bens pontifícios. A aliança com o poder imperial e o desenvolvimento de uma
doutrina jurídica que respaldasse a ambição de supremacia e primado permitiu ao
papado do século IX impor a Igreja como uma instituição da sociedade cristã
ocidental. Hincmar via na centralização romana, assim como o autor das Falsas
Decretais, um poder inegavelmente positivo, ainda que se devesse ressaltar a
atuação e o papel do arcebispado na hierarquia eclesiástica. Isso levou a certos
autores a interpretarem erroneamente o arcebispo de Reims como adversário de
Roma, o que de fato nunca ocorreu e em todos os seus escritos temos abundantes
expressões de submissão e reconhecimento de Roma como cabeça de toda a
Igreja43 e muitas outras.44
41
PL 125, 419.
42
PL 126, 185: ―(...) episcopalem auctoritatem et regalem potestatem (...) ecclesiam et
rempublicam (...)‖.
43
PL 125, 786: ―(...) de urbe Roma orbis scilicet capite (...)‖.

171
Hincmar não somente insiste no primado de Roma e na sua posição de ―mãe
de todas as igrejas,45 mas ele também lembra que todo bispo deve orar
especialmente pelo sucessor de Pedro.46 Em seus escritos ele desenvolve a própria
história da passagem do primado de Jerusalém a Roma: devido à sua infidelidade 47
Deus indicou a Roma por nova cabeça da Igreja.48 O poder de ligar e dissolver, que
Pedro recebeu e que permitiu aos seus sucessores adquirirem o poder sobre todas
as igrejas e o primado, também obriga a todo cristão a avaliar se se encontra em
sintonia com a fé de Roma e na obediência às suas decisões.49 Por isso, ela é una e
a função dos bispos é de manter esta unidade,50 que fundamenta o primado
romano, sem ambicionar criar um modo de agir que se afaste dele. Historicamente
os bispados de Antioquia e o de Alexandria são obras dele e seus sucessores
continuaram a criar em outros lugares expandindo-se assim a Igreja por todo o
orbe, porém com um início dado em Roma, pelo Príncipe dos Apóstolos. Mas aqui
temos que prestar atenção para uma nuance que Hincmar introduz nessa doutrina e
que o levará a se afastar de uma concepção monárquica da Igreja, fugindo de certo
modo de uma visão tradicional da doutrina que estabelece o primado de Roma e o
poder papal. Essa interpretação ele já a havia introduzido no concílio de Paris, de
829, onde se usa a expressão, em relação aos bispos, ―successores apostolorum‖,51
o que vale dizer que houve uma divisão entre Pedro e seus sucessores de um lado,
e dos Apóstolos e seus sucessores de outro lado, do poder de ligar e dissolver, 52
talvez fundamentada em João XX, 22-23, que pode levar idéias de que todos os
Apóstolos compartilham do poder de ligar e dissolver, e esse poder se estende a
todos aqueles que são designados para exercer um ministério dentro da Igreja,
devido aos pecados dos homens e à penitência.53
Mas não nos iludamos, ainda que em um dado momento nos pareça que
Hincmar adote uma postura de uniformização da Igreja e a abolição de sua
hierarquia, isto na realidade não ocorrerá, pois na prática esse igualitarismo nem
44
PL 125, 165: primae et sanctae sedis romanae (...)―; PL 125, 211: ―consulentes ante omnia sicut et
prima est in tolo orbe, omnium ecclesiarum mater, sanctam catholicam et apostolicam romanorum
ecclesiam (...)‖, e ainda PL 125,212: quae non ab homine neque per hominem sed Dominum Jesum
Christum (...) ita et haec sancta sedes omnium civitatum meruit principatum‖; PL 125, 214; PL 125,
352; PL 125, 434 e outros lugares.
45
PL 125, 1038.
46
PL 126, 339.
47
PL 125, 211-212.
48
PL 125,213: ―(...) non ab apostolis sed ab ipso domino salvatore nostro primatum obtinuit (...)‖.
49
PL 126,610.
50
PL 125, 699; 126, 610.
51
MGH, Concilia I, p. 610-611.
52
PL 126, 362, 609; 872-873: PL 125, 1107.
53
PL 126, 609: ―Omni igitur electorum ecclesiae, iuxta modum culparum vel poenitentiae,
ligandi ac solvendi datur auctoritas‖.

172
sequer atingirá o ordo, dos bispos, que ele formula como uma verdadeira
hierarquização de responsabilidades e apesar de todos os bispos pertencerem ao
mesmo ordo, alguns dentre eles foram designados, por Roma, para deterem poder
superior ao de outros, pois a sua dignitas não é a mesma.54 Portanto, entre Roma e
os bispos existe uma intermediação que são os arcebispos ou metropolitas, que os
tornam na Igreja uma aristocracia espiritualmente elevada que se encontra logo
abaixo do Papa. A autoridade de Roma se exerce desse modo sobre a grande massa
dos bispos com a mediação dos arcebispos ou dos metropolitas, e a província é a
unidade administrativa sob a sua orientação. Portanto, perante o metropolita, todos
os bispos são responsáveis pela sua gestão temporal e espiritual.
Poderíamos resumir a visão de Hincmar sobre a estrutura da Igreja como
sendo uma monarquia pontifical fundada sobre os privilégios morais e jurídicos
que pretendiam possuir os sucessores Pedro, e que nem sempre os tiveram, aliada a
uma igualdade muito maior dos bispos sucessores dos Apóstolos sob a orientação
moral de Roma, e que na prática, até aquele momento, não conseguiu eliminar a
sua dispersão em células isoladas, com uma estrutura provincial adaptada àqueles
tempos, devido às dificuldades de locomoção, e que representam as três
possibilidades para ela subsistir e auto-governar-se. Roma aspira a controlar as
igrejas locais do modo mais eficiente com a ajuda administrativa ou governamental
do império, na medida em que se estabelece, a partir de Carlos Magno, ainda que
de facto nunca tal pretensão chegou a ter um conteúdo pleno, pois o império se
esfacelou, pouco após. Os papas da época, como Leão IV, pensavam que bastava a
ascendência espiritual sobre os príncipes para fazê-los cumprir com as
determinações de aspiração de unidade da cristandade. Nicolau I, que manteve
uma longa correspondência com Hincmar, e manteve um relacionamento duro com
o arcebispo em questões internas da igreja, tinha uma visão mais realista, nesse
sentido, e voltou sua ação à própria melhoria do corpo místico de Cristo,
procurando intervir nas questões religiosas, com grande sucesso e mostrando sua
autoridade a príncipes e clérigos. Hincmar reconheceu a sua autoridade impositiva
e compreendeu que tudo depende de Roma, na medida em que todo ensinamento e
julgamento deva ser submetido a ela.55 Somente Roma garante os privilégios de

54
PL 126,326: ―Quod si ordo generalis est omnibus episcopis, non tamen communis est dignitas
omnibus‖.
55
MGH, E. K. A., 154, epístola a Nicolau I: ―Et haec dico (...) praeiudicans summae sedis apostolicae
et sancti apostolatus vestri potestatem in aliquo, cui in omnibus sum (...) oboedire paratus; sed quia
summae auctoritati vestrae obsequium praestare me puto cum ea quae sentio, aut ad probationem aut
ad correctionem humiliter sapientiae vastrae magisterii pando‖.

173
cada igreja, somente ela determina com sua autoridade doutrinal as verdades a
ensinar e somente ela tem o poder de criar novos bispados. 56
Mas a autoridade de Roma não deve se exercer arbitrariamente e penetrar
nos detalhes do cotidiano, que é da atribuição do clero local, que devido ao
contato permanente com a realidade está melhor qualificado para conhecer a
totalidade das questões que surgem em determinado lugar, mas de qualquer
modo qualquer julgamento que se fizer deverá seguir o ensinamento de Roma e
a observação dos cânones. Hincmar chega a aconselhar ao seu sobrinho, bispo
de Laon, que siga as instruções ou a orientação que se encontram nos textos
emanados do papado romano para que não caia em erro.57 Quanto aos
metropolitanos, têm como dever de supervisionar, com a ajuda dos bispos, a
adequação desses textos à realidade, pois eles não devem agir sem o consenso e
o conselho dos bispos de sua província.58
Em outras palavras Hincmar reafirma o valor da ―lei‖ ou dos cânones, como
sendo a linguagem suficiente para permitir aos metropolitas e bispos atuarem sem a
direta intervenção de Roma, a não ser em casos que os cânones não permitem, por
não os terem previsto julgá-los. Como os cânones ou a lei são conhecidos
universalmente pelo clero, ela se presta, portanto, a regular a vida cotidiana das
dioceses sem a necessidade de apelar ao julgamento de Roma. O direito dos
concílios, os cânones, permitem enfrentar as questões do dia-a-dia da Igreja
universal, e eles são aplicados a todos os seus territórios, incluindo-se entre eles
também Roma. Hincmar parece adiantar-se em direção a um conciliarismo bem
antes do tempo em que este efetivamente surgirá.
Mas a valorização da lei através das resoluções conciliares também leva a
supor a autoridade romana, pois que os concílios reunidos sob a aprovação de
Roma, ou em presença de seus legados, mesmo não sendo universais, mas desde
que Roma tenha aceito sua legislação, são válidos universalmente.59 Notamos em
várias passagens dos escritos de Hincmar que ele acentua sempre a importância da

56
MGH E. K. A,, 158: ―Sciens privilegium metropolitanae sedis remorum (...) in summo
privilegio sanctae sedis romanae manere et privilegium esse sedis romanae (...)‖; PL 126, 231-
232: ―Quatenus ab huius sanctae sedis auctoritate nostra sana (...) intellegentia confirmatur a qua
fidei ac religionis sumpsit initium et cottidie, gratia Deo, sumit augmentum (...)‖.
57
PL 126, 390: (...) Suscipe ad instructionem illas epistolas, quas beatissimi papae diversis
temporibus ab urbe Roma pro diversorum patrum consolatione dederunt, legendas venerabiliter,
et serva sacra concilia, quae sedes apostolica et omnis sequitur ecclesia, inviolabiliter‖.
58
PL 126, 427: ‗(...) quoniam alia sunt quae metropolitanus sine consilio atque consensu
omnium coepiscoporum provintiae agere non debet (...)‖.
59
PL 126 361: ―Claret etiam hac causa, ut praedixi, universales ac generales synodos nominari,
cum plures episcopi, quam in quibusdam praefatis synodis fuerint congregati, apostolicae sedis
iussione et imperiali convocatione: sicut Sardicensis synodus, in qua ab Hesperiis partibus
plusquam trecenti convenerunt episcopi. Et in Africanis synodis (...)‖.

174
legislação canônica e também tenta justificá-la historicamente, dizendo que a Igreja
ao sair da clandestinidade deveria regulamentar sua vida em todos os aspectos,
desde o culto, ao dogma, assim como a sua organização hierárquica, obrigando-se,
portanto, a reunir os grandes concílios sob a iniciativa de Roma, o que lhe dá o
mérito histórico de reunir a legislação em coleções que abrangem os cânones
conciliares que devem ser aceitos e venerados.60
Mesmo que nos pareça haver contradição nas coleções conciliares, elas são
resultado das circunstâncias em que foram redigidas, mas isso não elimina a
sua extraordinária unidade, pois são inspiradas pelo mesmo Espírito Santo.61
Essas resoluções conciliares ou coleções não se podem ignorar e elas obrigam
a todos os clérigos e igrejas, e Hincmar por várias vezes lembra o cânone 20 do
decreto de Celestino I, na Dionysio-Hadriana, ―nulli sacerdoti suos liceat canones
ignorare...‖. A Dionysio-Hadriana também incluía a legislação africana que se
mostrava autônoma em relação a Roma e novamente dando ao metropolita o poder
de supervisionar junto com seus bispos os cânones e seus julgamentos sem apelar
diretamente a Roma a priori. É importante destacar que o nosso arcebispo vê a
necessidade de remeter qualquer julgamento a uma decisão que não seja de uma
pessoa, mas sempre várias, apoiando-se em Mateus XVIII 20: ―Ubicumque fuerint
duo vel tres in nomine meo congregati ibi ero in medio eorurn‖.62 Para ele o papa,
ainda que seja o sucessor de Pedro e mesmo considerando-se o seu primado,
poderá se enganar, se estiver só. A legislação emanada dele, ou sejam, os decretos
papais, são complementos práticos que se aplicam à legislação conciliar e no caso
de surgir qualquer questão não prevista na legislação, a seus olhos a melhor
solução é a reunião de um concílio. Um forte apego à legislação e ao direito
emamado de tempos em tempos dos concílios e dos decretos complementares e
que formam um imenso corpus imutável que deve reger a Igreja, é a atitude de
Hincmar em um momento em que Nicolau I se esforçava em centralizar o corpo
místico e no momento em que a doutrina das Falsas Decretais se difunde
amplamente, das quais ele faz certo uso, com uma interpretação original e própria.
Hincmar considera as Falsas Decretais terem sido escritas antes dos grandes
concílios e em ocasiões diversas em que se deviam dar respostas a questões que
surgiam no momento.63 Quando Nicolau I repreendeu os bispos da Francia

60
PL 126, 445 ―(...) In nostris codicibus quos ab apostolica sede maiores nostri acceperunt, sequendos
per ordinem usque ad Africanum concilium pro canonibus recipiendis venerandis (...)‖.
61
PL 126, 354: ―Unde sunt plura non solum in canonibus atque in romanorum pontificum decretis, sed
in veteris ac novi testamenti sanctis scripturis eodem Spiritu inspiratis quo et sacri promulgati sunt
canones, quae quidem inter se contraria esse videntur, et non sibimet sunt contraria, sed pro temporum
et rerum ac qualitale causarum disposita vel disponenda‖.
62
PL 125, 749; PL 126,206.
63
PL 126, 446‖ ―Ipsas autem epistolas, ut praedixi et saepe dicere necessitas ipsa compellit (...)‖.

