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52 Cadernos CERU - n° 5 - Série 2 - 1994 DEFININDO HISTORIA ORAL E MEMORIA* José Carlos Sebe Bom Meihy"* A Historia Oral ultimamente tem sido bastante discutida ainda que seus termos nao estejam suficientemente estabelecidos. Nesta linha, um dos desa- fios que se apresentam aos historiadores oralistas reside na especificagao dos conceitos. Afinal, a que se refere quando evocamos a Historia Oral? Para responder a esta questdo faz-se importante, primeiro, contemplar a Historia Oral em seus fundamentos historicos para, depois, (re)conceitua-la, extra- indo-a da aventura diletante. Uma das contribuigdes fundamentais que a Historia Oral trouxe para o atual debate sobre 0 uso de entrevistas como fonte remete ao sentido do do- cumento e da analise procedida em cima dos textos estabelecidos a partir de depoimentos. Assim, cabe lembrar que Histéria Oral exige distingdes das formas amadoristicas de captagao de entrevistas. A primeira questo que se deve responder ao evocar conceitos de Historia Oral, pois implica posicio- namento em face da palavra e de sua conversao para texto!. Nesta diregao, é cabivel a distingdo entre Historia Oral e Oralidade?. Ainda que elementar para os inciados, a consciéncia de que a palavra oral obedece a um cédigo - o da fala -, que ao se transformar em documento fatalmente exige a passa- gem para outro estado - a escrita - nao é muitas vezes assumida’. * Comunicagdo apresentada no 1° Encontro Nacional de Histéria Oral, So Paulo, 19 de abril de 1993 Departamento de Historia - USP. 1 Um apanhado geral sobre os problemas da “moderna Histéria Oral" pode ser encontrado na selegtio Oral History: An Interdisciplinary Anthology, Nashville, ‘American Association for State and Local History, 1984. 2 *Oralidade" aqui niio é usada no sentido proposto por Michel de Certau ("comunicagao propria da sociedade selvagem, primitiva, ou tradicional) em A escrita da Histéria. Rio de Janeiro, Forense Universitaria, 1982, p. 211, ¢ sim da forma indicada por Catherine Héau Lambert em "Proximaciones a la Oralidad”. In: Cuicuilco, 22, Mexico, maio de 1990, p.75. Fugindo do simplismo que pensa que 0 que foi dito equivale literalmente ao que € transcrito, apoiamo-nos em Daphne Patai que abandona a "transcrigdo fil" em favor da construgao de um texto; sobre o assunto leia-se a introdugao de Brazialian Woman Cadernos CERU - n° 5 - Série 2 - 1994 §3 Parte-se do principio que Historia Oral é pratica nova, resultada da in- teragao entre narradores e estudiosos atentos a responsabilidade de docu- mentar. Trata-se de uma fala mediada pelo gravador que, contudo, pode nao ter sua fungdo esgotada no mero ato de gravar. Portanto, garante-se a inexis- téncia de Histéria Oral sem qualquer destes trés elementos: depoente, pes- quisador e maquina para gravar. Tudo reunido deve gerar textos escritos, elaborados a partir de técnicas e métodos estudados. A Historia Oral, pois, é mais de que arquivo de gravages. Implica a elaboragio de um documento que pode ser, num primeiro momento a transcri¢éo do testemunho e, em ou- tra etapa, a sua analise. O primeiro estagio implica objetividade, 0 segudo admite graduagdes dependendo mais de quem interpreta. Oralidade, por sua vez, é 0 mero registro de informagdes orais, livre de compromissos metodolégicos, de aparelhos eletrdnicos e responsabilidades documentais. E, grosso modo, a gravag4o que “qualquer um faria"’ Ao reconhecer © papel perene dos testemunhos orais, desde os "pais" da Historia, muitos acham que o atual estagio da Histéria Oral é uma evolu- ¢&o, mais ou menos natural, das propostas vividas desde Tucidides e Heré- doto*, Contemporaneamente porém esta questdo foi retomada ainda que para desdizer um texto que é 0 fundamento da moderna historiografia da Historia Oral. Ao garantir que "toda Historia um dia foi palavra"> Paul Thompson viu-se corrigido por Philippe Joutard que, por sua vez, mostra que a Historia Oral é uma técnica nova, moderna, nascida