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1
Este texto foi escrito em dezembro de 2012. Críticas construtivas serão muito bem-vindas
(marciosenra@gmail.com.br).
MORAL DISAGREEMENTS, DEMOCRACY AND JUDICIAL REVIEW
ABSTRACT: In the contemporary world, spreads and intensifies the tension between
the quest for the realization of projects of personal life (individuality) and the
pasteurizer trend of society (community). While its origins are timeless, moral
disagreements have grown over the years with the intensification of social commerce,
assuming a position of prominence in political and legal agendas of countries. These
moral disagreements challenge at once the classic Enlightenment state model and the
traditional democratic decision-making process, bringing perplexities to the separation
of powers and the role of institutions. This article briefly investigates the legitimacy of
state intervention in resolving moral disagreements in a democracy with the
characteristics of the Brazilian model.
I. INTRODUÇÃO
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Bem ao oposto, a existência de tensões desse tipo, neste texto identificadas
como desacordos morais, é um problema imemorial da humanidade. Com o passar dos
anos e a intensificação do comércio social, os desacordos morais apenas se ampliam em
dimensão e se intensificam, a ponto de ocuparem, na atualidade, posição de destaque
nas pautas políticas e jurídicas dos países. São absolutamente comuns hoje em dia
manchetes dando conta de decisões tomadas por parlamentos ou por cortes
constitucionais favoráveis ou contrárias a temas polêmicos como o casamento
homossexual 2 , a legalização da maconha 3 , da eutanásia 4 , do aborto 5 , do aluguel de
ventre6 ou da prostituição7, ou a proibição do uso do véu islâmico8.
2
Na Espanha, em 06.11.12, o Tribunal Constitucional declarou constitucional lei que, em 2005, legalizou
o casamento homossexual. Cf. http://g1.globo.com/mundo/noticia/2012/11/tribunal-constitucional-
espanhol-confirma-lei-do-casamento-homossexual.html, acessado em 09.11.12. Nos EUA, os Estados de
Maine e de Maryland aprovaram, em referendo, o casamento gay. Cf.
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/11/121107_referendos_eua_dg.shtml, acessado em
05.11.12.
3
A Suprema Corte da Argentina aprovou, em 25.08.09, o consumo em pequenas quantidades. Cf.
http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,argentina-descriminaliza-uso-de-maconha-em-pequena-
escala,424465,0.htm, acessado em 09.11.12. Nos EUA, os Estados de Washington e do Colorado
aprovaram, em referendo, a legalização da maconha para fins recreativos. Cf.
http://br.reuters.com/article/worldNews/idBRSPE8A600K20121107, acessado em 09.11.12.
4
Bélgica e Holanda legalizaram, em 2002, a prática da eutanásia, sob certas condições. Cf.
http://noticias.terra.com.br/mundo/noticias/0,,OI5694794-EI8142,00-Legalizacao+da+eutanasia-
+faz+dez+anos+na+Holanda+e+na+Belgica.html, acessado em 09.11.12.
5
O Uruguai, em 23.10.12, legalizou a prática do aborto durante as 12 primeiras semanas de gestação e
sob determinadas condições. Cf. matéria veiculada no Correio Brasiliense,
http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/mundo/2012/10/23/interna_mundo,329664/executivo-
promulga-nesta-terca-lei-que-legaliza-aborto-no-uruguai.shtml, acessado em 09.11.12.
6
Na França, a Lei de Bioética de 1994 proibiu completamente a maternidade de substituição, seja
altruística ou comercial. Cf. http://nyujilp.org/the-prohibition-of-surrogate-motherhood-in-france-2/,
acessado em 18.10.12. Na África do Sul, o Children's Act de 2005 admite apenas a modalidade altruística
de maternidade de substituição, vedada a comercial. Cf. http://www.justice.gov.za/legislation/acts/2005-
038%20childrensact.pdf, acessado em 17.10.12.
