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2 PESQUISAS SOCIOJURÍDICAS

SOCIOLOGIA DA DECISÃO
JURÍDICA: APLICAÇÃO AO CASO
DA HOMOAFETIVIDADEi

SOCIOLOGY OF LEGAL DECISION:


APLLIED TO HOMOSESSUAL CASE

Artur Stamford da Silvaii

Sumário: 1 Contextualização epistemológica da Resumo


teoria reflexiva da decisão jurídica. 2 Técnicas O neoconstitucionalismo viabilizou a amplia-
e métodos hermenêuticos: nem lacuna nem lit- ção dos limites da literalidade legalista face à
eralidade nem analogia. 3 O quadro cênico: a inclusão dos princípios constitucionais. Visan-
intercomposição do discurso jurídico. 4 Obser- do contribuir ao debate, exploramos dados da
vações dos discursos constituintes na formação decisão do STF que equiparou juridicamente a
discursiva do direito da sociedade. Referências. união entre pessoas do mesmo sexo (homos-
sexual, homoafetivas) à entidade familiar entre
homem e mulher. Os corpora foram constituídos
de documentos (legislações, decisões do STJ, os
votos dos ministros do STF, notícias de jornais)
e vídeos das audiências no STF. Coletados os
enunciados dos participantes, aplicamos a “teo-
ria reflexiva da decisão jurídica” para observar
as constantes reentradas de sentido-possível no
sentido-corrente, o que nos permitiu verificar
1
Este trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – Brasil.
2
Professor associado da Faculdade de Direito do Recife-UFPE. Pesquisador do CNPq Nível 2.

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como foi possível o STF decidir como decidiu, 1 CONTEXTUALIZAÇÃO EPISTEMOLÓGI-


mesmo com os textos legislativos em vigor no CA DA TEORIA REFLEXIVA DA DECISÃO
Brasil. JURÍDICA

C
Palavras-chave: Decisão jurídica. Entidade fa- inco de maio de dois mil e onze foi o
miliar. Teoria dos sistemas. Direito da sociedade. dia em que o Supremo Tribunal Feder-
Discurso constituinte. al (STF) – após discussão sobre a Ação
de Descumprimento de Preceito Fundamental
Abstract (ADPF 132), impetrada pelo Governo do Estado
Neoconstitutionalism made viable the widening do Rio de Janeiro, e a Ação Direta de Inconsti-
of the limits of the legalistic literal aspect in the tucionalidade (ADI 4277), impetrada pelo Pro-
face of the inclusion of constitutional principles. curador Geral da República – decidiu terem as
Seeking to contribute to the debate, we explore uniões entre pessoas do mesmo sexo (homoss-
the data of the decision of the Supreme Fed- exuais) os mesmos direitos e deveres que a un-
eral Tribunal (STF) which juridically equated ião entre homem e mulher, portanto a união ho-
the union between two people of the same sex moafetiva integra, para fins jurídicos, a expressão
(homosexuals) with the family entity between a entidade familiar.
man and a woman. The corpora were constituted Neste caso, ao questionarmos como foi pos-
by documents (legislations, decisions by the Su- sível o STF ter tomado essa decisão, o que im-
preme Justice Tribunal, votes by ministers of the plica questionar como foi possível o STF incluir
STF, newspaper items) and videos of audiences na expressão “entidade familiar” a união de pes-
in the STF. soas do mesmo sexo. Para isso, observamos os
Having collected the statements by the partici- discursos dos participantes das audiências, ou
pants, we applied the “reflexive theory of juridi- seja, do Procurador do Estado do Rio de Janeiro,
cal decision” to observe the constant re-entries dos amici curiae, dos Ministros do STF.
of possible-sense in the ongoing-sense, which O embate se pautou por diversos pontos, ex-
permitted us to verify how it was possible for the ploraremos alguns deles, inclusive, porque não
STF to decide the way it did with the legislative temos por objetivo desenvolver uma hermenêu-
texts now in vigor in Brazil. tica constitucional nem estabelecer o que é enti-
dade familiar no direito brasileiro, nem decretar
Keywords: Legal decision. Family. Systems theo- o quanto a decisão tomada foi correta, absurda
ry. Legal system. Self-constituting discourse. ou errada. Assim é porque nossas pesquisas par-
tem da ideia que perguntar “o que é” resulta em
paradoxo, pois buscar a origem, o princípio, o
primeiro motor, a gênese é aplicar causalidade.
Epistemologica e gnosiologicamente aplicamos
a teoria da circularidade reflexiva1, portanto não
tautologia nem causalidade2. Com isso não cabe
questionar o que é uma decisão jurídica, mas sim
“como é possível o Judiciário (STJ e STF) tomar
as decisões que toma”.
Para observar3 como é possível o Judiciário
decidir como decide, exploramos a decisão do
STF de 5 de maio de 2012 e recorremos à teoria
sociocognitiva da compreensão como inferên-

1
FOERSTER, 2002, p. 6, 115, 226, 287.
2
LUHMANN, 2007, p. 5, 41; THORNHILL, 2005. p. 19-23.

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cia4 (Marcuschi), à análise de discurso consti- observa requer mudanças gnosiológicas e epis-
tuinte5 (Maingueneau) e à teoria da sociedade temológicas trazidas pela cibernética, a exemplo
como sistema de comunicação6 (Luhmann). Este da gödelização da racionalidade jurídica9. Numa
somatório de teorias forma o que denominamos frase, nossas pesquisas indicam que a decisão
“teoria reflexiva do direito da sociedade”. jurídica não está pré-estabelecida em nenhuma
Esses estatutos epistemológicos nos permitem causa que lhe é anterior, tal decisão se estabelece,
não cair em conclusões causais tipo: “decisão ju- por contingência, considerando a memória do
rídica é uma questão de poder”; “o direito, texto sentido de direito da sociedade ao mesmo tempo
que é, vago e ambíguo, viabiliza decisão ao sa- em que ela é o espaço de mudança do direito da
bor da arbitrariedade interpretativa do julgador”. sociedade. Como abaixo estará explicitado.
Ao substituir a pergunta “o que é” pela, “como Para desenvolver essa nossa hipótese, tivemos
é possível”, como indica Luhmann7, seguimos por corpora da pesquisa textos de legislações,
um caminho teórico pautado pela reflexividade documentos da decisão do STF, de 5 de maio de
para explicar e compreender a decisão judicial. 2011, na Ação Direta de Inconstitucionalidade
As implicações de optar pela pergunta “como é (ADI) 4277 e na Arguição de Descumprimen-
possível” nos conduzem a consequências como, to de Preceito Fundamental (ADPF) 132, dos
por exemplo, que a decisão jurídica não é uma vídeos das audiências realizadas no STF, tanto
resultante causal de aplicação da legislação nem as falas das entidades da sociedade civil (amicus
de poder, bem como que não cabe falar em “do curiae10), como os votos enunciados pelos Min-
fato se chega à norma”. Sugerimos que a decisão istros do STF, ambos totalizando 522 minutos de
jurídica é uma operação do sistema jurídico, não falas. Coletamos também dados em notícias so-
uma decisão de um magistrado8. Dessa sugestão bre a repercussão do caso veiculadas em jornais
temos que a produção de sentido do direito da e blogs disponíveis na internet, além de decisões
sociedade se dá recursivamente, ou seja, pela re- do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Os da-
entrada do sentido de uma temática na temática dos foram lançados numa planilha e analisados
do direito como sistema da sociedade. Sendo desde nossa proposta teórica: a teoria reflexiva
sociedade, sistema de sentido, como adiante es- da sociedade como sistema de comunicação.
crito. Noutras palavras, o direito, sistema de co- Teoria reflexiva é uma perspectiva gnosi-
municação que é, produz e reproduz o sentido ológica que se pauta pela circularidade recursiva
de seus próprios elementos, de suas próprias tal como desenvolvida pela “teoria dos sistemas
temáticas, de suas próprias instituições. Ob- que observam11” , a qual traz com alternativa à
servar como o direito opera como sistema que causalidade e à circularidade tautológica a re-

3
Observar é ação de pesquisa realizada pelo observador. A aparência de evidência e simplicidade da afirmação esconde o afastamento de dicotomias, a
exemplo: sujeito/objeto; objetividade/subjetividade; neutralidade científica etc. Em seu lugar, reconhecemos que o observador, ao observar, produz uma
distinção, portanto realiza, ao mesmo tempo, o estabelecimento da unidade e da diferença do que observa, ou seja, indica, estabelece, destaca, assinala
o marcado como observado, paradoxalmente ao que, também determina o diferente, o não observado (LUHMANN, 2007, p. 38-39). Assim, observar
não é um ato apenas subjetivo, mas ao mesmo tempo objetivo. Como na análise de discurso, discurso não é um enunciado; na teoria da sociedade como
comunicação, comunicar não é só informar, mas também o expressar e o entender (compreender). Com isso, ao observar os dados, o observador não
ignora que outros dados, bem como outras leituras são possíveis.
4
“a compreensão é um trabalho social” (MARCUSCHI, 2007a, p. 77; MARCUSCHI, 2008, p. 229).
5
Constituintes são os discursos que têm a pretensão de “não reconhecer outra autoridade além da sua própria, de não admitir quaisquer outros discur-
sos acima deles. Isso não significa que as diversas outras zonas de produção verbal não exerçam ação sobre eles; bem ao contrário, existe uma interação
constante entre discursos constituintes e não constituintes, assim com entre discursos constituintes” (MAINGUENEAU, 2008, p. 37).
6
Tendo por petição de princípio que a comunicação é a célula da sociedade, Luhmann aplica a teoria da diferenciação de Spencer Browne (teoria da
forma de dois lados) distinguindo médium/forma e sistema/meio para afirmar que “Sociedade é sistema de sentido”, porquanto sociedade é comunicação
organizada em forma de sentido (LUHMANN, 2007, p 28 et seq.).
7
LUHMANN, 2007, p. 13.
8
STAMFORD DA SILVA, 2009, p. 137; STAMFORD DA SILVA, 2010, p. 125; STAMFORD DA SILVA, 2012a p. 43; STAMFORD DA SILVA, 2012b, p.
306.
9
STAMFORD DA SILVA, 2009, passim.
10
Trata-se do julgamento da Ação Direita de Inconstitucionalidade n. 4.277, impetrada pelo Procurador Geral da República e a Ação Direta de Preceito
Fundamental (ADPF) n. 132, impetrada pelo Estado do Rio de Janeiro. Amici curiae são entidades da sociedade que podem solicitar participação, com
direito a voz, em julgamentos do STF, conforme § 2º, art. 7º, da Lei n. 9.868/1999.
11
FOERSTER, 1987.

