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Governo do Estado do Rio Grande do Norte – UERN

Secretaria de Estado da Educação e da Cultura - SEEC


UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN
Pró-reitoria de Ensino de Graduação – PROEG
Campus Avançado Profª. Maria Elisa Albuquerque Maia – CAMEAM
Departamento de Letras Vernáculas - DLV

Resenha
O MUNDO À REVELIA (JOÃO LUIZ LAFETÁ)

Bruno Felipe da Silva

João Luiz Lafetá, em O mundo à revelia, apresenta uma crítica literária sobre São Bernardo, romance
modernista publicado na década de 1930, de autoria de Graciliano Ramos. O ensaio está estruturado
em tópicos/pontos a partir dos quais são explorados aspectos temáticos sequencialmente ordenados no
enredo da obra: 1. Dois capítulos perdidos; 2. A posse de São Bernardo; 3. Madalena; 4. Dínamo
emperrado; 5. Narrativa e busca. Na verdade, em cada qual desses tópicos/pontos, o ensaísta propõe-se
a discorrer sobre os aspectos implicados na narrativa que se interligam e desenrolam-se na construção
da história. Lafetá começa por evidenciar a pretensão do narrador personagem (romance narrado em
primeira pessoa), Paulo Honório, em registrar as memorias sobre sua vida. Os dois primeiros capítulos
da obra, textualmente referidos na titulação do primeiro tópico, constituem uma introdução, a partir do
ponto de vista do leitor, ao mundo do narrador. Isto dito em outras palavras, o narrador personagem,
Paulo Honório, utiliza-se dos dois primeiros capítulos da história para se colocar à vista do leitor, de
modo a indicar o propósito de escrever as suas memórias. Observa-se ai, no plano da narração, um
narrador que regressa ao seu passado para retomar e narrar sua história.

Conforme aponta Lafetá, Paulo Honório, em seu dado intuito de escrever um livro no qual seja
exposta a sua história de vida, delega tarefa a outros que lhe são próximos, já em sua condição
posterior ao desdobramento da história. Algumas são as pessoas por ele designadas para realização da
tarefa, uma em sucessão a outra, dada a rejeição de Paulo Honório às propostas narrativas que estes
lhe apresentam. Ora, um homem rude, grotesco, de demostrado senso autoritário não simpatizara nem
muito menos aceitara os métodos e moldes narrativos apresentados que pela performance de seu gosto
não convergem com seu propósito e nem tão pouco reflete personalidade, pelo extremo requinte. Disso
decorre, pois, a deliberada iniciativa em tomar parte da ação e colocar-se o próprio a escrever. Um
“eu” conciso e direto se impõe então ao leitor, o “eu” narrador que protagoniza e conduz a narrativa
como que um escultor a moldar um objeto, segundo sua pretensão, um personagem dotado de altivez e
autonomia no processo ordenado dos fatos que por ele são expostos. Um protagonista que de fato
protagoniza, ordena e impõe seu estilo, sua marca e sua vontade, legando aos demais papeis
comedidos e dispostos à sua forma e em seu favor, como que peças de um jogo.

Dado este primeiro momento de retratação do personagem narrador Paulo Honório, em se tratando não
do inicio da narração propriamente dita, mas da introdução do seu propósito e da forma pela qual o
viabiliza nos dois primeiros capítulos, Lafetá passa a desdobrar-se sobre o primeiro e desencadeante
fator que se segue aos capítulos primeiros: a posse da fazenda de São Bernardo. Cobrindo de forma
salteada os eventos que abarcam seu período de infância, situações e acontecimentos desfavoráveis,
Paulo Honório narra o essencial. Recuando o tempo, superado o plano de construção estratégica da
escrita, faz regressar o seu passado e com ele a ordem cronológica dos acontecimentos. Num modo
implicante, direto e objetivo, descreve episódios por alto e, numa junção progressiva de elementos
condensa uma série de fatos que ilustram seu itinerário. Donde vem, o João Luiz Lafetá, traçar um
quadro teórico conceitual e de relação entre o que ele chama de “sumário narrativo” e “cena”: o
primeiro, como se sugere, uma exposição mais ampla e panorâmica sobre uma série de fatos que se
sucedem, isto é, uma concisão textual no plano da narrativa e, o segundo, como enquadramento mais
prologando e com detalhamento dos fatos que ora são narrados. Sobretudo nestes capítulos que
seguem os dois primeiros anteriormente mencionados, observa-se esta lógica narrativa ilustrada.

