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2 Morte Consideracoes Pratica Medica
2 Morte Consideracoes Pratica Medica
Antonio Pazin-Filho
Pazin-Filho A. Morte: considerações para a prática médica. Medicina (Ribeirão Preto) 2005; 38 (1): 20-25.
Resumo: A morte é parte integrante da vida e como tal, objetivo da medicina. A definição de
morte vem sofrendo modificações em decorrência do avanço tecnológico da medicina e da
disponibilidade de informação, ficando claro que sua definição deve levar em consideração os
valores culturais da sociedade em questão e não somente o conhecimento médico. A busca de
uma melhor definição de morte trouxe uma série de conflitos de ordem ética, agravados em
grande parte pela crise de credibilidade que a medicina moderna vivencia. Um resgate dos
valores da medicina, fundamentados na relação médico-paciente, bem como uma ampla dis-
cussão envolvendo toda a sociedade sobre a definição de morte e os cuidados que a medicina
deve oferecer aos pacientes que estão morrendo, devem ser implementados. A discussão des-
tes valores deve começar na faculdade de medicina e deve envolver todas as profissões que
auxiliem a profissão médica.
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Morte: considerações para a prática médica
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Pazin-Filho A
Células que não apresentam alterações estruturais aos ensão que o ponto de não-retorno deve envolver uma
métodos de coloração podem apresentar estas altera- perda de função global que impossibilite o indivíduo a
ções à microscopia eletrônica, ou seja, alterações mais existir como um todo.
precoces. Quando se progride para métodos ainda mais Ao se considerar a totalidade do indivíduo, sur-
sensíveis, alterações ainda mais precoces são identifi- ge a necessidade de se contextualizar a definição de
cadas. Essas percepções caracterizam que a morte morte às condições vigentes do conhecimento cientí-
não ocorre de um momento para outro no plano celu- fico, a facilidade de acesso a estes recursos e, tam-
lar, sendo ao invés disso um processo constituído de bém, as crenças culturais.
múltiplas etapas, tanto maiores quanto maior a sensi-
bilidade dos métodos empregados. Qual a definição de indivíduo?
Um outro ponto interessante quando se estuda Enquanto o progresso médico desconhecia re-
a morte no plano celular é que ela não implica neces- cursos de manutenção de processos vitais como res-
sariamente em morte do indivíduo. Diariamente, mi- piração, circulação e terapêutica de reposição renal
lhões de células intestinais morrem e são substituídas, (diálise), esta pergunta era irrelevante. Irrelevante
sem que tenha maiores implicações para o indivíduo. porque, caso alguém apresentasse algum problema
Mesmo quando se considera a depleção de células relacionado a estes processos vitais, provavelmente
que não podem ser repostas, como os neurônios ou morreria. No entanto, quando se instituiu estas técni-
células miocárdicas, esta depleção não tem maiores cas de reposição, novos problemas foram evidencia-
repercussões a não ser em estágios muito avançados dos4. A manutenção das funções vitais proporcionou
na idade do indivíduo. Dessa observação, depreende- melhoria para alguns pacientes, mas para uma grande
se que a morte celular não é a resposta para a defini- porcentagem deles, não evitava o óbito, principalmen-
ção e podemos tentar buscá-la na morte de órgãos. te porque a causa que levou o paciente àquela situa-
Ao se estudar órgãos, o conceito de morte como ção não podia ser revertida. Nestes casos, consegue-
processo persiste. Tomando como exemplo o infarto se prolongar um estado vegetativo, onde as funções
agudo do miocárdio6 , pode-se observar que o processo vitais são mantidas artificialmente por períodos mui-
isquêmico decorrente da obstrução de uma artéria tas vezes prolongados. Alguns destes pacientes apre-
coronariana desencadeia inicialmente a produção de sentam função cognitiva preservada, sendo capazes
energia em condições de anaerobiose e que só com a de interagir com o meio, enquanto outros persistem
persistência da obstrução começam a surgir altera- em coma profundo, sem interação alguma. Quando
ções estruturais que comprometem a integridade do se observa este último grupo, pode-se constatar que
órgão e a manutenção de suas funções. Se desobstruir- em alguns indivíduos, a função cerebral foi gravemente
mos a artéria, podemos observar regressão parcial ou afetada e não se consegue a recuperação da consci-
total destas alterações na dependência do tempo de- ência, sendo uma questão de tempo a evolução para o
corrido desde o início do processo. Quando a artéria é óbito. Estas considerações deram origem ao conceito
desobstruída rapidamente, com menos de uma hora do de morte cerebral.
início do quadro, por exemplo, pode-se obter recupe- É neste ponto que se passou a questionar o que
ração total da área sob risco. Já se a artéria é desobs- é o indivíduo7 . O que define o indivíduo é a persistên-
truída com mais de doze horas do início do quadro, cia de suas funções vitais, não importando a condição
praticamente nenhum benefício é obtido, pois toda a em que estas sejam mantidas, ou, por outro lado, o
área sob risco evoluirá para morte celular. Respostas que definiria o indivíduo seria a sua capacidade de
intermediárias são obtidas entre estes dois extremos. interação com outros indivíduos, sendo importante para
Vários órgãos em nosso corpo possuem uma isto a sua consciência?
reserva funcional considerável. Ao se considerar os Esta pergunta não é fácil de ser respondida e
órgãos duplicados, como rins e pulmões, perda de um persiste sem uma resposta definitiva. É fonte de con-
deles pode ser compensada pelo outro sem que seja trovérsia entre vertentes filosóficas e religiosas e gera,
sentida de modo significativo pelo organismo. Basta todos os dias, uma série de problemas de ordem jurídi-
considerar o exemplo dos doadores de rim. Esta ob- ca. Provavelmente, nunca será respondida de forma
servação levanta um outro ponto interessante sobre a definitiva, pois a resposta deve, necessariamente, ser
definição de morte. Ela não envolve perda celular ou contextualizada às crenças culturais vigentes8 , ou pre-
mesmo de órgãos considerados vitais isoladamente. dominantes e que estão sujeitas, pela sua própria na-
Esta definição passa, necessariamente, pela compre- tureza, a um caráter mutável.