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flexividade, como é a teoria cibernética da co- Laws of Form, publicado em 197914, Louis H.
municação desenvolvida durante e após os dez Kauffman, ao tratar da autorreferência e da for-
encontros da Macy Conference12. Ainda que a ma recursiva15 e por Heinz von Foerster dada
palavra cibernética tenha estreita relação com a “teoria” dos sistemas que observam16. Ao lado
governo, direção, controle, na Macy Conference, desses aportes, ainda na visão de comunicação
cibernética é a teoria da comunicação que parte como célula da sociedade, Luhmann recorre ao
da causalidade circular, não da causalidade linear construtivismo epistêmico baseado na ideia de
nem da circularidade tautológica, como se pode autopoiesis trazida pelos biólogos chilenos Mat-
constatar com a visão construtivista – no sentido urana e Varela17, além da lógica policontextural,
usado por Heinz von Foerster, Gregory Bateson como proposto por Gotthard Günther18.
e Humberto Maturana – de ordem cibernética Aplicando essa base gnosiológica, Luhmann
por aplicar ideias como circularidade criativa, a escreve que a comunicação é uma unidade de três
teoria reflexiva, a autopoiesis. componentes: informação (Information), expr-
A teoria reflexiva da sociedade como sistema essar (Mitteilung) e entendimento (Verstehen)19.
de comunicação porta de Luhmann a concepção Esses três elementos estão enlaçados de maneira
de sociedade como sistema de comunicação. É circular construtivista, pois só por comunica-
que Luhmann pauta sua visão cognitiva baseado ção é que se comunica, daí a comunicação ser
em teorias matemáticas e biológicas, todavia as autopoiética, ela gera, por si mesma, o entender
aplica em sua teoria social transformando-as que ela necessita para operar por comunicação.
como bases explicativas da comunicação como Quando comunicamos nos referimos a algo, a
célula da sociedade, pois uma coisa, a um acontecimento. Nas palavras do
autor: “a comunicação funciona autorreferen-
[...] o sistema sociedade não se caracteriza por uma cialmente” , acontece que “o conceito de sistema
determinada ‘essência’ (Wesen) muito menos por uma remete ao conceito de entorno e, justamente
determinada moral (propagação da felicidade, soli-
dariedade, nivelação de condições de vida, integração por isso, sistema não se isola nem lógica nem
por consenso racional etc.), mas sim unicamente pela analiticamente”21, antes, sendo sistema, sistema
operação que produz e reproduz a sociedade: isto é a de sentido, ele opera no médium sentido reali-
comunicação. Logo, por comunicação se entende um zando a distinção autorreferência e heterorrefer-
acontecimento que em todo caso sucede de maneira ência, o que permite a cada informação expres-
histórico-concreta, um acontecimento que depende
de contextos – não se trata, portanto, unicamente de sada, o sistema atualizar sua autorreferência22.
aplicação de regras do falar correto. Acontece que para Essa divisão da unidade da comunicação em
a efetivação da comunicação é necessário que todos os três componentes permite a Luhmann afirmar
participantes intervenham com um saber e com um que o limite comunicativo está na maneira como
não saber. [...] Como práxis do sentido, a comunicação a informação será entendida (aceita ou rejeita-
também se vê obrigada a fazer distinções para assinalar
um dos dois lados e provê-lo com enlaces. Com isso se da), posto que depende “do desenvolvimento si-
continua a autopoiesis do sistema.13 multâneo de uma extrema dependência social e
de um alto grau de individualização: esse desen-
Luhmann, como se pode ler, influenciado volvimento se alcança mediante a construção de
pelas ideias de George Spencer Brown, no livro uma ordem complexa de comunicação provida

12
WIENER, 1965.
13
LUHMANN, 2007, p. 47-48.
14
LUHMANN, 2007, p. 28, 40.
15
KAUFFMAN, 1987, passim; LUHMANN, 2007, p. 32.
16
FOERSTER, 2002; LUHMANN, 2007, p. 44.
17
MATURANA/VARELA, 2001a, passim; MATURANA/VARELA, 2001b, passim; LUHMANN, 2007: p. 44-45.
18
LUHMANN, 2007, p. 62-63.
19
LUHMANN, 2007, p. 49.
20
LUHMANN, 2007, p. 47.
21
LUHMANN, 2007, p. 47.
22
LUHMANN, 2007, p. 33.

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de sentido, a qual determina a ulterior evolução relação do sistema com o seu entorno é opera-
do ser humano”23, bem como porque “sentido cionalmente incalculável, mas não por causa do
é um mérito da comunicação sistêmica e não entorno e, sim, do próprio sistema. Em relação à
mérito da consciência nem uma representação arte, para citar um exemplo, Luhmann escreve:
de situações externas na consciência24.
Viver em sociedade é viver em comunicação, é A distinção entre validez e não validez da ‘law of cross-
viver, ao mesmo tempo, estabelecendo (fixando) ing’, assim como o conhecimento de que a validez é
condição da não validez interna da obra de arte, des-
e modificando (recriando) sentido. Com isso, o ignam – em sentido estritamente teórico – o processo
conceito de sentido é modelado por Luhmann de diferenciação do sistema da arte dentro do mundo
de maneira que “o sentido se produz na trama operacionalmente impenetrável.27
das operações que sempre pressupõe sentido [...]
sentido é um produto das operações que o usam, Assim é porque, segundo Luhmann:
não uma qualidade do mundo devida a uma cri-
ação, fundação ou origem. Não há então ideali- A unidade dos acontecimentos comunicativos não
dade separada do viver e do comunicar”25. Mais, podem ser derivadas objetiva, subjetiva, nem social-
a memória não nos leva ao verdadeiro, ela, sim, mente. Justamente por isso, a comunicação cria para si
o médium do sentido no qual incessantemente se esta-
constrói estruturas de uso momentâneo, as quais belece se a comunicação seguinte busca seu problema
conservam as condições mínimas para poder- na informação, no ato de dá-la-a-conhecer (expressar)
mos selecionar o que constitui o sentido de algo ou no entendê-la.28
e o que não o constitui. Por meio da memória,
reduzimos as possibilidades de enlace entre os O sistema – ao mesmo tempo em que con-
lados do sentido de algo. tém uma memória (memory function) que o per-
Para explicar isso, Luhmann trata da teoria dos mite recorrer às operações passadas (decisões
sistemas que formam sentido, como no sistema anteriores) – confronta-se com um futuro inde-
social e no psíquico, mas não no biológico. Luh- terminável para ele mesmo. Para resolver esse
mann distingue, pois, três tipos de sistema: siste- paradoxo do sentido, Luhmann recorre ao con-
mas vivos; sistemas psíquicos; e sistemas sociais. ceito re-entry, em que “a indicação e a distinção
O primeiro contém limites materiais, de maneira estão indissoluvelmente entrelaçadas: quando
que a relação entre as células e seu entorno se dá qualquer indicação é feita, qualquer marca, cria-
por espécies. Os limites dos outros dois sistemas se uma distinção automaticamente entre esses
são formas de dois lados. Eles realizam suas op- dois estados: o marcado e o não marcado”29. Nas
erações em forma de operação-de-observação, palavras de Luhmann: “todas as formas de sen-
as quais só podem ocorrer no interior desses tido têm um lado oposto que inclui o que, no mo-
sistemas, pois só no interior é que dá a distin- mento de ser utilizada, se exclui”30, o que “exige
ção autorreferência de heterorreferência26, ou a condensação seletiva e, ao mesmo tempo, a
seja, a distinção entre o que encontra referência generalização, a qual corrobora que aquilo que
sistêmica e, por isso, é valorado como interno se distingue do outro pode ser designado como
ao sistema, o que não encontra referência, por- o mesmo”31.
tanto, é valorado como ruído, como externo ao Sentido, portanto, é “uma forma de operação
sistema. Cabe lembrar que tanto o interno quan- histórica que, só com a sua utilização é que se
to o externo integram o sistema. Acontece que a enlaça o surgimento contingente e a indetermi-
23
LUHMANN, 1996, p. 23-24, 140-141; LUHMANN, 2007, p. 147.
24
LUHMANN, 2005a, p. 87.
25
LUHMANN, 2007, p. 27.
26
LUHMANN, 2007, p. 28.
27
LUHMANN, 2005b, p. 69.
28
LUHMANN, 2007, p. 50.
29
MARKS-TARLOW/ ROBERTSON/ COMBS, 2009.
30
LUHMANN, 2007, p. 25
31
LUHMANN, 2007, p. 30.