depois da Segunda Guerra Mun- dial, j& quando os meios eletrénicos se impuseram tornando-se possivel a crivagem metodolégica e os arquivos’. Portanto, desde Joutard, Historia Oral nao mais merece ser confundida com oralidade e nem é 0 que tem sido "feito" por curiosos, Decorréncia normal desta diferenciagao é 0 profissiona- lismo apoiado na especialidade, que se distingue do amadorismo vulgar. O dialogo Thompson/Joutard, travado entre The voice of the pass, A voz do passado em portugués (do longinquo 1978, apenas traduzido para o ‘Speak: Contemporary Life Story. London, Rotgers University Press, 1988, Tal proposta também é nutrida por James Clifford ¢ George E. Marcus in Writing Culture: The Poetics and Politics of Ethnogrphy, Los Angeles, University of California Press, 1986, A respeito das diferengas no fazer a Hist6ria entre os autores citados leia-se "O inicio da Hist6ria ¢ as lagrimas de Tucidides”. In: "Margem". Sao Paulo, Edpuc, 1992. p.9 - 28. 5 Thompson, Paul. La Voz del Pasado: la Historia Oral. Valencia, Edicions Alfons El Magnanim, 1988. p.9. Joutard, Philippe, Esas Voces que nos Hegan det . Mexico, Fondo de Cultura Econémica, 1986, p. 18. 4 54 Cadernos CERU - n° 5 - Série 2 - 1994 portugués em 1991) e a resposta a ela, ainda inédita em portugués, no Ces voix qui nous vierment du passé (de 1983) colocou a transformagao da His- toria Oral em outros planos que provam que o dilema conceitual ainda nao acabou. Antes de avangar, a bem da compreensio historiografica, cabe lem- brar que no caso de Thompson, ha mais de quinze anos atras, se fazia neces- fundir no conceito moderno de Historia Oral a observagdo € ambos reunidos dariam abrigo as explicagdes "histéricas" que, por seu turno, dele- gariam 4 palavra e 4 observag4o uma anterioridade perene ao texto escrito. A logica thompsoniana retragava um caminho mais proximo da “historia da palavra" que propriamente abordagens de questdes de uma nova metodologia. Era significativo indicar que no passado a palavra teria lugar relevante, enfraquecida mediante a escrita. No caso de Joutard, mostrar que o historiador oralista além de se utilizar criteriosamente do que foi dito deve também trabalhar com os arquivos e prezar a responsabilidade de "documentar” impde obrigagdes que, se aceitas, extraem a Historia Oral dos limites da discussio sobre a importancia do testemunho, trazendo o debate para 0 campo da técnica de abordagem. O alcance conseguido pela Histéria Oral, livre da necessidade do reconhecimento, convoca a consideragao desta com um método. Pode-se pois afirmar, portanto, que a (moderna) Historia Oral passou por dois momentos definidores basicos: um, de seu estabelecimento firmando-se historiograficamente e, outro, ja dentro da comunidade de seus adeptos que a reconheceram emancipada. Neste caso, percebe-se a Historia Oral como uma manifestagao coerente com o tempo em que vivemos, como forma de captar um instante da nossa prépria Historia A consciéncia do significado da captagio imediata do fendmeno analisado, constitui-se numa revolugdo silenciosa que revé a propria defini¢aéo de Historia. Isto nos faz enquanto historiadores oralistas, a um tempo, responsaveis pelo documento e pela sua eventual interpretagéo. Ao elaborar o documento, o historiador oralista assume novo compromisso com a analise evocada, deixando de ser um agente passivo que se vale de fontes ja feitas. Por outro lado, a critica ao documento nao Ihe é mais algo abstrato e sim matéria inerente ao seu oficio. E, pergunta-se: nao valeria a pena, so por isto, considerar ai um fim no oficio do historiador oralista? Trabalhar um depoimento enquanto processo de documentago, impli- ca superar o pressuposto da entrevista fortuita. A série grande de cuidados metodolégicos que se impdem exige que haja qualificag&o técnica para tratar Cadernos CERU - n° 5 - Série 2 - 1994 55 do assunto. Histéria Oral é pois mais do que uma conversa mediada pelo gravador. Historia Oral deriva de um método complexo