7
A Corte Constitucional da África do Sul, em 09.10.02, julgou constitucional a lei que criminaliza a
prática da prostituição. Cf. South Africa v. Jordan and Others, CCT 31/01, disponível em
http://www.constitutionalcourt.org.za/site/judgments/Judgments-Summarised-Delivered-1995-2005,
acessado em 07.10.12. A Corte Constitucional da Colômbia, em 13.08.10, considerou a prostituição uma
atividade lícita, e exortou os Poderes Públicos a exercerem suas competências para proteger efetivamente
os direitos das prostitutas. Cf. Sentença T-629/10, disponível em
http://www.corteconstitucional.gov.co/RELATORIA/2010/T-629-10.htm, acessado em 17.11.11.
8
A lei que proíbe o uso do niqab e da burca entrou em vigor na França em abril de 2011. Cf.
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/04/110411_lei_veu_franca_bg.shtml, acessado em
12.10.11.
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Pluralismo, em síntese, é um conceito que reflete tanto a diversidade de escolhas à
disposição dos indivíduos quanto a correlativa necessidade de sua harmonização para
viabilizar-se a vida em sociedade.
9
MOUFFE, Chantal. “Democracia, cidadania e a questão do pluralismo.” In: Política & Sociedade.
Volume 02, Número 03, 2003, pp. 11-26. Disponível em
http://journal.ufsc.br/index.php/politica/article/download/2015/1763, acessado em 24.10.12, p. 11.
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indivíduos, e de suas respectivas opções, para o fim de viabilizar-se a vida em
sociedade. Explica-se.
10
Cf. RAWLS, John. Justiça e democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. IX: “(...) Uma sociedade
democrática moderna se caracteriza por uma pluralidade de doutrinas abrangentes, religiosas,
filosóficas e morais. Nenhuma dessas doutrinas é adotada pelos cidadãos no seu conjunto. E não se deve
esperar que isso aconteça num futuro previsível. O liberalismo político pressupõe que, por razões
políticas, uma pluralidade de doutrinas abrangentes incompatíveis entre si é o resultado normal do
exercício pelos cidadãos de sua razão no seio das instituições livres de um regime democrático
constitucional.”; BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 07: “Do ponto de vista sociológico, duas das características mais
marcantes das sociedades contemporâneas nos últimos cinquenta anos são o aprofundamento da
complexidade das relações humanas em seus vários níveis e, em certa medida como uma decorrência
desse primeiro fato, a crescente pluralidade existente dentro das sociedades.”; e BARROSO, Luís
Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do
novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 346: “(...) Atente-se, porém, que as diferentes categorias da
nova interpretação, estudadas neste capítulo, não são a causa da insegurança. Justamente ao contrário,
procuram elas lidar racionalmente com as incertezas e angústias da pós-modernidade ― marcada pelo
pluralismo de concepções e pela velocidade das transformações ― e de uma sociedade de massas, de
riscos e de medos.”
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Basicamente, pelo incremento da frequência e da complexidade das relações
humanas. Isto é, pela intensificação do comércio social, decorrente da aceleração e do
aprofundamento do processo de globalização11, e pela introdução de novos aspectos na
realidade, decorrentes, v.g., da evolução da tecnologia e da medicina, do surgimento de
novas questões no campo da bioética e do desenvolvimento de novas ciências, como a
informática ― todos esses fenômenos verificados a partir da segunda metade do século
XX.
“Seu Cristo é judeu. Seu carro é japonês. Sua pizza é italiana. Sua
democracia, grega. Seu café, brasileiro. Seu feriado, turco. Seus
algarismos, arábicos. Suas letras, latinas. Só o seu vizinho é estrangeiro.”
11
Cf. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11ª edição. Rio de Janeiro: DP&A, 2011,
p. 68: “Lembremos que a globalização não é um fenômeno recente: ‘A modernidade é inerentemente
globalizante’ (Giddens, 1990, p. 63). (...) Entretanto, geralmente se concorda que, desde os anos 70,
tanto o alcance quanto o ritmo da integração global aumentaram enormemente, acelerando os fluxos e
os laços entre as nações.”