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nação de aplicações futuras”32, principalmente a visão de que no espaço discursivo, o “Outro”


porque “as identidades de sentido (objetos não é um fragmento localizável, uma citação,
empíricos, símbolos, signos, números, frases só nem uma entidade exterior, é o próprio discurso,
podem ser produzidas recursivamente”33. Sendo, pois, esse “Outro”, é a parte de sentido que foi
portanto, sentido “o meio no qual as formas se sacrificada para que o discurso pudesse constituir
realizam como operações do sistema”34, autopoi- sua identidade. Disso decorre o caráter essen-
esis é a aceitação de que toda explicação deve cialmente dialógico de todo enunciado do dis-
partir das operações específicas reproduzidas no curso, a impossibilidade de dissociar a interação
sistema a ponto de constituir o sistema. Afinal, dos discursos do funcionamento intradiscursivo.
autopoiesis não é produção da forma do sistema, Essa imbricação do “Mesmo” e do “Outro” retira
mas resultado da diferenciação sistema/entorno. à coerência semântica das formações discursivas
Dessa diferenciação dá-se o paradoxo de que, ao qualquer caráter de “essência”, caso em que sua
se desacoplar do entorno, no sistema surgem es- inscrição na história seria assessória; não é dela
paços de liberdade internos, os quais permitem a que a forração discursiva tira o princípio de sua
produção de indeterminação interna no sistema. unidade, mas de um conflito regrado38.
O sistema contém, portanto, unidade, estrutura e Por fim, com Luiz Antônio Marcuschi, agre-
forma, ao mesmo tempo em que contém desor- gamos à nossa teoria a concepção de leitura
dem, indeterminação e o outro lado da diferença como trabalho social. Marcuschi explora o so-
(da forma). Numa frase: “o acomplamento estru- ciointerativismo da cognição de Vygotsky39, do
tural tanto separa quanto vincula os sistemas”35. que escreve: “compreender é uma atividade co-
Ao acrescer a teoria dos discursos constitu- laborativa que se dá na interação entre autor-tex-
intes de Dominique Maingueneau à teoria da to-leitor ou falante-texto-ouvinte”40; “o sentido
sociedade de Luhmann, para desenvolver nossa não está no leitor, nem no texto, nem no autor,
teoria reflexiva da decisão jurídica, obtemos mas se dá como um efeito das relações entre eles
uma concepção de discurso que Luhmann não e das atividades desenvolvidas”41.
explora, bem como acrescemos à visão de sen- Luiz Antônio Marcuschi também escreve:
tido de Luhmann que “sentido é fronteira e sub- “compreender bem um texto não é uma ativi-
versão da fronteira, negociação entre pontos de dade natural nem uma herança genética; nem
estabilização da fala e forças que excedem toda uma ação individual isolada do meio e da so-
localidade”36 e que “enunciar não é somente ex- ciedade em que se vive. Compreender exige ha-
pressar ideias, é também tentar construir e legiti- bilidade, interação e trabalho”42. Ao desenvolver
mar o quadro de sua enunciação”37. Elementos essa concepção, faz as seguintes afirmações: 1ª)
importantes para observamos como é possível o “nunca exercemos total controle sobre o que o
STF incluir na expressão “entidade familiar” a entendimento que nosso enunciado possa vir a
união de pessoas do mesmo sexo. Numa frase, ter”; 2º) “compreender é também um exercício
adicionar a teoria dos discursos constituintes à de convivência sociocultural”; 3º) “o leitor não é
teoria da sociedade de Luhmann agrega à ex- um sujeito consciente e dono do texto, ele se acha
plicação da decisão jurídica a concepção dos inserido na realidade social e tem que operar so-
elementos constituintes do discurso, incluindo bre conteúdos e contextos socioculturais”43.
32
LUHMANN, 2007, p. 30.
33
LUHMANN, 2007, p. 30.
34
LUHMANN, 2007, p. 40.
35
LUHMANN, 2005, p. 508-509.
36
MAINGUENEAU, 2008, p. 26.
37
MAINGUENEAU, 2005a, p.
38
MAINGUENEAU, 2005b, p. 39.
39
MARCUSCHI, 2007a, p. 52-75; MARCUSCHI, 2008, p. 228.
40
MARCUSCHI, 2008, p. 231.
41
MARCUSCHI, 2008, p. 242.
42
MARCUSCHI, 2008, p. 231.
43
MARCUSCHI, 2008, p. 231.

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Essas afirmações nos permitem observar que, Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a
para Marcuschi, a compreensão é um trabalho união estável entre o homem e a mulher, configurada
na convivência pública, contínua e duradoura e
social44 por se dar sob a realização de atividade
estabelecida com o objetivo de constituição de família
inferencial, a qual consiste num ato de inserção (CCB).
num conjunto de relações45. Assim, ao observar-
mos a decisão judicial aplicamos a concepção de Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial
inferência, de leitura e de literalidade, tal como proteção do Estado (CF).
§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida
trazida pela teoria da compreensão como tra-
a união estável entre o homem e a mulher como
balho social de Marcuschi. entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão
É o que esperamos deixar claro com o pre- em casamento.
sente artigo, ainda que a limitação espacial (de
páginas) não nos permita detalhar mais nossa O caso “evidencia” o quanto a decisão ju-
teoria nem absolutamente todos os termos em- rídica é contingente, não por isso imprevisível,
pregados. Para tais detalhamentos sugerimos porquanto expectativa não é garantia causal de
leitura de outros trabalhos nossos. evolução histórica, como se um futurismo ga-
Aqui apresentamos parte de nossas pesquisas, rantidor, mas potência, como meio/forma de
iniciamos com a maneira como os participantes sentido46. É o que se pode ver ao contextualizar
do caso trabalharam as técnicas e os métodos de historicamente a temática.
interpretação. Num resumo, entidade familiar, como todos
os demais institutos jurídicos, foi, é e segue em
formação. Vejamos a história. Os direitos resul-
2 TÉCNICAS E MÉTODOS HERMENÊU- tantes da união de pessoas do mesmo sexo en-
TICOS: NEM LACUNA NEM LITERALI- tram no sistema jurídico brasileiro referentes aos
DADE NEM ANALOGIA direitos de propriedade, quando ações judiciais
de direito à pensão, INSS, divisão dos bens en-
Ao observar os corpora da pesquisa, inici- tre na separação do casal tiveram lugar no STJ,
emos com o tema da literalidade. Que literali- seguindo-se questões sobre o direito de criar
dade esteve presente durante o debate sobre qual filhos, adotar etc., até assumir a forma jurídica
“interpretação conforme a constituição” é a ad- de entidade familiar. Maria Berenice Dias, em
equada na interpretação, compreensão e aplica- artigo, afirma que união homoafetiva não é ap-
ção do art. 1.723 do Código Civil Brasileiro (Lei enas dividir economias, envolve sentimentos. É
n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002)? que direitos patrimoniais já vinham sendo recon-
Essa pergunta é intrigante após constatar que hecidos em casos de relação homossexual. Be-
no art. 1.723 do Código Civil Brasileiro (CCB) e renice Dias alerta sobre o ir e vir, no Judiciário,
no parágrafo terceiro do art. 226 do texto consti- do reconhecimento de direitos a esta maneira de
tucional está escrito: “é reconhecida como enti- união humana, pois os mais de oitocentos pro-
dade familiar a união estável entre o homem e a cessos que tramitaram no Judiciário vêm sendo
mulher”. Como assim, interpretar o art. 1.723 do julgados de diversas maneiras. A autora identi-
Código Civil Brasileiro (Lei n. 10.406, de 10 de fica decisões judiciais que reconheceram direito
janeiro de 2002) conforme a Constituição? Na de sucessão, direito relativo à pensão (INSS),
íntegra: direito de adoção, direitos relativos à mudança
44
MARCUSCHI, 2007°, p. 77; MARCUSCHI, 2008, p. 229.
45
MARCUSCHI, 2007b, p. 88.
46
Forma de sentido é expressão usada por Luhmann para explicar que “sociedade é um sistema que estabelece sentido” (LUHMANN, 2007, p. 32). O
sentido, forma de dois lados que é, é ao mesmo tempo o MÉDIUM em que as comunicações se desenvolvem e FORMA fixada devido à distinção LUH-
MANN, 2007, p. 32). O sentido, forma de dois lados que é, é ao mesmo tempo o MÉDIUM em que as comunicações se desenvolvem e FORMA fixada
devido à distinção realizada (LUHMANN, 2007, p. 37). O sentido é, portanto, a unidade da distinção (paradoxo do distinguir e assinalar) resultado do
processamento seletivo entre o sentido atual e o possível. Isso só é possível na sociedade como sistema de comunicação (sociedade funcionalmente difer-
enciada), porque nela, através da semântica elaborada de reflexão, de autonomia, são constituídas formas (sistemas) de sentido com funções específicas,
como o direito, a economia, a política, a arte, a religião, a educação, a ciência.

