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Este livro que o leitor tem em suas mãos representa o coroa- “Em Máquinas de ima-

CESAR BAIO
mento de uma série de discussões, polêmicas e produções que gem, Cesar Baio nos pro-
se estendem pelo menos desde os anos 1960, mas que ganhou porciona uma acurada
leitura da condição con-
um contorno mais definido a partir do final do século XX: trata- temporânea, atualizando
se de um balanço do que significou o surgimento das tecno- as proposições desen-
logias digitais nos conceitos de cultura, arte, filosofia e modos volvidas por Vilém Flus-
de vida. O autor, Cesar Baio, atualiza as discussões anteriores ser sobre os aparelhos
colocadas por autores como Vilém Flusser, Edmond Couchot, técnicos de mediação.
Peter Weibel, Júlio Plaza, Lúcia Santaella e tantos outros que as Uma perspectiva teórica
consistente, radicada na
formularam num período imediatamente anterior, sobre como identificação das linhas
tudo se transforma quando se passa para uma existência digi- de forças singularizantes
tal, não apenas nas imagens, sons e textos, mas também na
MÁQUINAS DE IMAGEM
dos fenômenos culturais
condução do pensamento, dos novos comportamento e mo- contemporâneos, consi-
dos de produção e consumo, da vida contemporânea, enfim. derados a partir da leitu-
ra crítica das formulações
Ele analisa também uma seleção de novos criadores, nos mais ARTE, TECNOLOGIA E PÓS-VIRTUALIDADE conceituais predominan-
diversos campos das artes, que souberam tirar proveito não tes até o início dos anos
apenas das novas tecnologias, mas também das novas formas 1980, mas, igualmente
de sociabilidade e de economia política que se formaram ao decisivo, desde o ponto
redor delas. A ideia é pensar sobre o que podemos hoje ainda CESAR BAIO de vista da liberdade do
dizer mais sobre esse fenômeno e também captar as mudan- artista e do participante
ças que aconteceram nesse universo depois das análises dos implicados na aventu-
ra estética. A percepção
primeiros cientistas e artistas. Mas Baio não fica apenas na

MÁQUINAS DE IMAGEM
dos acontecimentos his-
citação de autores e obras. Ele também interfere na discussão tóricos, o pensamento
cesAr BAio é mestre e com suas ideias próprias e arrisca suas próprias opiniões sobre filosófico e a experiência
doutor em Comunicação o que está acontecendo exatamente agora. É um pensador no estética encontram-se
e Semiótica pela PUC-SP, legítimo sentido do termo, não apenas um repetidor de ideias entrelaçadas nas análises
onde realizou pesquisas empreendidas por Baio,
de caráter transdiscipli- alheias. E, além de pensador de peso, ele é também artista,
nar nos campos do ci- de modo a proporcionar
o que explica a facilidade com que ele transita no universo
nema, das artes visuais as condições de existên-
das poéticas contemporâneas. Enfim, trata-se de um livro que cia de um pensamento
e da tecnologia. Parte
deste trabalho foi reali- o leitor lerá com prazer (porque é literariamente bem escri- que se exerce orientado
zado durante seu está- to), mas no qual poderá entrar em contato com o pensamento pelo princípio do desafio
gio de pesquisa no Vi- mais avançado de hoje. e da superação, em diá-
lém Flusser Archive, na logo direto com a expe-
Universität der Künste, riência artística processu-
em Berlim, Alemanha. al, desencadeada a partir
Atualmente, é professor Arlindo MAchAdo das disposições singu-
do curso de Cinema e lares das imagens e dos
Audiovisual e do Progra- participantes, quando o
ma de Pós-Graduação
em Artes da Universi- que faz diferença são as
dade Federal do Ceará, relações instituídas no
onde coordena o actLAB encontro entre a obra e o
– Laboratório de Investi- seu ativador.”
gações em Arte, Ciência
e Tecnologia. Do Prefácio de
Antonio FAtorelli
MÁQUINAS DE IMAGEM
ARTE, TECNOLOGIA E PÓS-VIRTUALIDADE
MÁQUINAS DE IMAGEM
ARTE, TECNOLOGIA E PÓS-VIRTUALIDADE

CESAR BAIO
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Bibliotecária Juliana Farias Motta CRB7- 5880

S237m Santos, Cesar Augusto Baio


Máquinas de imagem: arte, tecnologia e pós-virtualidade / Cesar Augusto Baio Santos.
São Paulo: Annablume, 2015.

208 p.; 16 x 23 cm.


Inclui referências.

ISBN: 978-85-391-0719-3.

1. Flusser, Vilém, 1920-1991. 2. Semiótica. 3. Comunicação. 4. Comunicação visual. I. Máquinas de imagem.


II. Título: arte, tecnologia e pós-virtualidade.

CDD 302.2

Índice para catálogo sistemático:


1. Flusser, Vilem, 1920-1991
2. Semiótica
3. Comunicação
4. Comunicação visual

Máquinas de imagem:
Arte, Tecnologia e Pós-virtualidade

Capa
Jeferson Santiago de França
Imagem de Capa
Surface tension; Rafael Lozano-Hemmer

Projeto e Produção
Coletivo Gráfico Annablume

Annablume Editora
Conselho Editorial
Eugênio Trivinho
Gabriele Cornelli
Gustavo Bernardo Krause
Iram Jácome Rodrigues
Pedro Paulo Funari
Pedro Roberto Jacobi

1ª edição: julho de 2015

© Cesar Baio

Annablume Editora
Rua Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 554 . Pinheiros
05415-020 . São Paulo . SP . Brasil
Televendas: (11) 3539-0225 – Tel.: (11) 3539-0226
www.annablume.com.br
Para Doralice e Pedro.
AgrAdecimentos

Este livro apresenta a conclusão de um longo percurso de pesquisa que teve


início com a minha entrada no doutorado do Programa de Pós-Graduação em Comu-
nicação e Semiótica da PUC/SP e que agora torno público na esperança de que sua
publicação possa disparar outras reflexões, levantar novos problemas de pesquisa
e permitir outros encontros teóricos e sensíveis. Como não poderia deixar de ser,
as análises e incursões teóricas aqui apresentadas contaram com a colaboração de
muitas pessoas. Por isso, gostaria de agradecer professores, colegas, amigos e todos
aqueles que contribuíram para esta pesquisa. Entre estes não posso deixar de fazer
menção à Ziegfried Zielinski, Marcel Marburguer, Giselle Beiguelman, Antonio Fa-
torelli, Lúcia Leão, André Parente, Erick Felinto, Diana Domingues, Jarbas Jacome,
Chris Sugrue, Jean Dubois, Lucas Bambozzi, Kátia Maciel, Chris O’Shea, Jim Cam-
pbell, Golan Levin, Lynn Hughes, Simon Laroche, Laura Beloff, Karolina Sobecka,
David Rokeby, Gary Hill, Raphael Lozano-Hemmer, Edmond Couchot, Doralice
Baio, Glaucia Santos, Glauco Santos, Walmeri Ribeiro, Fernanda Gomes, Fafate,
Juliano Azevedo, Washington Freitas, Tatiana Baruel, Ana Pilchowski, Vera Pilcho-
wski, Eduardo Pane, Edmilson Carvalho, Kátia Moraes, Carolina Natal, Claudia Be-
cker, Margit Rosen, Brigitte Böttcher. Agradeço ao professor Norval Baitello, que
acreditou em um jovem estudante com um punhado de ideias, mas sem saber como
conectá-las. Agradeço especialmente ao meu orientador Arlindo Machado, pela pre-
cisão de suas contribuições e pelas aulas sempre instigantes. Sou grato também ao
suporte dado pelo CNPq por meio de uma bolsa de pesquisa.
sumário

13 Prefácio
Antonio Fatorelli

17 Introdução – Arte, Mídia e Vilém Flusser


17 Para pensar a arte e a mídia
29 Vilém Flusser, o filósofo que gostava de jogar
33 O método analítico de Flusser
34 A sombra da novidade

37 1. Flusser e a imagem: rumo a uma arte dos aparatos


37 1.1 Imagem: da forma ao aparato
40 1.1.2 O artista e a tecnologia: da subversão à invenção
45 1.2 Rumo a uma filosofia do aparato
45 1.2.1 O dispositivo cinematográfico
48 1.2.2 O dispositivo como modelo filosófico
50 1.2.3 Os aparatos culturais e a projeção de imaginários
53 1.3 A arte no mundo codificado
56 1.3.1 O aparato de ordem tecnológica
58 1.3.2 A arte e o aparato midiático
64 1.3.3 O artista: de funcionário a jogador
69 1.4 Os artistas e suas máquinas de imagem
70 1.4.1 Rumo à imagem como projeto
75 2. Interfaces digitais: da imersão ao pós-virtual
75 2.1 A virtualidade e a questão da imersão
77 2.1.2 Programando espelhos de Alice
85 2.1.3 Máquinas de transcendência e a gênese do virtual
92 2.2 Repensando a condição da imagem
92 2.2.1 A imagem: da representação à concretude
94 2.2.2 A imagem como projeto
97 2.2.3 A pós-virtualidade da imagem

105 3. Imaginários cíbridos

116 3.1 Realidade aumentada e a visibilidade do aparato


117 3.2 Sistemas perceptivos simulados
117 3.2.1 A imagem como camada de realidade
126 3.2.2 Do olhar à cognição
127 3.2.3 Politizando a questão: obras orwellianas
130 3.2.4 O sujeito armazenado e catalogado
132 3.3 Da análise à interpretação do corpo

135 4. A imagem cibernética


135 4.1 Operando com formas sintéticas
137 4.2 Da imagem sintética à cibernética
141 4.2.1 A objetivação da imagem
146 4.2.2 A imagem cibernética: entre a ‘‘coisa’’ e o ‘‘outro’’