e arrola particulari- dades que vaio desde a organizagao de um projeto até 0 compromisso de publicagao do texto devolvido 4 comunidade imediata que 0 gerou e a seu contexto mais amplo. E exatamente na importancia delegada a elaboragao do texto como documento que a Histéria Oral difere de outros trabalhos ligados a entrevistas. A Historia Oral que praticamos é muito mais, exige um enquadramento num setor da Histéria enquanto pratica do conhecimento: é um ramo da Historia Publica’, género que se compromete com a comunidade que gera e consome a propria Histéria. Historia Oral portanto tem um fundamento poli- tico exposto em sua razio de ser. No Brasil, como de resto na América Latina, a Historia Publica ainda nfo ganhou abrangéncia discursiva e sua sonoridade carece de amplitude, inclusive e principalmente, na comunidade dos que se praticam a Historia Oral. Logicamente este debate mereceria mais espago e aqui € apenas anuan- gado por parecer ser impossivel abordar Histéria Oral sem considerar os compromissos de retorno 4 comunidade que contextualiza os acontecimentos reportados. Apenas para provocar, vale dizer que sem a considerag&o da im- portancia da Historia Publica, aspectos fudamentais como a transcrigao, textualizagao, transcriago - em outras palavras: para quem fazemos © texto de Historia Oral, para os estudiosos (filélogos, historiadores convencionais, socidlogos ou para o publico maior) - sem estas respostas fica prejudicada a interpretagdo da Histéria Oral. Por esquecer que o publico é o destinatario dos trabalhos de Histéria Oral, muitos acreditam que esta € mais uma varia- ¢ao "de moda" e que vai passar. Ao se definir Historia Oral dentro de limites precisos é importante destacar seus trés ramos. Sem uma clara defini¢ao de cada setor da Historia Oral pode-se cair num espago vazio que, por impreciso, torna tudo muito confuso. Assim fala-se de coisas diferentes quando abordamos: Histéria Oral de Vida, Historia Oral Temdtica e Tradigéo Oral. Por constraste é preciso independer a Historia Oral das entrevistas jornalisticas, sociolégicas, antropoldgicas ou de qualquer outra tradi¢ao baseada em depoimentos. Isto posto, sugere-se uma rapida visita aos géneros da Histéria Oral. 7 Sobre o assunto leia-se Essays About Intepretation and Public Audiences. Washington D.C., Smithsonian Institution Press, 1987. Importante artigo a respeito do assunto foi publicado por Thomas A. Wood, sob 0 titulo "The Challenge of Public History". In: Oral History Review, (17/2):97-102. fall 1989. 56 Cadernos CERU - n° 5 - Série 2 - 1994 Historia Oral de Vida remete ao registro da experiéncia pessoal. E uma velha pratica que no entanto se remoga em face da Histéria Oral®. Me- todologicamente, Historia Oral de Vida obedece a um procedimento conhe- cido por entrevistas livres?, isto é, sem questiondrio ou perguntas direta- mente indutivas. Quase sempre, as gravagdes de Historia Oral de Vida sio longas e devem obedecer a captagao do sentido da experiéncia vivencial de alguém. A individualizagao é fundamental, sendo que cada pessoa deve ser tratada como um caso especifico. A nog&o de tempo histérico individual seu enquadramento no contexto é fator constante da Historia Oral. Fala-se portanto, nesta circunstancia, da provacao existencial do individuo como um todo. As informagées sobre detalhes ou parcela da vida do depoente tém re- lativa importancia, da mesma forma a exatidao dos dados. O que se espera é a sintese filtrada por auto-julgamentos morais. Lem- bro-me, para citar um exemplo, de uma entrevista feita com o goleiro Gilmar, um dos maiores jogadores de todos os tempos. Era um projeto des- envolvido desde 1983 no Museu da Imagem e do Som em So Paulo visando registrar as experiéncias e opinides dos adeptos deste esporte. Nosso alvo - do professor José Sebastiaio Witter e meu - era a apreciagao dada pelos par- ticipantes - no caso o jogador - de sua atividade, depois de setores mais am- plos da sociedade. Ao terminar a entrevista constatamos