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de nome e sexo em certidões de nascimento47. curiae; no dia 5 de maio, os ministros do STF


Aos 10 de fevereiro de 1998, no Recurso Es- anunciaram seus votos e, ao final, tivemos pro-
pecial n. 148897/MG, que tramitou na 4ª Turma latada a decisão.
do Superior Tribunal de Justiça, relator Ministro Quanto à literalidade da expressão “entidade
Ruy Rosado de Aguiar, foi reconhecida a união familiar”, os representantes da CNBB e da AEB
homoafetiva como sociedade de fato. Aos 17 de afirmaram a impossibilidade de haver outra in-
junho de 1999, o Desembargador Breno Mor- terpretação que não negar a equiparação, pois o
eira Mussi do Tribunal de Justiça do Rio Grande texto constitucional é claro: apenas “união es-
do Sul, relator do Agravo de Instrumento n. tável entre o homem e a mulher” é legalmente
599075496, julgado na 8ª Câmara Cível, decide “entidade familiar” (lembrar o parágrafo terceiro
que ações judiciais envolvendo união entre pes- do art. 226, da Constituição Federal Brasileira,
soas do mesmo sexo devem tramitar em Vara de acima descrito). Acontece que literalidade não é
Família. Assim, a “novidade” da decisão de 5 de consequência causal de leitura(s).
maio de 2011, do STF, não foi assim tão nova. Os demais amici curiae, favoráveis à equipa-
Esse histórico não está ocupado com um ração, pautaram suas alegações pelo argumento
demonstrar evolução histórica, como se a decisão da lacuna no direito. A literalidade, neste caso,
de maio de 2011 tivesse sido causa daquela, mas está na ausência de vedação expressa à união de
ele serve para apresentar o quanto o direito da so- pessoas do mesmo sexo ser entidade familiar.
ciedade está contingencialmente em fazimento. Assim, no texto constitucional, a expressão “en-
É o que se depreende do paradoxo do sentido48 tidade familiar” comporta a inclusão da relação
– o que muda permanece – e de que comunicar homoafetiva, afinal o direito já reconhece outras
é promover uma distinção, portanto é selecionar formas de união familiar diversa da família en-
e distinguir. Ao comunicar diferenciamos o que tre homem e mulher como “entidade familiar”.
nos referimos e o que não iremos nos referir. Como a completeza do ordenamento jurídico se
Com a mesma lógica, da diferenciação, o sentido dá por decisão judicial, afinal não só de legisla-
contém o sentido estabelecido (firmado, fixado, ção vive o direito, cabe ao Judiciário decidir se a
sentido-atual) e o sentido afastado (não estabele- relação entre pessoas do mesmo sexo é uma das
cido, negado temporalmente, sentido-possível). espécies juridicamente admissíveis de “entidade
Essa diferenciação nos permite observar que os familiar”.
elementos constituintes do sentido se acoplam Esse debate hermenêutico, especificamente
de maneira firme e frouxa49, ou seja, uma parte de se tratar de lacuna, foi desdobrado na decisão,
constituinte do sentido forma a memória do sen- ainda que, assistindo aos vídeos, ouvimos o Re-
tido e uma parte é esquecida, momentaneamente lator Ministro Ayres Brito afirmar que não se
afastada da comunicação. Aplicando essas per- trata de lacuna, mas de o STF decidir qual deve
spectivas, observamos, ao pesquisar decisões ser a “interpretação conforme a Constituição”,
judiciais, a constante re-entrada do sentido-pos- dos incisos II e V do art. 19 c/c o art. 33 do Es-
sível no sentido-atual, ora de maneira firme, ora tatuto dos Servidores Públicos Civis do Estado
de maneira frouxa. Observamos, assim, o direito do Rio de Janeiro (Decreto-Lei n. 220/1975) e
como sistema que observa, produzindo e se re- do Art. 1.723 do CCB. Ao deslocar do debate
produzindo. Noutras palavras, aportes da teoria sobre lacuna para a questão da “interpretação
de Luhmann viabilizam explicar como é possível conforme a Constituição” resta afastada a dis-
o STF incluir na expressão “entidade familiar” a cussão do ativismo judicial, portanto de se tratar
relação de pessoas do mesmo sexo. É o que pas- de política jurídica. O debate fica centrado como
samos a apresentar. questão hermenêutica, é quando a literalidade se
No dia 4 de maio, tiveram a palavra dez amici torna tema.
47
DIAS, 2008, p. 298; DIAS, 2010; DIAS, 2011.
48
LUHMANN, 2007, p. 40.
49
LUHMANN, 2007, p. 39.

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Os amici curiae favoráveis à equiparação Aurélio afirma:


recorrem aos princípios constitucionais da ig-
ualdade, liberdade e dignidade da pessoa hu- Consoante Pietro Pierlingieri, a ‘família não fundada
mana, para argumentar que a literalidade está no casamento é, portanto, ela mesma uma formação
social potencialmente idônea ao desenvolvimento da
constituída por diversos textos, afirmam que a personalidade dos seus componentes e, como tal, ori-
ideia de justiça presente na Constituição Federal entada pelo ordenamento a buscar a concretização des-
brasileira está pautada pela inadmissibilidade de ta função’ (O direito civil na legalidade constitucional,
discriminação, portanto, é inconstitucional toda 2008, 989). Se o reconhecimento da entidade familiar
legislação preconceituosa, toda legislação que depende apenas da opção livre e responsável de con-
stituição de vida comum para promover a dignidade
nega o reconhecimento da união entre pessoas do dos partícipes, regida pelo afeto existente entre eles,
mesmo sexo como equiparada à entidade famil- então não parece haver dúvida de que a Constituição
iar. Assim, a “literalidade” do texto constitucio- Federal de 1988 permite seja a união homoafetiva ad-
nal (art. 226, § 3º) está constituída pelo suporte mitida como tal. Essa é a leitura normativa que faço da
advindo dos princípios constitucionais. Há uma Carta e dos valores por ela consagrados, em especial
das cláusulas contidas nos artigos 1º, inciso III, 3º, in-
“inconstitucionalidade na Constituição”, como cisos II e IV, e 5º, cabeça e inciso I (ver 10, do voto).
afirma Carmem Lúcia.
Aplicando nosso aporte teórico, afirmamos Observe a expressão “essa é a leitura nor-
que não há que confundir literalidade com haver mativa que faço da Carta e dos valores por ela
mais de uma interpretação possível50, inclusive, consagrados [...]”. A literalidade, portanto, não
“na produção de sentido através da comunica- está dada ou estabelecida previamente, ela é
ção, a recursividade se obtém sobretudo por pa- constantemente construída.
lavras de linguagem, as quais – ainda que sejam No debate também há referência à analogia
as mesmas – podem ser utilizadas nas mais di- como recurso hermenêutico admitido para fun-
versas situações”51. damentar a decisão, o reconhecimento da união
Com Marcuschi, temos a ideia de que o senti- homoafetiva como entidade familiar. Acontece
do é um partilhamento de conhecimentos. Como que analogia é também negada como método
detalharemos mais adiante. O conteúdo de uma hermenêutico para o caso. É o que ouvimos do
expressão, de um instituto jurídico não está já Ministro Ayres Brito, relator do processo, ao
estabelecido previamente no texto, no poder afirmar que a maneira de conferir “interpretação
do julgador nem em qualquer outro lugar. Esse conforme a Constituição” para decidir pela eq-
conteúdo é estabelecido constantemente, afinal, uiparação é porque a Constituição Federal con-
sentido é forma de dois lados: memória e mu- tém dispositivos legais que impedem aplicação
dança; história e renovação52. Assim, podemos discriminatória. Com isso, o Ministro afirma que
compreender como é possível se afirmar que a não se trata de analogia, mas sim que não é con-
ausência de um regime jurídico específico para a stitucional discriminação entre uniões heteros-
união entre pessoas do mesmo sexo não pode im- sexuais e homossexuais.
plicar exclusão, nos termos da legislação atual, Para uma compreensão de como foi possível
dessa união como espécie de entidade familiar. essa decisão do STF, temos por literalidade não
Em seu voto, a Ministra Carmem Lúcia afir- uma conclusão dedutiva causal pré-determinada
ma: “sistema que é, a Constituição haverá de ser no e pelo texto. A literalidade, aplicando a per-
interpretada como um conjunto harmônico de spectiva teórica que estamos propondo, é con-
normas, no qual se põe uma finalidade voltada struída no decorrer da formação discursiva. Com
à concretização de valores nela adotados como Luhmann, lembramos mais uma vez que sentido
princípios” (Item 5 do Voto). é forma de dois lados, ele é memória e mudan-
Ainda, sobre literalidade, o Ministro Marco
50
POSSENTI, 2004, p. 232-234.
51
LUHMANN, 2007, p. 30.
52
LUHMANN, 2007, p. 43.

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ça. Com Luiz Marcuschi, temos a “literalidade para os fins de procriação, outras formas de con-
como saliência”. De Giora, para quem o contex- vivência familiar, fundadas no afeto, e nas quais
to influencia a compreensão, Marcuschi fala em se valoriza, de forma particular, a busca da feli-
produção de sentido segundo a saliência da liter- cidade, o bem-estar, o respeito e o desenvolvi-
alidade. Giora equaciona o “modelo pragmático mento pessoal de seus integrantes.
estandar”, a “perspectiva do acesso direto” e a Observada a inclusão de elementos na forma
“hipótese da saliência gradual (HSG)” para afir- de sentido da entidade familiar, tais como o re-
mar que quanto mais familiar uma expressão, curso à expressão dignidade humana, liberdade
tanto mais rápido se dá a sua compreensão53. Es- de escolha do como ser feliz, envolvendo a
tamos diante da concepção interacionista da lin- colmatação da lacuna por meio da técnica her-
guagem, a qual Marcuschi considera adequada menêutica da analogia ou por interpretação ex-
para se compreender o processo de produção de tensiva, os debates sobre qual técnica hermenêu-
sentido, portanto, a língua como trabalho social. tica aplicar foram esvaindo-se, principalmente
Afinal: quando se observa que o resultado decisório
seria o mesmo (todos decidiram favorável à eq-
No caso das teorias do paradigma da inferência temos uiparação), ainda que cada Ministro tenha apre-
uma crença generalizada na possibilidade da comuni- sentado fundamentos diversos. Vejamos.
cação intersubjetiva e no partilhamento de conheci-
mentos como um dado. Acredita-se que a capacidade O relator, Ministro Ayres Brito, insiste, to-
inferencial é mais ou menos natural e intuitiva. Segu- mando a palavra durante o pronunciamento do
ramente, nem tudo é assim e mais do que isto, a com- voto do Ministro Gilmar Mendes, que:
preensão, mesmo sendo em boa medida uma atividade
inferencial em que os conhecimentos partilhados vão [...] não há lacuna e portanto não há colmatação. Nós
exercer uma boa dose de influência, seria ingênuo ac- demos um tipo de interpretação superadora da literali-
reditar que isso se dá de maneira não problemática, dade e apontando que a própria constituição contém el-
pois o mal entendido é um fato. Um desafio no para- ementos interpretativos que habilitam esse julgamento
digma inferencial é explicar a suposição de expecta- do Supremo a concluir pela paridade de situações ju-
tiva de partilhamento de conhecimentos54. rídicas, sem lacuna e portanto sem colmatação.

