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LUIZ FERNANDO COELHO TEOBIA CRITICA DO DIBEITO Coelho, Luiz Femando. C672 Teoria critica do direito / Luiz Femando Coelho. — 3. ed. rev,, atual. ¢ ampl. - Belo Hrizonte: Del Rey, 2003. 626 p. - 15,5 x 22,5 cm ISBN 85-7308.562-2 1, Filosofia do direito. I. Titulo. CDD: 340.1 CDU: 340.12 Bibliotecdria responsével: Maria da Conceigao Aratjo CRB 6/1236 Editor: Amaldo Oliveira Consetho Editorial: AntOnio Augusto Cangado Trindade Antonio Augusto Junho Anastasia Ariosvaldo de Campos Pires ‘Aroldo Plinio Gongalves Carlos Alberto Pena R. de Carvatho Celso Magalhies Pinto Edelberto Augusto Gomes Lima Eagénio Pacelli de Oliveira Hermes Vilchez Guerrero José Edgard Penna Amorim Pereira Misabel Abreu Machado Deri Piinio Salgado Rodrigo da Cunha Pereira Sérgio Lellis Santiago Diagramagdo: Know-how Editoragio Eletonica Revisio: Fabricio Silva Nascimento Copyright © 2003 by LIVRARIA DEL REY EDITORA LTDA. www.delreyonline.com.br Administragio Lojas Editor Editora em BH Editora em SP Rua Aimorés, 612 — Loja 01 ~ Funciondrios Belo Horizonte ~ MG ~ CEP 30140-070 ‘Tel.: (31) 3273-2066 - Fax: (31) 3273-2031 delrey @delreyonline.com.br Rua Goitacases, 71 ~ Lojas 20/24 ~ Centro Belo Horizonte ~ MG — CEP 30190-909 Tel: (31) 3274-3340 ~ Fax: (31) 3213-6840 goitucases @delreyonline.com.br Av. do Contorno, 4355 — Sao Lucas: Belo Horizonte — MG - CEP 30110-090 Tel: (31) 3284-6665 — Fax: (31) 3284-1545 contomo@delreyonline.com.br Tel: (31) 3284-9770 delrey @net.em.com.br Rua Aimorés, 612 - Loja 01 - Funciondrios Belo Horizonte - MG ~ CEP 30140-070 Televendas: 0800-314633 ~ Telefax: (31) 3273-1602 editora@delreyonline com.br Rua Santo Amaro, 582 — Centro Sao Paulo - SP - CEP 01315-000 Televendas: 0800-7722213 — Telefax: (11) 3101-9775 delreysp@ucl.com.br ‘Nenhuma parte deste livro poderé ser reproduzida, sejam quais forem os meios, ‘empregados, sem a permissao, por escrito, da Editor. Impresso no Brasil Printed in Brazil UMA APRESENTACAO, UM TESTEMUNHO ....cssseces0e XI PREFACIO A TERCEIRA EDIGAO 020..20.02020020-5 as 20 xv INTRODUGAO esesessssesoeee 1 TITULOI CapitTuLo I PRELIMINAR METODOLOGICO ... 21 1. O problemado conhecimento ... 21 2. Opensamento dialStico ....sescssesecuesee 32 3. Adiialética da participagao .....scsssssssssssssssssseossensssssssseesnsresesseee 40 4. As categorias criticas ... 46 CapiTuLo Il AS VERTENTES DO PENSAMENTO CRITICO (1) ... 53 1. Ocontexto interdisciplinar = 2. Oreferencial epistemol6gico .. 55 3. Oreferencial lingiiistico-semiolégico .. 66 4, Oreferencial psicanalitico ... 7 Capiruto TL AS VERTENTES DO PENSAMENTO CR{TICO (II) .. 87 1, Oreferencial fenomenolégico XXi 2. Oreferencial sociolégico 3. A filosofia marxiana e a teoria critica da sociedade .. CapiTuLolVv CRITICA SOCIAL E CATEGORIAS «....ccscssesesteeseessieeesteceteeeeeeteteeuteseeveeeees HD 1. As categorias do pensamento critico . UL 2. Asociedade .... 112 3. Aideologia u7 4. Aalienaci S.A 154 6. Conchusio preliminar TITULO 1 O PENSAMENTO CRITICO NO DIREITO Capitulo V OSABER JURIDICO ... seca wevtniis 159 1, As dimensdes do saber juridivo ....... 159 2. Acpistemologia juridica 3. A l6gicajuridica 4. Aciéncia do direito: dogmitica, zetética e critica 5. Adimensio critica do saber juridico .... IMATICA JURIDICA L. Acritica positivista ea concepgiic dogmitica do direito ... 2. Oconceito do direito 3. Aleieanorma . 