que o atleta tinha citado 32 jogos e que destes 19 tinham resultados diferentes do afirmado. Nos documentos escritos (atas, jornais, planilhas) achamos os numeros exa- tos, mas, 0 que nos interessava eram seus "resultados" subjetivos, 0 suco da experiéncia, no o que poderiamos encontrar pronto e dado com maior con- fiabilidade. Um aspecto interessante da discussio sobre 0 cruzamento entre Histé- ria Oral de Vida e a quase centenaria pratica de Historia (simplesmente) de Vida diz também respeito as formas de captagao e a metodologia empregada. Esta discussio é fecunda e precisa ser travada a fim de serem acertados os ponteiros, geralmente, emperrados uns nos outros. Com isto propomos mais uma provocacao: a discussao entre a Historia de Vida dos antropolégos e a 8 Em diversas literaturas a Hist6ria de Vida tem registros. Particularmente nos Estados Unidos, depois do New Deal, tornou-se comum o registro das experiéncias pessoas. Entre os autores que se distinguiram na época destaca-se John Dollard com um “classico" intiulado Criteria for the life history. New Haven, Yale University Press, 1935. Carl Rogers, mesmo tratando de casos de psicologia, da diretivas sobre entrevistas livres, A respeito leia-se: "The nondirective method as a technique for social research" In; American Journal of Sociology, 5:279-283. 1944-45 Cadernos CERU - n° 5 - Série 2 - 1994 s7 Historia de Vida dos historiadores oralistas. Uma seria evolugdo da outra? a mesma coisa? ou algo novo? Historia Oral Tematica, por sua vez, esta mais vinculada ao testemu- nho e a abordagem sobre algum assunto especifico. A vida enquanto experi- €ncia individual tem, para esta vertente, significado menor e relativo. A His- toria Oral Tematica é um recorte da experiéncia como um todo e quase sem- pre - ainda que nao obrigatoriamente -, concorre com a existéncia de pressupostos j4 documentados e parte para "uma outra versdo". Em alter- nativa diversa colabora para 0 "preencimento dos espa¢os vazios nas versdes estabelecidas". Porque, de regra, a Historia Oral Tematica aborda questdes externas, objetivas, factuais, tematicas enfim, contrasta com Historia Oral de Vida que cuida mais livremente de impressdes, subjetividades!”. Tradigdo Oral é uma terceira variante da Hitéria Oral. Historia Oral de Vida e Historia Oral Tematica, ambas, tratam de situagSes sincrénicas ao momento vivencial do depoente. Tradigao Oral, por estar atenta as transmis- sdes do arcaico, percebe o individuo enquanto um veiculo da transmissao de mitos e tradigdes antigas que na maioria das vezes transcende o depoente. Antes da abordagem sobre Tradi¢@o Oral convém dizer que este é de todos 0 ramo que mais se aproxima dos trabalhos de memoria, contudo, nao se deve confundir Historia Oral com Memoria!!. ‘A Historia Oral, a nosso ver, em esséncia, pouco tem a ver com a Me- moria. Ha aqueles que se valem do que erroneamente sup6e ser Historia Oral para vé-la identificada com o registro mneménico. Neste caso, e na melhor das hipdteses, a entrevista seria 0 meio para analisar a Memoria. Histéria Oral, no entanto, é mais do que entrevista e Memoria nfo se esgota na gra- vagdo, transcrigdo. Seria simplista alegar que a memoria é “um lugar", o de- pésito onde ficam arquivadas as lembrangas, até porque memoria é mais do que isto e a relag&o entre meméria e visio de mundo leva os individuos a projetarem mais que lembrangas quando narram. Ainda que atualmente haja uma tendéncia marcada para se distinguir Historia Oral de Memoria, vale lembrar que muitos consideram - quase sem- pre sem justificativas maiores -, uma Unica as duas coisas. Ha trés raizes fun- damentais que remetem a questéo da memoria como ela tem sido assumida 10 Um dos textos mais reputados de Histéria Oral Tematica ¢ Facism in Popular Memory de Luisa Passerini, Cambridge, Cambridge University Press, 1987. 11 Hi outras diferencas entre as quais destacam-se: 0 niimero de entrevistas; o nivel de conhecimento € envolvimento com os depoentes, ¢, sobretudo, 0 métado de captaco das entrevistas e sua andlise. 