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Para lembrar o que não foi esquecido

Por: João Paulo Pereira do Amaral.


In: Blog Afroiberoameríndio. Revista Iberoamerica Social
Disponível em: https://iberoamericasocial.com/para-lembrar-o-que-nao-foi-esquecido/

Em 2016 foi realizada uma caravana territorial pela bacia do rio doce, organizada por mais de 40
organizações da sociedade civil1 e que reuniu em quatro rotas distintas estudantes, agricultores,
professores, movimentos sociais e gestores públicos ao longo do território impactado pelo desastre-
crime do rompimento, em novembro de 2015, , em Mariana (MG), da barragem de rejeitos de
mineração da Samarco/BhP/Vale. Um dos objetivos da caravana era exercitar um olhar conjunto e
popular através de visitas, intercâmbios, atos públicos, rodas de conversa, reuniões e atos culturais,
situando denúncias e conflitos e anunciando resistências e alternativas ao longo do trajeto.
Este texto apresenta algumas considerações sobre uma das rotas da caravana, que partiu do
epicentro do desastre-crime, Mariana-MG (Alto Rio Doce) em direção a Governador Valadares-
MG. Não pretendo aqui atualizar tudo que tem se dado desde então, mas ressaltar um aspecto
negligenciado: o impacto de desastres e grande projetos de desenvolvimento sobre as referências
culturais das populações atingidas. Para isso faço um breve relato da experiência da caravana à
época.
O percurso da rota teve início com a observação do Complexo de Mineração no Distrito de Antônio
Pereira, incluindo uma vista da Barragem de Germano e do Complexo de Mineração Alegria. Um
dos objetivos era situar o território de Mariana e distritos num histórico de exploração mineral que
remonta à época do Brasil colônia, problematizando a dependência local da atividade e os desafios
na construção de alternativas. Foi realizada uma visita à comunidade Morro da Água Quente, já no
município de Catas Altas-MG, onde foi possível conhecer a luta das mulheres e da ACNASC
(Associação Águas e Nascentes da Serra do Caraça). A luta por direitos e contra os excessos da
mineração no local articula a dimensão local via ACNASC e nacional via MAM (Movimento pela
Soberania Popular na Mineração), com ênfase na implicação particularmente pesada dos impactos
da mineração sobre as mulheres, tanto em termos de sobre-exploração de trabalho como em termos
de soberania alimentar e saúde das famílias.
Chamou a atenção ainda na comunidade Morro da Água Quente a menção constante à ameaça à
memória local e ao uso livre do território, com destaque para construções remanescentes do período
colonial e lugar de referência cultural da comunidade, ameaçado pelas detonações da mina próxima
1
Dentre elas a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO),
a Associação de Geógrafos Brasileiros (AGB), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e o Movimento pela
Soberania Popular na Mineração (MAM); a Universidade Federal do Juiz de Fora, Campus Governador Valadares
(UFJF/GV); Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e a Universidade Federal de Viçosa (UFV).
e o cerceamento da população no uso de nascentes (incluindo a da água quente, que deu nome ao
local) e cachoeiras próximas, tradicionalmente presentes nas gerações anteriores e repletos de
memórias, contos e tradições.

Acesso à nascente que abastece a comunidade de Morro da Água Quente, a poucos metros de onde ocorrem as
detonações da Mina São Luís. Foto: João do Amaral. 11/04/2016.
Curral doa Cabritos. Nome como é conhecido uma estrutura para lavagem de ouro, remanescente dos garimpos na
região ao tempo da colônia e que após abandonada foi utilizada para criação de cabritos. Muito visitada pela população
local tem sido afetada pelas detonações da mina São Luís. Foto: João do Amaral. 11/04/2016.

A comunidade tem sido afetada pela Mina São Luís e luta contra a tentativa de reativação da mina
Tamanduá, ainda mais próxima da comunidade. Nesse contexto, uma moradora ressaltou a
importância da caravana, visibilizando os impactos e promovendo parcerias para a luta:
“Com essa caravana podemos levar nossa denúncia e nossa luta. Não sei se minha filha vai ter
condições de respirar pra falar no meu lugar amanhã. Peço um olhar carinhoso pra nossa luta.
Cansamos de ouvir: vocês não são nada perante a Vale” (Companhia Vale do Rio Doce, uma das
maiores empresas de mineração do mundo).
Foi problematizada a questão da proibição e criminalização do garimpo artesanal, que representou
alternativa autônoma para a comunidade de Catas Altas e Morro da Água Quente décadas passadas,
enquanto assistem à livre operação devastadora da mineração em grande escala.
Questões de gênero estiveram bem presentes nas discussões, com ênfase para a falta de apoio dos
homens às lutas das mulheres, temendo por empregos que não têm. Também a visita à comunidade
de Bento Rodrigues foi feita junto a moradoras. Na visita ao local foi possível perceber que os
imóveis não atingidos foram em grande parte saqueados, com a retirada não só de móveis e
pertences, como até de portas, janelas e esquadrias. As moradoras que nos acompanharam na visita
diziam-se roubadas e não atingidas, uma vez que só funcionários da Vale/Samarco têm tido acesso
ao distrito. Foram, portanto, autores ou omissos em relação aos saques das residências
Casas não atingidas saqueadas em Bento Rodrigues. Foto: João do Amaral. 12/04/2016.