155 5. Rumo à imagem performativa


155 5.1 Repensando o argumento: a outrificação da imagem
157 5.1.1 Performance: a arte da presença
160 5.1.2 A presença como linguagem
162 5.2 Por um regime performativo da imagem
163 5.2.1 A obra como encontro
166 5.2.2 O valor expressivo do gesto
170 5.2.3 Acessando a intimidade
175 5.3 Programando comportamentos sensíveis
177 5.3.1 A imagem performativa
179 5.3.2 O programa e o performer, entre a determinação e a liberdade
183 5.3.3 O caso de Sophie
187 5.4 Novas sensibilidades para novos aparatos
193 Conclusão – Notas para uma futura teoria da imagem

199 Referências bibliográficas


Prefácio

Antonio FAtorelli

As mutações estéticas e éticas desencadeadas pela cultura digital colocam em


perspectiva as definições tradicionalmente associadas aos meios fotográfico, video-
gráfico e cinematográfico, enquanto promovem as condições favoráveis à emergência
de um pensamento crítico. Estabelecer essa distância em relação aos dispositivos téc-
nicos engendrados pelas formações culturais precedentes é importante para assinalar,
no atual momento de substanciais reconfigurações, o sentido das mudanças em curso
e de delinear os estatutos da imagem, do artista e do observador contemporâneos.
Sabemos que os ideais de ruptura com as formas culturais hegemônicas,
compartilhados por inúmeros movimentos culturais ao longo do período moderno
– nomeadamente, as vanguardas históricas (o construtivismo russo, o surrealismo
francês, o futurismo, entre elas) e a pop-arte –, encontraram-se frequentemente atra-
vessados pelas manifestações de enfrentamento com as forças oponentes, de modo
a comprometer irremediavelmente seus pressupostos transgressores. A busca pelo
novo, do mesmo modo que o ideal de constituição de outros paradigmas referidos à
experiência contemporânea, encontra-se manifestamente perpassada por essas inicia-
tivas precedentes, sinalizando que o projeto de atualização dos balizadores culturais
demanda, na sua formulação, a elaboração de um pensamento duplamente direcio-
nado, igualmente atento às soluções de compromisso com as formas precedentes e
às expressões singulares das configurações emergentes. Máquinas de Imagem de-
senvolve, nesse particular, uma análise instigante convergindo, em um mesmo mo-
vimento, as transformações proporcionadas pelas formas imagéticas analógicas, em
especial as experiências produzidas pelos movimentos da arte moderna pautados na
aproximação entre a alta arte e a baixa cultura, e os modelos cognitivos, simbólicos,
sensíveis e políticos singularmente convocados pelos modos de existência das tecno-
logias digitais.
14 máquinas de imagem

Na atual era pós-digital, uma vez assimiladas as trajetórias empreendidas pe-


las vanguardas históricas, pelos pós-modernistas e pelos defensores, no início dos
anos 1980, da revolução do digital, defrontamo-nos com a oportunidade de avaliar
de modo crítico o papel das inovações tecnológicas no âmbito dos fenômenos cultu-
rais – da arte, do cinema, da literatura, do teatro –, e das formulações teóricas. Neste
particular, de promover um pensamento limiar, assinalado pelo duplo exercício das
assimilações e das ultrapassagens, singularmente emancipado das antigas proposi-
ções dicotômicas fundamentadas na oposição entre termos antagônicos.
Importa, no contexto atual, examinar as reconfigurações – estéticas, institucio-
nais, políticas e éticas – promovidas pela disseminação das tecnologias digitais em
todos os domínios da vida. Nesse momento transicional, marcado pelo surgimento de
novos formatos e pela elasticização dos regimes temporais das imagens, fortemente
intensificadas pelas tecnologias digitais, o que se apresenta notável são os novos mo-
dos de existência das imagens, seu significativo deslocamento da condição de objeto
oferecido ao olhar para o de interface que passa a responder, a agir e a performar em
situações dinâmicas de trocas, de tal modo a convocar, de forma implicada, o corpo
e a participação do observador.
Em Máquinas de imagem, Baio nos proporciona uma acurada leitura da con-
dição contemporânea, atualizando as proposições desenvolvidas por Vilém Flusser
sobre os aparelhos técnicos de mediação. Uma perspectiva teórica consistente, ra-
dicada na identificação das linhas de forças singularizantes dos fenômenos culturais
contemporâneos, considerados a partir da leitura crítica das formulações conceituais
predominantes até o início dos anos 1980, mas, igualmente decisivo, desde o ponto
de vista da liberdade do artista e do participante implicados na aventura estética. A
percepção dos acontecimentos históricos, o pensamento filosófico e a experiência
estética encontram-se entrelaçadas nas análises empreendidas por Baio, de modo a
proporcionar as condições de existência de um pensamento que se exerce orientado
pelo princípio do desafio e da superação, em diálogo direto com a experiência artís-
tica processual, desencadeada a partir das disposições singulares das imagens e dos
participantes, quando o que faz diferença são as relações instituídas no encontro entre
a obra e o seu ativador.
A concepção crítica de Flusser sobre o modo de funcionamento dos aparelhos
técnicos, inscrita na sua filosofia do aparato, e a sua noção de futuro essencialmente
dinâmica apresentam-se cruciais nas análises elaboradas por Baio a propósito das
relações engendradas pela cultura digital. Por um lado, a percepção das funções nor-
mativas associadas aos aparelhos técnicos, uma vez avaliados os seus desempenhos
convencionais, submetidos à lógica do controle social, do aumento do consumo e
de manutenção da ordem vigente, possuiu o poder de despertar uma postura crítica
em relação ao seu modo de funcionamento, de tal modo a encorajar usos originais
e disruptivos desses mediadores, capazes de consignar um sentido verdadeiramente
inventivo ao trabalho do criador de imagens. De modo análogo, as proposições de
cesar baio 15

Flusser em relação à imagem encontram-se dimensionadas relativamente a um possí-


vel, a um desdobramento futuro, sempre de modo a conceber uma ação de interferên-
cia, igualmente criativa, por parte do participante, que modifica o modo pelo qual a
própria imagem se faz presente. Uma leitura que desloca a imagem do lugar passivo,
unicamente referido a um tempo já decorrido, ou às determinações de ordem formal
quanto a sua natureza estética, para torná-la maleável, contaminada pelas mutações
implicadas numa experiência que é sempre processual e atual.
Esses dois balizadores conceituais trabalhados por Flusser – a crítica do modo
de funcionamento dos aparelhos e a condição processual da imagem – decorrem da
sua original concepção sobre a natureza simbólica dos signos, inclusive dos signos
figurativos da fotografia e do cinema, frequentemente confundidos com os sinais na-
turais. Uma perspectiva radical, que desloca a crítica da imagem e da cultura do
âmbito da filosofia da representação, para situá-las no terreno das construções simbó-
licas. Baio expande essa proposição da imagem como artefato às configurações das
tecnologias digitais, apontando para uma vida e uma performatividade da imagem,
para o seu vetor projetivo, destacando a sua vocação de alterar o sentido de presença
do participante, do mesmo modo que a sua relação com o outro e com o entorno.
A perspectiva de análise empreendida por Baio apresenta, nesse ponto, uma
inflexão decisiva relativamente aos instrumentais conceituais mobilizados na pesqui-
sa. Trata-se, em primeiro lugar, de assinalar a natureza simbólica de todos os signos
culturais de modo a identificar o potencial criativo e transformador dos aparatos ima-
géticos modernos, uma vez reconhecidos os seus modos próprios de funcionamento,
seus códigos e programas, e os pressupostos modelos de conhecimento que atuali-
zam. Em um segundo momento, de considerar os dispositivos de mediação digital – o
campo dos ambientes imersivos, da realidade aumentada, da arte cibernética e dos
dispositivos móveis em rede – associados a uma outra lógica processual, momento
em que a imagem encontra-se especialmente referida ao seu modo constitutivo e
aberta a desempenhar funções autônomas. Uma crescente autonomia da imagem que,
entretanto, não transcende o âmbito da experiência. De modo inverso, depreende-se
que a cada novo grau de autonomia, a imagem passa a desempenhar funções pro-
gressivamente relacionadas às instâncias fenomenológicas presentes na experiência
sensível, vindo a implicar o corpo do participante, na sua dimensão sensorial, de
modo ainda mais inclusivo.
A perspectiva analítica empreendida por Baio possibilitou apreender os desdo-
bramentos da experiência contemporânea baseada em mediações tecnológicas desde
o ponto de vista de uma radical corporeidade, além de apontar para as inconsistências
inscritas nas primeiras formulações, enunciadas no decorrer dos anos 1970, sobre as
possibilidades inauguradas pelas tecnologias digitais, fortemente ancoradas no ideal
utópico de construção de mundos artificiais, manifestamente emancipadas das instân-
cias materiais e sensoriais da experiência. Com efeito, no âmbito dos dispositivos tec-
nológicos, as relações incisivas, inaugurais e complexas instituídas pelas interfaces
16 máquinas de imagem

digitais não se encontram voltadas à representação de realidades anteriores à insti-


tuição das próprias imagens, nem muito menos, uma vez dimensionada sua condição
inaugural e projetiva, direcionadas à elaboração de mundos paralelos alternativos.
Uma condição peculiar, intensificada pelas singularidades da codificação sintética,
inscritas no domínio que Baio designa de regimes de projeção.
A natureza do aparato digital, processual e aberto aos usuários, confere uma
substancial margem de atuação por parte do artista, no que tange ao seu domínio sobre
os elementos materiais constitutivos dos aparatos, cancelando, ao menos parcialmen-
te, as tradicionais funções de caixa preta, desempenhadas pelos aparatos modernos.
Tal singular condição de existência do aparelho contemporâneo favorece a percepção
de que, além das questões de consciência mobilizadas na postura crítica envolvendo
o seu funcionamento, os próprios aparatos, uma vez observados os sistemas simbóli-
cos e os modelos de pensamento que inscrevem, encontram-se especialmente sujeitos
à manipulação criativa. Essas sucessivas aberturas, compartilhadas pelo participante,
pelo artista e pelos jogos com os aparelhos no contexto pós-digital, encontram-se
investidas de um poder expansivo, ensejando as práticas voltadas ao exercício da
liberdade, crítica e criativa, em todos os domínios da experiência contemporânea.
Cesar Baio nos oferece, nesse notável livro, um percurso de pesquisa que
procede ao recenciamento dos textos clássicos e das recentes investigações consa-
gradas à teoria das imagens, sempre de modo a privilegiar as margens de liberdade
do artista, do participante e do programador, consideradas estratégicas nas nossas
sociedades contemporâneas avançadas e nos potenciais processos de emancipação
estética e política.
introdução