58 Cademos CERU - n° 5 - Série 2 - 1994 hoje, e, sem uma clara opgdo por um dos caminhos fatalmente pode-se fiar um tecido estranho e se promover equivocos. A primeira via identificada por Maurice Halbwachs, com o pressuposto da Memdria Coletiva', outra, de Le Goff, que parte do conceito de Memoria Historica’, e, finalmente a Me- moria Psicolégica, derivada dos ensinamentos de Bergson'*. A Memoria Coletiva, apesar de nao se confundir com tradigao Oral esta mais proxima desta, segundo as ligdes de Jan Vansina '°. As raizes miti- cas das explicagdes do mundo seriam a base para o conhecimento das reali- dades dos grupos para ambos os casos. No entanto, o que distingue a pro- posta de Halbwachs da de Vansina é 0 método de abordagem da problemé- tica e a relagao do interlocutor com o depoente e com o grupo. A Memiéria Coletiva, como propde Halbwachs, remete ao tratamento de uma identidade coletiva das lembrangas e dos ideais guardados por um grupo. Memoria Coletiva é algo subjetivo e implica compromissos fiados ao longo de um passado comum e que persiste independentemente de registros escritos, de monumentos ou qualquer outra referenciagdo objetiva, material. A propria consciéncia de Halbwachs, de seu passado de judeu, torturado pelo contexto causal da Segunda Grande Guerra, espelha em seu método os compromissos determinantes que criou para a captagao da Memoria Coleti- va. Retomando questées anteriores, lembramos que a Memoria Coletiva tem um ritmo proprio para as eventuais mudangas. Suas alteragdes so gradativas ¢ lentas e respeitam a cadéncia da cultura do grupo que a gera. A Memoria Coletiva encerra grandes explicagdes da vida comunitaria baseadas, quase sempre, €m processos mitificadores e defensivos que sio usados para argu- mentagao ideolégica da existéncia do grupo. Em termos praticos, diferenciadores da Tradigéo Oral da Memoria Coletiva, sao as formas de captacSo dos relatos e a vinculagao do historiador com a colénia enfocada. Vansina propde como essencial a observacio e 0 convivio com © grupo e, assim, nao se arrolam apenas os depoimentos como base do trabalho. Quanto aos vinculos com o grupo analisado, Vansina im- plica a presenga de outsiders como autores, enquanto a Meméria Coletiva tem resultados melhores quando feita por insiders, gerados e treinados den- tro do préprio grupo. 12 Halbwachs, Maurice. A meméria coletiva. S4o Paulo, Vértice, 1990. '3 Le Goff, Jacques. Meméria - Historia. Porto, Imprensa Nacional, 1984. 4 Bergson, Henri, Matiére et memoire, Paris, PUF, 1959, 15 Vansina, Jan. Oral Tradition as History. Madison, The University of Wisconsin Press, 1985. Cadernos CERU - n° 5 - Série 2 - 1994 59 Por outro lado, a Tradigao Oral cuida mais de temas enquanto a Me- moria Coletiva preocupa-se com a percepgdo sobre a vida dos componentes de um grupo que possuem uma comunidade de destino. No caso da Tradi¢aio Oral fala-se do estudo das fundamentagdes éticas de grupos ameagados, do direito de voz aos que sao até historiograficamente ameagados, daqueles que para exprimirem-se necessitam dos outros para assim, promover sua exis- téncia enquanto participantes do processo histérico. Na Meméria Coletiva, autores “de dentro” atuam no sentido de apresentar as solugdes de sobrevi- véncia para o proprio grupo. Fala-se portanto de "objetos" diferentes. Num caso ha a necessidade do elemento exdtico, em outro, a voz vem de dentro da comunidade. Meméria Historica por sua vez é aquela "construida" por especialistas no trato da analise do passado. O conhecimento elaborado em cima da do- cumentag¢4o proposta por terceiros - fala-se aqui de documentagao em senti- do amplo - é o fundamento da selegdo feita por contemporaneos que organi- zam uma forma de ver o passado. A Memoria Historica ¢ uma produgao ela- borada, como quer alias o proprio Le Goff. Ela é constituida com apoio em documentos, alguns convencionais outros nem tanto. O que estou chamando "documentos