Nessa perspectiva, não cabe confundir a infer- O Ministro Gilmar Mendes retoma a palavra
ência na perspectiva interacionista, com inferên- para insistir que há omissão legislativa a ser su-
cia como operação lógica. Uma maneira de evi- prida por decisão do STF. Já o Ministro Marco
tar essa confusão é admitir que o sentido literal Aurélio fala em interpretação extensiva quando
não ignora “o papel da interação na produção de afirma que: “concordo que a constituição con-
sentido”55, portanto, o interacionismo aqui não é tém normas muito claras e direitos fundamentais
o interacionismo social (como o interacionismo que permitem a pretensão formulada. Se vamos
simbólico com George Mead e Herbert Blumer, aplicar por extensão ou por analogia ou de out-
de cunho fenomenológico e psicossocial), mas ra forma, o resultado é o mesmo a que vamos
uma concepção de “interação como processo de nos aproximar”. Retoma novamente a palavra o
produção de sentidos pela relação entre seres Ministro Gilmar Mendes, continuando a questão
humanos inter-objetivamente comunicantes”56. de se a decisão é um caso de ato legislativo real-
Aplicando essa concepção, podemos observar, izado pelo STF, afirmando:
do debate durante a decisão, o lugar atribuído ao
sentimento, quando se afirma, por exemplo, que A vida cotidiana do funcionamento parlamentar oculta
ao lado da tradicional família patriarcal, de base o perigo de que maiorias se imponham desconsiderada-
patrimonial e constituída, predominantemente, mente, emoções determinem o acontecimento, dinheiro

53
MARCUSCHI, 2007a, p. 89.
54
MARCUSCHI, 2008, p. 238.
55
MARCUSCHI, 2007a, p. 94.
56
MARCUSCHI, 2007a, p. 94.

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e relações de poder dominem e simplesmente sejam foi a comunicada. A comunicação é, pois, im-
cometidas faltas graves. Um Tribunal Constitucional provável, todavia nós, seres humanos, criamos
que se dirige contra tal, não se dirige contra o povo,
senão em nome do povo contra seus representantes
meios (medium) para dar forma à comunicação,
políticos. Ele não só faz valer negativamente que o ou seja, para tornar a comunicação possível. Es-
processo político, segundo critérios jurídicos humanos sas ideias aplicadas às falas durante a audiência
e jurídicos fundamentais fracassou, mas também exige no STF nos levam a considerar que o direito não
positivamente que os cidadãos aprovem os argumentos é aplicação de legislação, nem uma questão de
do Tribunal, se eles aceitarem o discurso jurídico con-
stitucional racional. A representação argumentativa dá
poder do julgador, mas um sistema de sentido,
certo quando o Tribunal Constitucional é aceito como um sistema de comunicação no qual estão pre-
instância de reflexão do processo político. Isso é o caso sentes a infinitude de possibilidades, todavia
quando os argumentos do Tribunal encontram eco na umas marcadas (lado inclusivo = marked space)
coletividade e nas instituições políticas conduzem a re- e outras não marcadas (unmarked space). Dire-
flexões e discussões que resultam em convencimento
examinados. Se um processo de reflexão entre coletiv-
ito, assim considerado, é um sistema de comuni-
idade, legislador e tribunal constitucional se estabiliza cação da sociedade. Sistema é, nessa visão, pro-
duradouramente, pode ser falado de uma institucional- duzido das comunicações sociais58. Todavia, não
ização que deu certo dos direitos do homem num esta- porque o sentido se opera dentro do sistema, ao
do constitucional democrático. Direitos fundamentais operar o sentido ignora, desconhece, independe,
e democracia estão reconciliados.
é isolado do ambiente. Não. O sentido, forma de
Observamos a preocupação de alguns min- dois lados que é, contém o lado sistema (interno,
istros do STF em legitimar a decisão como inclusivo) e o lado entorno (externo, exclusão).
decisão judicial e não política do direito (para Assim é porque o sistema vive acoplado ao seu
lembrar Kelsen), os quais frisam que sua decisão ambiente de maneira que seu fechamento opera-
não é um ato legislativo, mas um ato jurídico ei- cional estabelece os limites do sistema mesmo
vado de aceitabilidade social. Para observar essa (autopoieticamente o sistema produz sentido por
questão, recorremos à ideia de fechamento oper- autorreferenciação).
acional do sistema jurídico, nos moldes luhman- Fique claro. Não há isolamento do sistema
nianos. Curioso como ainda há quem afirme que ao seu meio, ao seu ambiente, pelo contrário, há
autonomia de funcionamento se confunde com constante relacionamento, há acoplamento. Ser
isolamento. Bastava ler um parágrafo da obra autopoiético é apenas admitir que se produzem
de Luhmann para mudar essa afirmação, pois estruturas e elementos no interior do sistema;
não faltaram tintas para Luhmann explicar que ocorre que sendo forma de dois lados, também
sua base teórica está na teoria da distinção de no interior do sistema se produzem espaços de
George Spencer Brown, para quem a forma tem liberdade internos59. Com isso, apenas chama-
dois lados, um lado positivo, afirmativo, inclu- mos atenção para o quanto um tribunal se ocupa
sivo, e um lado negativo, distinguido, excluído. com sua legitimidade, ou seja, com ser reconhe-
É que, ao comunicar, realizamos o paradoxo da cido socialmente, pois sabe que suas operações
distinção, pois assinalamos e distinguimos, ao (decisões) não terão efeito de sentido se assim
mesmo tempo. Afirmar é decidir o incluído na não for. Observamos que todas as falas se pau-
comunicação, deixando de fora – excluindo sem tam por elementos do próprio mundo jurídico,
eliminar, afinal sentido é uma forma de dois la- do próprio direito com sistema de comunicação
dos57 – muito mais possibilidades que aquela que da sociedade. Assim não fosse, não seria pos-

53
MARCUSCHI, 2007a, p. 89.
54
MARCUSCHI, 2008, p. 238.
55
MARCUSCHI, 2007a, p. 94.
56
MARCUSCHI, 2007a, p. 94.
57
LUHMANN, 2007, p. 28.
58
LUHMANN, 2007, p. 39.
59
LUHMANN, 2007, p. 45.

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sível compreender o que o outro enuncia, a fala enunciado, recorremos à análise de discurso,
de um não seria inteligível pelo outro. Ouvindo da qual retiramos a ideia de que, por mais não
os enunciados durante a audiência observamos jurídico que seja um argumento enunciado, dis-
o quanto os outros debatem, discutem um e cursivamente se pode identificar a pretensão
outro enunciado, o que implica ter havido co- em involucrar um argumento como integrante
municação, porquanto todos limitados ao fato de do discurso jurídico. Isso é constatado quando,
estarem num tribunal superior, argumentando, por exemplo, o representante enviado pela igreja
buscando ser ouvido, ser compreendido, co- católica para falar na audiência do STF não foi
municar-se. Não cabe a ilusão que comunicar é um bispo ou um arcebispo, mas um advogado,
anuir porquanto há comunicação quando resulta portanto alguém com domínio do se comunicar
acordo, concordância. Comunicação, na teoria nos moldes do discurso jurídico, do sistema ju-
reflexiva da sociedade somo sistemas que ob- rídico. Todavia, qual a legitimidade do STF para
servam, é “operação elementar da sociedade, é tomar tal decisão? Justamente a legitimidade de
um acontecimento atado a um instante de tempo, organização central do direito da sociedade.
enquanto surge, se desvanece”60. O tema da legitimidade do STF para tomar
Assim, uma fala, um enunciado num tribunal decisões como essa traz ao debate questões como
não constitui por si só direito ou produção de o ativismo judicial, ou seja, o quanto o STF está
direito, nem mesmo uma decisão por si mesma ocupando função de legislador. O representante
é já direito, assim fosse direito não seria sistema AEB afirmou que “esqueceram de falar o princí-
de comunicação sobre lítico/ilícito da sociedade, pio mais importante da carta constitucional [...]
mas sim interação ou enunciado, nem sequer ‘todo poder emana do povo’, art. 1º, parágrafo
discurso seria. Se é sistema de comunicação, o único” e, seguindo, com sete minutos de fala,
direito, na medida em que se diferencia de seu questiona “por que Cabral e Dilma não fazem
entorno (diferencia-se tanto dos outros sistemas um plebiscito? Porque sabem que vai perder. O
da sociedade como de seu ambiente) não se isola, povo brasileiro não aceita, ele tem sua cultura
afinal diferenciação é construção recursiva de um enraizada”.
sistema, é aplicação da construção sistêmica ao O Ministro Ayres Brito relata que consul-
resultado da própria diferenciação61. O sistema, tou todos os tribunais estaduais e assembleias
portanto, vive integrado (acoplado) ao seu meio estaduais, obtendo por resultado que a maioria
(entorno, ambiente), o que promove redução declarou concordar com a equiparação entre es-
do grau de liberdade do próprio sistema. Com sas uniões humanas. Sobre o tema, citamos o
isso, observamos o quanto o sistema se adapta, seguinte enunciado no voto do Ministro Ricardo
aprende com o ambiente. Neste caso, a formação Lewandowski:
histórica do debate foi produzindo uma ambiên-
cia viável à inclusão da união entre pessoas do O que se pretende, ao empregar-se o instrumento met-
mesmo sexo na decisão do STF. Fosse essa de- odológico da integração, não é, à evidência, substituir
a vontade do constituinte por outra arbitrariamente es-
cisão há cinco dez anos atrás, ela não teria tido o colhida, mas apenas, tendo em conta a existência de
conteúdo que teve. um vácuo normativo, procurar reger uma realidade so-
cial superveniente a essa vontade, ainda que de forma
provisória, ou seja, até que o Parlamento lhe dê o ad-
3 O QUADRO CÊNICO: A INTERCOM- equado tratamento legislativo (ver 12-13, do voto).
POSIÇÃO DO DISCURSO JURÍDICO
Para observar com foi possível a decisão
Para lidar com o quanto cada participante se do STF, verificamos a copresença de distin-
dedica a traçar cenas para legitimar seu discurso tos discursos constituintes nas enunciações dos

