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Ainda que se tente relacionar cada episódio do c  de Kieslowski a um dos


mandamentos cristãos, tais relações nunca passarão de hipóteses dignas de desconfiança. Se
seguirmos a sequência dos mandamentos, este episódio seis corresponderia ao ͞não
cometerás adultério1͟, mas se se pode dizer que o Decálogo é inspirado nos dez mandamentos
cristãos, provavelmente esta inspiração não produz resultados dos mais óbvios. Não há aqui,
no episódio seis, um discurso sobre o adultério, mas a história de Tomek, um garoto que nutre
uma paixão platônica por Magda, uma linda mulher mais velha que ele, sua vizinha da frente.

O que se pode supor é somente uma espécie de ironia por parte do Kieslowski, que pode ser
detectada também nos outros episódios do c . Ou talvez, mais que ironia, uma forma
de abordar a sua pouca crença nos mandamentos diante de uma sociedade moderna que tem,
a cada dia, seus valores corrompidos. Para tanto nada melhor que construir pequenos dramas
em torno de temas como o amor, a compaixão, a culpa e o medo, por exemplo, quase sempre
de modo trágico e triste, melancólico, nas quais questões de ordem moral estão sempre
presentes. Mais importante que desvendar este enigma é atentar para o fato de que não se
trata nunca de inspirar-se em mensagens cristãs, mas de desconstruí-las ao falar de temas
relacionados à natureza humana. O que se sabe bem sobre o episódio seis, independente de
qual o mandamento seis ele se refere, é que se trata de um filme sobre a natureza do amor e
da solidão.

Œ
  

aomo já se viu nos episódios anteriores (e será visto também nos posteriores), o c  

tem como eixo um núcleo de três personagens2, sendo que dois são os protagonistas e o outro
serve como uma espécie de apoio. No caso deste episódio, a trama está centrada em Tomek,
um garoto que trabalha na agência de correios do bairro, e Magda, uma artista plástica, e o
terceiro personagem é a senhora com quem Tomek vive. Logo na primeira cena do filme é
possível estabelecer uma relação entre Tomek e Magda pelo modo como este olha para ela

1
Do original em polaco: ͞Nie cudzołóż͟, que dá título ao episódio. Porém existe outra possibilidade para
o mandamento seis: ͞Não pecarás contra o adultério͟.
2
Este recurso se repete em quase todos os episódios, e é mais explícito no episódio cinco. A exceção
encontra-se apenas nos episódios quatro e oito.
quando a atende na agência de correios. Seu olhar de admiração e contemplação diante da
mulher é a primeira informação que tem o espectador sobre a natureza dos sentimentos de
Tomek em relação à Magda.

Numa sequência de menos de cinco minutos no início do filme, o conflito se estabelece:


Tomek espia Magda todas as noites pela janela do seu apartamento, com uma luneta, e nutre
por ela uma paixão platônica. Nesta sequência em especial, há uma montagem de Tomek
roubando uma luneta em algum lugar desconhecido, e de Magda em casa mexendo em suas
pinturas, comendo, enfim, fazendo suas atividades cotidianas. Por mais que neste momento
ainda não saibamos que Tomek espia Magda, o ângulo através do qual a vemos em seu
apartamento é um ângulo de quem espia ʹ a câmera se move em panorâmica, a partir de um
ponto específico, que logo depois será possível relacionar ao ponto-de-vista do próprio Tomek
e de sua luneta.

O episódio seis do c  é guiado pelo ponto-de-vista de Tomek. Afora o fato de muitas
vezes só enxergarmos Magda através da sua luneta, até mais ou menos a metade do filme
tudo o que sabemos sobre ela é através dele. Ela é artista plástica porque ele a vê pintando
quadros no seu quarto. Ela tem um namorado que lhe visita frequentemente e com quem
parece ter uma relação profissional e conturbada. Além disso, ela toma muito leite. Por outro
lado, tudo o que se sabe de Tomek tem relação com seu ͞amor͟ por Magda. Tomek trabalha
na agência de correios, lugar para onde atrai Magda com falsos avisos de recebimento de
crédito, somente para poder vê-la de perto. Tomek parece afeito a esses comportamentos
infantis, como quando, ao ver que Magda está em casa com o namorado, liga para o corpo de
bombeiros e inventa que há um vazamento de gás na casa dela, apenas para atrapalhar o
encontro dos dois. Quando consegue fazê-lo, ri como uma criança. Uma sequência que mostra
este tipo de atitudes de Tomek em relação a Magda dão conta de explicar que há, por parte
dele, um deslumbramento por ela, tratado de modo infantil. Não se vê nada da vida de Tomek
que não tenha a ver com Magda, é como se ele não tivesse uma vida para além de observá-la
de todas as formas que pode.