A este quadro todo, então, segue-se as considerações que o ensaísta faz a despeito de percurso por
Paulo Honório percorrido em vistas a possuir as terras de São Bernardo que outrora pertencera ao pai
de Luiz Padilha, já falecido, e que agora é de sua propriedade. Tal como se mostra no texto, Paulo
Honório ambiciona a fazenda e age estrategicamente no proposito de consegui-la, aproximando-se do
seu proprietário e instigando-lhe com aparentes boas intenções, aconselhando e persuadindo Padilha a
investir na administração das terras, oferecendo-lhe para isto empréstimo em dinheiro. Até onde se vê
ai, Paulo Honório que num momento passado viveu uma infância à mercê de condições financeiras
desfavoráveis, agora age, estrategicamente, emprestando o que, já induzia ele, não lhe seria ressarcido
e que corroboraria para sua posse da fazenda. Luiz Padilha, neste sentido, aparece como sujeito
vencido pelo seu descaso, superado e resignado pela figura imponente e operante de Paulo Honório
que, vencido o prazo para pagamento da divida, toma-lhe a fazenda em troca. Graciliano Ramos, ao
que se observa, desenvolve um protagonista enquanto um homem com grande talento e habilidade
para negócios, que sabe se defender, usar estratégias em seu favor, e que se mostra um tanto
diferenciado dos demais homens do sertão, por ter um propósito de vida e por conseguir superar as
mazelas de ordem social e econômica que assolam a região.

Na sequência desse trajeto triunfante de ascensão de Paulo Honório, segue-se, conforme discorrido o
ensaio, o começo do quadro de retratações mais enfáticas e prolongadas em torno das ações
empreendidas e da relação frente a atuação em meio aos outros personagens que passam a tomar mais
protagonismo na obra. E o motivo apontado não é outro, senão a construção de uma escola nas terras
da fazenda de São Bernardo. Paulo Honório até aqui apresenta um discurso narrativo retilíneo, direto e
que conjuga fatores num ponto único que constitui sua força ativa, sua vontade, suas ações vitoriosos e
preponderantes. Aqui, apesar não perder esse protagonismo dominante e determinante, ele passe a
representar mais profundamente os acontecidos e sua relação com os personagens outros da narrativa.
Almeja mais força, poder, influência e reconhecimento. E, por providência dos fatos, num processo
que envolve Luiz Padilha que é por ele reincorporado e que passa a servir entre os seus, e ao se
pretender chegar-se a uma filha de um juiz para toma-la em casamento, conhece uma mulher chamada
Madalena.

Como observado no ensaio, uma mulher prodigiosa e de qualidades reconhecidas que toma lugar na
história a partir de sua entrada em cena para atuação como professora na escola. Nesse meio passo a
outra é retira dos planos de Paulo Honório, que já não a pensa como esposa. E, então, de igual modo,
com a mesma objetividade e ligeireza, vê-se ele a ter Madalena para si, o que o faz triunfante
novamente, como que uma conquista, tal qual de uma nova propriedade. O casamento mais se
assemelha a um negócio favorável a ambos. Ele precisa de uma professora em sua fazenda, e ela talvez
queira segurança financeira. Passa-se um tempo sem que haja qualquer conflito entre os dois; depois, o
ciúme e o sentimento de inferioridade que Paulo Honório sente em relação à sua mulher, afloram.
Honório, um homem grotesco e de pouca educação, se sente atraído pela culta professora de ideias
avançadas. O narrador agora foca mais a cena em si, as dificuldades e os motivos que o levam a se
apossar de Madalena. Segundo destaca Lafetá, Paulo é possessivo e os outros personagens são para ele
como objetos. O mundo gira em seu torno e os fatos concorrem ao seu favor: a isso somos induzidos.