4, Odireito, amorale as normas sociais 5, Arelagao juridicae os conceitos juridicos fundamentais 6. Odireito positive ........ CapfruLo VII O REFERENCIAL DA FILOSOFIA DO DIREITO... 1. Ajusfilosofia tradicional: legitimagaoe libertagdo xxii 2. Onormativismo como referencial ontolégico 3. Rumo ao normativismo concreto: o institucionalismo jtiridico 4, Odireito comoconstrugio social 5. Odireitocomo linguagem .... 6. Asintese culturalista: egologismo e tridimensionalismo ..... 7. Visio deconjunto... .. 278 + 283 CapfTuLo VIII O PENSAMENTO CRITICO NO DIREITO 1. Crise de direitoe critica social ..... 2. Opensamento criticoeuropeu 3. Omovimento critical legal studies .... 4. Opensamento critico ibero-americano .... 5. Odireitoalternativo .... TITULO 111 A TEORIA CRITICA DO DIREITO Capitulo lx O DIREITO COMO IDEGLOGIA 341 L.A ideologiado direito 341 2. A ideologiado Estado 3.Os principios gerais de direito 4. Os pressupostos ideoldgicos da dogmitica juridica. Capiruto X A UNICIDADE DO DIREITO ... 1. Aconcepgiio monista e estatal do direito.. 2. A concepgiio pluralista e social do direito 3. Pluralismo juridico e libertagio CapiruLo XI A RACIONALIDADE DO DIREITO 449 1. Opositivo racional . 2.A racionalidade normativa xxiii 3. Aracionalidade ordenamental . 4, A racionalidade decisional 5. As lacunas do direito. 6. Razio juridicae ideologia CapiTULo XII A LEGITIMIDADE DO DIREITO (I) 1. Oprincipio juridico da legitimidade 2. Legitimidade intrajuridicae metajuridica 3, Aalienagiiojuridica ... CapfTuLo XI A LEGITIMIDADE DO DIREITO (I) ..... 1. Legitimidade etrabalho .. 2. Legitimidade e processo 3. Legitimidade elibertagaio REFLEXOES FINAIS.. BIBLIOGRAFIA ..... xxiv NTRODUCAO A partir da afirmagio do direito como sistema cientifi- co, 0 discurso legitimador da ordem social passou a contar com novo fator de persuasio: a hipostasiagao da ordem jurt- dica e de seus elementos estruturais, pela auto-elevagio ao status de ordem conceitual, ela mesma capaz de se autolegi- timar enquanto objeto de teorizagao pretensamente cientifi- ca. Na medida em que a sociedade moderna se cristalizava em suas estruturas juridico-politicas, essa ordem-objeto, pela sua forca autolegitimadora, catalizava o labor te6rico da ciéncia e da filosofia do direito como fim em si, além e acima da ordem social concreta, cumprindo um papel ideoldgico de pre- servagiio e reprodugao dessa mesma ordem. Esse quadro teérico da ciéncia jurfdica se achava envol- vido pelo estatuto que o senso comum atribuia a todas as ciéncias sociais e a propria filosofia, o qual as levava a pros- crever de sua respectiva problemitica a realidade social, subs- titufda em sua objetividade pelos conceitos que, embora ela- borados a partir da hist6ria, passavam 4 condigio de a-histo- ricidade e, muito mais, de fundantes da experiéncia histérica. Se é verdade que o estatuto tradicional das ciéncias so- ciais ¢ da filosofia se desvaneceu ante o repensar de sua fun- gao atual — repensar que as situa entre o absoluto niilismo epistémico e a total redugao ao plano politico — nao é menos verdade que o direito, nos diferentes planos em que ocorre enquanto experiéncia social, pouco ou nada se deixou pene- trar pela ordem renovadora; hei-lo, no plano empirico da vida 2 TEORIA CRITICA DO DIREITO juridica, a servir como instrumento de dominagio: a histdéria do direito é a histéria do poder, € no plano da teoria, a repe- tir com novas roupagens retéricas o mesmo discurso legitimador de suas proprias