Arte, mídiA e Vilém flusser

PArA PensAr A Arte e A mídiA

É apenas graças à arte que somos constantemente reinseridos no solo da


realidade, solo este encoberto pelos artifícios e artimanhas da situação cul-
tural que nos cerca. A arte é a nossa única janela para a vivência concreta
da realidade.
(FLUSSER, Aspectos e prospectos da arte cibernética: 5)

Desde o alvorecer da arte contemporânea, as operações na estrutura interna


das máquinas de produção e de circulação de imagens e sons sempre estiveram no
centro de interesse de gente como Nam June Paik, Wolf Vostel, Bill Viola, Bruce
Naumam, Dan Graham, Steina e Woody Vasulka. Sob a influência do Dadaísmo, do
Fluxus, da Arte Pop e da Arte Conceitual, esses e outros artistas da época deixaram
de lado a utilização simples e instrumental dos aparelhos industriais, para intervir no
interior dos circuitos eletrônicos e da organização dos sistemas midiáticos. Boa parte
da produção feita entre as décadas de 1960 e 1980 foi dedicada a esse projeto por
meio da subversão de aparelhos de TV, câmeras, gravadores de fita K7, da interven-
ção criativa em programas de TV e transmissões via satélite e, também, da reinven-
ção dos espaços arquitetônicos de fruição e dos fluxos de imagens e sons da TV, do
cinema e dos sistemas de vigilância.
Estas foram as estratégias de muitos artistas para discutir os impactos das
tecnologias de mediação em uma sociedade na qual a comunicação de massa se
consolidava progressivamente, marcada pela concentração de poder, pela padro-
nização industrial e pela homogeneidade do entretenimento em larga escala. No
18 máquinas de imagem

entanto, tais práticas ganham outros contornos a partir da virada de século. Em


resposta às transformações culturais que se desdobravam e, ao mesmo tempo, in-
fluenciavam a incorporação da base técnica digital nos sistemas midiáticos ocorrida
na década de 1990, os artistas passaram a reformular suas práticas e suas estratégias
de ação. O rompimento definitivo da vinculação entre o suporte técnico e a estéti-
ca, a facilidade de acesso ao conhecimento necessário para o desenvolvimento de
hardware e software customizados, a interatividade das redes fixas e móveis são
apenas algumas características que marcam tais transformações. Em termos gerais,
esse novo cenário é marcado por uma profunda mudança tanto na maneira como
compreendemos e nos relacionamos com as tecnologias de mediação quanto no
lugar que elas ocupam na sociedade.
No final da década de 1980, Mark Weiser cunhou o termo “computação ubí-
qua” para designar um estágio futuro da tecnologia no qual nossa relação com os
computadores se tornaria mais naturalizada. Os sistemas digitais deixariam de estar
restritos aos chamados computadores pessoais e se integrariam às coisas que nos
cercam de maneira silenciosa e invisível. A tecnologia recuaria para o plano de fundo
das nossas vidas, de modo que passaríamos a nos relacionar de maneira constante e
“tranquila” com os equipamentos mais diversos, todos conectados entre si.
De fato, atualmente, cada vez mais os sistemas computacionais se miniaturi-
zam, se multiplicam e se inserem de maneira mais íntima à nossa vida. No horizonte
da ubiquidade computacional, tudo o que nos cerca passa a incorporar microcon-
troladores, sensores, conexões em rede, telas e projetores. Com isso, roupas, obje-
tos, corpos, edificações, espaços públicos e privados se transformam em plataforma
eletrônica para produção e circulação de imagens, sons e textos. O grau de avanço
tecnológico imaginado por Weiser e que começa a se revelar mais claramente no nos-
so cotidiano agora nos coloca, assim, no alvorecer do que se poderia conceber como
“ubiquidade tecnomidiática”, uma condição na qual tudo que está a nossa volta,
inclusive nosso próprio corpo, é transformado em uma mídia tecnológica.
Embora esta dimensão estética não tenha chamado a atenção de Weiser de
início, os desdobramentos da computação ubíqua na produção simbólica colocam em
crise a concepção de mídia tal como algo precisamente delimitado e circunscrito a
um tempo e a um espaço específico (a sala de projeção para o cinema, a sala de estar
para a TV, a galeria de arte para o vídeo). Ao mesmo tempo em que nada mais escapa
aos domínios da mediação tecnológica, a mídia passa a se diluir e se fundir em tudo,
tornando-se parte indissociável da experiência concreta que temos do mundo. É certo
que este cenário desloca radicalmente o que compreendemos como mídia, mas, é
preciso dizer, ele também o faz com a maneira como entendemos a imagem, o corpo,
o espaço, o outro e a sociedade na qual estamos imersos.
Mas, existe outro aspecto desse contexto que não foi previsto por Weiser e que
vem se tornando mais evidente nos últimos dez anos. Trata-se do fato de que, para
além do aspecto material da incorporação dos microcontroladores e das redes de co-
cesar baio 19

municação no cotidiano, a ubiquidade computacional pode ser capaz de transformar


profundamente o modo como se organiza o nosso conhecimento sobre a tecnologia.
Isso porque, com a assimilação intensiva dos aparatos técnicos nas práticas culturais
correntes, a tecnologia perde progressivamente seu caráter enigmático e deixa, pouco
a pouco, de ser aquela caixa-preta acessível apenas a uma quantidade restrita de es-
pecialistas e corporações que fazem girar a indústria da tecnologia.
No mesmo ritmo em que os sistemas computacionais são incorporados no
cotidiano, o conhecimento sobre tecnologia tem se popularizado, favorecendo o
acesso de um público sem formação especializada a um saber específico. Este pro-
cesso é acelerado por uma série de ações realizadas por grupos organizados que
utilizam a internet como base de produção e difusão de tecnologia. Fundadas na
ideia de que o conhecimento deve ser compartilhado e gratuito, multiplicam-se as
comunidades que desenvolvem e distribuem tecnologia, oferecem apoio técnico
(em fóruns, redes sociais e outros canais) e disponibilizam uma vasta documen-
tação sobre software e hardware de acesso livre. Graças a iniciativas como estas,
agora é possível que, com um pouco de tempo e vontade, qualquer pessoa sem
formação especializada em tecnologia possa programar aplicativos, montar seu
hardware e produzir suas próprias ferramentas e componentes. Dentre os projetos
mais difundidos na rede estão o OpenFrameworks, o Processing e o Arduíno1, que
simplificam o uso dos poderosos recursos de linguagens de programação comple-
xas como C++ e Java, assim como da microeletrônica.
Estas práticas a um só tempo influenciam e se desdobram da multiplicação da
produção de aparatos tecnológicos de mediação não industriais, algo que ultrapassa
o contexto específico da arte. Uma quantidade cada vez maior de pessoas passa a
entender que elas mesmas podem criar máquinas e aplicativos que sejam capazes de
auxiliá-las nas tarefas mais diversas, o que intensifica ainda mais o ritmo da incor-
poração dos sistemas computacionais no dia-a-dia. No campo da arte, essa prática
amplia exponencialmente as possibilidades de invenção de máquinas simbólicas ex-
perimentais, colocando em outro patamar a pesquisa especulativa por novas formas
de imaginar (criar imagens).
Embora o contexto atual possa ser relacionado, à primeira vista, a outros mo-
mentos históricos em que havia uma efervescência na produção de máquinas sim-
bólicas, tal como aquele do fim do século XIX, por exemplo, que levou à invenção
dos aparatos midiáticos que viriam a se estabelecer décadas mais tarde, o cenário
atual mantém peculiaridades que podem caracterizá-lo como um momento singular
na história da mídia.
De fato, em outros tempos também houve uma busca pela invenção de novas
formas de produção, registro e transmissão de imagens e sons. A invenção do cinema,