Num outro aspecto agora, um ponto pretendido por Luiz Lafetá em seu ensaio e por ele nomeado de
“dínamo emperrado”, vem-se a fase do pós-conquistas do personagem Paulo Honório. Até ai tudo se
desdobra em seu favor e as coisas acontecem para atenderem aos seus propósitos, um homem que se
faz a cada novo acontecimento, se auto-realiza. O sentimento de propriedade, de pertença, de domínio,
é inerentemente um elemento temático da obra. Esse sentimento denota, de acordo com a abordagem
de Lafetá, um espirito capitalista que é visto como uma força ativa e possuidora, o dínamo, marca o
romance e do Paulo Honório que vive em função do “ter”. Aquele que tudo considera pela proporção
da quantidade. Todavia, Madalena, sua esposa contrasta-se a ela ao pela não aceitação dessa visão de
mundo, portanto a recusa do reificar-se como aponta Luiz Lafetá, o que, por conseguinte, torna-se a
causa dos atritos entre eles de tal forma que Paulo sente-se constrangido, incompreendido,
desmerecido pela mulher que projetou para ser o seu reflexo, um dínamo emperrado. Em
consequência desses fatos todos, então, suicida-se Madalena e a reificação sobressalta, porém o
Honório, o herói que pouco tinha e muito conquistou fica psiquicamente desestabilizado. Isso de tal
modo que a própria composição do romance muda sistematicamente: de rápida a narrativa torna-se
mais lenta; de objetiva passa a ser subjetiva, a incorporar um dilema de conflito que se interpõe agora
no campo dos ideais de vida, dos valores, dos pontos de vistas. Madalena demonstra ao decorrer da
narrativa uma personalidade branda, estável e sensível, até ser levada ao suicídio pelos
desentendimentos e desilusões frente as ações do marido.

Muito a propósito do que vem apontar Lafetá em seu ensaio, a esta altura resta uma reflexão em torno
da figura do protagonista Paulo Honório que já em estado de exaustiva e profunda solidão a que suas
atitudes o levaram, necessário se faz considera-lo em sua densa carga psicológica. Isto é, o narrador
personagem passa aqui a desfechar sua história assumindo o fracasso e o sentimento de amargura
colhido, resultante de tudo que empreendeu. Nisto, podemos dizer que, em termos morais, Paulo
Honório não muda ao longo da história, uma vez que o seu caráter rude e desprovido de grande
emoção é o mesmo do início ao fim.

Há uma alusão que se pode, a partir de uma leitura atenta do romance e também do ensaio ao qual nos
aqui nos referimos, sobre o fato hipotético de Honório representar o capitalismo e Madalena o
socialismo. Talvez até seja um pouco disso, mas também podemos identificar a história pelo conceito
católico de avareza, pecado da alma. Graciliano Ramos era um homem de ideias socialistas e, não se
pode negar, fez refletir isso em sua obra, mesmo que por vias indiretas. Porém, ao meu ver, a história
mostra-se mais universal e menos restrita a um conceito de capitalismo versus socialismo, como se
pode propor. Honório é dominado pela avareza que o entrelaça em ritmo crescente ao longo do
romance. Madalena representa ai, podemos dizer, a magnanimidade da extrema humanidade, quer
dizer, é, por assim dizer, uma antítese quando posta em comparação ao marido. Podemos ser avaros
em relação ao dinheiro e também em relação às pessoas. Paulo Honório é, do início ao final da
história, dominado por um apego excessivo tanto ao dinheiro quanto à sua mulher, o que acabada, a
certo modo, legando-lhe uma vida esvaziada e sem frutos. A narrativa nos revela, em última instância,
a destruição do espírito humano pela dureza de espirito e pela excessiva valorização ao dinheiro, leva-
se ao abandono de todos e, consequentemente, a uma vida de profundo vazio que acaba por reduzi-lo
ao estado no qual se encontra ao narrar sua história.

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