12
Cf. BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vechi. Tradução: Carlos Alberto
Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, pp. 33-34.
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estruturas tradicionais não são permeáveis a novos conteúdos e, por isso, não se prestam
a acomodar o vasto cardápio de novas identidades que se abre com o pluralismo. O
papel do Estado precisa ser redefinido, para que ele possa fazer frente ao dinamismo e à
volatilidade das relações humanas13.
13
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001,
passim.
14
A hipermodernidade de Lipovetsky apresenta as mesmas características da modernidade líquida de
Bauman. Confira-se: “Hipermodernidade: uma sociedade liberal, caracterizada pelo movimento, pela
fluidez, pela flexibilidade; indiferente como nunca antes se foi aos grandes princípios estruturantes da
modernidade, que precisaram adaptar-se ao ritmo hipermoderno para não desaparecer.”
(LIPOVETSKY, Gilles e CHARLES, Sébastien. Os Tempos Hipermodernos. São Paulo: Barcarolla,
2005, p. 26)
15
Cf. BANAKAR, Reza. “The Sociology of Law: From Industrialisation to Globalisation.” In: University
of Westminster School of Law Research Paper No. 11-03. Sociopedia.isa, 2011, pp.23-24. Disponível em
http://ssrn.com/abstract=1761466, acessado em 17.09.12: “The societal implications of globalization –
including the emergence of transnational forces, transformation of the state, social diversification of
societies, growing cultural hybridization, increased uncertainty and liquefaction, etc. – is the broader
social context against which all socio-legal research pertaining to contemporary society should be
conducted (cf. Twining, 2007). The solidity and timeless appearance of early modernity offered an
ostensibly durable foundation for building relationships based on trust, social certainty and stability,
while providing a rational basis for social engineering and reform. These solid structures are now
undermined by the ‘endlessly shifting diversity of interests, values, projects and commitments of
individuals’ (Cotterrell, 2006a: 66). SL’s scope of analyses, concerns and debates can no longer be
restricted to Europe and North America, where the subject originated and continues to flourish (cf.
Gessner and Nelken, 2007). We have to recognize non-western legal systems beyond Europe – many of
which are deeply conscious of their pluralistic make-up (Menski, 2007: 189). In addition, the expansion
of multiculturalism requires us to take heed of various cultural and religious practices within Western
European societies, some of which are considered legal by those who practise them, or considered to
have legal implications by authorities. This means that law and legality should be perceived and
conceptualized comparatively to account for the interactions between different legal traditions and
cultures (Twining, 2000: 255). Perhaps most importantly, we need to consider the possibility that many of
our ideas, concepts and theories are historically and culturally conditioned by the recent experiences of
western modernity and, subsequently, fail to note the essential characteristics of social order in non-
western contexts.”
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A crescente judicialização de demandas envolvendo questões existenciais,
intimamente ligadas ao desenvolvimento da personalidade humana, confirma, com
inegável valor empírico, o acentuado pluralismo que, com as características bosquejadas
acima, marca as sociedades contemporâneas; confirma, ainda, a falha das instâncias
políticas na tarefa de apaziguar conflitos dessa ordem, seja por inépcia de ação ou por
omissão16.
16
Exemplos colhem-se dos mais diversos contextos sociais, representados por decisões emanadas de
Cortes Constitucionais: liberação do aborto, nos EUA, do consumo de maconha, na Argentina, da união
homoafetiva, no Brasil, da prostituição, na Colômbia, proibição da fixação de crucifixos em prédios
públicos, na Alemanha etc.. Para um inventário bem atual dos casos mais relevantes, vide BARROSO,
Luís Roberto. “’Here, there and everywhere’: human dignity in contemporary law and in the transnational
discourse.” Boston College International and Comparative Law Review. Vol. 35, número 2, 2011.
Disponível em http://ssrn.com/abstract=1945741. Acesso em 19.11.11.