elaboragoes, cristalizadas em conceitos hi- postaticos, por isso mesmo, pressupostos enquanto objeto de um conhecimento que pretende cientificidade: a histéria da filosofia do direito é a retérica da legitimagao. Repensar o direito é tarefa que se impée, a fim de su- perar 0 anacronismo que o caracteriza quando comparado as outras ciéncias sociais. Mas comporta ele um tal projeto? Poderia o direito, como objeto de conhecimento cientifico, suportar 0 estatuto dimanado daquele repensar de sua fungdo social atual sem destruir-se no plano te6rico? Reconhego que as possibilidades de teorizagio assim concebidas so extremamente limitadas e, também, que a lite- ratura filosdfico-juridica, recentemente publicada, tem trata- do exaustivamente dos aspectos epistemolédgicos do tema, preocupando-se com a superagao dos paradigmas tradicio- nais da ciéncia jurfdica.' Mas deve-se igualmente reconhecer que a epistemologia € somente um limiar, nao passa de bons propOsitos e eficiente indicador de certo caminho a seguir, 0 qual ainda nao foi trilhado. Daf que a repetigao ou aprofun- damento da problemiatica epistemolégica relacionada com o direito pouco ou nada acrescentard a tarefa que se me afigu- ' MACHADO NETO, Antonio Luis. Teoria da ciéncia juriaica. Sao Paulo: Sarai- va, 1975; REALE, Miguel. O direito como experiéncia, Sao Paulo: Saraiva, 1968; FERRAZ JR., Tércio Sampaio. A ciéncia do direito. Sao Paulo: Atlas, 1977; DINIZ, Maria Helena. A ciénciado direito, Sio Paulo: Resenha Universi- téria, 1975; WARAT, Luis Alberto. A pu: teoria juridica. Florianépolis: UFSC, 1983; RAFFO, JélioC. Introdugdo ao co- nhecimento juridico, Rio de Janeiro: Forense, 1983. VERNENGO, RobertoJ. La naturaleza del conocimiento juridico. Buenos Aires: Cooperadora de Derecho y Ciencias Sociales, 1973; GUIBOURG, Ricardo A.; GHIGLIANI, Alejandro M.:;GUARINONI, Ricardo V. Introducci6n al conocimiento juridico. Buenos Aires: Astra, 1984. KALINOWSKI, Georges. Querelle dela science normative. Paris: LGDJ, 1969, HESPANHA, Antonio M. Panorama hist6rico dacultura juridica européia. Mira-SintryMen-Martins: Publicag6es Europa-América, 1997. INTRODUGAO 3 ra fundamental, no contexto de renovagiio das teorias do so- cial a que se assiste no presente. O que se impGe € ir adiante, sair dessa ante-sala epistemoldgica para construir as novas formas de conhecimento, aptas a pensar e repensar o jus como algo integrado no concreto ao qual direta ou indireta- mente se refere, e também repens4-lo como algo compromis- sado com a transformagao desse concreto. Seguindo a direc&o apontada pelo historicismo alemao do século XIX, uma teoria geral do direito somente seria possivel dentro do paradigma analftico da ciéncia, 0 qual tem por modelo a Iégica tradicional e a matematica. O momento culminante dessa elaboragdo é o purismo metodolégico de Hans Kelsen, o qual, para isso, foi levado a renunciar ao momento Gntico do direito como forma de experiéncia social, embora o autor a definisse como uma teoria geral do direi- to positivo. Essa rentincia veio a ser um motivo de desquali- ficagao da teoria kelseniana como propriamente jurfdica, per- manecendo circunscrita & ldgica do direito. Essa interpretagao, proposta pelos juristas do egologismo existencial argentino, abre o caminho para nova perspectiva de elaboragiio tedrica do direito que, sem recair no sociologismo extremado, procurasse dar-se conta da concregao de seu ob- jeto, ou