1. Ainda que estes projetos possam ser superados daqui a certo tempo, eles já conquistaram um papel
de relevância na história da disseminação efetiva de conhecimento sobre tecnologias livres.
20 máquinas de imagem

do fonógrafo, do rádio e da TV são consequências disso. Contudo, tanto o imaginário


que se formava em relação às tecnologias de mediação quanto a extensão do conjunto
de práticas especulativas daquela época era outro. Dentre as marcas mais importantes
que caracterizam o momento atual estão a força colaborativa e a ideia de que o conhe-
cimento, a produção simbólica e a tecnologia precisam ser livres e acessíveis a todos.
Esta forma de pensar, que é potencializada pela comunicação via internet, orienta a
cultura do conhecimento livre, do low tech e do Do It Yourself (DIY), e tem corroído
a lógica da indústria do entretenimento e do mercado de tecnologia por meio de uma
reformulação profunda na maneira de pensar as relações entre tecnologia, mídia e
sociedade. Um dos aspectos mais importantes deste cenário talvez seja o fato de que
esta mudança paradigmática retira o caráter mágico que por muito tempo mitificou a
mídia como algo inacessível e a revela como um campo fértil para a experimentação
estética e o posicionamento político.
No campo abrangente da arte contemporânea, esta reformulação na maneira
de pensar o lugar da tecnologia na sociedade e seus aspectos estéticos e políticos
ainda carece de reflexão. Dado que é cada vez mais difícil pensar a cultura contem-
porânea sem levar em consideração sua permeabilidade à tecnologia, é urgente uma
efetiva universalização para o campo geral da arte de problemáticas que por muito
tempo foram circunscritas às áreas consideradas como guetos, tais como a da netart,
da arte cibernética, da bioarte e da artemídia2 de maneira geral. Diante disso, cada vez
faz menos sentido separar as práticas artísticas que se dedicam às questões das mídias
e das tecnologias em qualquer campo isolado da arte contemporânea.
Por outro lado, torna-se mais evidente que, ao longo da história da arte produ-
zida com (e para) os meios tecnológicos, muitos artistas sempre estiveram voltados
de um modo ou de outro às operações no nível dos aparatos midiáticos. Reconhecer
isso confere uma nova perspectiva na análise desta produção e permite traçar uma
linha que atravesse uma parte significativa da media art a partir da identificação de
diferentes estratégias de ação em relação aos aparatos técnicos de mediação. Seja
pela subversão dos aparelhos existentes, pela intervenção nos circuitos e fluxos de in-
formação ou pela invenção de aparatos experimentais de mediação, desde a videoarte
até as manifestações experimentais mais recentes da artemídia, os artistas sempre es-

2. O termo artemídia, em seu sentido amplo, é uma forma brasileira de interpretar (e de recortar) o
que é entendido pelo termo abrangente “media art”. A expressão em língua inglesa é usada ao redor
do mundo para se referir a um conjunto de práticas criativas que se utilizam das tecnologias para
produção, distribuição e consumo de imagens, textos, sons e outros modos de comunicação. Em-
bora muitas vezes seja relacionado à arte, de maneira geral, o termo é aplicado também em áreas
como design, propaganda, jogos eletrônicos, entretenimento, desenvolvimento de aplicativos etc.
No entanto, uma definição stricto sensu do termo, tal como sugerida por Arlindo Machado, é capaz
de conceituar a artemídia de um modo mais preciso. O conceito elaborado por Machado (2007: 7-8)
considera artemídia as propostas artísticas que não são apenas feitas com e para os meios de comu-
nicação, mas que, prioritariamente, problematizam, dialogam e produzem intervenções críticas na
mídia e nas diversas áreas da tecnologia e da ciência.
cesar baio 21

tiveram interessados em se inserir dentro das máquinas de produção simbólica para,


a partir desse lugar, propor rearticulações críticas e qualitativas das suas estruturas
internas de funcionamento.
Entretanto, diante desse novo cenário esboçado acima, o artista é chamado a
repensar suas práticas e a si mesmo. Além de ampliar os recursos disponíveis ao artis-
ta para a invenção de aparatos técnicos originais, a mudança na maneira de entender
a tecnologia aumenta as possibilidades de operação no interior da caixa-preta dos
aparelhos industriais, o que permite incursões subversivas mais profundas nos seus
circuitos eletrônicos e códigos digitais. Por outro lado, revela-se mais claramente o
funcionamento interno das instituições e dos circuitos midiáticos, o que confere mais
fôlego aos artistas nas suas intervenções. Mas, se tais transformações conferem um
novo olhar às estratégias utilizadas pelos pioneiros e renovam o fôlego das novas
gerações, elas também colocam novos problemas ao artista.
É muito pouco provável que um artista atento ao seu tempo não se sinta con-
vocado a se posicionar em relação a esse contexto e a pensar o papel que a tecnologia
tem assumido na maneira como estabelecemos nossa relação com o outro, com o
mundo e com nós mesmos. Se até bem pouco tempo ele se via em posição de refletir
sobre aos modelos estéticos, a concentração de poder e os modos de produção da
indústria da comunicação de massa, qual deve ser o seu lugar em uma sociedade
atravessada pela ubiquidade tecnomidiática? Como não se posicionar de maneira in-
gênua diante de uma cultura em que a tecnologia atravessa a sensibilidade, o corpo,
a sociabilidade, a política, a economia, as instituições e muitas outras dimensões da
realidade? Quais seriam as estratégias mais efetivas de ação?
Dessas questões desdobra-se uma problemática em relação ao próprio campo
da arte e do seu lugar na sociedade. Se tanto a arte quanto a tecnologia investem na
criação de aparatos tecnomidiáticos, como seria possível defini-las como campos de
conhecimento e de práticas distintos? A arte estaria correndo o risco de ocupar um
lugar de ilustração dos recursos tecnológicos mais recentes e dos conceitos científicos
em vigor? O artista deve absorver os modelos de pensamento, terminologias e méto-
dos usados no campo de desenvolvimento tecnológico ou resistir a eles? Na criação
desses aparatos artísticos, como se estabelece a relação entre liberdade e determina-
ção, entre invenção e automatismo?
Essas questões demonstram a urgência de uma atualização no pensamento crí-
tico sobre as relações entre arte, mídia e tecnologia, assim como demandam teorias
que possam ajudar a compreender o cenário e as práticas mais recentes. A pesquisa
aqui apresentada toma tais questões como ponto de partida para estabelecer conexões
entre pensadores, práticas e obras que possam oferecer pistas para melhor compreen-
der o cenário emergente. O primeiro capítulo, intitulado “Flusser e a imagem: rumo
a uma arte dos aparatos” busca uma atualização reflexiva dos parâmetros críticos que
nortearam historicamente esse campo de produção artística, visando compreender
melhor essa problemática frente as suas práticas e ao estado atual da cultura contem-
22 máquinas de imagem

porânea. De início, são passadas em vista as teorias do dispositivo cinematográfico


(Baudry) e pós-estruturalista (Foucault, Deleuze), a fim de estabelecer parâmetros
que permitam avançar rumo ao pensamento de Vilém Flusser 3.
A filosofia do aparato de Vilém Flusser pode oferecer um ponto de entrada in-
teressante para pensar as práticas artísticas para além dos determinismos de qualquer
ordem. Flusser chama a atenção para a maneira como a organização interna implica-
da em cada aparato representa, sobretudo, um modo de fazer específico, uma visão
de mundo e um modelo de conhecimento que tem dimensões estéticas, mas também,
políticas, éticas e, por vezes, sociais e econômicas, entre numerosas outras. Para ele,
estas dimensões abstratas acabam por estabelecer certo modo de conceber e estar
no mundo que estaria codificado em todos os elementos simbólicos que se projetam
de cada aparato. Segundo essa concepção, o aspecto mais importante na análise de
qualquer aparato midiático seria justamente esse modelo de conhecimento, pois é ele
que confere valor significante ao mundo.
Compreender as máquinas de imagem a partir do conceito de aparato de Flus-
ser implica reconhecer as dimensões abstratas que se escondem atrás da materialida-
de da tecnologia. Mas significa também entender que os aparatos de ordem técnica
fazem parte do complexo sistema simbólico que concebemos como cultura, uma vez
que estas camadas abstratas se sedimentam tanto em tecnologias como as da câmera
fotográfica, do computador ou das redes de TV, quanto no nosso corpo, na escrita, na
sala de aula, no estádio de futebol e em tudo aquilo que projeta de si os fenômenos
que compõem o “conjunto de todos os fenômenos” kantiano em que estamos imer-
sos, o qual Flusser concebeu como mundo codificado.
Esse modo de entender as tecnologias de mediação e a cultura oferece uma
perspectiva interessante para pensar a produção artística contemporânea, pois permi-
te compreender estas propostas criativas como uma tentativa de jogar com as cama-
das abstratas dos aparatos, que permanecem muitas vezes encobertas pelas tecnolo-
gias e circuitos midiáticos. Isso acontece tanto quando os artistas atuam diretamente
na materialidade das câmeras, sensores, computadores quanto quando eles intervêm
na dinâmica interna das instituições de poder e nos fluxos informacionais da mídia,
da arte e do desenvolvimentismo tecnológico. Se todo aparato esconde atrás de si a
sedimentação de uma série de camadas de ordem social, econômica, política, ética,
cognitiva entre outras, o que estes artistas fazem ao criar suas obras é remexer tais
camadas, desacomodá-las, reorganizá-las da maneira como acham mais interessante
para tensionar suas incoerências, revelar suas contradições e ampliar sua potência
dialógica e de criação do comum. Na estrutura sistêmica dessa organização tais obras
tornam-se assim, elas mesmas, aparatos de mediação.