17
RAWLS, John. O direito dos povos. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp.173-174. No mesmo sentido,
BARROSO, Luís Roberto. “Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil
contemporâneo.” Revista Jurídica da Presidência. Volume 12, número 96, p. 25: “Além dos problemas de
ambiguidade da linguagem, que envolvem a determinação semântica de sentido da norma, existem,
também, em uma sociedade pluralista e diversificada, o que se tem denominado de desacordo moral
razoável. Pessoas bem intencionadas e esclarecidas, em relação a múltiplas matérias, pensam de
maneira radicalmente contrária, sem conciliação possível. Cláusulas constitucionais como direito à vida,
dignidade da pessoa humana ou igualdade dão margem a construções hermenêuticas distintas, por vezes
contrapostas, de acordo com a pré-compreensão do intérprete. Esse fenômeno se revela em questões que
são controvertidas em todo o mundo, inclusive no Brasil, como, por exemplo, interrupção de gestação,
pesquisas com células-tronco embrionárias, eutanásia/ortotanásia, uniões homoafetivas, em meio a
inúmeras outras.”
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longo. Contudo, tratando-se de desacordo moral razoável, o dissenso persistirá, não
importa o quão aberta e longa seja a discussão sobre o tema18.
18
MCMAHON, Christopher. Reasonable disagreement: a theory of political morality. Cambridge:
Cambridge University Press, 2009, p. 2.
19
Cf. TERSMAN, Folke. Moral disagreement. New York: Cambridge University Press, 2006, pp. 63/81.
Segundo o Professor de Filosofia da Universidade de Estocolmo, em suma, o argumento realista, segundo
o qual questões morais possuem uma resposta objetivamente correta, não sobrevive ― mesmo após
temperadas possíveis ambiguidades de objeto e de discurso ― ao argumento da inacessibilidade
epistêmica da verdade moral.
20
Em exagero retórico, qualquer resposta crítica para uma posição filosófica moral poderia ser
classificada ou como um “ah, e?” ou como um “e daí?”. Cf. STURGEON, Nicholas. “What diference
does it make wheather moral realism is true?” Southern journal of philosophy 24 (suppl.) (1986), 115-
141, 115. Apud: TERSMAN, Folke. Moral disagreement. New York: Cambridge University Press, 2006,
p. 43.
21
NINO, Carlos Santiago. Fundamentos de derecho constitucional: análisis filosófico, jurídico y
politológico de la prática constitucional. 3ª reimpresión. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2005, pp. 164-
165.
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Os princípios morais distinguem-se em dois tipos: heterorreferentes e
autorreferentes. Os heterorreferentes valoram condutas por seus efeitos sobre os
interesses de outros indivíduos, e os autorreferentes as valoram por seus efeitos sobre a
vida ou o caráter do próprio indivíduo. Embora incida sobre ambos, a autonomia moral
pode sofrer restrições apenas quando envolver princípios morais heterorreferentes,
sendo isso vedado quanto aos autorreferentes. A vedação decorre do princípio da
autonomia pessoal ― uma derivação liberal mais específica da autonomia moral que
não admite interferências na livre eleição de ideais de excelência pessoal22.
22
NINO, Carlos Santiago. Fundamentos de derecho constitucional: análisis filosófico, jurídico y
politológico de la prática constitucional. 3ª reimpresión. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2005, pp. 164-
165.
23
O Estado não deve assumir uma concepção de vida boa, isto é, “escolher um lado”, e o Direito só deve
atuar quando estritamente necessário para prevenir danos, em respeito ao princípio da autonomia privada.
Cf. NINO, Carlos Santiago. Introdução à análise do direito. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2010, pp. 494-496 e 503. No mesmo sentido, BARROSO, Luís Roberto. “Constituição, democracia e
supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo.” Revista Jurídica da Presidência.