60
LUHMANN, 2007, p. 49.
61
LUHMANN, 2007, p. 473.

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falantes, para isso aplicamos a ideia de cena vos enunciados)65. Com Luhmann, a sociedade
da enunciação e de discurso constituinte com (sistema de comunicação) é possível por termos
Maingueneau, inclusive porque: desenvolvido capacidade de produzir formas de
sentido, formas estas que “têm um lado oposto
Maingueneau desenhou um quadro teórico que, a meu que inclui o que, no momento em que são uti-
ver, oferece novos instrumentos para dar conta dos lizadas, se exclui”, afinal:
processos enunciativos [...] o que é mais original em
Maingueneau, a meu ver, é a consideração de que os
processos enunciativos não obedecem necessariamente [...] o mundo é um potencial de surpresas ilimitado;
à mesma ordem, conforme se trata, por exemplo, de é informação virtual que, não obstante, necessita de
ciência, de literatura, de política, de publicidade etc62. sistemas para gerar informação; melhor dizendo, para
dar sentido de informação a certas irritações selecio-
nadas. Por conseguinte, toda identidade deve ser en-
E, ao final do texto, quando Possenti escreve: tendida como resultado do processamento de informa-
“Ele [Maingueneau] permite que fique claro que ções66.
sua ordem (do texto) não decorre de uma pos-
sível liberdade dos sujeitos, mas também que ela Com a teoria reflexiva, portanto, sociedade
é maior ou menor (que pode vir a se exigida!!!) e discurso são rastros do contínuo e ao mesmo
segundo tipos de discurso”63. tempo do descontínuo do texto, do enunciado,
Assim como Luhmann e Marcuschi, do social, do discurso, pois o dito e o não dito
Maingueneau também não se pauta pela cau- integram o dito. Assim, ideias como discurso
salidade, mas pela gnosiologia e epistemologia constituinte67 e meios de comunicação simboli-
da circularidade reflexividade, afinal, este autor camente generalizados68 viabilizam reflexões
também não se ocupa em buscar a essência ou a e pesquisas diversas daquelas ocupadas com o
origem de um discurso. Pela via da circularidade descobrir uma origem, desvelar segredos ocul-
reflexiva, a história, por exemplo, não se reduz tos, determinar como deveríamos ser, estabelec-
à confecção de continuidades, ela é observada, er normas de decisão tais como critérios para um
também, como descontinuidades, como nos médico decidir se um paciente é ou não é psi-
alerta Foucault: copata, para um juiz decidir se algo é lícito ou
ilícito, para um leitor interpretar. Dispensados
[...] discurso não é uma forma ideal e intemporal que das amarras epistemológicas, não está o obser-
teria, além do mais, uma história [...] é, de parte a vador livre para observar como queira; os limites
parte, histórico – fragmento de história, unidade e des-
continuidade na própria história, que coloca o prob- são institucionalizados pela própria condição de
lema de seus próprios limites, de seus cortes, de suas observar, como explica a ideia de paratopia, lo-
transformações, dos modos específicos de sua tem- calidade paradoxal do autor (filósofo, escritor,
poralidade, e não seu surgimento abrupto em meio a sociólogo etc.), o qual não se pode pôr “nem no
cumplicidades do tempo64. exterior nem no interior da sociedade”, pois “sua
enunciação se constitui na impossibilidade mes-
Com Maingueneau, os enunciados dos dis- ma de atribuir para si um verdadeiro ‘lugar’” 69.
cursos constituintes são fechados em sua or- A paratopia é um pertencimento paradoxal70.
ganização interna ao mesmo tempo em que A própria definição dos corpora da pesquisa é
são reinscritíveis em outros discursos (são ca- suficiente para estabelecer limites gnoseológicos
pazes de se impor e remodelar para incluir no- e epistemológicos. Documentos catalogados não

62
POSSENTI, 2008, p. 203.
63
POSSENTI, 2008, p. 203.
64
FOUCAULT, 1986, p. 136.
65
MAINGUENEAU, 2008, p. 37.
66
LUHMANN, 2007, p. 29.
67
MAINGUENEAU, 2008, p. 37-54; MAINGUENEAU, 2010, p. 158.
68
LUHMANN, 2007, p. 245-309.
69
MAINGUENEAU, 2008, p. 45.
70
MAINGUENEAU, 2008, p. 159.

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fornecem nem desvelam histórias (para lembrar dos discursos do funcionamento intradiscursivo. Essa
mais uma vez Foucault), mas viabilizam anális- imbricação do Mesmo e do Outro retira à coerência
semântica das formações discursivas qualquer caráter
es, pesquisas, pois sem um corpus de pesquisa de ‘essência’, caso em que sua inscrição na história
sequer, não há o que analisar. Se questionamos seria assessória; não é dela que a forração discursiva
como foi possível, aos cinco dias do mês de maio tira o princípio de sua unidade, mas de um conflito re-
do ano de dois mil e onze, o STF ter decidido que grado74.
a união homoafetiva é, juridicamente, equipara-
da à entidade familiar, precisamos estabelecer os Aqui, tem lugar a questão do quadro cênico.
corpora à análise, estabelecer a cena da enuncia- Ora, não analisamos pronunciamentos numa
ção, afinal, texto são “rastros deixados por um audiência do STF, analisamos discursos. Não por
discurso em que a fala é encenada”71. isso, arvoramo-nos a estabelecer um conceito de
Fosse direito exclusivamente legislação, toda discurso. Assim como o termo direito, sociedade,
mudança social seria necessariamente ilícito até estado, indivíduo, pessoa, discurso não é referi-
alterada a legislação. Para uma explicação da do com uniformidade. Obviamente. Para não
ambivalência ordem/mudança no direito soma- confundir discurso com enunciado, argumento
mos a ideia de discurso constituinte, à teoria da ou texto, Maingueneau propõe como discurso o
sociedade como sistema comunicacional. Fosse “artefato constituído para e por um procedimen-
direito pré-determinado por texto legislativo, to de análise que terá a função de situar e con-
jurisprudencial, doutrinário, como explicar a figurar, em dado espaço-tempo, enunciados em
decisão do STF que equiparou a união homoaf- arquivo”75. A complexidade do termo discurso
etiva com entidade familiar? nos leva à ideia de o discurso, simultaneamente,
Para uma reflexão sobre essa questão, recor- ser constituído por: a) supõe uma organização
remos à ideia de discurso constituinte de Do- transfrástica (o discurso é uma organização situ-
minique Maingueneau, para quem “o sentido é ada para além da frase, porquanto vivenciam re-
fronteira e subversão da fronteira, negociação gras de uma organização, de uma comunidade
entre pontos de estabilização da fala e forças que discursiva); b) é orientado; c) é uma forma de
excedem toda localidade”72 e “enunciar não é ação; d) é interativo; e) é contextualizado; f) é
somente expressar ideias, é também tentar con- assumido; g) é regido por regras, normas; h) é
struir e legitimar o quadro de sua enunciação”73. considerado no bojo de um interdiscurso76.
Além disso: Não nos cabe aqui esclarecer cada uma des-
sas características do discurso, todavia, devido
[...] no espaço discursivo, o Outro não é nem um frag- a elas, essa concepção de discurso está situada
mento localizável, uma citação, nem uma entidade
na perspectiva pragmática e, inclusive, diferen-
exterior; não é necessário que seja localizável por al-
guma ruptura visível da compacidade do discurso. En- ciado de texto e enunciado, porquanto textos são
contra-se na raiz de um Mesmo sempre já descentrado “unidades verbais pertencentes a um gênero de
em relação a si próprio, que não é em momento algum discurso” e enunciado, a diferença de enuncia-
passível de ser considerado sob afigura de uma pleni- ção, é uma “marca verbal de um acontecimento
tude autônoma. É o que faz sistematicamente falta a um
que é a enunciação”77.
discurso e lhe permite fechar-se em um todo. É aquela
parte de sentido que foi necessário que o discurso sac- Visualizamos, pois, discurso jurídico como
rificasse para constituir sua identidade. Disso decorre uma espécie de discurso que contém regras,
o caráter essencialmente dialógico de todo enunciado limites, organicidade (o discurso, como uni-
do discurso, a impossibilidade de dissociar a interação dade transfrástica, está submetido às regras de

71
MAINGUENEAU, 2005a, p. 85.
72
MAINGUENEAU, 2008, p. 26.
73
MAINGUENEAU, 2005a, p. 93.
74
MAINGUENEAU, 2005b, p. 39.
75
MAINGUENEAU, 2005a, p. 61.
76
MAINGUENEAU, 2005a, p. 52-56; MAINGUENEAU, 2005b, p. 21-25.
77
MAINGUENEAU, 2005a, p. 56-57