175
occidentalis de não acatarem certas decretais, sob o pretexto que elas não figuram
nas coleções canônicas, talvez se referindo às Falsas Decretais, 64 Hincmar
argumenta que antes de Nicéia, os julgamentos vinham a Roma mas que após, o
papa Inocêncio dispôs que os assuntos não viessem senão após julgamento, apenas
para que fossem examinados,65 recaindo novamente o peso para o julgamento
conciliar ou sinodal e afirmando mais uma vez a concepção que o Papa é um
primaz entre os primazes ou um patriarca entre os patriarcas, tão a gosto do
arcebispo de Reims, e não um monarca universal. Recorrendo a argumentos
históricos e a uma legislação originária de Roma ou aprovada e incorporada por
ela, Hincmar pensa demonstrar que entre o arbítrio de uma monarquia
centralizadora e a dispersão anárquica onde cada bispo faz o que bem entender se
encontra uma estrutura ou um elo de equilíbrio melhor adaptado aos tempos em
que vive, que é a província metropolitana orientada pelo mesmo. A unidade do
povo cristão é desse modo assegurada pelo acatamento ou a adesão a uma lei que
rege toda a Igreja. Todo bispo é responsável pela execução das leis canônicas em
sua diocese, com a reserva de não cometer ou justificar erros e de ferir direitos que
deverão levar a apelar a um elo superior e em última instância a Roma. Assim
podemos entender as diferenças que se manifestaram e que levaram ao choque
entre Nicolau I e o arcebispo de Reims no caso particular do bispo Rothado de
Soissons, acusado de negligência canônica e indisciplina frente à proibição do
reino, de manter contato com Luís ―o Germânico‖, ou ainda pelo fato de ser
complacente com Gottschalk no debate sobre a predestinação.
Mas não foi o único motivo para o desencontro havido entre Hincmar e
Nicolau I, pois a interminável questão dos clérigos ordenados pelo seu antecessor
Ebbon levou o papa a proceder a uma revisão do assunto em 865. E nos parece
claro que um papa do porte de Nicolau I jamais poderia aceitar o papel atribuído
por Hincmar aos metropolitas ou aos arcebispos, nos quais via o elo que permitia
regrar os assuntos locais com eficiência, do mesmo modo que não poderia admitir
a autonomia de cada província ou diocese reconhecendo o papa apenas como
superior. O vigor intervencionista e centralizador de Nicolau I também estava
assentado numa concepção, que não toleraria elos intermediários, sejam eles
formulados por Hincmar ou pelo patriarca bizantino Photios, que também
provocou crise de 867, e que o levou o papa a apelar à união dos bispos do
Ocidente contra os gregos. Esse mesmo Papa Nicolau I é uma personalidade forte,
que pretende afirmar o poder espiritual frente à sociedade cristã e que na feliz
expressão de Walter Ullmann66 atinge um grau elevado no processo da

64
V. P. FOURNIER, ―Étude sur Fausses Décrétales‖ In: Revue d‘Histoire ecclésistique, 1907, p. 21.
65
PL 126,355.
66
A History of Political Thought: The Middle Ages. London, 1965 p. 76.

176
clericalização do pensamento político, processo esse que se iniciou desde a
coroação de Luís ―o Piedoso‖, por Estêvão IV, como ―imperador dos Romanos‖.
Naquele ato o simbolismo da unção foi associado ao da coroação, colocando o rei
sob a graça divina, o que não ocorreu anteriormente com a coroação de Carlos
Magno, no Natal de 800, quando Leão III, sem o caráter litúrgico e eclesiástico o
havia coroado como imperador. Com Lotário I, filho de Luís ―O Piedoso‖, foi
adicionada à cerimônia de coroação um detalhe, a entrega da espada, símbolo do
poder e da força, que o novo imperador recebia das mãos do papa, indicando que
ele deveria proteger e defender a este, e que para Agobardo de Lyons, um dos
arcebispos influentes da época, teria o significado indicar ao monarca ―a
subjugação das nações bárbaras, a fim de poderem abraçar a fé, e estender as
fronteiras do reino dos fiéis‖. Com Nicolau I a clericalização do pensamento
político atinge um grau mais elevado no sentido de outorgar ao poder papal um
significado não anunciado anteriormente, pois para ele os sumos-pontífices foram
instalados como príncipes sobre a terra. Nicolau I reafirma que não há quem possa
julgar o papa e que todos os cristãos são seus súditos, recebendo o poder das mãos
papais. Com isso o poder jurídico supremo é atributo único e exclusivo do papa,
cujos decretos são aplicáveis a todo cristão. A doutrina petrina da sucessão direta
ele adiciona a ―societas omnium fidelium‖ que deverá ser orientada por leis
promulgadas por ele, ou seja, o herdeiro de Pedro. Para ele, na coroação imperial
era concedido ao imperador o direito de governar, o direito de usar a espada, para
―a exaltação e paz de sua mãe, a santa e apostólica Igreja‖. A sociedade dos fiéis de
laicos e clérigos, equivalente ao povo cristão de Hincmar, é possível e se preserva
na fé em Cristo e se essa união for rompida toda a sociedade se arruinará. Portanto,
os príncipes deveriam ser instruídos com essa fundamentação sobre os seus
deveres, a começar pelo extermínio da heresia. Por outro lado, ele inferia que as
leis eclesiásticas ou canônicas que regem a sociedade dos fiéis, têm precedência
sobre leis promulgadas pelo príncipe, já que elas não podem contradizer os
princípios canônicos, devendo estar em harmonia com a fé exposta pela Igreja. A
lei deve ordenar a sociedade e não perturbá-la, visando aos seus fins últimos que
são a imposição dos valores cristãos e a salvação. Caso ele não o fizer desse modo
e suas leis ferirem essas finalidades, ele poderá ser desobedecido, sem que isso
possa ser interpretado como rebeldia, já que esta só pode ser sancionada pela
autoridade espiritual. E, de acordo com Nicolau I, um rei que se mostra tirano, se
equipara ao nível de um herético, assim como alguém que não obedece aos
decretos papais também o será. O legalismo ou o juridismo típico do século IX,
que encontramos em Hincmar, leva Nicolau I a formular uma doutrina
centralizadora do poder espiritual ou uma monarquia papal extremada e oposta ao
pensamento de Hincmar, como vimos, que defende o poder mediador dos
metropolitas, herdeiros dos Apóstolos.

177
Para Hincmar, o ministeriun real, como função humana, não é senão uma
delegação divina para o governo dos assuntos temporais e não confere nem direitos
nem privilégios pessoais. Como outros pensadores do período carolíngio, ele
acentua o exemplo social de que deve revestir-se seu poder com as virtudes cristãs
da justiça e da piedade, e nesse sentido Hincmar em nada inova sobre os seus
contemporâneos ou pensadores que o antecederam. Poderíamos dizer que em boa
parte os contemporâneos do arcebispo de Reims são unânimes em afirmar que o rei
para governar o deve fazer de acordo com os princípios do cristianismo,
respeitando as leis emanadas de seu governo e de seus ancestrais. Novamente o
respeito à lei e o peso que ela assume na vida social, se encontra como fundamento
básico no pensamento de Hincmar, no que concerne ao poder temporal. O
interessante, e talvez seja o aspecto original de sua elaboração, é a descrição que
ele faz para se entender o mecanismo que leva à origem do poder temporal. Ele
possivelmente admite a existência de um estado natural, antes da queda de Adão,
onde todos os homens viviam em liberdade e numa situação de igualdade, até que
o erro adâmico rompesse esse estado e os homens sofressem as conseqüências do
pecado. A vinda de Cristo introduziu uma segunda ruptura na vida dos homens,
trazendo aos seres humanos a esperança de novamente se associarem, no futuro, à
eternidade de Deus, na condição deles se adaptarem às regras sociais que Cristo
veio trazer sobre a terra, pretendendo com elas criar uma ordem social coerente,
desejada pela divindade, em contraste com a desordem anterior. A concepção
gelasiana, no De anathematis vinculo,67 de que anteriormente à vinda de Cristo os
homens eram revestidos de poderes aparentemente idênticos aos que são exercidos
hoje em dia pelos reis e sacerdotes, isto é, o de Melquisedek, 68 é historicamente
encerrada com a vinda de Cristo, que em sua pessoa, a última desse período,
reunirá em si o rex-sacerdos. Após, os dois poderes se dissociarão e nenhum
sacerdote poderá ser rei, do mesmo modo nenhum rei poderá reivindicar a função
sacerdotal. Hincmar recorre a Gelásio I muitas vezes em sua obra literária e dá a
devida importância à função real, colocando-o à testa da sociedade humana e como
responsável por todos, sendo que ela não poderia dispensá-la. Mas a função, por
ser indispensável à vida social, jamais poderá ser utilizada em proveito de uma
pessoa e portanto, se ela se exerce com correição, a monarquia é plenamente
justificável, enquanto que se ela decair e for exercida com excessos de uma tirania,
ela romperá o seu sustento moral e provocará uma volta à anarquia individual. Para
Hincmar, a divisão de responsabilidades formulada por Gelásio I é justificável na
medida em que ambas funções se mantêm em comunhão e cooperem uma com a

67
PL 59, p. 108-109.
68
PL 125, p. 1007.

178
outra.69 Alguns de seus contemporâneos, como Rabano Mauro, poderiam chegar a
formular que a instituição real é uma instituição de origem humana, para mostrar
que a sacerdotal, por ser divina, é a mentora da vida social e está acima da outra.
Por outro lado, encontramos no papa João VIII, que virá a coroar Imperador dos
Romanos a Carlos ―o Calvo‖, ―por privilégio da sede apostólica‖, que a escolha do
imperador era feita por inspiração celestial ou ―indicado e desejado por nós e
chamado por Deus‖; em outras palavras, Roma era a criadora de todos os reis, os
juízes e os clérigos de todo o mundo. 70 Hincmar se mantém fiel à fórmula
gelasiana e não permite nenhum desequilíbrio entre as funções responsáveis pelo
mundo e outorgadas pelo Cristo, mas sempre distinguindo entre a função e o
indivíduo que a exerce em um e ou outro caso. Essa comunhão se faz de modo que
o clero aporta à sociedade a informação de que ela necessita para poder
sobreviverem Deus e o rei assegura uma conduta correta dos homens e ajuda assim
o clero a guiá-los em direção à salvação. O clero corrige os erros por sanções
corretivas e o rei combate as suas conseqüências sociais pelo gládio judicial,
tornando os seus empenhos indissociáveis.71
Mais concretamente, a função episcopal gera a ordem eclesiástica e a função
real a res-publica.72 E quanto à res-publica, temos de entender que Hincmar
segue as pegadas de Sto. Agostinho, no De civitate Dei, XIX, 21, que considera a
res-publica um estado de direito ou justo e que permite ao seu povo obedecê-lo,
do contrário ela não poderá ser assim denominada. Para tanto, nela impera a lei
de Cristo, que visa à salvação, de modo que o povo não se encontra alienado do
aparato político que o orienta e governa, e ambos fazem parte da Igreja mística.
O conceito de res-publica é amplo e engloba toda a cristandade, mas cada
príncipe governa, com a ajuda de ministros laicos e eclesiásticos, um território do
povo cristão que Deus lhe confiou para administrar, constituindo-se desse modo
no governo temporal do mesmo.73 A gestão temporal é limitada, pois para a
orientação de questões políticas importantes é necessário recorrer aos dois
ministérios para que se chegue a uma decisão clara e de acordo com o
ensinamento divino, O ministério laico, que é da atribuição dos reis, se distingue
perfeitamente do dos clérigos e suas responsabilidades, que tangem aos assuntos
temporais, exigem uma colaboração da Igreja e requerem daqueles que se alçam

69
PL 126,248.
70
MANSI, XVII A, 347.
71
PL 125, 772: Quoniam episcopalis auctoritas praedicando vita et verbo et regia dignitas
regendo ac corrigendo praesse et prodesse omnibus debent (...) episcopus medicinali mucrone
(...) et rex iudicali gladio (...).
72
PL 126, 181: ― (...) quia rex et episcopus simul esse non potest et sui antecessores
ecclesiasticum ordinem, quod suum est et non rempubilcam quod regum est, disposuerunt (...)‖.
73
PL 126,314, onde Hincmar substitui a ―regalis potestas‖ gelasiana por ―principalis potestas‖.