3. Muitos dos seus textos utilizados neste trabalho permanecem não publicados. Estes textos foram
acessados durante um estágio de pesquisa no Vilém Flusser Archive, hospedado na Berlin Univer-
sity of the Arts (UDK) sob os cuidados de Siegfried Zielinski. Por isso, nas referências feitas a estes
textos aparece diretamente o nome do texto em questão.
cesar baio 23

Para estes artistas a tecnologia tornou-se uma linguagem poderosa para pensar
o mundo e a nossa condição em relação a ele. Para muitos, inclusive, operar no inte-
rior desses aparatos parece ser mesmo a maneira mais adequada para se posicionar
frente a um contexto cultural cujas transformações emergem de maneira dinâmica
nas dimensões abstratas que atravessam os sistemas de mediação contemporâneos,
sejam estes tomados por suas tecnologias, instituições ou discursos. Trabalhem eles
usando câmeras e programas disponíveis no mercado para outros fins que não os
da indústria do entretenimento, subvertendo as tecnologias existentes, intervindo no
fluxo de informação que circula nas redes ou, ainda, programando software e desen-
volvendo hardware, o que pode caracterizar este campo é, assim, o deslocamento da
produção artística para intervenções qualitativas e críticas nos aparatos técnicos de
mediação por meio das camadas abstratas que neles se sedimentam.
Atualizando as estratégias dos pioneiros da arte e tecnologia, alguns artistas
operam pela subversão de equipamentos analógicos como câmeras e projetores. Com
seus trabalhos, artistas como Anthony Mccall, Milton Marques e Julius von Bismarck
fazem repensar a lógica das máquinas de captura e exibição de imagens para além
das tecnologias empregadas. Por vezes, a inversão da lógica de funcionamento se
dá a partir da ressignificação de projetos abandonados, ideias interrompidas e dos
aparelhos obsoletos da chamada dead media, como em A Parallel Image (2009) de
Gebhard Sengmüller, White Noise (2007) de Žilvinas Kempinas e Visorama (2000),
de André Parente. Alguns artistas, no entanto, assumem explicitamente técnicas de
“raqueamento”, de circuit bending, de low tech e de gambiarra, tais como fazem Peter
Vogel, e, no Brasil, Jarbas Jácome, Ricardo Brazileiro, os coletivos Gambiologia e
O Grivo, entre outros. O trabalho desses artistas obriga a repensar tais mídias e, com
isso, lançam novas perspectivas para o exame de questões introduzidas pelas tecno-
logias mais recentes.
Estas questões são tratadas de outra perspectiva quando certos artistas passam a
operar com as chamadas novas mídias, surgidas a partir das tecnologias digitais. É isso
que acontece quando, por exemplo, artistas como Mark Napier, Joan Heemskerk, Dirk
Paesmans, Eva e Franco Mattes, Gilbertto Prado, Eduardo Kac e Giselle Beiguelman
subvertem a lógica de programação de sites, o funcionamento das redes de comuni-
cação e dos aplicativos on-line para colocar em discussão questões fundamentais do
universo das redes digitais, expondo suas fragilidades e questionando suas incoerên-
cias. Muitas vezes o curto-circuito entre o analógico e o digital se dá pelo simples
deslocamento de técnicas e instrumentos da indústria midiática, tal como o fazem
Gerald van der Kaap, Paul M. Smith e Helga Stein com os aplicativos de correção de
imagens fotográficas.
Em outros casos, a proposta de tomar a arte como um modo de pensar uma
cultura atravessada pelas tecnologias e pelos processos de mediação técnica não se dá
necessariamente por meio da fisicalidade das máquinas ou da virtualidade do softwa-
re, mas sim pela imaterialidade de aparatos muitos mais abstratos do que estes. Esses
24 máquinas de imagem

projetos se dão geralmente a partir da criação de ações e situações que habilitem


intervenções diretas nos fluxos de informação e de poder dos grandes circuitos midiá-
ticos. Essa é a estratégia de artistas como Yuri Firmeza e a dupla formada por Andy
Bichlbaum e Mike Bonanno do coletivo The Yes Men. Sem lidar diretamente com a
materialidade da tecnologia, mas bastante conscientes dos processos e procedimen-
tos utilizados pelos meios de comunicação, estes artistas têm como objetivo central
a criação de imagens midiáticas que, uma vez inseridas nos sistemas de informação,
sejam capazes de desarticular certos discursos e revelar realidades profundamente
encobertas pelos circuitos da mídia e da arte.
Outra estratégia consiste em assumir as tecnologias mais recentes para criar
aparatos originais de caráter experimental. O repertório formado por câmeras, pro-
jetores, telas e espaços de projeção, que formavam a base de trabalho para muitos
artistas até a década de 1980, foi ampliado significativamente pelas tecnologias de
sintetização, pós-processamento, sensoriamento, conexão em rede e interfaceamento
interativo introduzidas pela base técnica digital. Esses recursos, que não cessam de se
expandir, elevam a um grau sem precedentes a potência estética da tecnologia. Com
isso, muita gente passou a investir na criação de aparatos técnicos como estratégia
para lidar de maneira crítica e poética com a realidade. Este é um projeto que atraves-
sa a produção artística que se dá no campo da cibernética, da realidade virtual, das
caves, da realidade aumentada, do vídeo e do cinema interativo. De certa maneira, es-
ses trabalhos antecipam o cenário de ubiquidade tecnomidiática emergente na medida
em que, desde muito cedo, eles vêm assumindo práticas de produção de máquinas
simbólicas não industriais.
A análise das diversas estratégias que surgem com a incursão da arte no inte-
rior antes obscuro das máquinas simbólicas, tal como é empreendida nesse primeiro
capítulo, revela uma prática comum a todos esses trabalhos. Em vez de se questionar
sobre como criar imagens que melhor representem uma dada realidade, esses artistas
têm se perguntado sobre como criar aparatos que projetem de si imagens que os per-
mitam melhor entender o que nos cerca, intervir no mundo, transformar sua dinâmica
de funcionamento e modificar o modo como ele é compreendido. Tal mudança de
postura aponta para uma dobra fundamental na maneira de pensar tanto as práticas
artísticas contemporâneas quanto os modos de existência da imagem.
Tais práticas rompem com uma postura baseada na tentativa de representação
da realidade em favor de outra pautada na projeção de vetores simbólicos que possam
tocar o mundo. A imagem é retirada de sua condição de algo a ser observado e é assu-
mida por sua capacidade de atuar sobre o mundo que a encara. Essa passagem deixa
ver uma mudança importante no estatuto da imagem, que passa a não mais responder
à definição que a toma como a presença de uma ausência, tal como ela é concebida
em geral pela filosofia. Ela passa a interessar mais por sua dimensão de presença,
pelo que ela opera com sua atuação no mundo, ou, tal como concebeu Flusser, por
seu caráter de projeto e de projétil.
cesar baio 25

Em termos teóricos, essa hipótese é estruturada a partir da inversão na ma-


neira como analisamos a imagem feita por Flusser. Para ele a fotografia não é um
indício da realidade, tal como o é a marca da pata de um cachorro na neve. Segundo
Flusser, para entender a fotografia não faz sentido se interrogar sobre sua relação com
o objeto fotografado. Em sua filosofia do aparato, Flusser defende que, se quisermos
captar o que a imagem significa atualmente, devemos nos perguntar para onde ela
aponta, ou seja, precisamos procurar entender o que ela projeta como vetor simbólico
rumo a nós, como ela toca nossos corpos, nossa maneira de conceber o mundo e nos-
sa relação com o outro.
O exame das estratégias de ação dessas obras demonstra que a inversão de
sentido da imagem pode dizer muito da maneira como a arte vem sendo pensada e
produzida na contemporaneidade. Esta seria uma marca tão presente que, em alguns
casos, tal mudança no estatuto da imagem chega a ganhar contornos formais. Isso
acontece em muitas das obras que exploram as tecnologias interativas em uma busca
constante por novas formas de interfaceamento entre imagem e corpo. Se for possível
identificar algum traço em comum na arte produzida no campo da realidade virtual,
da realidade aumentada, da arte cibernética, da locative media e do vídeo interativo
este poderia ser descrito como um questionamento constante em termos formais dos
modos de existência da imagem. Mais do que o desenvolvimento de novas tecnolo-
gias de geração e exibição de imagens, tais explorações criativas têm se apresentado
como um amplo campo de especulação sobre a própria natureza da imagem con-
temporânea, fazendo com que de suas pesquisas e propostas se desdobrem questões
de ordem epistemológica, ética e estética. O exame dessa produção permite, assim,
discutir formalmente o estatuto da imagem, e revela o caráter emblemático desta
produção no campo mais abrangente das práticas artísticas.
Privilegiando esses trabalhos, o recorte aqui proposto leva adiante a possi-
bilidade de pensar a imagem em sua condição de projeto. Esta hipótese é pensada a
partir das seguintes questões. O que acontece quando o artista passa a não se propor
apenas a “fazer imagens”, mas a inventar suas próprias máquinas de imagem? De que
maneira as tecnologias digitais e as culturas que com elas se desenvolvem transfor-
mam o modo como nos relacionarmos com as imagens? Quais sensibilidades e mo-
delos de conhecimento estão em vigor nessa produção? Seriam os mesmos colocados
em jogo na fotografia, no cinema e no vídeo?
O passo inicial rumo ao enfrentamento dessas questões é dado no segundo ca-
pítulo do livro, intitulado “Interfaces digitais: da imersão ao pós-virtual”, que aborda
as teorias e obras feitas em ambientes imersivos, passando pela Realidade Virtual,
pelas Cave’s e pelos panoramas digitais, que são conceituados, então, como regi-
mes de absorção. Nota-se que tais dispositivos atualizam o sonho de resgatar nossa
consciência da realidade (Heim), vinculando-se a uma tradição que abarca a perspec-
tiva renascentista, o realismo ilusionista do século XVIII e a parte hegemônica da
produção cinematográfica. Pautados no ideal de absorver o sujeito em um universo
26 máquinas de imagem