Volume 12, número 96, p. 25: “(...) Nessas matérias [desacordos morais razoáveis], como regra geral, o
papel do direito e do Estado deve ser o de assegurar que cada pessoa possa viver sua autonomia da
vontade e suas crenças. Ainda assim, inúmeras complexidades surgem, motivadas por visões filosóficas e
religiosas diversas.”
24
Em sentido contrário, GUTMANN, Amy and THOMPSON, Dennis. Why Deliberative Democracy?
New Jersey: Princeton University Press, 2004, pp. 230-272. Para os autores, da comparação entre o
princípio da liberdade em John Stuart Mill e o conceito de liberdades básicas na constituição da
democracia deliberativa, decorreria a possibilidade de acomodação de demandas moralistas e
paternalistas neste último, desde que respeitada a integridade pessoal.
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A clássica configuração dos três Poderes do Estado, inspirada nas ideias
iluministas assentadas por Montesquieu, Locke e Rousseau, vem sofrendo intensas
modificações e adaptações no curso do constitucionalismo democrático, sobretudo a
partir da segunda metade do século XX, após o final da 2ª Guerra Mundial.
25
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais
e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 243-245.
26
Não há espaço aqui para tratar-se do neoconstitucionalismo e de suas distinções com relação ao pós-
positivismo. Certamente, os termos não são sinônimos. Há vasta literatura sobre o tema, como, v.g.,
CARBONELL, Miguel (Editor). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta; 2003; e QUARESMA,
Regina, OLIVEIRA, Maria Lúcia de Paula e OLIVEIRA, Farley Martins Riccio de (Coordenadores).
Neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
27
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais
e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 247-261.
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desenvolvimentos, cai por terra o mito iluminista de que o juiz apenas declara o sentido
supostamente unívoco contido no texto legal, sem qualquer papel criativo na
formulação da norma aplicável ao caso concreto28.
28
Cf. SARMENTO, Daniel. “O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades.” In:
SARMENTO, Daniel (Coordenador). Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2009, p. 118: “De poder quase ‘nulo’, mera ‘boca que pronuncia as palavras da lei’, como
lhe chamara Montesquieu, o Poder Judiciário se viu alçado a uma posição muito mais importante no
desenho institucional do Estado contemporâneo”. Cf. ainda BARROSO, Luís Roberto.
“Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no
Brasil.” In: Temas de direito constitucional. Tomo IV. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p.12: “Com o
avanço do direito constitucional, as premissas ideológicas sobre as quais se erigiu o sistema de
interpretação tradicional deixaram de ser integralmente satisfatórias. Assim: (i) quanto ao papel da
norma, verificou-se que a solução dos problemas jurídicos nem sempre se encontra no relato abstrato do
texto normativo. Muitas vezes só é possível produzir a resposta constitucionalmente adequada à luz do
problema, dos fatos relevantes, analisados topicamente; (ii) quanto ao papel do juiz, já não lhe caberá
apenas uma função de conhecimento técnico, voltado para revelar a solução contida no enunciado
normativo. O intérprete torna-se co-participante do processo de criação do Direito, completando o
trabalho do legislador, ao fazer valorações de sentido para as cláusulas abertas e ao realizar escolhas entre
soluções possíveis.”
29
Vasta literatura sugere que os sintomas da chamada crise de representatividade são comuns aos
diversos países que adotam o regime democrático. Exemplificativamente, com relação aos países andinos:
cf. MAINWARING, Scott, BEJARANO, Ana María and LEONGÓMES, Eduardo Pizarro (Editors). The
crisis of democratic representation in the Andes. California: Stanford University Press, 2006; à Europa:
HAYWARD, Jack (Editor). The crisis of representation in Europe. West European Politics Series.
London: Routledge, 2012; e à África: OSEI, Anja. Party-voter linkage in Africa: Ghana and Senegal in
comparative perspective. Konstanz: Springer VS, 2012.