179
ao poder uma moral elevadíssima. Aproximadamente, em 869, Hincmar escreveu
um texto a pedido especial de Carlos ―o Calvo‘, com o título De cavendis vitiis et
virtutibus exercendis, que de certa forma visa a responder à insegura posição do
rei quanto à sua atuação através de um questionamento sobre o valor das obras de
misericórdia e sobre a epístola e seu conteúdo, escrita por Gregório I a Recaredo,
rei dos visigodos.74 Hincmar tem a oportunidade de desenvolver seu pensamento
sobre o poder temporal, redigindo um texto de edificação moral e meditação
espiritual, que sirva de guia ao monarca. Carlos, diz Hincmar, que foi
bondosamente dotado de inteligência por Deus, deverá fugir das tentações
terrestres, meditando constantemente sobre sua conduta e visando à glória da
alma. O importante é a reta intenção para que se chegue ao caminho da salvação.
A função do rei serve de exemplo a toda a sociedade que modela sua conduta
sobre ela, portanto devendo ser o rei mais impecável que os demais homens,
levando as suas virtudes a um alto grau de perfeição, tem como modelo de
conduta a Cristo. Entre os vícios e virtudes que no homem se encontram em
permanente luta, devem-se interpor as boas ações e a caridade para se atingir a
conversão total a Deus, com o auxílio da penitência e da eucaristia.
Portanto, a regia dignitas, que é outorgada com a unção no ato de sua
coroação, implica numa responsabilidade moral exemplar e se assenta sobre as
virtudes fundamentais da ―iustitia-pietas‖ que Hincmar amplia para caracterizar as
qualidades que o rei necessita ter: mansuetude, paciência e caridade. 75 E, portanto,
se o rei governa de acordo com a piedade e a moral cristã, ele pode ser considerado
―rex... a recte agendo...‖ cuja expressão é lembrada no concílio de Paris, de 829.
Hincmar foge do esquema tradicional do equilíbrio que deve haver entre os oito
vícios e as oito virtudes, que freqüentemente aparecem na literatura moralista ou
nos ―espelhos dos príncipes‖, que servem de orientação moral para bem governar.
O mal dos males, para ele, é a cobiça, o desejo dos bens terrestres, seguindo assim
o versículo paulino, 1 Timóteo VI, 10, que ele menciona em seu texto.76 O
arcebispo estaria aqui seguindo de perto as advertências vetero-testamentárias
quanto à cobiça dos reis que Samuel havia feito ao ungir a Saul como rei de Israel e
que seria a própria condenação dos vícios próprios à monarquia, onde quer que ela
se encontre. O apego às coisas terrestres e a concupiscência desenfreada é a raiz de
todo o mal e por isso ela deve ser condenada como vício social por excelência, que
leva a conseqüências graves, como o esmagamento dos pobres e a arbitrariedade
dos que governam.77 A ambição sem limite provoca o orgulho e a cegueira moral,
entre outros leva à glutonice e à luxúria, e em outros à inveja, à cólera, todos eles
74
PL 125, 857-930.
75
PL 125, 1016.
76
PL 125, 869: ―quoniam avaritia non una quaelibet sed ea culpa est de qua omnes oriuntur‖.
77
PL 125, 868-871

180
males que têm sua origem no apego aos bens terrestres. 78 O De cavendis passa a
ser um verdadeiro tratado sobre a conduta moral que deve nortear a dignidade real,
a regia dignitas, muito próximo ao De institutione regia, de Jonas de Orleans, onde
se poderão encontrar idéias comuns ao texto de Hincmar.
Porém em Hincmar, além de encontrar-se uma exposição sobre o dever moral
do rei, ainda que não sistematicamente, podemos captar em seus escritos idéias
relativas ao poder temporal, a regia potestas. Sem dúvida, o substrato dessas idéias
se encontra nas Escritas Sagradas, e o que nós podemos denominar como teoria
política medieval, no fundo, se baseia na utilização de exemplos tirados daquela
fonte principal com complementos históricos posteriores ocasionais. Em Hincmar
o rei, como qualquer outro homem ligado a uma função elevada, eleito por Deus
para exercer o poder, está ligado a um compromisso moral com a divindade, mas
também ele assume compromissos contratuais com os homens e as instituições
humanas e acima de todos eles o respeito pelas leis. 79 A ordem social, portanto, é
resultado dos compromissos assumidos pelo rei em relação àqueles que são seus
súditos e fiéis. Mas como a ordem social é desejada por Deus, como vimos
anteriormente, a quebra dos compromissos de parte do rei constituem uma violação
natural da ordem divina. A tirania, portanto, é uma violação da ordem social ou
uma violação dos compromissos assumidos e das leis humanas. 80 A conclusão
desse raciocínio é de que o monarca pode ser submetido a sanções legais, se não
esquecermos que o fundamento da lei é a moral cristã, igualmente válida a todo e
qualquer ser humano vivendo na sociedade. Mesmo que ele elabore a lei, sua
conduta perante a mesma será julgada por Deus, desde que lhe foi confiada a tarefa
de zelar por ela e pelos que lhe foram confiados, e seus atos serão avaliados pela
divindade.81 Assim, o rei não tem a liberdade absoluta de se conduzir como quer e
não tem a liberdade de agir arbitrariamente ou de romper com seus compromissos
e assim, como já vimos em relação ao poder espiritual, a decisão confinada a
apenas uma pessoa não é a ideal, portanto melhor que se a faça com o conselho de
outros, contanto que eles sejam qualificados para zelar pela lei moral cristã.
Novamente sentimos a importância que Hincmar dá ao conselho ou à junta de
assessores que rodeiam o rei, para evitar que este cometa erros, pois ainda que
―secundum voluntatem Dei regit‖, Deus não pode determinar sua boa ou má
conduta política, o que também pode ter sido uma concepção inspirada pelas
Escrituras Sagradas.82 Nessa concepção o papel do rei vem a ser o de manter o
equilíbrio social em uma ordem desejada por Deus e que pode se alterar devido a

78
PL 125, 872-875; 878.
79
PL 126, 119 ―(...) Vos elegi ad rugimen regni sub conditione debitas leges servandi‖.
80
PL 125,700.
81
PL 125, 700-701.
82
PL 125, 988 e 1085.

181
decisões arbitrárias ou a urna conduta pessoal incoerente com o ideal social cristão.
Nesse caso, obedecer ao rei justo e piedoso é obedecer a Deus e aceitar urna ordem
estabelecida pela divindade.83 Houve momentos em que essa obediência se
mostrou como uma imposição histórica, momentos como os dos conflitos de
Carlos ―o Calvo‘, com as sucessões no território da Lorena ou com o bispo
Hincmar de Laon, que atinge a autoridade real em 868, e leva o papa a ameaçar o
rei com a excomunhão saindo Hincmar, de Reims, em sua defesa, em cartas
escritas em seu nome e em nome do rei, a Adriano II.84 Para Hincmar, quando se
trata de julgar um rei, e no caso, Carlos ―o Calvo‖ não se julgava culpado, ―nec
confessus, nec accusatus‖,85 o papa não é um bispo diferente dos outros.86 Quando
Hincmar sai em sua defesa, em defesa de um rei que ele considera cristão, erudito e
respeitador de todas as regras,87 ele não teme em dizer ao papa que ele ameaçou o
monarca sem um julgamento e em o fazendo ele extrapolou em seus direitos,
chegando a ser arbitrário.88 O equilíbrio social também pode ser alterado nesse
caso quando a arbitrariedade papal se manifesta e tenta impor sua vontade. 89 Para
Hincmar, a intervenção papal no reino, ―regni et saecularia negotia‖,90 revela o
desprezo pela função real constituída por Deus e cujo gladio está a serviço dos
inocentes.91 Em boa parte o arcebispo de Reims, que falava pela boca de Carlos ―o
Calvo‖, estava expressando a tradicional hostilidade do clero carolíngio a qualquer
intervenção pontifical no reino ocidental, mas de outro lado ele procurava chamar a
atenção ao papel que o sumo-pontífice deveria assumir no sentido de aconselhar e
corrigir a conduta dos reis e ajudá-los a se manterem no caminho da retidão.92 O
sucessor de Nicolau I, Adriano II, fora mais a fundo na aplicação da doutrina do
poder espiritual como mentor da sociedade cristã, e em particular na doutrina
petrina que afirmava terem os decretos dos sucessores de Pedro a mesma força
como se fossem emanados de Cristo, já que Pedro foi seu herdeiro. Mas antes de
retomarmos o pensamento de Hincmar, devemos chamar a atenção para o fato de
que Adriano II, assim como outros papas, desde Leão IV ou mesmo Gregório VII,
estava imbuído de que a Igreja deveria se libertar do sistema denominado de

83
PL 126, 988.
84
PL 124, 876-881 e 881-896.
85
PL 124, 877.
86
PL 124,881.
87
PL 124, 879.
88
PL 124, 879.
89
PL 124, 878: ―Nec talis est doctrina catholica ut propere vel huiusmodi causa rex, corrector
iniquorum, a sedis apostolicae communione debeat separare‖.
90
PL 124, 877.
91
PL 124, 880: ―(...) quae me regem a Deo constitutum et gladio ex utroque parte acuto ultore
scilicet nocentium et defensore innocentium (...)‖.
92
PL 124, 877.

182
―igreja-propriedade‖, dependente do proprietário da terra que recebia o
consentimento de construir em sua propriedade uma igreja, permanecendo a
mesma como um bem e com o conseqüente direito de indicar um clérigo para
servi-la. Esse sistema, que passou a atingir igrejas rurais e episcopais, naturalmente
vinculava os clérigos às necessidades familiares dos nobres que os empregavam. A
investidura laica, que foi o grande mal de certos remos europeus, em especial dos
territórios germânicos, foi em boa parte decorrente desse sistema que os papas
procurarão corrigir. Portanto, não é de estranhar a reação havida de Nicolau I e
Adriano II em relação aos assuntos relativos ao poder nos remos carolíngios.
Hincmar, que assumiu uma posição moderada ou equilibrada, justificando-a
teoricamente, como vimos acima, não deixou de expressá-la, como redator das
cartas de Carlos ―o Calvo‖ ao Papa Adriano II, logo após as ameaças e as ofensas
em linguagem agressiva contra o monarca, e a ameaça de excomunhão, exigindo
deferência ao rei e lembrando a fórmula de Gelásio.93 Hincmar afirma
coerentemente a necessidade dos dois poderes colaborarem, dentro de suas
funções, para a edificação do povo cristão, sem que o sumo-pontífice e o clero
abusem de seus direitos para depor ou punir um rei. No fundo, se o rei não é um
tirano, e se vê a si mesmo como um ser humano igual a outros frente a Deus, e
também é humilde, ele, elevado à função pela divindade, possui um poder imenso
que merece a aceitação da Igreja enquanto não for arbitrário e ferir as regras que
fundamentam a ordem social. Em Hincmar, a colaboração ou a comunhão dos dois
poderes em suas funções, separados após Cristo, servem para orientar o povo
cristão em direção à sua salvação.

93
PL 124, 877. ―et apostolicae sedis pontifex et reliqui Dornini sacerdotes nobis quae a Deo sunt
constituta exhibcant (...)‖, ―Servate ergo nostrae regiae potestati quae nostra sunt et liceat nobis
servare vestrae pontificali auctoritate quae vostra sunt‖.