simbólico à parte, estas imagens se instituem como universos autorreferentes que


existem em paralelo à realidade (ainda que remetam a ela), tal como os mundos in-
compossíveis de Leibniz.
Em contrapartida a estas teorias, a segunda parte do capítulo procura esboçar
o que poderia ser chamado de regime de projeção. Para isso, são passadas em vista
as abordagens que relativizam a falsa oposição entre “real” e “virtual” e são iden-
tificados os aspectos que podem conduzir à superação da dualidade entre “físico”
e “informacional”. Entre as questões que motivam especificamente esse capítulo,
coloca-se: quais seriam os paradigmas epistemológicos que estariam acumulados em
tais imagens? De que maneira esses aparatos materializam as suas dimensões ética e
estética? Em um contexto cultural em que as tecnologias e as redes de comunicação
deixam de se constituir como espaços passíveis de separação da realidade e passam a
se integrar de maneira cada vez mais íntima ao cotidiano, ao espaço e aos corpos, ain-
da faria sentido pensar a imagem a partir dos paradigmas do virtual? Seria possível
compreender a condição atual da imagem fora dos paradigmas da imersão no virtual?
A partir dessas questões os regimes de imersão, conforme definidos por
Heim, Friedberg e Grau, são problematizados em vista de suas heranças platônicas.
Propõe-se, então, pensar a imagem a partir de uma concepção fenomenológica que
leva adiante a hipótese da emergência de um modelo estético fundado na presença e
na atuação da imagem no mundo que a cerca. Entendida como uma projeção da abs-
tração conceitual rumo à concretude da experiência, a imagem não poderia mais ser
entendida a partir de dualidades entre “real” e “virtual” ou entre “físico” e “informa-
cional”, e passaria a se apresentar como um fenômeno que se projeta do aparato para
estabelecer relações com os fenômenos de outras naturezas que constituem o mundo.
Para tanto, retoma-se o conceito de mundo codificado de Flusser, que compreende a
realidade como um sistema hipercomplexo composto dos fenômenos que se projetam
de aparatos de codificação de sentido, sejam eles tecnológicos ou não.
Na concepção de mundo de Flusser esses fenômenos de naturezas diversas se
imbricam, se tensionam e nos atravessam. Nesse contexto, os aparatos técnicos de
mediação acabam por ampliar as potencialidades (virtualidades) presentes na nossa
experiência concreta do mundo. Tal proposição coloca em crise as teorias que sus-
tentaram a concepção majoritariamente virtual do digital. Entendida como fenômeno
que se projeta rumo a nossa experiência, a imagem torna-se assim pós-virtual. Isso,
não porque ela perca sua virtualidade (potência de criação de imagens) que a base
técnica digital tanto expande, mas sim, porque ela passa a se integrar definitivamente
às virtualidades do próprio mundo, não somente àquelas de ordem física e biológica,
mas, sobretudo, as de ordem cultural, incluindo aspectos sociais, afetivos, políticos,
econômicos, subjetivos, e muitos outros que se apresentam à nossa experiência con-
creta do que nos cerca.
Esse cenário pós-virtual potencializado pela ubiquidade tecnomidiática é o
ponto de partida para as análises que se seguem no terceiro capítulo, “Imaginários
cesar baio 27

Cíbridos”, que é dedicado às obras que utilizam técnicas de interfaceamento baseadas


na realidade aumentada, na computação física e nas redes cíbridas para ampliar a
dimensão perceptiva e interpretativa da máquina, por meio de suas interfaces. Nesse
capítulo são analisados trabalhos que investem nas tecnologias de análise de objetos,
espaços e corpos com o objetivo de vincular a eles, em tempo real, as imagens, sons,
textos produzidos no interior dos seus aparatos.
Com isso objetiva-se menos oferecer um panorama dos usos destas técnicas
e tecnologias do que problematizar a implicação da dimensão de visibilidade da má-
quina nos aparatos midiáticos atuais. São abordadas obras que lidam com questões
decorrentes de aparatos de vigilância, captura, catalogação. Tais obras estabelecem
modos de visibilidade baseados na automatização da análise e interpretação daquilo
que é captado pela câmera e por outros sensores, segundo o que será então defini-
do como sistemas perceptivos simulados. A partir de uma perspectiva tanto estética
quanto técnica busca-se compreender, nestas obras, os modos como são operadas
as estratégias de cooptação do corpo pela imagem, apontando para as dimensões
políticas e éticas da questão. Visando “expandir” a realidade, estes aparatos acabam
por instituir um regime de visibilidade ampliada, que, no campo da arte, passa a ser
constantemente problematizado.
Levando adiante essas questões, parte-se para a análise de trabalhos artísticos
em que a imagem assume a condição de projeto por se dar à experiência por meio de
processos de materialização e outrificação. Como um objeto de gênese específica,
esta imagem passa a se oferecer à manipulação física por meio de diversas técnicas de
interfaceamento e responde ao corpo da mesma maneira que os tantos outros corpos
que nos cercam. Essa análise atravessa os capítulos quatro e cinco.
Em “A Imagem Cibernética”, a produção em arte cibernética é abordada
a partir da perspectiva da materialidade da imagem. O interesse dessa etapa da
pesquisa está no estatuto assumido pela imagem em trabalhos que exploram a si-
mulação de objetos, comportamentos e processos cognitivos, feita pelos algoritmos
complexos da cibernética de segunda ordem. A partir de então, é retomada a crítica
de Flusser à objetividade da cibernética para estabelecer as bases conceituais que
permitam pensar os processos de materialização e de outrificação em vigor nas
obras analisadas.
Por fim, no capítulo final, “Rumo à imagem performativa”, o conjunto de
obras tratado até então é contraposto a outro atravessado por processos de outrifica-
ção. Trata-se de aparatos artísticos em que a imagem está estreitamente relacionada
à estética da performance. Tais obras passam a entender o corpo e a presença (da
imagem e do participante) como gestos potentes e sensíveis. São tratados os trabalhos
instalativos realizados a partir de interfaces interativas que exploram tanto técnicas
de simulação quanto as de criação de sistemas perceptivos capazes de interpretar o
participante, conferindo alto valor simbólico a sua presença e aos seus movimentos.
Entre as obras analisadas estão as de artistas como Gary Hill, Lucas Bambozzi, Lynn
28 máquinas de imagem

Hughes e Simon Laroche, Jean Debois, Damaris Risch, Rafael Lozano-Hemmer,


Wen-Ying Tsai, Karolina Sobecka e Chris Sugrue.
Nestas análises questiona-se até que ponto este estatuto performativo da ima-
gem coloca em jogo novas condutas éticas, formas de sociabilidade, habilidades cog-
nitivas, sensibilidades e formas de mediação em relação aos objetos e aos ambientes
que nos cercam. Para isso, inicialmente são apresentados os principais aspectos esté-
ticos que marcam as artes da performance. Especial ênfase é dada à importância da
presença na relação de encontro entre performer e público, assim como às estratégias
organizadoras que tornam a performance, em si, um aparato abstrato. Essa base teóri-
ca sobre a performance é o referencial principal para a abordagem analítica das obras
em questão.
A última parte do capítulo aponta para a emergência de certa sensibilidade
específica em tais obras, diferentes daquelas colocadas em jogo pela pintura, foto-
grafia, vídeo e cinema. O prazer da observação, pensado principalmente por meio do
cinema, é confrontado com outros prazeres estéticos possíveis, visando apontar para
o estabelecimento de uma sensibilidade apoiada na presença da imagem e do corpo.
Tais obras e seus processos de presentificação aproximam a condição da imagem e
do sujeito daquela conferida ao corpo na estética da performance (CoHen, leHmAnn,
FisCHer-liCHte), demandando de ambos uma postura performativa pautada no valor
significante da presença (GumbreCHt, ZumtHor) e do gesto (Flusser).
O exame desses trabalhos a partir da filosofia do aparato permite trazer para o
campo estético certos aspectos políticos dos modos de existência que assumimos na
sociedade contemporânea. Isso porque os modelos de conhecimento implicados nas
imagens desse conjunto de trabalhos estão fundados em sensibilidades e maneiras
de entender a si, em relação ao outro e ao mundo, diferentes daqueles modelos da
fotografia, do vídeo e do cinema. Cada uma dessas imagens estabelece uma política
de existência própria, demanda um corpo específico, entende o outro de forma dife-
rente, elabora o mundo de uma maneira particular e institui subjetividades singulares.
Com isso, elas trazem para a dimensão formal a condição performativa da imagem,
uma maneira de existir da imagem que se institui na cultura atual e que atravessa de
diferentes maneiras grande parte das práticas contemporâneas.
Embora não haja tempo e espaço nessa pesquisa para discutir como tal con-
dição performativa ganha corpo nesse conjunto mais abrangente, espera-se que as
análises aqui empreendidas permitam oferecer algumas pistas para futuras pesquisas
a este respeito.Entendido como parte desse amplo projeto, o exame das transforma-
ções do estatuto da imagem nos aparatos tecnológicos de mediação busca oferecer
parâmetros iniciais para compreender que, mais do que representar um mundo ou
uma versão específica dele, a imagem passa agora a atuar diretamente no contexto
em que está inserida, assumindo-se como um modo de pensar, intervir e reinventar
o mundo. Dentro do recorte metodológico assumido entre os capítulos dois e cinco,
toma-se a condição performativa da imagem delineada de maneira genérica no pri-
cesar baio 29

meiro capítulo a partir de um ponto de análise específico: o deslocamento da lógica


ocularcentrista para outra voltada ao corpo.
A análise destes trabalhos demonstra uma passagem gradual de um modelo de
conhecimento pautado na observação para outro fundado no gesto e no corpo. Passa-se
do olhar à corporeidade, da representação à performatividade, do valor documental
do índice ao valor simbólico e sensorial da presença, do que é visto para o que se
desdobra da ação. Um quadro esquemático de como se articulam estes diferentes
estatutos assumidos pela imagem identificados ao longo do livro, assim como, suas
implicações nos relativos regimes de sentido, de conhecimento e sensibilidade, é
apresentado na tabela 1.
Contudo, tendo em vista que o eixo central das proposições teóricas realizadas
ao longo deste trabalho é estabelecido a partir de Vilem Flusser, torna-se prudente
apresentar algumas pontuações introdutórias sobre seu pensamento. Com sua arre-
batadora filosofia, Flusser estava atento ao cenário que se erguia com as tecnologias
de comunicação e as transformações culturais, sociais e políticas que a partir delas
despontavam. Isso o levou a formular uma das mais fecundas bases filosóficas para
pensar a dimensão estética da produção midiática contemporânea. Por muito tempo
mantido à distância por parte das pesquisas acadêmicas, a originalidade de suas teo-
rias tem desmontado certos preconceitos que se ergueram sobre ele. Flusser deixou
uma obra que pode ser compreendida hoje mais claramente do que em sua época,
mas que, ao mesmo tempo, demanda uma retomada capaz de atualizá-la frente ao
contexto no qual vivemos hoje. Desse modo, antes de tudo, cabe fazer aqui uma
apresentação preliminar deste que propôs um dos pensamentos mais férteis para se
entender um cenário marcado por uma cultura cada vez mais atravessada pela tecno-
logia e pela mediação técnica.