Essa dicotomia entre o infantil e o adulto é o que marca a relação construída entre esses dois
personagens. Quando Tomek confessa a Magda que a espia da janela do seu quarto, sua
reação imediata é rechaçá-lo com raiva e mandá-lo embora, mas seu olhar em direção a
Tomek, quando este vai embora desolado, é de curiosidade, de intriga. Logo as reações de
Magda variam entre o deboche e a vaidade, o que fica claro na sequência em que ela arma
toda uma cena de amor entre ela e o namorado somente para que Tomek assista ʹ o que
culmina num confronto cara-a-cara entre o menino e o namorado de Magda. Ela parece
satisfeita em ver seu homem tomando satisfação do ͞mocinho tarado͟. Na manhã seguinte
Magda muda de abordagem com relação a Tomek. Quando este aparece na porta da sua casa
para entregar o leite, ela varia entre o deboche e a sedução: convida o garoto para entrar em
sua casa e, quando da sua resposta negativa e da afirmação de que a ama, ela dá um sorriso
irônico e pergunta: ͞Mas o que você quer? Que nos beijemos, que façamos amor?͟ Nervoso e
desconcertado, Tomek reafirma que a ama, mas acrescenta que não quer nada dela. Magda a
olha como quem olha para uma criança, com uma espécie de ternura, e ele a olha como a
alguém que não pode olhar. O tal do amor que Tomek afirma sentir tem relação somente com
o deslumbramento, o encantamento por uma mulher linda e mais velha. Mas o discurso que o
filme põe em cena a partir da personagem de Magda questiona a natureza desse amor cheio
de deslumbramento. Na primeira vez que Tomek vai entregar o leite na casa de Magda, olha
para ela vestida numa camisola com certo desconcerto antes de desviar o olhar. O mesmo
aconteceu quando ele a observava aos beijos com o namorado, que colocava a mão dentro da
sua calcinha. Quando o ponto de vista da narrativa passa a ser guiado também por Magda,
vemos Tomek, apesar de dizer repetidas vezes que não quer nada dela, sendo obrigado, por
exemplo, a assumir que se masturbava ao observá-la pela luneta. O contraste que existe entre
a visão idealizada, infantil do amor de Tomek e a visão desgostosa e amargurada de Magda é o
que dá o tom deste filme.

Há algumas pistas mais sobre esse contraste entre o amor infantil e o amor adulto. O próprio
discurso de Magda sobre o amor não existir e seu deboche com relação ao suposto amor de
Tomek estão presentes nas três sequências em que os dois se encontram. Enquanto
conversam na mesa do restaurante, Magda fala com tristeza sobre um relacionamento
amoroso passado, logo depois de afirmar com veemência com o amor não existe, ao que
Tomek responde ͞existe, sim!͟. O diálogo estabelecido entre os dois nesta sequência dá
informações sobre como suas vidas são solitárias. Enquanto Magda é construída como uma
mulher desgostosa e amargurada quando o assunto é relacionamentos amorosos, Tomek é um
garoto órfão e que não tem amigos (apenas um, mas que mora em outro lugar), e que gosta de
aprender idiomas. Os diferentes tipos de solidão são aqui delineados, o que será importante
para entender as ações futuras dos personagens.

A senhora com quem Tomek vive, mãe do seu único amigo, acaba por completar esse rol de
personagens solitários. A construção desta personagem relaciona-se tanto com o discurso do
amor como o da solidão. No início do filme, ela repentinamente pergunta a Tomek se ele tem
namorada e começa a dar-lhe conselhos sobre como tratar as moças. ͞Elas podem parecer
gostar de fazer tudo rápido, mas a verdade é que gostam que os rapazes sejam amáveis͟. Esta
visão contrasta com a de Magda, que vê o amor como nada mais que sexo, que desejo,
enquanto que o amor, visto por Tomek, não é sexo ou desejo ou mesmo um relacionamento
afetivo, mas o deslumbramento, o encantamento, o fato de o objeto de afeição (mesmo que
seja, em algum momento, objeto de desejo) só existe porque é intocável. Apesar de, neste
filme, o amor ser visto por cada personagem de modo diferente, todas estas visões parecem
surgir da solidão ou do medo da solidão.