183
10

A TEOCRACIA IMPERIAL NO FIM DA ALTA


IDADE MÉDIA

Departamento de História
e do Curso de Mestrado em Filosofia Política da UFG

Durante aproximadamente um século os reis e imperadores germânicos


exerceram um controle sobre a Societas Christiana e especialmente sobre o
Papado. Vários fatores de natureza diversa contribuíram para isso. Iremos tratar de
alguns deles em face de sua relevância no tocante ao tema em apreço. Entretanto,
parece-nos mais importante, com vista ao mesmo propósito, examinar e analisar os
fundamentos teóricos da realeza germânica e da monarquia imperial e como a
primeira pôde se transformar na segunda.
Um desses fundamentos se alicerçava na concepção teocrática do poder.
Mas para fazermos tal análise será preciso recuar no tempo a fim de que
entendamos como paulatinamente os medievais vieram a absorvê-la.
Entretanto, o significado de Teocracia, ainda hoje, não é bem entendido pelos
estudiosos do pensamento político medieval,1 entre os quais há um grupo que
entende aquele termo como tendo sido o regime político, o governo, exercido pelos
dirigentes eclesiásticos, os quais teriam praticado um verdadeiro dirigismo político
sobre os governantes seculares na esfera regular de atuação destes. No entanto,
essa concepção é bastante longínqua da que admitimos como a mais correta.
Em primeiro lugar, teocracia designa etimologicamente ―o governo exercido
por Deus‖ e nada além disso. Num sentido mais preciso, essa palavra designa o
governo exercido em nome da ou das divindades. Afastamo-nos, pois, das
fronteiras cronológicas da Idade Média, porque houve regimes teocráticos na
Antiguidade. O Egito antigo teve um regime teocrático, pois os faraós, além de se

1
BARBOSA, João Morais. ―Fundamenti teorici della hierocracia nel pensiero politico del Tardo
Medioevo‖. In: SOUZA, José A. de C. R. de. Org. Temas de Filosofia Medieval. Santos:
Universitária Leopoldianum, 1990, p. 257-277, particularmente: p. 259-260.

184
considerarem a encarnação viva de Horus, ou de Amon-Rá ou de Aton, se diziam
igualmente filhos de um ou de outro deus e, graças a essa concepção puderam
estabelecer e exercer um regime político absolutista sobre todo o povo egípcio, que
perdurou inclusive durante o Período Helenístico, teoria essa que, diferentemente
do que sucederá na Idade Média, afastava completamente a hipótese dum
questionamento sobre a legitimidade do poder.
Ademais, o poder tinha a sua justificação na transcendência, na metapolítica, o
que colocava o dirigente, fosse quem fosse, numa posição inquestionável. Neste
aspecto, aliás, a teocracia régia do final da Idade Média ostentou certa semelhança
com a teocracia egípcia, conquanto tenha havido muitas diferenças entre ambas.
Os reis de Israel/Judá governaram o seu povo em nome de Javé. E os
hierocratas medievais, ao sustentar sua teoria, nunca se esqueceram de que os
israelitas, por vontade expressa de Javé, primeiramente foram dirigidos por
sacerdotes, e só mais tarde ele permitiu, não aquiesceu favoravelmente, que
tivessem um rei, por causa de seus pedidos insistentes com aquele propósito.
Os monarcas israelitas também eram então ungidos com o óleo bento, gesto
esse que indicava não apenas o sinal de uma escolha divina, mas também que eles
tinham uma especial missão, até certo ponto espiritual, a desempenhar junto ao
Povo de Deus. Portanto, o poder temporal em Israel, como no Egito Antigo, tinha
uma causa eficiente, uma origem divina, e, assim, sua natureza era espiritual. A
unção régia e imperial, comum no período medieval, perpetuaria semelhante
concepção, segundo a qual os potentados seculares dispunham dum poder a seu
modo também espiritual e miraculoso.2
Os imperadores do Baixo Império, influenciados pela herança cultural das
monarquias helenísticas, também exerceram um regime teocrático, ora em nome
do Sol Invicto, ora de Mitra ou ainda em nome do próprio Júpiter, exigindo de seus
súditos, inclusive dos ministros, a prosquinese e o beijo na barra do manto
escarlate, por sinal, um dos símbolos do poder divino que pretendiam exercer.
Constantino Magno (306-337) e seus sucessores cristãos também
procederam de acordo com tal concepção, considerando-se lugar-tenentes de
Deus na terra. Além da sobredita herança cultural religiosa que conheciam
muito bem, serviram-se igualmente da própria doutrina apostólica para reforçá-
la. O início do capítulo XIII da Carta de Paulo aos Romanos a fundamentava:
―Todo homem se submeta às autoridades constituídas, pois não há autoridade que
não venha de Deus. De modo que aquele que se revolta contra a autoridade, opõe-se à
ordem estabelecida por Deus. E os que se opõem atrairão sobre si a condenação. Os
que governam metem medo quando se pratica o mal, não quando se faz o bem. Queres
então não ter medo da autoridade? Pratica o bem e dela receberás elogios, pois ela é
instrumento de Deus para te conduzir ao bem. Se, porém, praticares o mal, teme,

2
BLOCH, M. Les Rois Thaumaturges, Paris: Gallimard, 1983, em especial: p. 28-260.

185
porque não é à toa que ela traz a espada: ela é instrumento de Deus para fazer justiça e
punir quem pratica o mal. Por isso, é necessário submeter-se não somente por temor do
castigo, mas também por dever de consciência. É também por isso que pagais
impostos, pois os que governam são servidores de Deus, que se desincumbem com zelo
do seu oficio. Dai a cada um o que lhe é devido: o imposto a quem é devido; a taxa a
quem é devida: a reverência a quem é devida; a honra a quem é devida(...)‖. 3

O primeiro versículo antes citado sugeria precipuamente que o Apóstolo


acreditava na legitimidade e na incontestabilidade do poder universal do
Imperador. A par disso, ainda, a intenção de Paulo, ao redigir esse passo, foi a de
dissuadir os cristãos de manter um comportamento diferente que correspondesse à
sua posição singular na sociedade romana, enquanto formavam um povo eleito.
Isso, porém, jamais devia eximi-los da obediência aos príncipes seculares, mesmo
que estes fossem seus opressores.
Igualmente uma passagem de São Pedro:
―Sede submissos a toda a instituição, por amor do Senhor, seja ao rei como
soberano, seja aos governadores como enviados por ele para punirem os malfeitores e
encomiarem os bons. Tal é a vontade de Deus: que, fazendo o bem, tapeis a boca à
gente insensata e ignorante, agindo como homens livres, e sem abusar da liberdade
como máscara de nequícia, mas como servos de Deus. Respeitai a todos, amai os
irmãos, temei a Deus, honrai o rei. 4

O preceito expresso no final desse texto apostólico, servia também para


impor, como princípio diretivo religioso e proveniente da autoridade divina, a
obediência da parte dos cristãos, na condição de súditos de Roma, ao dirigente
máximo do império.
Em suma, o poder político do imperador devia sua legitimidade à vontade
de Deus, criador e senhor de todo o universo. E, se este princípio de ordem
universal era querido por Deus, o poder político, ao inserir-se nessa ordem,
tornava-se legítimo através duma instância transmundana, eterna.5
Além desse fundamento religioso da teocracia imperial, ela se baseava
ainda em aspectos culturais dessacralizados ou puramente políticos.
Os imperadores, termo esse que designava o comandante supremo do exército,
apoiados na literatura jurídico-política de então, eram igualmente considerados
como príncipes, isto é, os primeiros dentre os cidadãos e detentores da auctoritas.
Essa condição lhes assegurava supremamente exercer todos direitos nas esferas
administrativa, militar, legislativa e judiciária e usufruir de enormes privilégios
inerentes ao cargo que ocupavam.

3
Cf. Rm 13,1-7.
4
Cf. 1 Pd 2,17.
5
Cf. a propósito, ROPS, Daniel. ―Omnis Potestas a Deo. L‘Origine du pouvoir civil et sa relation
à 1‘Église‖. In: Recherches des Sciences Religieuses, 56(1968):43-85.

186
Tais direitos se exteriorizavam, entre outros, nos seguintes postulados: a
decisão do príncipe tem força de lei; o príncipe está solutus legibus, cujo
significado preciso tem enorme relevância para a compreensão do nosso
tema. O primeiro deles indicava que o imperador era a fonte, a origem, a
causa eficiente das leis, as quais simplesmente emanavam duma decisão
sua, o que equivale, acreditamos, a um progressivo enfraquecimento do
direito abstrato e à correspondente expansão dum conjunto de leis
provenientes, de um lado, da vontade casuística do chefe político, e de
outro, na jurisprudência dos ―experts‖ à essas leis.
O segundo princípio queria dizer que o príncipe estava isento de obedecer
às leis por ele mesmo promulgadas; que estava radicalmente separado da
sociedade que dirigia, isto é, acima dela, e que a autoridade eminente que
exercia não provinha de seus integrantes. Assim, o imperador era a fonte
imediata de onde emanavam as leis e a justiça interpretativa delas próprias, e
ipso facto o chefe supremo do império.
Mas é preciso reiterar que o imperador devia sua autoridade e tal preeminência
a Deus, a quem tinha o dever moral de prestar contas de seus atos políticos.
Disto se originaram duas conseqüências destinadas a se confrontarem ao longo
da Idade Média: 1) o rei/imperador só tinha de obedecer a Deus, ficando assim
liberto de todo e qualquer compromisso com a sociedade que governava; 2) se o
rei/imperador tinha o dever de prestar contas a Deus de seus atos, isto o colocava
sob a responsabilidade daqueles que, neste mundo, eram os intérpretes especiais da
palavra de Deus e seus representantes, a saber, os prelados e particularmente o
papa. Noutras palavras, a teocracia régia, ao apoiar-se em postulados de natureza
religiosa colhidos no Cristianismo, abria o caminho à hierocracia.
Entretanto, ainda estamos nos referindo às épocas de Constantino, Teodósio
―O Grande‖ (379-395) e Justiniano (527-565), os quais, fundamentados em todo
esse aparato ideológico, e igualmente levados por razões políticas, v.g., a unidade
do império, com freqüência assumiram comportamento cesaropapista, quer dizer,
interferiram nos assuntos e questões doutrinário-eclesiásticas, isto é, de natureza
eminentemente espiritual, portanto, da esfera de competência exclusiva da Igreja e
de seus dirigentes. Tal procedimento, aliás, foi uma característica marcante dos
imperadores bizantinos que mais tarde os sucederam. O Imperium Universale
doravante tinha de ser sempre um Imperium Christianum.
Nos capítulos iniciais deste livro, tivemos a ocasião de examinar qual foi a
reação das autoridades eclesiásticas, face a essa ingerência dos imperadores e reis
nos assuntos da Igreja, acentuadamente marcada tanto pela insistência no tocante
às características próprias dos poderes espiritual e secular quanto às suas esferas
específicas de atuação e às respectivas finalidades.

187
Isto não significou, porém, que, mais tarde, após a desagregação das
províncias ocidentais do Império, a nobreza e os reis visigodos, merovíngios e
lombardos e seus prepostos tivessem deixado de se imiscuir nos assuntos
eclesiásticos, quando julgavam que era necessário e tinham meios de o fazer, a
ponto, inclusive, de indicar direta ou indiretamente os dignitários eclesiásticos,
e de lançar mão dos bens da Igreja.
A teocracia no Ocidente europeu ganhou novo impulso com a Restauratio
do Império Romano em 800. Carlos Magno, na noite de Natal daquele ano, foi
coroado imperador do Ocidente.6 Mas não nos esqueçamos de que foi o Papa
Leão III (795-816) que efetivou aquele ato.
A teocracia imperial fez-se acompanhar igualmente de seu corolário
inseparável, o cesaropapismo. Apesar do respeito, da colaboração mútuos e
recíprocos que havia entre o imperador e o papa no governo da Cristandade, o
imperador interferiu em questões de natureza religiosa, tanto no âmbito da
disciplina eclesiástica, quanto na esfera da liturgia, da doutrina e da evangelização
compulsória de povos pagãos, porque essas questões tinham implicações políticas.
O cesaropapismo imperial se consolidou também graças a dois outros fatores:
1) Algum tempo antes de ser coroado imperador, Carlos tinha instituído a
figura político-jurídica dos missi dominici (um leigo e um eclesiástico), os quais
fiscalizavam a atuação governamental religiosa e temporal de todos os dirigentes
subalternos (respectivamente bispos e condes, marqueses e duques) em seus
domínios, informando-o acerca da atuação dos mesmos, com vista não apenas a
reforçar seu poder, dotado simultaneamente duma dimensão temporal e espiritual,
mas também com o propósito de o tornar mais eficiente.
Todavia, não nos esqueçamos também de que Carlos era o supremo
mandatário do Imperium, mas este identificava-se teoricamente com a
Christianitas e com a própria Ecclesia, três perspectivas diferentes duma
única realidade.7
2) Os primeiros carolíngios estavam convictos de que desempenhavam
igualmente a função de protectores Ecclesiae. Por isso, usufruíam do direito de
intervir nos assuntos eclesiásticos. À guisa de exemplo, basta lembrar a ação de
Pepino ―O Breve‖ (743/751-768) no tocante ao papado, e o motivo da própria
vinda de Carlos Magno a Roma no ano de 800, como o atestam as fontes.
Em suma, a ideologia imperial carolíngia, embora tivesse cometido alguns
equívocos, misturando as duas esferas de poder, conseguiu unir firmemente as

6
Cf. o célebre livro de HALPHEN, L. Charlemagne et l‘Empire Carolingien. Paris: Albin
Michel, 1968.
7
Cf. WECKMANN, L. El Pensamiento politico medieval y las basis para um nuevo derecho
internacional. Mexico: UNAM, 1950.