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A expansão da jurisdição constitucional é associada à onda de novas
Constituições surgidas após o término da 2ª Guerra Mundial. Superando o modelo até
então vigente, de centralidade da lei e supremacia do parlamento, o novo modelo é
calcado na supremacia da Constituição e na consagração de uma pauta expressa de
direitos fundamentais, cuja aplicação irradia-se sobre todo o ordenamento jurídico, e é
confiada ao Judiciário. Por conseguinte, ocorre a criação de tribunais constitucionais
onde ainda não os havia. No Brasil, além dos fatores acima, a jurisdição constitucional
também foi incrementada por conta de nosso peculiar sistema misto de controle de
constitucionalidade ― que conjuga os modelos norte-americano (concreto e difuso) e
austríaco (abstrato e concentrado) ―, pela criação de diversas ações objetivas e pela
ampliação do direito de propositura no controle abstrato 30 . Afora esses fatores
diretamente incidentes sobre o Poder Judiciário, também se atribui à crise de
representatividade democrática parcela de responsabilidade pela expansão da jurisdição
constitucional31.
30
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais
e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 263-265.
31
BARROSO, Luís Roberto. “Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil
contemporâneo.” Revista Jurídica da Presidência. Volume 12, número 96, Brasília: fevereiro/maio de
2010, p. 7.
32
BARROSO, Luís Roberto. “Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio
do direito constitucional no Brasil.” In: Temas de direito constitucional. Tomo IV. Rio de Janeiro:
Renovar, 2009, pp.61/119.
33
HIRSCHL, Ran. “The judicialization of politics.” In: WHITTINGTON, Keith E., KELEMEN, R.
Daniel and CALDEIRA, Gregory A.. The Oxford handbooks of law and politics. New York: Oxford
University Press, 2008, pp. 119-141.
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expansão do papel de juízes e cortes na determinação dos resultados de políticas
públicas e a atribuição de confiança ao Judiciário para resolver questões de “mega-
política” ― assim compreendidas as principais controvérsias políticas que definem e
frequentemente dividem os Estados. Para o fim aqui proposto, é de se destacar como
ocorre esse terceiro processo.
34
No mesmo sentido, vide BARROSO, Luís Roberto. “Constituição, democracia e supremacia judicial:
direito e política no Brasil contemporâneo.” Revista Jurídica da Presidência. Volume 12, número 96,
Brasília: fevereiro/maio de 2010, pp. 5-9. Barroso acrescenta que, no Brasil, a judicialização foi
incrementada por conta de dois fatores: o modelo de constitucionalização abrangente e analítica e o
sistema misto de controle de constitucionalidade.
35
BARROSO, Luís Roberto. “Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil
contemporâneo.” Revista Jurídica da Presidência. Volume 12, número 96, Brasília: fevereiro/maio de
2010, pp. 9-11.
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A mudança do paradigma jurídico-filosófico, a crise do parlamento, a
expansão da jurisdição constitucional, a constitucionalização do direito, a judicialização
da política e o ativismo judicial promoveram, de modo sinérgico, a ascensão do Poder
Judiciário no Estado contemporâneo.
36
Esta análise é meramente descritiva, sem qualquer aplauso. O “papel criativo” decorre da nova
dogmática pós-positivista, e a “vocação” relaciona-se à atuação no vácuo do Legislativo.
37
LÜCHAMNN, Lígia Helena Hahn. “A representação no interior das experiências de participação.” In:
Lua Nova, São Paulo, n. 70, pp. 139-170, 2007. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/ln/n70/a07n70.pdf. Acesso em 17.11.12, p. 143: “Por outro lado, a democracia
deliberativa vai dar centralidade à questão da participação com base em uma nova concepção acerca da
legitimidade política. Acusando as fragilidades da democracia representativa e a redução da
Página 15 de 25
“... forma de governo na qual cidadãos livres e iguais, e seus
representantes, justificam suas decisões num processo no qual apresentam
uns aos outros razões que são mutuamente aceitáveis e geralmente
acessíveis, com o objetivo de chegar a conclusões que vinculem no presente
a todos os cidadãos, mas que estejam abertas a reapreciação no futuro.”