Enquanto que a solidão de Magda e de Tomek é mostrada de modo mais sutil, com
informações jogadas aqui e ali pelos diálogos e pela montagem (especialmente as primeiras
sequências do filme, onde acompanhamos Tomek vivendo em função de Magda), a senhora
fala sobre o assunto de forma direta ao final do filme. Quando Magda vai ao seu apartamento
à procura de Tomek, a senhora lhe fala sobre como cuida do rapaz e como sente falta do seu
filho, que já não quer ficar perto dela. ͞Tenho medo de ficar sozinha͟, ela diz, ao que Magda,
desconcertada, deixa o apartamento. Pela construção dos personagens, o medo da solidão não
atinge somente àquela senhora, mas também Magda.

^  

Existe um esforço muito claro em criar um ambiente melancólico e triste ao redor dos
personagens. Em todo o c  a música é um dos principais recursos para causar esse
efeito no espectador, e no episódio seis ele se destaca. Em quase todas as cenas nas quais
Tomek observa Magda pela luneta entra essa música melancólica, bonita de tão triste, que
permite que o espectador se junte à Tomek nessa contemplação. A mesma música toca em
momentos nos quais Magda está sozinha e desolada, aparentemente triste, e muitas vezes ela
invade o silêncio das cenas (porque a maior parte do filme não tem música e os ruídos são
mínimos, dando um destaque notável à música). Por exemplo, no diálogo entre Tomek e
Magda na porta da casa dela, toda a cena é construída sem música, mas ela entra no momento
em que Tomek toma coragem para convidar Magda para um café. A música continua quando
Tomek corre feliz com o carro de leite, mesmo momento em que Wally aparece e olha para o
rapaz com um misto de alegria e de curiosidade. É interessante que a mesma música apareça
em momentos dramáticos distintos, mas que provoque o mesmo efeito sobre a apreciação.
Seus acordes tem um tom de tristeza, de melancolia, e as figuras dos personagens parecem
combinar perfeitamente com essa atmosfera trazida pela música. Há momentos
especialmente ilustrativos deste efeito, como a cena de Magda e Tomek no café, quando ela
pede para que Tomek acaricie sua mão, logo após terem conversado sobre suas desilusões.
͞Eles parecem mais experientes͟, ela diz, apontando para um casal na mesa ao lado, já que
Tomek estava nervoso demais para tocar sua mão. A música entra, e há algo de triste e doce
ao mesmo tempo.

Por outro lado, é importante observar como a ausência da música tem também um efeito
bastante específico sobre o apreciador. Os momentos nos quais a situação dramática é, em si,
comovente ou triste ou tensa e angustiante, há uma clara preferência pelo silêncio ou pelos
ruídos em torno. Melhor exemplo disso é a cena na qual Tomek chega da casa de Magda e vai
direto para o banheiro, na maior calma e tranquilidade, cortar os pulsos. Acompanhamos o
rapaz manuseando a bacia, a água, a gilete, tudo sem música, numa montagem intercalada
com Magda em casa dando sinais para que Tomek volte, mas sem imaginar que ele não a está
vendo. O silêncio ajuda a intensificar os ruídos da água, da bacia sobre o chão, etc., o que, por
sua vez, cria uma atmosfera triste e cheia de minúcias. aomo já se viu anteriormente no
episódio um, a Kieslowski interessa pouco mostrar a cena que daria uma dimensão trágica
muito explícita ao seu filme. Mesmo quando tem de fazê-lo, o faz com comedimento, como é
o caso desta cena. Não vemos Tomek rasgando seus pulsos com a gilete, mas vemos o sangue
tomando conta da bacia branca cheia de água.

c  

aomo nos outros episódios, o seis repete alguns dos elementos que já vimos e voltaremos a
ver nos episódios seguintes. A principal marca da serialidade está no espaço onde acontece a
história, um condomínio de um bairro em Varsóvia. Alguns episódios, como cinco, o sete e o
dez, por exemplo, vão fugir mais do ambiente do condomínio, mas sem exceção todos eles
pelo menos partem do mesmo espaço. Há também um recurso já recorrente até este episódio
(e que continuará até o fim) que é a inserção de personagens dos outros episódios como
aparições ao acaso, sem nenhuma importância narrativa. Neste episódio quem aparece é XXX,
protagonista do episódio nove, que cumprimenta Tomek à saída do prédio de Magda. Tomek,
por sua vez, voltará a aparecer no último episódio como ele mesmo, funcionário de uma
agência dos correios, onde o protagonista da história vai comprar selos.