188
realidades mais profanas com a autêntica vida espiritual. Os vassalos e vavassalos
dos imperadores e os fiéis da Igreja eram os mesmos e formavam um único povo.
A justiça que faziam aplicar, por mais rude que fosse, mantinha a ordem e a
paz pública, querida por Deus, conditiones sine quibus non era possível que a
Igreja pudesse levar a bom termo a sua missão, graças à qual as pessoas poderiam
alcançar a Beatitude. Mas ―Le système ne fonctionait que duns la mesure où la
hierarchie cléricale et l‘aristocratie collaboraient à une oeuvre commune sous
l‘autorité de 1‘empereur (...) il importait que le mêmes familles fournissent le
personel de gouvernement de l‘Eglise comme de l‘Empire (...)‖.8
Todavia, com a desagregação do império carolíngio, no início do século X, a
Igreja Romana não apenas perdeu seu protetor, mas ainda acabou sendo tutelada
pela aristocracia italiana que, muitas vezes conduziu ao trono de Pedro pessoas
indignas de exercer o cargo de sumo pontífice. Esta situação contribuiu para que
em toda cristandade latina, mais ou menos intensamente, surgissem e se
espalhassem por toda parte as assim chamadas chagas da Igreja: a simonia, o
nicolaísmo e a investidura, corrompendo o clero.
Essa idéia de protector Ecclesiae, como algo da competência do poder real,
que mais tarde será reassumida pelos soberanos germânicos, é justamente o elo de
ligação entre os componentes políticos já examinados, com o terceiro e último
ingrediente a ser analisado por nós, a fim de que seja possível compreender
claramente o assunto que inicialmente nos propusemos a abordar.
A monarquia germânica, sob o ponto de vista político- institucional, de um
lado, era herdeira de algumas tradições culturais próprias — por exemplo, o fato de
ela ser, em princípio, eletiva e não exclusivamente hereditária, fato esse que, ao
menos teoricamente, limitava o poder régio, exceto se o seu detentor fosse
militarmente muito poderoso.
O mais importante poder político do rei germânico era o mundeburdium,
graças ao qual ele era considerado o protetor, o justiceiro e o pacificador (chefe
militar) do reino. Assim, as medidas judiciárias, militares e administrativas, por
exemplo, que tinham de ser tomadas de acordo com aqueles misteres, eram de sua
inteira responsabilidade e lhe asseguravam o direito de ouvir, consultar e requisitar
quem e quantas pessoas necessitasse, pois os vassalos e vavassalos tinham o dever
de lhe prestar auxilium et consilium.
Ele igualmente possuía o bannum, mediante o qual podia ordenar qualquer
coisa a todos os súditos.
Por outro lado, a concepção que os germânicos tinham da realeza, graças à
atuação do clero regular e secular, também absorveu alguns aspectos ideológico-
políticos da civilização romana, como já tivemos ocasião de mostrar.

8
PAUL, Jacques. L‘Église et la culture en occident, IXe. - XIIe. siècles. Paris: PUF, 1986, p. 162, v. 1.

189
Há ainda mais duas idéias que completam essa herança e sobre as quais iremos
falar agora. Tratam-se da pax romana e da ecumene universal. Malgrado a
desagregação e a ruína das províncias ocidentais do império romano,
transformadas em reinos independentes, e a tentativa efêmera de Justiniano I de
reintegrá-las ao território, com os propósitos de coibir novas invasões e de
abastecer o Oriente com os recursos naturais que as outras possuíam, o antigo ideal
da pax romana somado à idéia de império universal, levado a termo por Alexandre
(334-323 a.C.), César (100-44 a.C.), Augusto (27 a.C.-14 d.C.), Trajano (98-114)
estavam bem vivos na memória do clero, o qual achava ser possível estabelecer um
ecumenismo universal em que a civitas terrena espelhasse a civitas caelestis, e
onde auctoritas imperial fosse igualmente geradora do Direito, da Justiça e da Paz.
Testemunha esse fato uma frase que se encontra num tratado de direito do final do
período merovíngio: O imperador é aquele que exerce uma preeminência sobre
todo mundo, sob sua autoridade se encontram os monarcas dos outros reinos.9
O clero também contribuiu para realimentar a concepção que os germânicos
tinham da realeza, com outros aspectos da tradição cristã. Exemplifica bem este
componente o fato de os reis se considerarem como tal, gratia Dei, expressão
típica da teocracia cristã, a qual significava que tinham sido escolhidos por Deus
para governar todos os seus súditos. Os seus pares eleitores, quer dizer, os outros
principais líderes da aristocracia militar, tinham servido de simples instrumento
humano para a concretização e atualização da escolha divina. E ―al depender de la
gracia divina el rey estabelecia una estrecha relación con la misma divindad y
inversamente se desligaba cada vez más del pueblo (...)‖.10
O fundamento para aquela fórmula e postulado também se radicava numa
frase paulina: ―Pela graça de Deus sou o que sou‖, 11 a qual denotava
simultaneamente o seguinte: a) o que cada pessoa é, não o é por causa de seus
méritos ou do favor de outrem, mas exclusivamente devido à bondade divina. b)
Os reis, enquanto recipiendários da graça divina, julgavam usufruir duma
comunhão mais íntima, particular e exclusiva com Deus.
A teocracia régia, tal como a hierocracia, integrava-se na concepção
descendente do poder: este provinha do Alto, nunca da vontade do povo ou
sequer de alguma instância humana de organização político-social, fosse ela,
por exemplo, os príncipes eleitores. Nesta circunstância a ideologia teocrática
afastava o povo do acesso ao poder. Ademais, recusava a antiga noção grega e
romana de cidadão, vigente ao menos até o fim do Principado (192),
substituindo-a pela de súdito. Noutras palavras, não admitia a perspectiva
9
Cf. DHONDT, J. La Alta Edad Media, Madrid: Siglo XXI, 1973, p. 199.
10
ULLMANN, Walter. Principios de gobierno y politica en la Edad Media. Madrid: Ed. Revista
de Occidente, 1971, p. 123.
11
Cf. lCor. XV, 15.

190
horizontal do poder associada à concidadania, optando pela vertical,
perfeitamente correspondente à hierarquia vassálico-feudal.
Aquela frase do Apóstolo, neste novo contexto político, tendia a reforçar ainda
mais o poder real, originado, como dissemos, na vontade divina. Mas, as graças
celestiais tinham sido transmitidas por Cristo, aqui neste mundo, à Igreja, cujos
dirigentes eram os seus próprios dispensadores. Esta situação era, pois, o escolho
principal com que se defrontava a teocracia régia, porque movia-se no território
conceptual dos adversários hierocratas.
De tal concepção acerca da origem divina e da natureza espiritual do poder
real adivinham algumas conseqüências:
a) Os reis germânicos se consideravam Vicarii Dei, isto é, dado que ele não
podia estar presente no meio de seu povo, escolhia um representante para governá-
lo em seu nome. A unção régia, como se fosse um sacramento especial, era o sinal
visível mediante o qual o rei estava apto a exercer o seu ofício e fora transformado
num christus Domini gozando de uma situação político-social bastante singular,
conforme Samel tinha descrito em seu livro.12
b) Somente os reges eram competentes para designar alguém para exercer
uma tarefa qualquer e podiam conceder favores aos seus súditos. Estes, desde
que se tornassem indignos de exercê-las ou de merecê-los, poderiam vir ser
destituídos do cargo ou perder aquele privilégio.
c) Os súditos em geral não estavam aptos a exercer quaisquer das
responsabilidades régias, conquanto pudessem ser convocados a compartilhar
de seus encargos e gozar dos benefícios e privilégios inerentes ao mesmo.
Havia, pois, na Germânia um ambiente propício para a restauração de
antigas idéias e aspirações políticas.
Foi Oto I quem deu o grande passo inicial com vista a restaurar o império e a
teocracia no mundo latino medieval. Filho do rei Henrique I (919-936), antigo
duque da Saxônia, e da princesa vestfaliana Matilde, sucedeu o pai em 936.
Na verdade, o novo monarca naquela ocasião tornou-se o primus inter pares,
isto é, o primeiro entre os demais príncipes germânicos, em cujos territórios
predominava uma unidade etno-cultural que assegurava para os mesmos uma
política homogênea, impedindo a sua desagregação em subfeudos, embora esses
grandes territórios ou ducados, a saber — o da Baviera, o da Saxônia, o da
Francônia, o da Lorena e o da Suábia — tivessem se aglutinado bem mais tarde do
que os domínios francos ou italianos.
Logo no início de seu governo, Oto I passou a agir diferentemente de como
seu pai procedia, o qual costumava agradar os poderosos duques, ouvindo-os

12
Cf. lSm. 8, 1.8; 10, 1,6.

191
acerca da indicação de prelados e abades. Seu interesse pessoal e o da
monarquia o conduziram noutra direção.
O rei sabia muito bem que o vicariato régio-divino lhe assegurava não
apenas exercer uma suserania sobre leigos e clérigos, mas também regular tudo o
que fosse do interesse tanto da religião e da administração eclesiástica, quanto da
política, de modo que, se as circunstâncias assim o exigissem, podia inclusive
controlar até mesmo a ação dos prelados, apesar de não ignorar também que os
bispos eram ungidos para desempenhar o munus de pastores do rebanho, tarefa
essa, porém, que no seu entender se limitava apenas à cura animarum, isto é, à
pregação da palavra, à distribuição dos sacramentos e à realização de obras pias
em favor dos fiéis.
Então, com vista a neutralizar o poder paralelo dos duques, Oto I, e, depois, os
seus sucessores, à frente do reino germânico e do império, cientes daqueles
aspectos ideológicos antes citados, relativos ao seu poder político, adotaram uma
medida engenhosa e inovadora que consistiu primeiramente em conceder aos
bispos de Colônia, Spira, Magdeburgo e Mogúncia o direito de exercer em suas
dioceses o poder judiciário secular, o de cobrar impostos e o de cunhar moedas,
transformando esses prelados em ―novos condes‖ do reino. ―L‘évèque de
proprietaire foncier qu‘il était, devient prince territorial. Bref, le pouvoir des
hommes d‘Église sur les terres et sur les personnes s‘étend (...)‖.13
A par disso, Oto I e, mais tarde, os seus sucessores passaram a defender o clero
e as religiosas dos seus inimigos, isto é, dos ambiciosos duques, os quais, para
aumentar o seu poder ou recompensar os seus aliados, tinham se apossado pela
força, e continuavam a fazê-lo, das propriedades e doutros bens eclesiásticos, e
rompido com a coesão que havia entre as igrejas germânicas, cujos líderes tinham
nostalgia da ordem e unidade que imperara na época dos primeiros carolíngios. Os
reis germânicos, portanto, estavam convencidos de que agindo dessa maneira
faziam-lhes justiça, porque se tratava dum grupo social indefeso, cujos cânones
lhes proibiam severamente empunhar armas, até mesmo para salvar a própria vida.
Em seguida, com referência às eleições episcopais, Oto I aparentou observar o
que estabeleciam os cânones: era da alçada do clero e do povo da diocese vacante
indicar um novo bispo para a mesa. Entretanto, a prática eram bem outra. O rei
supervisionava diretamente as eleições, ou através de legados observadores que
chegavam a sugerir aos eleitores quem ele desejava que ocupasse aquele cargo.
Uma vez efetuada a eleição, o soberano enviava o báculo do prelado falecido ao
bispo eleito, o qual o procurava e lhe prestava juramento de fidelidade.