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5- DIAGNÓSTICO DE MORTE
Pelo exposto, pode-se depreender que a morte
é melhor caracterizada como um processo, ao invés
de um momento, onde o indivíduo perde sua identida-
de de modo irreversível. Este processo não tem uma
definição precisa e está ligado ao estágio de evolução
da ciência, bem como às características culturais de Figura 2 – Conceito de morte como um processo. A figura ilustra o
conceito de que a morte é um processo gradativo e que o
uma determinada população. Trata-se de uma parte diagnóstico de morte é algo arbitrário (seta), que deve ter critérios
integrante da vida dos indivíduos e como tal, deve ser objetivos para que seja estabelecido, a fim de cumprir seus
um dos objetivos da prática médica. objetivos.
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(morte circulatória). É bem claro, pautado em critéri- A medicina necessita de credibilidade para que
os objetivos e, portanto, aceito pela maioria dos indiví- possa ser executada. Os pacientes necessitam acre-
duos. Confere a confiabilidade tão desejada e neces- ditar em seus médicos para que qualquer tratamento
sária. Já quando se considera o critério de morte ce- possa ser executado. Restaurar ou fortalecer esta
rebral, pode-se notar que seus critérios, pelo menos credibilidade é um dos desafios da medicina moderna.
em um momento histórico inicial, apesar de objetivos, Como parte integrante da medicina, a morte também
não eram (não são) aceitos por todos, gerando uma necessita desta credibilidade.
crise de confiabilidade e muita discussão. Isto é refle- Um dos fatores responsáveis por esta crise de
tido na necessidade de se instituir regras para defini- confiabilidade é a dissociação entre o que os médicos
ção do diagnóstico, como as da resolução 1.480/97 do acreditam que seja necessário e o que a população
Conselho Federal de Medicina10 . realmente necessita. A morte afeta a sociedade como
um todo e não somente a classe médica. Como vimos,
6– CONSIDERAÇOES PARA A PRÁTICA o seu próprio conceito esta imbuído dos valores cultu-
MÉDICA rais da sociedade como um todo e não só da classe
médica. Necessitamos, urgentemente, discutir de
A sociedade moderna passa por inúmeras trans- modo amplo a prática médica não só entre nossos
formações. Quando se compara com as transforma- pares, mas com a sociedade como um todo. Mais do
ções pelas quais passaram as sociedades de períodos que nunca devemos deixar nossas tendências pater-
históricos anteriores, pode-se observar que as mudan- nalistas11 de lado e conferir autonomia12 à população
ças atuais acontecem de modo muito mais rápido, para pensar os seus conceitos, o que sem dúvida se
movidas pelo avanço vertiginoso da tecnologia e pela refletirá em justiça social.
difusão ocasionada pelos meios de comunicação. Den- A discussão destes valores não deve se limi-
tre as inúmeras transformações que podem ser nota- tar à população. Se quisermos modificar estes con-
das, o questionamento dos padrões de vida, bem como ceitos e garantir que nossa prática diária seja mais
das definições e bases filosóficas da existência do ser tranqüila, estes valores devem ser discutidos entre os
humano merecem destaque. Grande parte destes ques- médicos, começando por nossas faculdades. Discutir
tionamentos leva a um resgate de valores que anteri- os objetivos da medicina, aceitar que nossos pacien-
ormente existiam e que foram perdidos na “evolução” tes vão morrer e nem por isso devem ser abandona-
da sociedade. Como exemplo, podemos citar a tenta- dos, mas sim cuidados. Precisamos, além de dizer que
tiva de se implantar um sistema de medicina de famí- isto deve ser feito, mostrar aos alunos como se faz.
lia, onde uma das características centrais é o resgate Temos que repensar nossa atuação, de forma que
da relação médico-paciente. Contraditoriamente, possamos modificar estes valores. Isto exige coragem
numa época onde a tecnologia impera, a salvação da e uma postura institucional, não só das universidades,
prática médica pode estar num valor tão antigo quan- mas também das diversas entidades representativas
to a própria medicina. de classe.
Pazin-Filho A. Death: considerations for the medical practice. Medicina (Ribeirão Preto) 2005; 38(1): 20-25.
Abstract: Death is part of life and, as well, objective of medicine. The definition of death is
being modified due to the technologic advances and the availability of information, pointing that its
definition should consider cultural values of a specific society besides the medical knowledge.
The search of a better definition of death brought innumerous conflicts of medical ethics, worsened
in part by the credibility crisis that the modern medicine experiences. The recall of medical values,
based on the medical –patient relationship, as well as an ample discussion including the society
as a hole about the definition of death and the care that the medicine should provide, should be
implemented. The discussion of these values should start in the medical faculties and include
every auxiliary profession.
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Morte: considerações para a prática médica
4 - Hercules HC. Conceito de morte. In: Gomes H, ed. Medicina 12 - Segre M. Considerações sobre o princípio da autonomia.
legal. 32ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos; 1997. p. 87-101. Medicina (Ribeirão Preto) 1995; 28:10-5.
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