seja, uma teoria juridica nao abstrata. As aproximagoes teGricas nesse sentido podem também ser registradas no contexto do movimento realista escandi- navo, cuja meta foi justamente equacionar os fundamentos do direito como ciéncia empirica.? Outra tentativa nio menos ex- pressiva é a da escola analitica anglo-americana, cujo em- pirismo revela, entretanto, um estruturalismo metodolégico que descaracteriza suas elaboragSes como teoria voltada para o ? ROSS, Alf. Hacia una ciencia realista del derecho. Trad. de Julio Barboza. 2. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1968.Tb. MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Sobre a crise dos paradigmas e a questio do direito alternativo. Revista da Faculdade de Direito da UF PR, Curitiba, ano 30, n. 30, 1998; Idem: A ciéncia do direito: conceito, objeto, método. Rio de Janeiro:Forense, 1982. 4 TEORIA CRITICA DO DIREITO concreto.* Penso poder aproximar dessa mesma metodologia, que ostenta muito do funcionalismo anglo-americano, as re- centes pesquisas tendentes a definir modelos I6gicos para as ciéncias juridicas, como as operadas por Aarnio* e Wrdblewski,* as elaboradas pela escola analitica de Buenos Aires,’ bem como pelo atual movimento de renovagio das teorias juridi- cas em face do avango da informatica na experiéncia profis- sional dos juristas.” Nio me parece que essas tentativas tenham ido muito além da simples revelagao de alguns dados particularmente importantes no contexto da experiéncia hist6rico-social do direito. Nenhum desses modelos, relevantes sem dtivida para amostragem das conex6es internas do fendmeno juridico, de suas relagGes estruturais e articulagGes interdisciplinares, conta da efetiva participagao dos atores juridicos na construcao de seu objeto e, principalmente, do alcance politico-social da atuagao dos juristas profissionais, 0 que se articula com a dimensio propriamente juridica do objeto, quando esses juristas atuam como sujeitos de uma praxis transformadora do direito e da sociedade Fica evidenciado entao um impasse metodoldgico: a impossibilidade de construir, dentro dos paradigmas positivistas ’ HART, HerbertL. A. El concepto del derecho. Trad. de Genaro R. Carrié. 2. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1977. * AARNIO, Aulis. Denkweisen der Rechiswissenschaft. Wien, 1979. WROBLEWSKI, Jerzy. Una base semantica per la teoria dell’ interpretazio- ne giuridicas, In: Analisi del linguaggio. Milano: Ed, de Communit2, 1976, p.347-373. * VERNENGO, Roberto José. Cursode teoria general del derecho. 2. ed. Buenos Aires: Cooperadorade Derecho y Ciencias Sociales, 1976, Idem, La interpretacion literal de la ley.2. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1994. LARENZ, Karl. Metodologia da ciéncia do direito. Trad. de José Lamégo. 2. ed. Lisboa: Fun- dagao Calouste Gulbenkian, 1989. LOSANO, Mario G. Ligdes de informatica juridica. Sao Paulo: Resenha Tribu- tara, 1974. Tb. PEREZ _LUNO, Antonio E. Nuevastecnologias, sociedad y derecho. Elimpacto socio-juridico de las N.T. de la informacidn. Madrid: Fundesco, 1987. Idem, Manual de informdtica y derecho. Barcelona: Ariel, 1996. INTRODUGAO. 