13
PAUL, Jacques. L‘Église et la culture..., p. 197: ―De 967 à 1060, pendant un siècle environ, la
chapelle fournit la moitié des évèques (...)‖.

192
Oto I e seus sucessores também imitaram o que os antigos reis francos já
tinham feito antes com membros do clero. Sem escrúpulo algum passaram a
investi-los nas prelaturas e abadias vacantes, beneficia, a fim de recompensá-los
pelos serviços prestados à coroa e porque desfrutavam de sua inteira confiança.
Esses eclesiásticos, recrutados em quaisquer dioceses,14 tinham primeiramente
trabalhado na chancelaria régia/imperial sob a liderança do arquicapelão. Bruno,
por exemplo, irmão do rei, foi arcebispo de Colônia e após a rebelião e derrota de
Guilherme ―O Ruivo‖, foi feito duque da Lorena. Guilherme, filho bastardo de Oto
I, foi arcebispo de Mogúncia e mais tarde chanceler do império.
Assim procedendo, os reis germânicos, de um lado, colocavam os prelados sob
o seu patrocinium e de outro, se tornavam ―proprietários‖ destas igrejas ou
daquelas abadia, passando a ter um enorme interesse em conservar intacto o seu
patrimônio e manter a integridade física de seu administrador, além de
efetivamente atuarem como monarcas, cuja autoridade tinha de se estender sobre
todos os negócios do reino.15
Ademais, a maior parte dos monarcas germânicos, interessados no bem-estar
espiritual de seus súditos, julgava necessário indicar para as prelaturas as pessoas
mais idôneas e aptas a desempenhar aquele munus, ato esse, aliás, em perfeita
harmonia com uma mundividência sócio-política funcional e tripartida,
ideologicamente elaborada pelos próprios membros do clero e alicerçada
filosoficamente no neoplatonismo.
Essas medidas criaram um estreito vínculo de ligação entre os dignitários
eclesiásticos e os reis germânicos, pois eles institucionalizaram ―una capa social
compuesta de hombres poderosos cuyos intereses coincidieran totalmente con los
de la corona (...)‖.16
Todavia, se os bispos-condes obtiveram uma parcela do mundeburdium e do
banum real, bem como prestígio e riquezas, suas obrigações não eram poucas:
deviam aconselhar o rei quando requisitados para tanto e, se fosse o caso, até
permanecer junto dele; deliberavam com os nobres nos capitula sobre todos os
problemas do reino, e mais tarde do império; quando necessário tinham a
obrigação de recrutar e fornecer tropas ao rei; deviam administrar e proteger as
cidades-dioceses que governavam; tinham de educar na fé e nos bons costumes os
seus habitantes, clérigos, monges, religiosas e leigos.

14
Idem, ibidem: p. 177.
15
ULLMANN, Walter. The growth of papal government in the Middle Age. London: Methuen,
1955, p. 231-232: ‗(...) the ninth and tenth centuries had not only wilnessed the exuberant growth
of the proprietary church system, which, from an ideological point of view, is charcterized by the
application of the Teutonic idea of protetion to the individual churches, but also the application
of the true monarchic principle to all the important bishoprics (...)‖.
16
DHONDT, J. Op. cit. p. 206.

193
Embora, no princípio, nem todos os eclesiásticos tivessem dado apoio irrestrito
a essa medida política de Oto I e de seus sucessores, a qual veio lhes possibilitar
gradualmente exercer enorme influência sobre os territórios vizinhos que lhes
estavam adscritos, nomeadamente a Polônia, a Hungria e a Itália setentrional,
porque tal gesto provocava uma confusão inevitável entre a missão própria dos
bispos, e as novas atribuições seculares para as quais estavam sendo nomeados,
todavia ela fortaleceu a ―igreja nacional germânica‖, cuja maior parte do clero,
piedoso e culto,17 mais tarde, aos poucos, acabou aceitando-a, visto essa política
contribuir para a reforma da vida clerical, principiada no mosteiro de Cluny e
irradiada por seus monges, contra a simonia e o nicolaísmo.
Mas somente a existência desses interesses recíprocos entre o rei e o alto
clero não explica a ampliação do seu poder. Ele também estava convicto de que
precisava fortalecer plenamente a monarquia e a pureza dos valores morais e
religiosos do Cristianismo, de modo especial entre os clérigos.
Foi em 954 que Oto I conseguiu finalmente dar um golpe de misericórdia
na alta nobreza germânica ao derrotar uma coligação chefiada pelos duques da
Baviera, Suábia e Francônia, os quais instigaram seu próprio filho primogênito,
Liodolfo, a se rebelar contra o pai e a tentar arrebatar-lhe o trono.
Antes, porém, ele tinha gradualmente dilatado as fronteiras do reino ao vencer
eslavos, poloneses e húngaros. Estes últimos foram derrotados na batalha de
Lechfeld (9 de agosto de 955), após a qual ele foi aclamado por suas tropas pater
patriae, imperator e Koeningheil. A legitimidade oriunda do sangue real se juntou
aquela intrínseca ao próprio poder numa sociedade cristã de guerreiros: a pessoa
que o obtém pelas armas o conseguiu mediante uma graça divina. A eleição, a
hereditariedade e as vitórias militares eram, portanto, fatores associados e
complementares legitimantes do poder.
Nos países conquistados, o rei passou igualmente a difundir o Cristianismo,
granjeando assim o apoio total do clero germânico à sua política e, ainda, o
respeito e a admiração dos bispos de Roma, os quais há algumas décadas
enfrentavam uma situação política bastante incômoda.
No século X, a Península Italiana estava fragmentada em vários pequenos
domínios feudais, dentre os quais, de norte para sul, o reino da Lombardia, cujos
titulares se julgavam reis da Itália, o marquesado da Túscia, o ducado de Espoleto
(Adriático), o Patrimonium Petri (Tirreno), os principados de Cápua, Benevento e
Salerno, e o condado da Apúlia. Toda Calábria, então, era domínio bizantino, e a
Sicília estava nas mãos dos muçulmanos.

17
Cf. PAUL, Jacques. L‘Église e la Culture..., p. 209-212: O autor baseado em fontes, cita um
número considerável de santos e piedosos bispos germânicos que exerceram seu apostolado em
várias regiões da nação.

194
Os senhores desses territórios, visando a ampliar seus domínios e o poder
político, viviam em constantes lutas entre si. As possessões pontifícias e Roma
também foram alvo dessa ambição, especialmente da parte dos duques espoletanos
Teofilato, Alberico I e II, os quais se apossaram da Cidade dos Césares e
entronizaram na Sé Romana parentes, amigos e partidários, muitos dos quais
levavam uma vida bem pouco edificante, fato esse que não os recomendava para
dirigir o papado. Apesar disso, ninguém contestava a preeminência espiritual da Sé
Apostólica sobre as demais, a ponto de os arcebispos eleitos, para poderem exercer
a liderança sobre os seus sufragâneos, solicitarem ao bispo de Roma que lhes
enviasse o pálio abençoado. Além disso, há muito, ele era instado a se pronunciar,
em grau de instância última de apelo, sobre todos os processos envolvendo
eclesiásticos e assuntos espirituais. Por conseguinte, controlar o papado significava
exercer uma parcela considerável de poder sobre a Cristandade.
Pouco antes de morrer, em 954, Alberico II fez com que a nobreza romana
e o papa Agapito II (946-955) jurassem que aclamariam papa seu filho
Otaviano, com 18 anos, já ―Senador e Príncipe de todos os Romanos‖. Foi isso
o que realmente aconteceu, e o jovem tomou o nome de João XII (955-963).18
Algum tempo depois, Berengário II, rei da Lombardia, com fito de dilatar
os seus domínios, ameaçou conquistar o Patrimonium Petri. Então, quase no
final de 961, o pontífice solicitou a Oto I que viesse à Itália socorrê-lo, pois,
como ele havia libertado as igrejas germânicas da tirania dos duques,
igualmente libertaria o papado da tutela dos potentados italianos.
Em seu íntimo, o rei tencionava obter para si o trono imperial, dado que o
mesmo estava legalmente vago, conquanto Berengário I (t 924), Rodolfo II, rei
da Borgonha (922-926), Hugo da Provença (926-947), seu filho Lotário (948-
950), casado com a princesa Adelaide, filha de Rodolfo da Borgonha, tivessem
reivindicado para si o título de imperadores do Ocidente.
Por sinal, em 951 Oto I já tinha dado um grande passo naquela direção, ao vir
à Itália, atendendo à convocação de Adelaide, a quem Berengário II queria impor
que casasse com seu filho, Adalberto, com o fito de, mediante a linhagem,
legitimar suas aspirações ao trono. Oto I facilmente venceu os inimigos,
transformando-os em seus vassalos, casou com Adelaide e se proclamou rex
Francorum et Italicorum, confiando a Berengário II o governo da Itália
setentrional e central. O rei germânico também viera à Itália com o propósito de
mostrar sua força aos bizantinos que aspiravam dilatar seu território em direção ao
centro da península, o que representava uma certa ameaça à sua pretensão.
Além disso, se Oto I conseguisse tomar-se imperador, obteria para si uma
posição nitidamente superior à dos outros duques germânicos e passaria a

18
Cf. LLORCA, B. et al. Hisoria de la Iglesia Catolica. Madrid: BAC, 1963, p. 121, v. 1.

195
controlar o sumo pontífice, a fim de que este não viesse a prejudicar a política
da coroa, sustentada no clero que o apoiava, dado que o papa, na condição de
chefe supremo da Igreja in spiritualibus o era igualmente de todo o clero
germânico que lhe devia obediência.
Antes mesmo de vir a ser coroado imperador, Oto I mandou fazer uma coroa
para si, cujos detalhes espelham muito bem a concepção teocrática acerca do poder
que exercia: ―quatre plaques ornées de pierres, l‘avant se rapportant aux douze
Apôtres, l‘arrière aux douze tribus de Juda, les deux côtes à l‘Apocalypse; entre
elles quatre émaux évoquent lês prophètes et les rois de l‘Ancient Testament (...)
Du front a la nuque, un arc unique surélève a fim de permettre ia parte d‘une mitre
sous la couronne exactement comme pour les grands prêtres d‘Israel. Comme eux
aussi, les souverains revêtaient une centuire munie de clochettes et sourtout un
‗manteau céleste‘ où sur le fond bleu, étaient brodés en fil d‘or les signes du
zodiaque et les figures de l‘Apocalypse (...) avant même sa naissance l‘Empire
était marqué d‘une imitatio sacerdotii (...)‖.19
Dois símbolos expressivos da autoridade ―quase‖ episcopal do imperador
eram usados desde a época de Carlos Magno. Tratava-se da virga, uma espécie
de báculo, e o anel, que simbolizava o matrimônio entre ele e o seu povo.
Oto venceu Berengário II e, antes mesmo de ser sagrado, se comprometeu a
proteger o papa, a Igreja Romana e suas possessões. 20 Finalmente, em 2 de
fevereiro de 962, ele foi ungido no peito e no braço e coroado Imperador Romano
por João XII. Durante a cerimônia ambos firmaram um pacto em que foram
reiteradas a proteção a ser dispensada à Sé Romana da parte do imperador, e a
colaboração recíproca.
Mas Oto I e seus assessores viam a sagração a coroação imperial numa outra
perspectiva. O que contava mesmo eram os êxitos precedentes. Aliás, o monge
Windukind de Corvey, ao escrever sua História dos Saxões em 967, sugeria que
aquele gesto papal foi algo meramente acessório, mediante o qual o sumo pontífice
reconheceu uma situação de direito.
O monarca estava convicto de que Deus, e apenas ele, o recompensava
com aquela dignidade pelos serviços que fizera em benefício da propagação da
fé, ao derrotar os inimigos da Christianitas, conquistando o carisma de
vitorioso (heil, de acordo com a mais genuína tradição teutônica, e por defender
o papado. Além disso, ele era o mais poderoso monarca de então, de modo que
o ato pontifício não passava de ―a necessary formality of a declaratory