As moradoras foram enfáticas também na discriminação que vêm sofrendo, sendo vistas como
beneficiárias da Vale/Samarco (em razão do auxílio aluguel que recebiam, por exemplo) enquanto
trabalhadoras/es e o comércio de Mariana sofreriam as consequências da interrupção das atividades
da empresa. As moradoras, porém, ressaltaram o fato de não saberem o que fazer após o fim dos
auxílios, possibilitaria a retomada de ofícios e trabalhos exercidos anteriormente e sobre as
diferentes situações de cada morador/a, se proprietário do imóvel ou não. Moradoras que exerciam
atividades relacionadas às suas casas, como cultivos de hortaliças, por exemplo, foram recolocadas
pela empresa em contexto urbano, em apartamentos.
Por fim a visita chamou a atenção pelas menções das moradoras acerca do modo de vida que se
perdeu. Os laços familiares e comunitários (“Hoje tá todo mundo longe, tudo espalhado”, dizia uma
moradora). Neste aspecto mencionavam as hortas, os quintais, o fogão a lenha, as trocas, as
conversas e a incerteza em relação às novas residências, se serão apartamentos, se a comunidade
permanecerá próxima. Também este novo arranjo tem impedido a recolocação ou continuidade de
alguns ofícios, como de algumas mulheres manicures, pedicures, cabeleireiras, que perderam seus
locais de trabalho e clientela, com a desarticulação da comunidade local.
Já a visita à comunidade de Paracatu de Baixo apresentou a agroecologia e a criação de gado
leiteiro em pequena escala como alternativas à mineração na região. Foi visitada a propriedade de
um produtor agroecológico e membro do Conselho de Desenvolvimento Rural de Mariana.
Segundo ele têm sido realizadas reuniões e estudos em parceria (principalmente com EMATER e, à
época, com o MDA), uma espécie de censo rural e que identificou um potencial na região para a
produção de hortaliças, café, cana e para a piscicultura.

Produção agroecológica em Paracatu de baixo. Foto: João do Amaral. 12/04/2016.