Página 16 de 25
Por essa característica, afigura-se muito interessante investigar como esse
modelo encara o controle judicial de constitucionalidade das leis, pois certamente daí
surgirão razões reforçadas para justificar a atuação da jurisdição constitucional no
Estado contemporâneo. Com esse intuito, serão analisadas, a seguir, as opiniões de dois
autores que defendem a democracia deliberativa.
41
As ideias expostas nos parágrafos seguintes foram integralmente resumidas das seguintes obras:
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de Souza. “Deliberação pública, constitucionalismo e cooperação
democrática.” In: SARMENTO, Daniel (Coordenador). Filosofia e teoria constitucional contemporânea.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, pp. 79/112; e SOUZA NETO, Cláudio Pereira de Souza. Teoria
constitucional e democracia deliberativa: um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições
para a cooperação na deliberação democrática. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 178/189.
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parlamentares e até mesmo contra elas, e incrementando o potencial racionalizador da
deliberação pública ― sem, contudo, avançar na seara própria da soberania popular.
42
As ideias expostas nos parágrafos seguintes foram integralmente resumidas da seguinte obra: NINO,
Carlos Santiago. Fundamentos de derecho constitucional: análisis filosófico, jurídico y politológico de la
prática constitucional. 3ª reimpresión. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2005, pp. 673-706.
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A primeira exceção admite a possibilidade de a jurisdição constitucional
atuar na supervisão do procedimento democrático. Nesse caso, os juízes agem como
controladores das regras do jogo, assegurando as condições para o funcionamento ideal
da democracia, sob a justificativa de que, na ausência dessas condições, o processo
deliberativo perde seu valor epistêmico, e também sua primazia decisória. Inviabilizado
assim o procedimento majoritário, perde sentido o argumento contramajoritário.
Sem que essas condições estejam presentes, por mais que um governo se
autodenomine democrático, não subsistem razões epistêmicas para que se privilegie o
resultado do processo político, justificando-se a atuação ampla da jurisdição
constitucional. O argumento contramajoritário perde seu fundamento de validade, pois o
processo majoritário está viciado, e deve ser corrigido.
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por seus efeitos sobre os interesses de outros indivíduos que não o agente, e os
autorreferentes, que valoram uma ação ou atitude pelos efeitos sobre a própria vida ou
caráter do agente.
43
Conforme exposto acima, no item “II. Pluralismo e identidade no século XXI”, pp. 5-8.
44
Como o eu-lírico da música “Humanos”, em epígrafe.
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moralmente superiores, ou por razões comunitárias (no sentido de que ele tenha que se
adequar ao projeto de vida e às escolhas da maioria) ―, isso fará com que se sinta um
pária social, ao qual se denegou igual consideração e respeito, e também liberdade.
Nesse quadro, a cooperação democrática simplesmente não existirá.
VI. CONCLUSÃO
VII. BIBLIOGRAFIA
________. “’Here, there and everywhere’: human dignity in contemporary law and in
the transnational discourse.” Boston College International and Comparative Law
Review. Vol. 35, número 2, 2012. Disponível em http://ssrn.com/abstract=1945741.
Acesso em 21.10.12.
45
A correção refere-se ao emprego de técnicas de decisão, como a interpretação conforme à
constituição, a exemplo do que ocorreu, v.g., na extensão dos efeitos da união estável às
relações homoafetivas (ADPF 132/RJ; ADI 4.277/DF) e na autorização para a interrupção da
gravidez de fetos anencéfalos (ADPF 54/DF). A tutela do exercício da autonomia privada tem
em mente, por exemplo, a possibilidade de manuseio de sentença aditiva em sede de controle
concentrado, ou da formulação da norma aplicável ao caso concreto na via do mandado de
injunção, viabilizando a fruição dos ideais de vida livremente escolhidos. Neste caso, a
jurisdição constitucional também não se intromete na eleição dos ideais de excelência pessoal,
mas assegura que o Estado e a sociedade respeitem a opção formulada.
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Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
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