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organização vigentes em um grupo social de- já é discurso jurídico em si? Essa questão pode
terminado), temporalidade (o discurso é orien- soar como devaneios acadêmicos, todavia sua
tado inclusive por se desenvolver no tempo), importância está na concepção do direito como
contextualidade (o sentido do discurso requer a produto de comunicação da sociedade, portanto
contextualização do enunciado, da identificação não como interpretação de textos legislativos,
de sujeitos como fontes de referências pessoais, nem como poder do decididor. Entender que ad-
temporais e espaciais, além da modalização), vocacia é organização do sistema jurídico, assim
interatividade constitutiva (dialogismo, interdis- como são os tribunais implica admitir que não só
curso). juiz, desembargador ou ministro integram comu-
Com essa noção de discurso, questionamos: nicação jurídica. Mais, implica verificar o quanto
quando podemos considerar um texto, um enun- os amici curiae representam sociedade ou falas
ciado, um discurso como jurídico? Para uma juridicizadas da sociedade. As implicações para
resposta recorremos à ideia de unidades tópicas uma compreensão da decisão dessa questão são
territoriais78. Assim, texto legislativo (Constitu- diversas, uma delas é justamente as implicações
ição Federal, Código Civil, Código de Processo da ambiência STF nos discursos dos falantes.
Civil etc.), petição (documentos elaborados pe- Seguimos essa questão explorando a ideia de
las partes, portanto decisões de advogados, pro- cenas de enunciação. Para observar os discursos,
motores, procuradores, defensores públicos, no portanto como foi possível a decisão do STF, é
qual estão escritas informações sobre o caso e necessário considerar a cenografia. No quadro
requerimento de decisão(ões) do magistrado), cênico, ou seja, na cena englobante [a que cor-
decisão de magistrados (despacho, sentença, responde ao tipo de discurso jurídico e ao seu
acórdão, súmulas, voto em decisões colegiadas) estatuto pragmático, viabiliza identificar os lu-
configuram unidades tópicas territoriais do dis- gares (estatutos) dos parceiros e o quadro espa-
curso jurídico, pois integram o tipo de discurso ciotemporal, é ela que nos permite considerar os
relacionado ao setor de atividade da sociedade enunciados como integrantes do discurso de tipo
chamado direito; assim consideramos porque o jurídico] e na cena genérica [da qual identifi-
tipo de discurso jurídico comporta os gêneros de camos o papel dos parceiros, as circunstâncias
discurso legislação, petição, despacho, sentença, espacial e temporal, o suporte material e a fi-
voto, acórdão. nalidade das falas de cada parceiro na audiência
Ocorre que outros dados integram o corpus do STF] “definem o espaço estável no interior
da pesquisa e, então, cabe pensar se é o caso de do qual o enunciado adquire sentido”80. Ocorre
lidarmos com unidades não tópicas como forma- que este quadro cênico não é suficiente, pois as
ções discursivas79, pois discursos provenientes falas dos amici curiae81, durante a audiência do
de igrejas, para serem considerados discursos ju- STF, são legitimadas como discurso jurídico se
rídicos, é preciso aportar sua transversalidade ao considerarmos a cenografia. É que, devido ao
promover uma análise de discurso. É o que temos processo de enlaçamento paradoxal - no qual
com a inclusão do discurso religioso como ju- “a enunciação, ao se desenvolver, esforça-se por
rídico, como ocorreu nos casos da legalização de instituir progressivamente seu próprio discurso
pesquisa com célula tronco, aborto anacefálico, de fala”82 – podemos observar que um enuncia-
união homoafetiva, transexualidade. A questão do emitido por um representante da igreja, nas
é: quando o advogado da CNBB fala, sua fala dependências do STF, portanto, num processo
78
MAINGUENEAU, 2008, p. 16-17.
79
MAINGUENEAU, 2008, p. 18-23.
80
MAINGUENEAU, 2008, p. 116; MAINGENEAU, 2010, p. 188.
81
Conectas Direitos Humanos; Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM; Grupo Arco-Íris de Conscientização Homossexual; Associação
Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais - ABGLT; Grupo de Estudos em Direito Internacional da Universidade Federal de Minas
Gerais – GEDI-UFMG e Centro de Referência de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros do Estado de Minas Gerais – Centro
de Referência GLBTTT; ANIS – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero; Associação de Incentivo à Educação e Saúde de São Paulo; Conferên-
cia Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB e a Associação Eduardo Banks.
82
MAINGUENEAU, 2008, p. 118.

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judicial, configura um discurso jurídico por sua tal deve buscar aplicar o direito considerando a
cena ser a audiência judicial realizada no STF. igualdade, o princípio que o governo garanta a
Com isso, as falas dos amici curiae, por ex- todos viverem com dignidade. Então cita Ron-
emplo, dos representantes da igreja, são discur- ald Dworkin, depois Hannah Arendt ao tratar da
sos jurídicos e não discursos religiosos. Assim dignidade humana como valor fundamental à
é porque os discursos que originalmente são humanidade, à implementação de uma política
religiosos, políticos, reivindicatórios são trans- que garanta uma vida com igualdade, liberdade
formados em jurídicos na medida de sua enun- e dignidade. Volta a citar autores do direito para
ciação. É que: firmar a dignidade humana. Por fim, recorre à
máxima jurídica “onde está a sociedade, está o
[...] cenografia é, ao mesmo tempo, origem e produto direito” para afirmar que se a sociedade evolui,
do discurso; ela legitima um enunciado que, retroati- o direito deve evoluir. Considera que este é um
vamente, deve legitimá-la e estabelecer que essa ce-
nografia de onde se origina a palavra é precisamente momento de ousadia judicial e, na continuidade,
a cenografia requerida para contar uma história, para que, “se o legislador não quis fazer tal ousadia,
denunciar uma injustiça etc.83 cabe ao Tribunal fazê-la. Este é um momento
da travessia, cabe ao STF fazê-la”. Cita, então,
O Ministro Luiz Fux, por exemplo, defende Fernando Pessoa. No fim, declara acompanhar o
que julgar não é exclusivamente razão, mas tam- relator votando favorável à equiparação.
bém sentimento. Relata sua história como juiz Nossas observações sobre esse voto do Min-
de carreira para se referir à experiência de mag- istro Luiz Fux é que ele está organizado desde
istrado como responsável por decidir. Centra as regras constitutivas do discurso jurídico,
seu argumento no sentimento, no amor. Afirma como ensina Maingueneau, porquanto estão
que “justiça está em buscar justiça, não numa presentes as regras do “mundo do direito”, da
definição que se pode ter antecipadamente”. Se comunidade discursiva jurídica. Como minis-
ser homossexual não é crime, porque não con- tro, Fux tem poder de voto, sua fala não tem os
stitui entidade familiar? “[...] por força de duas mesmos moldes que as falas daqueles que não
questões que são abominadas por nossa consti- são ministros. Seu enunciado é constitutivo do
tuição: a intolerância e o preconceito”. Cita o discurso jurídico porquanto orientado por iden-
preâmbulo da Constituição Federal e, em segui- tificar normas jurídicas (legislativas ou não) fa-
da, o caput de seu art. 5º e passa a citar legisla- voráveis à equiparação; como forma de ação,
ções internacionais. O que é uma família no Bra- o voto defende uma ideia de decisão justa; seu
sil? ”[...] família só tem propriedade quando nela voto é eminentemente interativo, inclusive dia-
há respeito pela dignidade humana. Se é assim, loga com os demais ministros e com peças pro-
a união homoafetiva enquadra-se no conceito cessuais das partes, está contextualizado, dadas
de família. A pretensão é conferir juridicidade as circunstâncias ambientais (sala do STF, uso
à união homoafetiva, equiparando-a à entidade de toga, tom de voz etc.), o momento histórico
familiar”. Não se justifica não admitir essa eq- social (o debate não é novo no mundo jurídico),
uiparação, pois inúmeros princípios constitucio- é um discurso assumido (é um voto de um min-
nais conspiram em favor dessa equiparação. Ex. istro do STF, tem elementos à formação do dis-
isonomia, liberdade, dignidade da pessoa hu- curso jurídico); quanto interdiscurso, há citações
mana, proteção do Estado à pessoa etc. Fala em explícitas de outros autores bem como aforismos
tecido normativo do texto constitucional. Afirma como referência à sua história até o STF, seus
que “o ser humano se encontra como centro de sentimentos pessoais, apelos.
gravidade de todo o ordenamento jurídico”. Ale- Todas essas observações têm lugar devido ao
ga que se o legislador não faz sua função, cabe objetivo de explicar “como foi possível” o STF
ao STF fazer, pois ele órgão do governo e como ter tomado a decisão jurídica que tomou no dia