Já um membro da associação de produtores de leite da região enfatizou a luta que têm travado para
manter a comunidade, com a destruição quase completa de Paracatu de Baixo. Para tanto, porém a
dificuldade se dá na negociação com as empresas no que diz respeito às características do terreno,
que possibilite a retomada das atividades da comunidade e que permitam a produção e escoamento
adequados da produção local. Mas a dificuldade se encontra também nas referências culturais
locais, em geral negligenciadas em processos do tipo, como a importância do cemitério, das
cavalgadas tradicionais que realizavam, das hortas e pomares.
E junto a isso, mais uma vez questões de gênero foram colocadas. Uma moradora local mencionou
a dificuldade em comprovar que a horta e o pomar de sua casa eram trabalho e fonte de alimentação
saudável para a família, enfatizando a perda de autonomia e qualidade na alimentação (“Meus
filhos nunca tinham comido veneno. Hoje eu tenho que gastar dinheiro pra comprar comida com
veneno”).
Já na comunidade de Gesteira, uma vez mais é exemplar o protagonismo das mulheres na região.
Fomos recebidos pela Associação de Mulheres, que denuncia a priorização da recuperação de
estradas e das propriedades de fazendeiros, deixando as/os demais moradoras/es e pequenas/os
produtoras/es em segundo plano. A comunidade havia sido atingida por forte enchente nos anos
1970, o que faz com que vários moradores não pensem em voltar para a região. Em sua maioria
desejam permanecer juntos, em comunidade, mas em um novo local, mas têm tido dificuldades
junto às empresas na escolha do lugar. Enfatizam a importância da igreja (e particularmente do
adro) e da escola na sociabilidade comunitária, recusando qualquer lugar sem esses espaços
adequados. O desastre-crime destruiu também um salão comunitário que a associação de mulheres
vinha construindo, que objetivava ser um espaço de encontros e reuniões e para a produção de
doces, biscoitos, quitandas e bordados para geração de renda para as mulheres locais.
Na visita à área urbana da cidade de Barra Longa, uma moradora que atua como voluntária nas
ações junto a atingidas/os mencionou com destaque o dano à praça central. A praça, histórica, que
data do século XVIII, foi apontada como ponto importante na sociabilidade local e na conformação
de laços comunitários ao longo do tempo:
“Tinha uma fonte, árvores, bancos. Depois reformaram, ficou mais ampla, as
crianças vinham aprender andar de bicicleta, os casais vinham namorar, os amigos
encontravam aqui. Em volta tinha lanchonetes, restaurantes. Era aqui a festa do
barralonguense ausente, que reunia os moradores que foram embora… Foi, agora
não é mais e não sabemos como vai ser”.
Ressaltou, por fim, o abalo emocional que tem percebido nas/os afetadas/os em sua atuação como
voluntária, mencionando diversas tentativas de suicídio na cidade, tanto na zona rural como na
urbana (mais atingida).
Destacam-se em Barra Longa e Gesteira a importância mencionada dos espaços de sociabilidade, de
criação e consolidação de laços comunitários. As narrativas sobre o adro da igreja de Gesteira e
sobre a praça de Barra Longa, onde mães ensinavam filhas/os a andar de bicicleta, onde casais se
encontravam, onde idosos interagiam, enfatizam que estas questões são muito importantes para a
comunidade e não apenas questões relacionadas aos serviços urbanos, em geral priorizados pelo
poder público e empresas nas negociações.
Portal da praça arrasada de barra Longa. Foto: João do Amaral. 13/04/2016.