5 tradicionais, um estatuto tedrico voltado para a concepgdo do direito como experiéncia. Esse impasse torna-se ainda mais agudo quando se percebe que no entendimento comum, nao s6 das pessoas do povo que vivenciam essa experiéncia, como também entre a maioria dos operadores do direito, os modelos analiticos ou empiricos de saber infirmados pelo posi- tivismo parecem os tinicos capazes de resguardar a dignida- de cientffica das ciéncias sociais. Daf a opgdo por um modelo alternativo de ciéncia jurf- dica que pudesse escapar desse dualismo metodolégico; e 0 novo caminho foi trilhado na diregdo do pensamento dialético, o qual, desenvolvido pelos culturalistas a partir da fenome- nologia e da filosofia existencial, pareceu igualmente apto ao trato metodolégico das articulagdes normo-fatico-axiolégicas do direito, sem prejufzo as exigéncias de cientificidade. Essa nova metodologia esté na base do culturalismo fenomenolégico de Reale,* Cossio® e¢ Goldschmidt.'" Mas 0 escopo metodolégico dessa dialética acabou por limitar-se 4 descrig&o dos fatores implicados, reduzin- do-se a saberes retrospectivos e descritivos sem ultrapassar os limites de uma teoria da ciéncia do direito, vale dizer, sem adentrar 4 objetividade desta teorizagio. Assim, o culturalismo fenomenolégico, sem embargo de constituir a vertente mais expressiva para uma compreensao verdadeira do direito como experiéncia, acabou por revelar-se invidvel para a critica pros- pectiva e transformadora de seu objeto. E que as teorias ju- ridicas elaboradas pelas diversas manifestagdes do cultura- lismo dialético envolviam pressupostos idénticos aos ineren- tes aos paradigmas positivistas de caraéter empirico ou anali- * REALE, Miguel. Fundamentos do direito. 2. ed. Sao Paulo: RT/Edusp, 1972. Idem, Teoria tridimensional do direito. Paulo: Saraiva, 1980. COSSIO, Carlos. La ieoria egoldgica del derecho y el concepto juridico de liberdad. 2. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1964. Idem, Teoria de la verdad Juridica. Buenos Aires: Losada, 1954. GOLDSCHMIDT, Werner. Introduccién filoséfica al derecho. 6. ed, Buenos Aires: Depalma, 1983. 6 TEORIA CRITICA DO DIREITO tico; € tais pressupostos, consubstanciados na preocupagéio descritiva e retrospectiva em relag&o a seu objeto, represen- tam sério obstaculo 4 elaboragdo de uma teoria critica, por levarem a considerar 0 objeto como algo pressuposto e aca- bado que se antepde ao conhecimento e nfo que possa ser por ele construfdo. Tal visdo da objetividade cientifica comprometeu de vez a elaboragao tedrica do direito dentro de uma teoria crf- tica da sociedade, porquanto eis que sua metodologia ja vi- nha comprometida com um objeto cuja realidade 6ntica, embora identificada com sua dialeticidade imanente, j4 era pressu- posta como objeto e, portanto, impunha-se como direito- em-si ao sujeito cognoscente. Aos te6ricos do movimento culturalista escapou que a ciéncia do direito nado descreve uma ordem imanente, objetivamente pressuposta, mas a constroi ideologicamente. Isso nao obstante, restaram afastados os preconceitos neopositivistas, favorecendo-se a procura de novos modelos de saber, cuja exigéncia fundamental deveria ser 0 compro- misso com a verdade real e nfio com a verdade formal ou mera- mente conjetural dimanada do imagindrio da filosofia, da reli- gido e da propria ciéncia; e é por essa razao que o culturalismo dialético, nas versGes privilegiadas da teoria tridimensional do direito de Miguel Reale, da teoria egolégica do direito de Car- los Cossio e do trialismo juridico de Goldschmid, é apresen- tado como o antecedente mais expressivo da teoria critica do direito no contexto da jusfilosofia. Dai também a importancia da