19
NOEL, J. François. Le Saint Empire, Paris: PUF, 1971, p. 97.
20
Cf. LLORCA B. et al. Op. cit. p. 122-123.

196
character. The substance of this emperorship was monarchic and autonomous,
according to the imperial stand point (…)‖.21
O Papa, ao contrário, pensava de outra maneira. Num documento de 12 de
fevereiro,22 firmou que coroara o imperador porque tinha trazido ao seio da
Cristandade povos pagãos, como os húngaros e eslavos, à semelhança do que
Carlos Magno tinha feito antes com os saxões e lombardos, e em agradecimento
pela proteção que ele tinha dispensado à Igreja Romana, a mãe de todas as igrejas,
contra seus inimigos, solicitando depois, a coroa imperial ao sucessor de Pedro.
Era, portanto, a universalidade da Igreja Romana, cujo bispo conferia a dignidade
imperial romana a alguém apto a exercê-la, que tornava universal o poder imperial.
O novo Império pedia fundamento à transcendência divina (relembremo-nos do
axioma paulino ―non est pot estas nisi a Deo‖) e era por isso mesmo um império
sagrado. Mas, no nosso entender, a universalidade imperial dos teóricos do final da
Alta Idade era de natureza mais profunda: tratava-se de imperar universalmente,
não apenas enquanto se governava o universo territorial, mas principalmente
enquanto o poder imperial submetia a si a universalidade do que de humano existe
em cada homem individual. Noutras outras palavras, admitida a existência do
Imperium universale, era preciso resolver a questão: quem era o seu legítimo chefe,
já que a bicefalia na condução da Societas Christiana se afigurava inaceitável, pois,
―Um corpo com duas cabeças é uma espécie de monstro‖, repetiram-no à
saciedade os tratadistas medievais. Aqui estava o fulcro dos conflitos entre o poder
espiritual e o poder temporal ou, se utilizarmos a expressão comumente aceita,
entre o Sacerdotium e o Imperium.
Todavia, Oto I queria assegurar que os seus descendentes viessem a ser
igualmente imperadores pelo fato de serem reis germânicos. Ele imaginava que
modificada a situação política italiana, os bispos de Roma poderiam agir de outro
modo. Por isso, com o fito de reforçar ainda mais seu papel de protector et
advocatus Ecclesiae Romanae, reconfirmou as doações territoriais que Pepino ―O
Breve‖ e Carlos Magno (768/800-814) haviam feito ao papado, no tocante à
formação do Patrimonium Petri e, por outro lado, invocando um decreto de Luís
―O Piedoso‖ (814-840), sancionado em 824 (Constitutio Ludovici), de acordo com
a qual os papas eleitos não podiam ser coroados como tal antes de prestarem um
juramento de fidelidade aos missi imperiais, renovou essa determinação. Esta lei
ficou conhecida como Privilegium Otonis e, graças à mesma, cabia ao imperador
dar a palavra final a respeito da pessoa indicada para assumir o papado. Assim, foi
eliminado o perigo de ruptura da política cesaropapista adotada por aquele
monarca para a Germânia e territórios sob o seu controle.

21
Cf. Crônica do Analista Saxão, MGH Script, p. 616, v. 6.
22
ULLMANN, Walter. The Growth..., P. 237-238.

197
Um dos mais importantes ideólogos de Oto I era o monge Adso de Montier en
Der,23 adepto da reforma cluniacense. Segundo ele, o novo Imperium Christianum
sucedia agora os grandes impérios de outrora, inclusive o romano e o carolíngio.
Ele, porém, se identificava com a Cristandade e a Igreja, de modo que, se viesse a
periclitar, ela correria o risco de se desintegrar. Por isso, o imperador devia ser
também o bracchium Romanae Ecclesiae, e nesta condição passava a ter a
obrigação de lutar pela reforma da Igreja, a fim de que os valores religiosos e
morais do Cristianismo, difundidos por um clero piedoso e santo, revitalizassem a
Cristandade e o império.
Como é evidente, as expressões acima referidas faziam igualmente parte do
léxico da hierocracia, que nelas via a subordinação do império à Igreja, devendo-
lhe aquele obediência e submissão a esta. Mas Oto I, como aliás todos os
defensores da teocracia régia, procuravam inverter a situação, tornando-se eles os
autênticos chefes da Christianitas, mesmo em questões espirituais. Ao utilizarem,
porém, a mesma terminologia que os hierocratas, conseguiam afinal, como já o
fizemos notar várias vezes, reforçar teoricamente a supremacia da Igreja.
No entanto, pouco tempo depois, João XII passou a intrigar com Berengário II,
Adalberto e seus partidários, inimigos do imperador. Oto I derrotou uma vez mais
os adversários e depois (963) regressou a Roma. Convocou um sínodo no qual o
papa fugitivo, acusado de traidor e ingrato, veio a ser deposto. Ninguém quis
defendê-lo, segundo Liutiprando de Cremona,24 por causa de seu comportamento
dissoluto e porque as acusações que pesaram contra ele eram de natureza moral.
Em seu lugar, o imperador indicou o antipapa Leão VIII (963-965)
Oto I, com vista a fortalecer ainda mais o poder político de sua dinastia, fez
com que seu filho Oto (955-983) fosse sagrado e coroado imperador no natal de
967 por João XIII (965-972), e em 972 o casou com Teófano, sobrinha do
imperador bizantino João Tizimizes (969-976).
Oto II sucedeu o pai no trono germânico e imperial em maio de 973.
Acrescentou ao seu título Imperator Augustus o termo romanorum. Seu período de
governo foi marcado por inúmeras campanhas militares na Itália, visando de um
lado, a submeter a nobreza que habitava a parte setentrional e central da península,
a qual ciosa de sua antiga liberdade e autonomia não aceitava a suserania teutônica,
e, de outro, a conquistar a parte meridional, então ocupada por islâmicos, os quais
algum tempo antes haviam expulso os bizantinos daquela região.
O jovem imperador não foi bem sucedido em suas metas. No tocante aos
maometanos do sul da Itália, em 13 de julho de 982, ele primeiramente lhes infligiu

23
Historia Ottonis. MGH Ss. p. 342, v. 3.
24
ULLMANN, Walter. The Growth..., p. 236.

198
uma derrota, matando o Emir Abulkassem. Todavia, um novo contingente reagiu à
ocupação, e Oto II, para não ser morto, preferiu fugir.
Pouco depois, os duques germânicos e os eslavos, informados daquele fato, se
aproveitaram do mesmo para se rebelarem. O imperador se preparou lentamente
para regressar à Germânia e enfrentar os rebeldes, mas tendo sido acometido de
malária veio a falecer em Roma a 7 de dezembro de 983.
Oto III naquela ocasião tinha quatro anos. Por isso, sua avó e sua mãe tiveram
de exercer a regência até que ele alcançou a maioridade. Durante esse tempo, elas
ainda lhe propiciaram uma educação religiosa e profana da melhor qualidade
possível, inspirada na cultura romano-bizantina, contando para tanto com o apoio
de Gerberto de Aurillac, arcebispo de Reims, um dos homens mais cultos de sua
época, convidado a ser preceptor do jovem príncipe.
Oto III ao assumir de fato o poder, em 995, retomou a política cesaropapista
de seu avô com o fito de consolidar o restabelecimento do império cristão ou da
Cristandade imperial. Inspirando-se igualmente nas idéias de Adso de Montier en
Der, estava convicto de que a renovatio Imperii Romanorum, em toda sua
grandeza e esplendor era o caminho para atingir aquela meta. ―Como imperador
se sentia llamado a dirigir el mundo conforme a la voluntad de Dios, pero en la
Iglesia sólo vio una servidora suya y consideró al papa practicamente como uno
de sus obispos (...)‖.25
Todavia, desde a morte de seu pai e durante a sua menoridade, os líderes
políticos da Itália setentrional e de Roma, ciosos de sua autonomia, conseguiram
libertar-se da tutela germânica. Para o imperador era inadmissível que a península e
sua mais famosa cidade não estivessem sob o seu controle político.
Por isso, no final de 997, aproveitando-se de uma rebelião dos romanos contra
o jovem Papa Gregório V (996-999), seu sobrinho, ferrenho adversário da simonia
e do nicolaísmo e partidário convicto da reforma eclesiástica e da restauração
imperial, Oto III, à frente dum poderoso exército, marchou para a Itália,
restabelecendo e impondo sua autoridade em toda a região. Desde então, passou a
residir em Roma.
Na sua ausência da Germânia, incumbiu os bispos-condes e os marqueses
de governá-la e de proteger as igrejas da Polônia e da Hungria e as fronteiras
do nordeste e leste contra as incursões magiares e eslavas.
Entretanto, pouco depois Gregório V faleceu. O Imperador então indicou o
arcebispo Gerberto para a Sé Apostólica, o qual tomou o nome de Silvestre II
(999-1003).26

25
DHONDT, J. Op.cit. p.211.
26
A propósito desse Papa, sugerimos ao leitor consultar o terceiro capítulo do livro de FOCILLON,
Henri. L‘An Mil. Paris: A. Colin, 1952.

199
Em 17 de janeiro do ano 1000, Oto III acrescentou ao seu título de
Imperator Romanorum o de Servus Jesu Christi, à semelhança do que fizera o
Apóstolo dos Gentios, e pouco depois (1001) o de Servus Apostolorum.
Aquele primeiro título significava que o imperador, como Paulo, se
considerava um sacerdote-missionário e que seu império tinha o dever de propagar
o Cristianismo junto aos povos pagãos que viviam ao seu redor. Mas denotava,
outrossim, que a identificação entre os dois impérios exigia uma unidade de
liderança para a Cristandade, cujo chefe supremo nas esferas temporal e espiritual
era ele próprio, dado que se julgava ao mesmo tempo rex et sacerdos, como o
Cristo pantokrator/hiereus bizantino, de quem era o vicarius, de quem provinha
diretamente o sacerdócio que exercia.
O título Servus Apostolorum ressaltava a idéia de que o imperador também
era protector Ecclesiae Romanae e, como tal, não apenas tinha a obrigação de
guardá-la contra seus inimigos, externos ou internos, mas também dotá-la com
um patrimônio sólido que lhe assegurasse a preeminência sobre as demais
igrejas da Cristandade. É exatamente isso que sugere um diploma imperial de
1001, em que Oto III também aproveitava do ensejo para recusar o Constitutum
Constantini como um documento autêntico e legítimo, não lhe atribuindo
nenhum valor legal e, por isso mesmo, fazia então uma nova doação territorial
ao papado: ―Oto, servo dos Apóstolos e, conforme a vontade de Deus Salvador,
Augusto Imperador dos Romanos.
―Proclamamos Roma capital do mundo e reconhecemos que a Igreja
Romana é a mãe de todas as igrejas. Todavia, não ignoramos também que,
durante muito tempo, o desleixo e a incompetência de seus pontífices
embaçaram os títulos de sua clareza.
―Com efeito, eles não apenas venderam e alienaram desonestamente as
possessões de são Pedro fora da Cidade, mas também, e dizemos isso com enorme
tristeza, os bens que eles possuíam em nossa própria cidade imperial e, ainda, eles
os transferiram ilegalmente para o uso comum, a troco de dinheiro. Eles espoliaram
São Pedro, São Paulo e seus próprios altares, e em lugar de repararem o seu ato
continuam a semear muita confusão.
―Alguns papas, aliás, desprezando os preceitos dos santos pontifíces e
desdenhando a Igreja de Roma, ampliaram sua arrogância a ponto de querer
estender seu poder apostólico sobre a maior parte de nosso império. De fato, não se
preocupando com o que estavam a perder por causa de seu crime, movidos por sua
vaidade esbanjadora e desejosos de obter novos bens, uma vez que tinham
dilapidado os próprios, voltaram sua atenção para os bens alheios, isto é, os nossos
e o de nosso império.
―A bem da verdade é preciso esclarecer que, segundo as mentiras forjadas
por eles mesmos, um certo cardeal-diácono, chamado João, alcunhado de ―sem