Vilém flusser, o filósofo que gostAVA de jogAr

Vilém Flusser (1920-1991) nasceu em Praga e imigrou para o Brasil em


1940; aqui, naturalizou-se e viveu por mais de trinta anos, até seu retorno à Europa,
no início da década de 1970. No Brasil, seu pensamento floresceu e seus primeiros
textos foram escritos e publicados. Seu retorno ao velho continente o inseriu nos
círculos de discussões ao lado dos grandes pensadores da época, o que o tornou
reconhecido mundialmente. No entanto, boa parte do seu trabalho ainda hoje per-
manece parcialmente restrita a usuários da língua alemã4 e às poucas pessoas que se
propõem a mergulhar nos seus manuscritos em busca de textos, em outras línguas,
que permanecem inéditos.

4. Apenas recentemente, graças à ação de um grupo de editores, a obra de Flusser vem sendo traduzida
mais sistematicamente.
30 máquinas de imagem

Tabela 1 - Regimes de sentido - parte A

A imagem em relação Os processos internos Modos de visibilidade do


ao aparato do aparato aparato
Ambientes Mundos virtuais Voltados à construção Aberta ao controle do
Virtuais que se abrem da narrativa e à participante sobre sua
como dimensões navegação. navegação no espaço
incompossíveis. virtual.
Imagem vinculada O participante conduz a
à navegação do enunciação da narrativa.
participante.

Realidade Sistemas mais ou Voltados à simulação Aberta à intervenção


Aumentada menos complexos de comportamentos objetiva ou criativa na forma
objetificados. mais ou menos e no comportamento da
Imagem vinculada complexos vinculando imagem.
à visibilidade do a imagem à Analisa o mundo e o sujeito
aparato fisicalidade do para formar a base para os
mundo. processos de atualização da
imagem.

Arte Sistemas complexos Voltados à simulação Aberta à ação objetiva do


Cibernética abertos que se de comportamento, participante nos processos
apresentam como de inteligência e generativos da imagem.
objetos. de organismos Carrega de valor conceitual
A imagem está vivos. Aberto à a ação do participante.
vinculada aos seus ação do ambiente
processos de auto- externo sobre
organização. sistema (incluindo o
participante).
Obras Sistemas mais ou Voltados à simulação Aberta à intervenção
Performativas menos complexos de encontros subjetiva do participante.
abertos outrificados. entre imagem e Interpreta a presença
Imagem vinculada participante, e ao e os gestos do sujeito
ao valor simbólico estabelecimento dos de modo a carregar de
da sua presença jogos intersubjetivos valor significante sua
e gesto perante o entre o artista, a obra participação.
participante. e o participante.
cesar baio 31

Tabela 1 - Regimes de sentido - parte B

Fundamentos do Figura de Modelo de conhecimento


regime de sentido da subjetividade
imagem instituída
Ambientes Absorção do sujeito O participante é um Ciberplatônico. Baseia-se na
Virtuais no mundo paralelo da visitante de um outro criação de mundos paralelos
imagem. mundo, chamado à e na transcendência do
Relação baseada exploração. sujeito para o virtual.
na exploração
do espaço e da
narrativa.

Visibilidade Projeção da imagem Interator que intervém O mundo é formado por


Aumentada como fenômeno que sobre a imagem. camadas de realidade que se
adere à realidade Chamado a agir sobrepõem umas às outras de
como camadas. sobre a imagem como modo a criar uma rede que
Relação baseada um objeto. conecta os diversos elementos
nos atravessamentos que compõem cada uma das
possíveis entre camadas.
as camadas de
realidade.

Arte Projeção da imagem Interator que age Sistêmica, apoiada na


Cibernética como fenômeno sobre a imagem. ciência. Parte da cibernética,
objetificado pelo Ele é chamado a para entender o mundo
aspecto auto-referente descobrir o que pode como sistema complexo, no
do sistema. se desdobrar a partir qual subsistemas interagem
Relação baseada nas de sua ação. uns com os outros, tendo
consequências da com objetivo principal
ação do sujeito. a permanência. Apóia-
se em grande parte na
física quântica, nas teorias
cognitivas, neurociência e
biologia.
Obras Projeção da imagem Sujeito Performativo Sistêmica de base
Performativas como fenômeno: um que explora o valor fenomenológica.
outro equivalente simbólico da sua Compreende o mundo
sensível do sujeito. presença e de seus como formado por múltiplos
Relação baseada na gestos. Chamado a fenômenos que se projetam
troca intersubjetiva um diálogo sensível de aparatos de diversas
que se dá no jogo com a imagem. naturezas formando o tecido
com o participante. cultural. A realidade é
concebida como um sistema
simbólico hipercomplexo.
No entanto, está voltada
menos para o aspecto
biológico e físico do que ao
fenomenológico do indivíduo.
32 máquinas de imagem

Escritor, teórico e crítico Flusser é antes e acima de tudo um filósofo de origi-


nalidade desconcertante e que, por isso, demanda uma apresentação à luz apropriada.
Propondo-se desde o início a romper com certas convenções balizadoras dos textos
filosóficos, ele passou a despertar extraordinário interesse, inclusive de seus críticos.
Filho de professor, logo cedo decidiu desviar-se do estilo acadêmico, preterindo a
análise disciplinar dos textos filosóficos para assumir a filosofia como um exercício
de cunho enxadrístico, tomando questões filosóficas como objetos de jogo. Com es-
tilo próprio, Flusser elegeu o ensaio como gênero ideal; a partir dele, desenvolveu
provocativos jogos de palavras, baseados na lógica e na etimologia, numa lingua-
gem floreada, marcada por um existencialismo muito particular, e por uma maneira
própria de aplicar o método de redução fenomenológica para elaborar questões e
argumentos. Características estas que, somadas ao seu estilo provocativo e irônico,
seduziram muitos intelectuais: artistas, na maioria, mas que também confundiram e
aborreceram tantos outros, principalmente os do campo acadêmico.
Esta marca pessoal torna qualquer entrada no pensamento de Flusser uma ta-
refa que envolve certo risco, condição que se constitui também por fatores logísticos
e metodológicos. Sabe-se que Flusser conhecia vários idiomas, além do tcheco e do
alemão aprendidos na juventude em Praga; também o português, o inglês, o francês, o
italiano, o russo e, como muitos afirmam, o tupi. Sua obra é composta por alguns tex-
tos escritos em inglês e francês, mas a maioria foi produzida em alemão e em portu-
guês, este último seu confesso idioma mais desafiador e, por isso, preferido (Flusser,
2007: 75). Para Flusser a língua sempre foi um instrumento para se articular dentro
do universo da cultura e dos conceitos. Seus textos eram elaborados inicialmente em
uma língua e, em seguida, reescritos em outros idiomas, multiplicando suas princi-
pais questões em diferentes versões do mesmo argumento. Em cada nova versão suas
ideias eram reorganizadas, transformadas e ampliadas num processo de tradução sem
fim, o que dificulta o mapeamento e o estabelecimento de relações entre as diferentes
partes de sua produção.
Ao contrário da práxis científica, Flusser raramente apresentava suas referên-
cias, e muitas vezes tomava como dados alguns conceitos importantes para a com-
preensão da genealogia dos seus argumentos. Além disso, ele quase sempre jogava
com as aproximações e distanciamentos, profundidade e superficialidade. Estas in-
versões são evidentes em muitos dos seus textos, nos quais são construídos verdadei-
ros labirintos com idas e vindas de argumentos e contra-argumentos, jogos estontean-
tes de conceitos e inversões. Como afirma Baitello Jr. (2008), este método em que
Flusser subverte seus próprios argumentos inverte o próprio objeto e o olhar do leitor,
e é decisivo para os mergulhos mais extensos e profundos nos seus objetos prediletos.
Com efeito, mais do que um estilo de escrita, seu texto estabelece um jogo
entre consciências, o que representa formalmente a própria base conceitual que cru-
za o pensamento flusseriano no nível mais abrangente: a existência essencialmente
dialógica do humano. Assim como seus textos, sua personalidade e sua maneira de
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pensar (segundo quem o conheceu pessoalmente) eram, em todo o tempo, uma busca
de se esquivar da unanimidade, por meio de provocações, atravessamentos, desvios e
inversões. Nesse sentido, Flusser desvia seus argumentos da unicidade organizadora
do discurso unívoco para conformar seu pensamento como diálogo, no sentido mais
bakhtiniano no termo. Nada indica que ele tenha tido algum contato com a obra de
Mikhail Bakhtin; entretanto, uma análise do método que Flusser utiliza para elaborar
argumentos e formular questões revela uma estratégia baseada no entrechoque de
pensamentos independentes, de acordo com o que o pensador russo chamou de “poli-
fonia de vozes plenivalentes” (bAkHtin, 1997). De fato, esta não é uma coincidência.
Os pensamentos de Bakhtin e Flusser compartilham referências. Como se sabe, um
dos eixos conceituais de Flusser é a filosofia de Martin Buber, para quem a existência
humana é baseada no diálogo. Além de Buber, Ludwig Wittgenstein e Husserl, que
também aparecem como referência para Flusser, apresentam visões de mundo basea-
das no diálogo.
Este enfrentamento entre consciências plenas de poder, muitas vezes, é radi-
calizado ao máximo pela alternância entre pessimismo e otimismo. O que cria uma
ambiguidade capaz de desorientar qualquer leitor. Mas tal ambivalência é muito sig-
nificativa, pois representa a um só tempo a profunda recusa por determinismos de
qualquer ordem e sua concepção de mundo como uma complexidade inexplicável.
Elaboradas a partir desta estratégia precisamente articulada por Flusser, cada
curva do texto, cada inversão, lança o leitor para fora e o coloca de frente com a ma-
terialidade da escrita e com o caráter argumentativo das ideias apresentadas, abrindo
espaço para geração de suas próprias contra-argumentações, conexões, hipóteses e
conclusões. E, justamente, ao se revelar como estrutura é que o texto libera seu leitor.
A maneira como se estabelecem os conflitos entre ideias aparece como uma estratégia
para dar conta das complexidades e, principalmente, das ambiguidades do mundo to-
mado em sua total complexidade. Situar-se nessas curvas do pensamento flusseriano
é um verdadeiro desafio ao leitor e exige conhecer com certa latitude a genealogia de
tais pensamentos.