83
MAINGUENEAU, 2008, p. 118.

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cinco do mês de maio de 2011. Numa frase, isso interpretação é capaz de explicar tal decisão,
foi possível porque direito é um sistema de co- muito menos a teoria da argumentação, por isso
municação da sociedade, portanto contingente, sugerimos uma teoria reflexiva, pois uma teoria
duplamente contingente porquanto limitado por reflexiva é capaz de explicar a produção do dire-
seu entorno ao mesmo tempo em que limitado ito, a decisão jurídica em sua empiricidade. O
por seu interior. que implica nos afastarmos da pretensão de ensi-
Seguindo a análise, visando agora não mais nar juiz a decidir, como é frequente entre doutri-
compreender cada voto, mas a decisão do STF, nadores jurídicos.
descreveremos uma sequência de votos para só Retoma a palavra a Ministra Ellen Gracie e
ao final lançar nossas observações. afirma que a largueza da interpretação não está
A Ministra Ellen Gracie aponta que o tema na literalidade. O artigo não é literal porque, ao
é debater a “interpretação legitimadora” do art. final, na segunda parte, a Constituição viabiliza a
1.723, do Código Civil, de maneira a ser inter- ampliação, por intepretação, do sentido de enti-
pretado “conforme a constituição” e a incidir dade familiar. A Constituição, afirma a ministra,
também sobre a união entre pessoas do mesmo não pode defender a intolerância, seus princípios
sexo. Faz referências às peças dos autos. Cita a maiores fazem com que a sirva para concretizar
dignidade da pessoa humana como núcleo cen- valores. É papel da hermenêutica constitucional
tral da Constituição Federal. Se a união homoaf- a compreensão histórica, com a visão total de
etiva é estável, por que não é entidade familiar? sua época: hermenêutica das palavras (gramati-
Afirma que contra todas as formas de covardia e calidade), do espírito (historicidade, contextu-
violência aplicadas contra as minorias, como pre- alidade), do sentido (a constitucional) (cita José
conceitos, é amplamente repudiado pelo ordena- Afonso da Silva). A intepretação não pode se
mento jurídico. Cita Guimarães Rosa para dizer dar pela intolerabilidade da liberdade de escol-
que “a vida não é entendível”, assim, afirma que ha pela felicidade. A referência expressa a uma
“o direito existe para a vida, e não a vida para mulher não implica inferiorizar cada um de nós,
o direito”. O que temos aqui é um debate sobre excluir outras alternativas. Por fim, julga con-
qual a melhor interpretação ao Código Civil, o forme o relator. Observamos aqui nitidamente
qual repete o art. 226 da Carta Magna. O artigo a construção de sentido do direito. Construção
1.723 do Código Civil, mesmo contendo o mes- esta que contém a aplicação da memória do sen-
mo texto do art. 226 da Constituição, deve ser tido de entidade familiar, bem como dos tantos
interpretado afastando-se o preconceito. Como debates e ações judiciais já realizados, ao mesmo
a interpretação do texto constitucional não com- tempo em que há mudança desse sentido histori-
porta uma interpretação preconceituosa, pois so- camente construído de entidade familiar.
bre ele incidem os princípios constitucionais da O Ministro Ricardo Lewandowski argumen-
liberdade, da dignidade humana, o Código Civil ta que se tende a vincular família a casamento,
também não deve ser interpretado preconceitu- aqui, cita as Constituições brasileiras anteriores.
osamente. Na Constituição de 1988, identifica três tipos
Durante o voto, toma a palavra o Ministro de famílias: união entre homem e mulher (casa-
Gilmar Mendes, e a Ministra Ellen Gracie lhe mento civil), união estável (de fato, concubinato)
concede a palavra. O Ministro Gilmar Mendes e a monoparental. União homoafetiva é enti-
afirma que “talvez o único argumento que pode dade familiar aplicando o método sistemático,
quando se invoca a possibilidade de se ter a un- é um quarto tipo de entidade familiar, inclusive
ião entre pessoa do mesmo sexo, invoca-se o porque ela não é proibida pelo ordenamento. Cita
dispositivo do código civil como óbice”, “Minha Canotilho (38min.). Na ordem constitucional em
primeira pré-compreensão é que o texto não é vigor, família é a base da sociedade e merece
excludente, não só com base no texto ou mesmo proteção do Estado. O importante é proteger to-
na constituição, mas no ordenamento jurídico das as formas de família social e não estabelecer
[...]”. Aqui observamos que nenhum método de como cada um deve constituir sua família. A falta
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de norma específica, não implica negar direitos fala, cada informação (enunciado) apresentados
às formas como as pessoas buscam ser felizes. pelos participantes da audiência no STF nos le-
No senso de 2010, o IBGE identificou 60 mil vam a afirmar o quanto tem lugar uma teoria re-
casais homossexuais declarados no país. A rela- flexiva da decisão judicial.
ção duradoura é apta a ser aplicado o contido no
art. 226, pois a textualidade “homem e mulher”
é meramente exemplificativa, não taxativa. As- 4 OBSERVAÇÕES DOS DISCURSOS CON-
sim, refere-se ao instrumento metodológico da STITUINTES NA FORMAÇÃO DISCUR-
integração, o que implica não se tratar de uma SIVA DO DIREITO DA SOCIEDADE
substituição do legislador, mas de suprir lacuna
da legislação, ainda que de forma provisória. Ao aplicar as contribuições da teoria reflexiva
Esclarece, ainda, que não quer reconhecer uma da sociedade como sistema de sentido para uma
união estável homoafetiva, por interpretação ex- compreensão da decisão jurídica. Na literatura
tensiva do art. 226, da Constituição Federal, mas jurídica não faltam autores - Hans Kelsen e Her-
uma união estável homoafetiva estável, dado o bert Hart, por exemplo - reconhecendo a impos-
processo de integração analógica. Desvela-se sibilidade de a legislação prever todas as formas
outra espécie de entidade familiar. Reconhecida e possibilidades de casos socialmente possíveis.
a união homoafetiva com entidade familiar, nos A “descoberta” da ambiguidade e da vagueza,
aspectos em que são assemelhados, através do por juristas, foi suficiente para limitar o debate
emprego da analogia no âmbito jurídico. Vota jurídico à ideia de que, sendo o direito texto, a
em favor da aplicabilidade, por analogia, às un- decisão jurídica é discricionária (Hans Kelsen,
iões homoafetivas de todas as normas aplicáveis normativismo, e Herbert Hart, realismo analíti-
à união heteroafetivas. Mais uma vez, observa- co) ou é arbitrária, uma questão de poder (per-
mos a constante produção do sentido do direito suasão – retóricos). Essa dicotomia não viabiliza
inclusive explorando informações típicas do explicar a decisão jurídica, pois ela é arbitrária e
direito, como textos legais e jurisprudência, ao discricionária, ao mesmo tempo. Para uma com-
mesmo tempo em que explora informações não preensão dessa afirmação, reproduzimos os arts.
jurídicas. 126 e 131 do Código de Processo Civil (CPC):
O Ministro Joaquim Barbosa traz ao debate
que se trata de interpretar considerando os pre- Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou
ceitos que decorrem do núcleo estruturante da despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No
julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas le-
dignidade humana. Para isso recorre ao descom- gais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos cos-
passo entre o mundo dos fatos e o universo do tumes e aos princípios gerais de direito. (Redação dada
direito, pois o direito não foi capaz de acompan- pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973)
har as mudanças sociais, papel da Corte Consti-
tucional (Cortes Supremas). Com isso, defende Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, aten-
dendo aos fatos e circunstâncias constantes dos au-
que cabe a elas fazer a ponte entre o direito e a tos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá
sociedade. As relações homossexuais não difer- indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o
em em nada das heterossexuais, o que varia é convencimento. (Redação dada pela Lei nº 5.925, de
como a sociedade trata dessas relações. Recorre 1º.10.1973)
à analogia e declara que comunga com o voto
do relator, principalmente por a Constituição Do artigo 126 destacamos a obrigatoriedade
vedar a discriminação e mitigar pelo peso das de decidir, o que implica ao Judiciário a função
desigualdades baseadas no preconceito. O art. 3º de estabelecer qual das partes de um processo
da atual Carta de República é promover o bem judicial é a que detém determinado direito (ju-
de todos sem preconceitos, formas de discrimi- risdictio), bem como a ideia de a decisão do juiz
nação. Vota com o relator. estar limitada à aplicação das normas legais. Do
Nossas observações sobre cada voto, cada artigo 131 destacamos a ideia de livre apreciação
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da prova. Ambos os artigos trazem o paradoxo uma vez considerando a interioridade e a exte-
da liberdade limitada do julgador, ambivalência rioridade, portanto os limites estabelecidos pelo
presente na liberdade de leitura, da interpreta- próprio direito da sociedade ao mesmo tempo os
ção, o que lembra a ideia de paratopia, pois o limites de seu entorno, como observamos a pre-
decididor, ao tomar a decisão, enuncia um dire- sença de referências típicas do discurso jurídico
ito e, essa enunciação está localizada no mundo (cenas de sua enunciação, a exemplo, enquadrar-
jurídico, no discurso jurídico, logo não há que se em legislações, jurisprudências, doutrinas) ao
se falar em plena liberdade de decisão, mas em mesmo tempo em que observamos a presença de
“cenas de enunciação”, para usar uma expressão referências ao entorno (ciência, política, econo-
da análise de discurso de Maingueneau. mia, religião, amor).
Recorrendo à análise de discurso, evitamos Ao observar o quadro cênico, vimos o quan-
reduzir o debate a críticas (elogios, censuras e/ to não é suficiente para delimitar os argumentos
ou condenações) à decisão tomada, a exemplo (enunciados) referências às fontes formais do di-
de se afirmar que o julgador não sabe ler a le- reito, o que nos leva a afirmar que a produção
gislação, como se decisão correta fosse exclusiva- de sentido do direito da sociedade envolve inter-
mente aquela “ajustada” à correta interpretação, pretação de textos legislativos bem como inclu-
compreensão e aplicação da legislação ao caso. são das mais variadas fontes de informação, ou
Observamos que várias técnicas hermenêuticas seja, a presença de informações de outros siste-
tiveram lugar no debate, inclusive para nortear mas sociais na formação do sistema do direito
o quanto os ministros se veem legislando e não da sociedade, ou a presença de outros discursos
tomando uma decisão judicial. constituintes no discurso jurídico.
Em nossa perspectiva, aplicando ideias da Ficam aqui nossas observações sobre dados
teoria reflexiva do direito como sistema social da decisão do STF que firmou, juridicamente, a
de comunicação, sugerimos que para uma com- equiparação da união homoafetiva como entida-
preensão da decisão jurídica é impensável se se de familiar. Decisão esta que foi possível porque
insiste na lógica causal. Certo é que a teoria refle- o direito está em constante produção e reprodu-
xiva não é por si suficiente, pensássemos assim, ção de sentido. Se é assim, para explicar a deci-
cairíamos na tentação de imaginar haver uma são jurídica propormos uma teoria reflexiva, não
única teoria da decisão jurídica; pelo contrário, um modelo teórico ou uma teoria definitiva, mas
há diversas teorias da decisão jurídica, apenas uma teoria também em constante construção.
umas levam a umas reflexões e outras a outras. A Fica, portanto, a proposta de a teoria reflexiva do
amplitude da observação é uma questão do ob- direito como sistema social de comunicação ser
servador, não da teoria em si, do objeto em si. uma alternativa às observações de como é possí-
Questionar, portanto, como foi possível o STF vel a decisão judicial ser tal como é.
decidir pela inclusão da união homoafetiva no
sentido de entidade familiar, levou-nos a obser-
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