200
dedos‖, redigiu uma bula de ouro, da qual constava um privilégio que,
falaciosamente, dizia ser muito antigo e da autoria de Constantino Magno.
―Igualmente pretendem comprovar que há textos, de acordo com os quais
um certo Carlos doou a São Pedro bens pertencentes ao nosso domínio (...)‖.
―Portanto, recusando esses privilégios mentirosos e esses textos fictícios,
mediante nossa liberalidade, nós concedemos a são Pedro os bens que nos
pertencem, não os bens que lhe pertencem como se fossem nossos.
―Também, por devoção a são Pedro, e conforme o desígnio de Deus, nós
elegemos papa o senhor Silvestre, nosso mestre, o ordenamos e o criamos sumo
Pontífice, e igualmente, em respeito ao Papa Silvestre, nós oferecemos a são Pedro
bens de nosso domínio público, a fim de que possua aquilo que ele vier a ofertar a
nosso imperador Pedro, na condição de seu discípulo.
―Por conseguinte, em sinal de estima a nosso mestre, o papa Silvestre, nós
oferecemos e doamos a são Pedro oito condados, para que ele os possua por amor a
Deus e a são Pedro, a fim de obtermos a nossa própria salvação e a sua, e para que
os administrando nosso império e seu pontificado sejam prósperos (...)‖.27
A Doação de Constantino era uma falsificação da qual não podia fluir
direito algum. A Doação Otoniana, ao contrário, era uma dádiva da onipotência
imperial e, mais do que isso, era um decreto em que o imperador reconhecia os
serviços que tinha recebido de seu antigo mestre Gerberto, agora feito papa,
graças à vontade imperial.
Mas ela significava muito mais do que uma simples declaração acerca de
sua competência imperial e apostólica. Trazia à luz de maneira evidente, a
função de Oto III como supremo monarca e protetor da Igreja.
Todavia, a fundamentação teórica para a concepção do poder que Oto III
exercia e do império que governava continuavam sendo os ensinamentos do
Cristianismo, cujos ministros, especialmente o sumo pontífice, eram os
dispensadores das graças celestiais, o que deixava um flanco aberto para os
teóricos da Hierocracia. Por isso, seu Império ―could call itself Roman only as
result of accepting papal ideology, according to which the Roman empire was
dispensed by the pope. In either sense the ideological weakneess of Otto‘s position
is apparent. It was a governmental theory which bore all germs of its own
destruction within itself (…)‖.28
Entretanto, em 23 de janeiro de 1002, Oto III faleceu prematuramente no
castelo de Paterno, Itália, sem deixar herdeiros.
Os tronos germânico e imperial foram então ocupados pelo duque
Henrique da Baviera, aparentado com o imperador desaparecido.

27
MH Diplomata Regum et lmperatorum Germaniae. p. 819, v. 2.
28
ULLMANN, Walter. The Growth..., p. 246.

201
Henrique II(1002-24) preferiu redirecionar a política germânico- imperial
com o fito de consolidar as fronteiras do norte e do leste; por isso, não se
incomodou com as questões políticas italianas, indo a Roma apenas duas vezes,
durante seu governo, uma das quais em 1014, para ser coroado imperador.
Entretanto, os títulos que ele se atribuiu —servus servorum Christi et
Romanorum Imperator augustus secundum voluntatem Dei et salvatoris nostrique
liberatoris — denotavam não apenas a idéia que fazia acerca da origem de seu
poder imperial, quase sacerdotal, conquanto a expressão servo dos servos de Cristo
fosse um plágio de um entre os títulos que os papas se davam, mas também o papel
que lhe cabia como monarca. Dado que Cristo lhe confiara o governo do populus
christianus, ele tinha a obrigação de lhe propiciar bons pastores, os quais
simultaneamente deviam ser os seus mais dedicados auxiliares. Seu principal dever
consistia em trabalhar pela renovação moral e religiosa de seus súditos.
Por isso, o soberano deu todo apoio à reforma eclesiástica empreendida por
bispos e monges, estendendo-a aos mosteiros de Hersefeld, Reichneau, Corvey e
Gandersheim. Outrossim, interferiu diretamente nas eleições episcopais e abaciais,
indicando pessoas idôneas como prelados e abades. Ainda convocou e presidiu
muitos sínodos para tratar das questões religiosas, morais e disciplinares do clero e
dos fiéis, pois sabia que tais procedimentos ainda contribuíam para o
fortalecimento de seu poder.
Os papas, devido às freqüentes crises da política ítalo-romana, consentiam
naquele comportamento do imperador, porque de certa forma se consideravam
impotentes para cumprir com todos os seus deveres em territórios longínquos.
Henrique II, por ocasião de sua primeira visita a Roma (1014), com a
anuência do Papa Bento VIII (1012-24) convocou um sínodo que se reuniu em
Ravena, durante o qual foram destituídos de seus cargos todos os clérigos que
não tinham sido canonicamente ordenados. Pouco depois, exigiu que todos os
bispos e abades prestassem contas relativas aos bens que lhes haviam sido
confiados para administrar.
Por causa das investidas bizantinas contra o Patrimonium Petri e dos
conflitos entre a aristocracia italiana, em 1020, Bento VIII solicitou ao
imperador que regressasse à península e o defendesse. Henrique II atendeu à
convocação, assegurando à Igreja Romana a proteção de que necessitava.
Nessa mesma oportunidade, ele reconfirmou as doações territoriais que seus
antecessores haviam feito ao papado, mas reiterou seu direito quanto a aprovar
a pessoa eleita para a Sé Apostólica.
Uma vez mais o imperador e o pontífice convocaram, reuniram e
presidiram um sínodo em Pavia, durante o qual todos os sacerdotes e bispos
nicolaítas que haviam distribuído bens eclesiásticos entre seus filhos foram
destituídos de suas funções e intimados a restituí-los.

202
Henrique II faleceu perto de Göttingen, na Alemanha.
Conrado, duque da Francônia, foi eleito e depois ungido e coroado rei
germânico em Mogúncia em 8 de setembro de 1024. Ao contrário de seu
antecessor, ao eleger e investir bispos e abades, considerou apenas suas habilidades
políticas, não se importando muito se os escolhidos eram virtuosos, impolutos,
caridosos e piedosos, requisitos minimamente indispensáveis para o exercício da
tarefa de pastor.
Essa atitude do imperador se explica, porque ele entendia que a renovado
imperialis, acima de tudo, tinha de ser política. Para tanto, era necessário dar-
lhe um outro suporte teórico, que consistiu na renovatio legum romanorum.
Noutras palavras, Conrado II tentou governar seus domínios, inspirando-se na
antiga legislação romana. Por isso, ele foi o primeiro dos imperadores a
estimular os estudos de Direito Romano.
Em 1027, ele foi coroado imperador pelo Papa João XIX (1024- 33). Por causa
de o imperador praticar a investidura, com fins meramente políticos, ao falecer, em
1039, tinha contra si a antipatia dos prelados alemães adeptos mais radicais da
reforma religiosa e moral do clero e de toda a Cristandade a partir da Igreja.
Seu filho, Henrique III(1039-56), em seguida, foi eleito rei e antes mesmo de
vir a ser coroado imperador passou a usar o título de Rex Romanorum, indicando
com isso que o fato de ter sido escolhido como soberano germânico o fazia
igualmente o senhor do império.29
O novo Imperador não descurou dos assuntos meramente políticos,
continuando, para tanto, a servir-se da colaboração do Alto clero, mas, retomando
o procedimento da maior parte de seus antecessores, teve o cuidado de escolher
pessoas dignas de exercer os ministérios pastoral e pontifício, pois convicto de que
igualmente era o vicarius Dei, tinha a obrigação de também zelar pela vida
espiritual e moral de todos os seus súditos, clérigos e leigos.
Em 1046, a Itália central e Roma estavam novamente conturbadas por uma
guerra envolvendo a nobreza local, papas e antipapas. Henrique III resolveu ir à
península com suas tropas, a fim de restabelecer a ordem, no que foi bem
sucedido. Com relação à Igreja, convocou um sínodo a se reunir em Sutri para
tratar de seus problemas. Durante o mesmo, depôs o Papa Gregório VI (1045-
46) e os antipapas Silvestre III e seu antecessor Bento IX. Em seguida, fez
eleger sumo pontífice seu amigo, o bispo Suitger de Bamberg, o qual tomou o

29
FOLZ, R. L‘Idée d‘Empire en Occident du Xe au XIVe Sièck. Paris: Aubier, 1953, p. 82 ―Dès la
mort de son père, on voit Henri III s‘intituler Rex Romanorum, comme s‘il voulait affirmer que, dès
son avènement en Germanie, il était, avant même de ceindre le diadème des Césars, le souverain de
l‘Empire romain: ce titre qui garantit la succession de la lignée royale à l‘Empire, exprime en dernière
analyse un rapprochement toujours plus grand entre le regnum et l‘Imperium (...)‖.

203
nome de Clemente II(1046-47). No dia de Natal, após o término do sínodo,
Henrique III foi coroado imperador.30
Todavia, nesse ínterim o grupo clerical defensor da reforma da Igreja a partir
de si mesma havia crescido e se fortalecido a tal ponto que em 1049 conseguiu
eleger papa um de seus partidários, Leão IX (1049-54). Esse dado e a morte
prematura de Henrique III em 1053, legando o trono alemão a seu filho Henrique
(IV) com apenas quatro anos de idade, permitiu que o mencionado grupo
reformista aos poucos assumisse efetivamente o governo da Igreja e retomasse o
pensamento hierocrático em sua primeira e mais genuína aspiração: cabia à Igreja e
aos seus dirigentes, especialmente o papa, na condição de caput clericorum, cuidar
de seus próprios assuntos e interesses. Mas naquela sociedade, certamente agora,
sob o aspecto da concepção política, mais cristocêntrica do que teocêntrica, por
acaso não caberia também ao sumo pontífice vir a ser o seu monarca? Se os
próprios imperadores germânicos haviam reforçado o primado magisterial da
Igreja Romana, não era incoerência negar-lhe o primadojurisdicional, ambos
integrantes do mandatum petrino?

30
ULLMANN, Walter. The growth... p. 251: ―Sutri signifies the consummation of the monarch‘s
supreme protetective functions: Christendom had to be protected against these unworthy individuals‖.

204
Coleção FILOSOFIA da EDIPUCRS:

1 - ZILLES, Urbano
Fé e razão no pensamento medieval

2 - STREFLING, Sérgio R.
O argumento ontológico de S. Anselmo

3 - SOUZA, Draiton G.
O ateísmo antropológico de Ludwig Feuerbach

4 - WOLLMANN, Sérgio
O conceito de liberdade no Leviatã de Hobbes

5 - PAVIANI, Jayme
Escrita e linguagem em Platão

6 - CIRNE-LIMA, Carlos R. V.
Sobre a contradição

7 - BIRCK, Bruno Odélio


O sagrado em Rudolf Otto

8 - OLIVEIRA, Manfredo Araújo de


Sobre a fundamentação

9 - PEREIRA, Julio Cesar R.


Epistemologia e Liberalismo

10 - DE BONI, Luis A.
Bibliografia sobre filosofia medieval

11 - ZILLES, Urbano
O racional e o místico em Wittgenstein

12 - ZITKOSKI, Jaime José


O método fenomenológico de Husserl

13 - OLIVA, Alberto
Conhecimento e liberdade

14 - CALDAS, Sérgio
A teoria da história en Ortega y Gasset a partir da razão histórica

205
15 - PIZZI, Jovino
Ética do Discurso: a racionalidade ético-comunicativa

16 - FLICKINGER, Hans-Georg / Wolfgang Neuser


A teoria de auto-organização: as raízes da interpretação construtivista do
conhecimento

17 - MEISTER, José A. F.
Amor x Conhecimento. inter-relação ético-conceitual em Max Scheler

18 - RABUSKE, Edvino A.
Filosofia da Linguagem e Religião

19 - SILVA, Ursula Rosa da


A Linguagem muda e o Pensamento falante: sobre a Filosofia da Linguagem em
Maurice Merleau—Ponty

20 - PELIZZOLI, Marcelo Luiz


A relação ao outro em Husserl e Levinas

21 - ZILLES. Urbano
Teoria do Conhecimento

22 - SARDI, Sérgio Augusto


―Diálogo‖ e Dialética em Platão

23 - DE BONI, Luis A.
Lógica e Linguagem na idade Média

24 - PAIM, Antonio
Problemática do Culturalismo

25 - LUFT, Eduardo
Para uma crítica interna ao sistema de Hegel

26 - TIBURI, Marcia
Crítica da razão e mímesis no pensamento de Theodor W. Adorno

27 - GRINGS, Dom Dadeus


O homem diante do universo

28 - NEUSER, Wolfgang
A infinitude do mundo

206
29 - RIBEIRO, Eduardo Ely Mendes
Individualismo e verdade em Descartes

30 - BOMBAS SARO, Luiz Carlos


Ciência e mudança conceitual

31 - ZILLES, Urbano
Gabriel Marcel e o existencialismo

32 - VÁRIOS
Fundamentalismo

33 - SOUZA, José Antonio de C. R. de


O Reino e o sacerdócio

207

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