o método AnAlítico de flusser

A partir da linha fenomenológica de Husserl e do pensamento sistêmico da ci-


bernética, Flusser desenvolveu um método hábil para reduzir fenômenos complexos
em diagramas conceituais. As estruturas que emergiam em tal processo representa-
vam os pontos pelos quais ele operava suas análises e argumentações de fenômenos
complexos como a organização da sociedade, o contexto político e até modelos epis-
temológicos. Provavelmente, o mais importante diagrama elaborado por ele tenha
sido o da escalada da abstração, que esquematiza a evolução dos códigos comunica-
cionais ao longo da história da humanidade em um modelo conceitual que lhe permi-
tiu articular o conceito de pós-história.
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Suas estruturas, no entanto, são diferentes daquelas do modelo do estrutu-


ralismo em vigor na sua época. Os diagramas conceituais de Flusser são derivados
das teorias dos sistemas complexos em sua vertente informacional: a cibernética,
assim como das teorias quânticas e da termodinâmica. Sabendo da impossibilidade
de incluir em uma única análise toda a complexidade do mundo, tendo em vista
sua existência sistêmica, a abstração do diagrama pareceu a ele a alternativa mais
apropriada. No entanto, graças às heranças do humanismo, ele se desvia da objetivi-
dade, retirando das teorias dos sistemas a frieza e a pureza científica para propor um
modelo de análise cultural, baseado naquilo que é capaz de tocar a essência humana.
(Flusser, Códigos: 16).
Ao mesmo tempo em que a força de sua metodologia analítica ofereceu a pos-
sibilidade de insights iluminadores, ela também abriu caminho para muitos mal-en-
tendidos, principalmente por conta de interpretações literais do que está sendo esque-
matizado. Caso não seja compreendida como diagrama, a escalada da abstração, por
exemplo, pode ser interpretada como algo de completa incoerência. O equívoco mais
generalizado, talvez, tenha sido a repercussão do livro mais conhecido de Flusser:
Filosofia da caixa preta que é tomado por muitos, ainda hoje, como um livro sobre
fotografia e não como uma abordagem filosófica dos aparatos técnicos de mediação.
Como notou Andreas Ströhl (2002: 11), graças à influência de Husserl, Flusser
teve pontos de vista privilegiados que o tornaram radicalmente diferente dos mais co-
nhecidos teóricos dos anos 1970 e 1980, muito influenciados pelo pós-estruturalismo
e pelo marxismo. Fato este que torna difícil classificar seu pensamento dentro das
teorias da mídia. Embora algumas poucas vezes ele pareça se aproximar do filósofo
canadense McLuhan e outras do francês Baudrillard, Flusser sempre se manteve à
parte da história oficial da filosofia. Isso fez com que, por muito tempo, a importância
do seu pensamento fosse circunscrita ao momento histórico específico do alvorecer
dos meios eletrônicos. Sua relevância como filósofo vem sendo descoberta aos pou-
cos. Atualmente, é grande sua influência nos estudos europeus da mídia e da arte,
principalmente em países de língua alemã. No Brasil, embora suas teorias tenham
inspirado muito intelectuais, somente agora estamos tendo acesso às versões em por-
tuguês de textos importantes, necessários para se compreender filosoficamente as
ideias de Flusser.

A sombrA dA noVidAde

“O novo é horrível, não por ser da forma que é e não por ser di-
ferente, mas por ser novo. (…) O novo é horrível e nós mesmos
somos o novo”. (Flusser, 1990: 168 apud ströHl, 2002: 1)

Flusser foi um dos que primeiro a percebeu a importância das tecnologias de


mediação em circunstância de ubiquidade computacional e as decorrentes transfor-
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mações culturais, sociais e políticas que daí despontavam. Mas Flusser foi também
vítima do novo. Não apenas da novidade de sua perspectiva teórico-filosófica, como
mencionado, mas também porque, muitas vezes, seu pensamento foi vinculado aos
discursos ufanistas de pregação de certa revolução tecnológica que tiveram muito
destaque, nos anos 1990 principalmente. Como ressaltou Ströhl, (2000), muitas ve-
zes, Flusser foi tomado como uma figura cult do admirável mundo novo da mídia,
um profeta das tecnologias da informação ou, ainda, um pioneiro radical das novas
tecnologias do microchip, do monitor e do computador.
Grande parte dessa confusão se dá pela própria noção de novo, que pode ser
delimitada a partir de, pelo menos, duas diferentes perspectivas. A primeira trata o
novo como aquele que se opõe ao velho, ao antigo, ao passado, para proferir certa
ideologia da obsolescência. É este conceito de novo que se mantém à frente do ideal
que impulsiona, de uma maneira ou de outra, toda a ideia de modernidade vista em
certos discursos artísticos que ganharam força no século XX e que hoje é reformulada
e deslocada para as campanhas publicitárias das empresas de tecnologia.
Em oposição a esta concepção está aquela disseminada a partir das teorias da
informação, para as quais o novo se opõe não ao velho ou ao obsoleto, mas ao re-
dundante. Segundo esta concepção, algo novo surge de operações feitas dentre algo
conhecido. Estas operações se dão como processos de associações entre dados ou
informações já conhecidas, de modo que destas surja algo da ordem do ainda não
conhecido, do não redundante, da invenção. Tal concepção, assumida nas análises de
Flusser para dar conta do contexto cultural pós-histórico por ele identificado, parte de
uma perspectiva que foge à linearidade causal do pensamento histórico, de modo a
colocar em crise categorias como a do antigo, do velho ou do ultrapassado.
Esta originalidade, que marca não apenas suas teorias, mas também seu estilo
lúdico e dialógico de filosofar, inspira esta pesquisa a olhar para o cenário contempo-
râneo da arte de um ponto de vista particular, entendendo este como um dos poucos
terrenos em que ainda é possível jogar em busca de um diálogo sensível com o outro.
Neste trabalho, em particular, esta maneira de ver a arte contemporânea permite iden-
tificar propostas que expandem o campo formal das imagens e sons produzidos com
meios técnicos para a materialidade do espaço, do corpo, das tecnologias e das redes
de comunicação. Esta, que poderia ser tomada como uma arte dos aparatos técnicos
audiovisuais, reúne uma série de práticas que assumem as tecnologias de mediação
como campo de experimentação em busca de novos regimes de imagem, operando
através de uma especulação criativa incessante que visa, sobretudo, estabelecer ou-
tras políticas de sensibilidade e outras formas de conhecimento.
O capítulo que se segue leva a frente algumas questões referentes justamente
às relações que estas práticas e estes artistas estabelecem com a tecnologia e com a
sociedade. Como o estágio atual de automatização, fetichização e inserção da tecno-
logia no cotidiano, na economia, na sociabilidade impulsionam as práticas artísticas
a se repensar? Como os artistas têm se posicionado em relação a estas questões? De
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que maneira o conhecimento coletivo, os softwares e hardwares livres e as comuni-


dades que instituem ao seu redor reformulam a relação do artista com a tecnologia?
Como a imbricação crescente entre a arte e a tecnologia, entendidos aqui como cam-
pos de conhecimento particulares, com métodos e modos de produção próprios, tem
influenciado as práticas artísticas?
Esta reflexão parte de dois conceitos fundamentais: o de aparato e o de jogo.
O conceito de aparato já acumula uma vasta fortuna crítica e teórica, ainda mais se
pensado em suas aproximações com a concepção de dispositivo que permeia tanto
as discussões sobre o cinema, iniciadas por Jean-Louis Baudry, quanto as discussões
sobre as formas de poder da sociedade contemporânea, conforme apontaram Michel
Foucault e Gilles Deleuze. Já o conceito de jogo, em Flusser, é tomado como base
para pensar uma postura ética diante do estágio atual da cultura, agora baseada em
uma enorme quantidade de imagens, tecnologias e informação. Pensar a arte em uma
sociedade cada vez mais permeada pela tecnologia e pela mídia implica repensar o
lugar assumido pelo artista, seus modos de operação e a maneira como suas práticas
se desdobram no mundo. É justamente esta proposta que sempre esteve presente no
horizonte da investigação apresentada neste livro. Espera-se que as linhas que se se-
guem consigam envolver o leitor nessas instigantes questões, que tanto ocuparam o
imaginário deste pesquisador ao longo do seu percurso.

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