Há também, não se pode esquecer, a presença de Wally em momentos-chave da narrativa.


aomo nos outros episódios, ele surge como alguém aleatório no meio da rua, mas sua
representação em primeiro plano e seus olhares misteriosos sempre lhe conferem uma
importância, mesmo que difícil de definir. Aqui ele aparece em dois momentos que podem ser
vistos como extremos: quando Tomek está radiante de felicidade após ter convidado Magda
para um café, e num momento de profunda tristeza do rapaz, quando ele corre da casa de
Magda para a sua, após ter tido uma experiência de natureza sexual bastante constrangedora
e até mesmo cruel. Os dois se entreolham e Wally coloca as malas no chão, observando Tomek
até que ele entre no prédio. Nos dois momentos Wally, todo vestido de branco e com uma
mala e uma sacola nas mãos, interrompe o seu caminhar para observar Tomek passar. Não se
pode imaginar a razão pela qual Tomek, naquele momento específico, achou curioso que
Wally atravessasse seu caminho e mantivesse seu olhar sobre ele. Tampouco se pode saber o
que estaria aquele homem fazendo ali e qual seu interesse em Tomek. O que está claro é que
Wally aparece em dois momentos cruciais da narrativa, quando algo supostamente muito feliz
e logo muito triste aconteceu. Não deve ser por acaso que o momento feliz acontece em plena
luz do dia e a câmera está mais próxima dos personagens, enquanto que no momento triste é
exatamente o contrário .

Não Amarás

O episódio seis foi o que, junto com o cinco, virou longa-metragem e teve distribuição
internacional nos cinemas. A versão extendida para cerca de 80 minutos levou o título de 
      , traduzido literalmente para o inglês e recebendo, em
português, o curioso título de ›. Nesta versão, o diretor se demora mais tempo na
construção dos personagens, mostra mais cuidadosamente a relação entre Tomek e a senhora
com quem vive, assim como também se demora mais no tempo que Tomek leva para
confessar a Magda que a espiona. A diferença mais importante talvez esteja no modo como a
tensão do final está estruturada. Tanto no episódio seis como em ›, Magda passa
os dias a esperar por notícias de Tomek do hospital, e mostra-se sempre abatida e
preocupada. Ao receber um telefonema o qual pensa que é de Tomek, Magda, entre desculpas
e lamentações, diz ͞você tinha razão͟, provavelmente referindo-se ao fato de o amor existir.
Quando finalmente há o reencontro entre os dois na agência dos correios, Tomek olha pra ela
e diz simplesmente ͞eu já não te espiono͟, e o olhar triste de Magda é o último plano do filme.
Neste episódio há uma tensão construída em cima da incerteza sobre a morte de Tomek, o
que provoca angústia tanto no espectador como em Magda. A mesma coisa acontece em 
›, a construção dessa tensão e o efeito de angústia, porém o reencontro entre os dois se


No original em polaco: ͞Krótki film o miłości͟.
dá de uma forma muito mais comprometida com o efeito de comoção. O episódio seis é mais
͞seco͟, mais seguindo a linha dos últimos planos dos episódios do c  ʹ uma não-
resolução muito clara dos conflitos, sempre com um diálogo triste, melancólico ʹ ou irônico,
como excepcionalmente acontece no episódio dez ʹ, seguido por um  .

Mas tanto em um como em outro se mantém o essencial do filme, essa    


  onde a abordagem está no modo como cada um dos três solitários personagens
enxerga o amor. A última sequência do episódio seis é demasiado comovente porque
representa, para Magda, uma volta ao zero. Precisou Tomek tentar se matar (͞por amor͟, dirá
o colega dele de trabalho) para que ela reconhecesse que ele ͞tem razão͟, que o amor existe,
mas ao dizer que já não o espiona, ele acaba por fazê-la voltar a acreditar que o amor não
existe mesmo. Sem cair na armadilha de superinterpretar o filme, o que está posto neste sexto
episódio é um discurso amargurado sobre o amor e sobre a solidão, a partir dessa dicotomia
entre o adulto e o infantil, entre o idealismo e o realismo, por assim dizer, que mesmo não
culminando em um final otimista, causa aquele bom e velho efeito do c , uma angústia
profunda, ainda que aqui se possa ainda falar de uma doçura na tristeza e na melancolia.

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