convencionais" s4o os escritos, aqueles guardados do passado que constantemente povoam os arquivos e freqiientam obras impressas que também sao fontes. Os nao convencionais - como monumentos, fotografias, artefatos, enfim os produtos da "civilizagao material" -, se constituem em de- safios para a "organizagéo da memoria"; fala-se, neste caso, da memoria Historica. A misica e a palavra so, neste sentido, as mais complexas formas de documentago informal e por isto nao se prestam tio facilmente 4 Memdé- ria Historica. Ainda ao se falar de Memoéria convém ressaltar os postulados de Bergson, alias isto é fundamental para a qualificagao da meméria no sentido prezado pela psicologia, calcada nos mecanismos da rememoragao. A me- moria, como querem os psicdlogos - e como tem sido trabalhada magnifica- mente no Brasil por Ecléa Bosi - faz com que se pense a lembranga e 0 pro- cesso de esquecimento como algo que depende da relagao entre 0 aconteci- mento, o individuo e o meio. Para os seguidores de Bergson, pela via psico- légica, a Memoria é um continuo do qual apenas é possivel o registro de um fragmento. A coleg&o desses fragmentos constituir-se-ia na matéria que os psicdlogos coletam para avaliar seu processo, Neste sentido e, como quer Ecléa Bosi, a Memoria é trabalho e produz um determinado tipo de visio do pretérito. 60. Cadernos CERU - n° 5 - Série 2 - 1994 Consideradas as varia¢des da memoria e diferenciada da Historia Oral, vale propor outra leitura para se reconsiderar os conceitos, técnicas e abor- dagens de cada método. E condenvel pensar que tudo ¢ a mesma coisa. O mais lamentavel nesta "equiparagdo" é 0 rebaixamento de duas alternativas importantes. Sem observar critérios, nem bem se faz Historia Oral, nem bem se faz trabalhos de Memoria. A Histéria Oral, em fungao de sua utilidade pelo historiador, divide-se em dois ramos principais: a Historia Oral Hibrida e a Historia Oral Pura. No primeiro caso trata-se da conjugag&o da coleta de depoimentos combinada com outras fontes. Nesta situagdo, a Historia Oral cumpre um papel, diga- mos, complementar. Ha trabalhos magnificos feitos segundo tal perspectiva. Cito 4 guisa de exemplo Los niftos de Morelia de Dolores Pla, a historiadora mexicana que escreveu um texto sobre as criancas exiladas para a América durante a Guerra Civil Espanhola!®. Neste texto Pla mescla dois tipos de do- cumentos: os orais, coletados diretamente dos personagens e os escritos, de- rivados de informagSes jornalisticas, de fontes oficiais ¢ outras, A Historia Oral pura, cuida apenas de testemunhos e obedece a valori- zagao unica do que foi dito. Os argumentos construidos em trabalho de His- toria Oral pura, sféo muitas vezes malvistos por parecerem, aos olhos de al- guns, pouco criticos, mas, ha um grupo consideravel de pessoas que conside- ram a boa Historia Oral aquela que basta por si, que esta atenta a qualidade do textemunho. Nesta linha pode-se dizer que o trabalho Me_/lamo Rigoberta Menchi de Elizabeth Burgos é um eloqiiente exemplo!” Em termos historiograficos o ramo da Histéria Oral mais aceito e prestigiado é 0 “tematico". Ainda é a obsessio pelo "tema" que tem arraba- tado muitos pesquisadores. Neste sentido, a Historia Oral Tematica Hibrida goza de uma respeitabilidade maior porque equipara a voz do narrador aos documentos escritos. A objeg4o que fago a este tipo de "mescla" é que desta forma se produz uma neutralizago das fontes, nivelando-se a experiéncia relatada com a série de fontes escritas, ent4o, pergunta-se: por que ir até o narrador? Apenas para complementar, comprovar, engrossar as informagdes que podemos colher de outras fontes? De qualquer forma, o entusiasmo com que a Historia Oral tem sido recebida no Brasil promete progressos. Progressos que serao maiores e me- Thores quando definidos os termos. 16 Pla, Dolores Brugat. Los nifios de Morelia. Mexico, INA, 1985. 17 Burgos, Elizabeth. Me Iamo Ri Menchis . Mexico, 1987.

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