Também a região afetada pela construção da represa candonga (hidrelétrica Risoleta Neves) é
ilustrativa sobre os impactos de grandes projetos e desastres sobre as referências culturais locais,
para além da estrutura urbana. No histórico da região destaca-se impacto sobre a comunidade do
Soberbo, removida à época da construção da hidrelétrica, a partir de 2001. O destaque da narrativa
de moradores da região foi o impacto sobre o modo de vida, antes ligado à terra e ao rio e depois,
com a urbanização implementada na Nova Soberbo, já sem espaço para pequenos plantios ou
criações. O resultado foi o aumento, segundo moradores, do alcoolismo, do uso de outras drogas e
da depressão.
Outro destaque é o encontro dos rios Piranga e do Carmo, que dá origem ao Rio Doce e batiza com
esse nome a cidade onde se localiza. O encontro dos rios é Tombado como conjunto paisagístico da
cidade de Rio Doce (Decreto 742/2007), o que fez com que a prefeitura acionasse a Promotoria de
Ponte Nova requerendo providências sobre o rompimento da barragem de Fundão. A importância
cultural do encontro dos rios, por outro lado, já contribuiu também para impedir a instalação de uma
barragem na região, com grande mobilização social à época e uso de ações diretas distintas, desde
um forró de ocupação da margem até máquinas sendo jogadas no rio.
Um dos aspectos centrais da Caravana pela bacia do Rio Doce diz respeito à possibilidade de não
somente mapear, investigar ou comparar, mas de conectar experiências e refletir em conjunto sobre
um repertório compartilhado ou não de experiências. Desde a experiência da ACNASC da
comunidade do Morro da Água Quente, em Catas Altas, até as mobilizações em Barra Longa,
chamam a atenção, por exemplo, as formações políticas descentralizadas, espontâneas, concentradas
em experiências particulares, mas articuladas e conectadas às dimensões mais amplas, tendo em
conta os agenciamentos da geopolítica do capitalismo e suas inúmeras dimensões.
Outro aspecto de destaque é a menção aos aspectos culturais dos impactos do desastre-crime. Além
do aspecto ambiental e material, em geral tematizados, foram destacados os impactos sobre as
condições de existência e dinâmica das tradições e modos de vida. Segundo Costa (2008), uma
inovação da Constituição de 1988 é a expressão direitos culturais, presente no Artigo 215, nunca
antes utilizada no direito constitucional brasileiro. Incorporando a cidadania cultural aos direitos
civis, os direitos culturais vêm sendo invocados crescentemente por diversos grupos sociais que
passam a incluí-los em suas reivindicações políticas (Correa, 2011).
Ainda de acordo com Rodrigo Costa (2008), um pilar dos direitos culturais é a liberdade e o
princípio da atuação estatal é garantir meios para a sustentabilidade das manifestações culturais por
si próprias. Porém, no caso do desastre-crime da Vale/Samarco, há o chamamento do Estado a agir
na defesa e no resguardo das minorias, do patrimônio público, de direitos fundamentais e também
numa situação de violação de direitos culturais (art. 215, § 1º e art. 216 § 2º da Constituição de
1988).
As manifestações e práticas culturais são portadoras de referências importantes na vida de uma
comunidade, daí a necessidade de expressa consulta e participação popular em assuntos que
impliquem interferências sobre o modo de vida da coletividade, o que inclui, evidentemente, as
comunidades afetadas por desastres e grandes projetos. A construção de minas, minerodutos,
ferrovias, portos, poços, dutos, hidrelétricas, linhas de transmissão ou mega estádios de futebol têm
gerado implicações profundas, amplas e duradouras sobre incontáveis comunidades. Desde uma
reordenação fundiária desigual, deslocamentos compulsórios, empobrecimentos, os impactos têm
levado à perda de modos de vida ancestrais, modos de vida mais sustentáveis e autônomos,
alternativos ao modo de vida hegemônico.
O território, nesse processo, se constitui em um importante elo de continuidade e de identidade, mas
também os quintais, os adros das igrejas, as praças públicas, os espaços mais singulares. Não como
elementos fixos que marcam os laços no espaço e no tempo, mas como espaços onde se concentram
e reproduzem práticas culturais coletivas vivas. Neste sentido, ao falar destes espaços, são evocados
menos os aspectos físicos e arquitetônicos e mais as representações sociais associadas às
edificações, as narrativas que se conservam a seu respeito e determinados usos que nelas se
desenvolviam (evidentemente relacionados a espaços físicos adequados). São espaços apropriados
por práticas e atividades variadas, tanto cotidianas quanto excepcionais, tanto vernáculas quanto
oficiais e assim podem ser apontados como lugares focais da vida social das comunidades,
reconhecidos e tematizados em representações simbólicas e narrativas.
Mas também manifestações culturais como as cavalgadas e outras ocasiões diferenciadas de
sociabilidade são mencionadas com destaque, envolvendo a preparação e o consumo de comidas,
bebidas, a produção de um vestuário específico, entre outras coisas. São atividades que participam
fortemente da produção de sentidos específicos de lugar, de território e de comunidade. As menções
à importância negligenciada destes aspectos chama a atenção e revela alguns sentidos e valores
atribuídos por diferentes sujeitos a algumas de suas manifestações e práticas culturais, objetos e
lugares. São elementos e práticas sociais imersas na vida cotidiana, dotadas de um valor referencial
destacado, articulando dimensões estruturantes da vida social e sentidos que constituem o modo de
ser e estar no mundo das comunidades em dinâmicas de transmissão geracional.
Neste sentido, paralelamente aos deslocamentos, às questões territoriais, fundiárias e trabalhistas,
vimos uma expropriação dos recursos culturais e usurpação dos direitos culturais das comunidades
atingidas pelo desastre-crime do rompimento da Barragem de Fundão, das mineradoras
Samarco/Vale/BHP . Por outro lado, tem se desenvolvido uma série de experiências significativas
de resistência e re-existência, ao mesmo tempo criativas e combativas. Território e autonomia se
entrelaçam como elementos indissociáveis de uma luta que não se restringe à reação a um crime,
mas que também tem se marcado como luta por
reconhecimento de modos de existência outros. O que não se reduz, claro esteja, na reivindicação de
uma tradição essencialista, mas a uma tradição dinâmica, processual, que vem se transformando e
atualizando com o passo do tempo e em vínculo profundo com seu território. Em todos os casos de
mobilização que a rota 1 conheceu foi possível perceber uma pauta não só marcada pela
reivindicação de bens e recursos materiais, mas também pela participação livre e autônoma, por
seus laços comunitários, por seu modo de vida, pela cultura que os singulariza.

Referências:

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Texto promulgado em 05 de outubro


de 1988.

CORREA, Alexandre. “Dádiva e utilitarismo nas politicas culturais”. Fenix Revista de história e
estudos culturais. Vol. 8, ano 8, 2011.

COSTA, Rodrigo Vieira. “Cultura e patrimonio cultural na Constituição da República de 1988 – a


autonomia dos direitos culturais”. Revista CPC, São Paulo, n. 6, p. 21-46, maio/out. 2008.

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