epistemologia critica contemporanea, a qual reforgou ainda mais essa procura dos novos paradigmas, ao evidenciar 0 carater falacioso da pretensao de verdade dos modelos positivista e neopositivista. Com as adaptagGes metadoldégicas exigidas pelo objetivo central da tese exposta neste livro, procuro elaborar, meto- dicamente, um projeto epistémico inicial, a partir das ver- tentes consubstanciadas nessa epistemologia, um modelo de saber juridico que, em vez do escopo descritivo e retros- INTRODUCAO, 7 pectivo assimilado pelo senso comum, possa ser construti- vo e prospectivo, voltado para o direito enquanto producgio social especifica de uma sociedade em dado momento his- térico e destinado, ainda que indiretamente, A solugiio de pro- blemas sociais reais e concretos e nado para manter dogmas e doutrinas. Tendo em vista essas reflexGes, e respondendo ao de- safio inicial de construgio de uma teoria geral do direito con- cebido como concregao experiencial, é que apresento a proposta de uma teoria critica do direito. Embora conceda alguma prevaléncia & problematica epis- temolégica, a teoria critica do direito consubstanciada nos tre- ze capitulos que seguem nao se exaure na epistemologia juri- dica. Ela pretende constituir um passo a mais na tarefa a que me propus em outro lugar,'' qual seja, a construgio de uma teoria do direito que, sem abdicar de certo rigor na explicitacao das hip6teses, conceitos e categorias que constituem 0 obje- to da tese, isso em homenagem 4 cientificidade exigida nos trabalhos académicos, assumisse o contetido ideolégico des- se mesmo objeto e procurasse conciliar tal exigéncia com um compromisso que se afigura basilar, o estabelecimento de con- digdes histéricas que propiciem a realizagdo do ser hamano em suas potencialidades, como individuo e como membro de uma comunidade, e, de maneira mais prosaica, condigdes para que o homem possa ter uma existéncia digna e realizar o ideal eudemonistico que constitui sua primeira vocagio, isto é, para que possa ser feliz neste mundo. Trata-se pois de uma proposta de teorizagao que, en- volvendo todos os aspectos do problema da juridicidade pas- sfveis de tratamento cientifico, os integre em uma unidade epistémica apta a instrumentalizar a teoria do real juridico concreto. Em outras palavras, trata-se de uma teoria impu- ra, no sentido de que ela se fundamenta em pressuposto "\ COBLHO, Luiz Femando. Légica juridica e interpretacdodas leis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p.306. Idem, Introducdo a critica do direito. Curitiba: HDV, 1983. 8 TEORIA CRITICA DO DIREITO ontoldégico oposto ao do purismo metodolégico kelseniano. A teoria que proponho repele a atribuigao ao direito de esta- tuto ontolégico alheio a ontologia do social, e considera fa- laciosa a redugao do fen6meno juridico as possibilidades Onticas elaboradas a partir dos esquemas légicos que 0 antecedem como experiéncia. Se for necessdrio, todavia, estabelecer um conceito de direito, seja para objetivos didaticos, seja para resguardar um minimo de coeréncia em relag&o aos critérios do senso comum, prefiro defini-lo nos quadros de um realismo volta- do para o ser social, de que o fenédmeno juridico €é somente um aspecto que nao pode desligar-se da totalidade 4 qual pertence. E portanto fundamental para o entendimento da teoria critica do direito que se repila a persistente atribuicao ao fendmeno juridico do estatuto de um direito-em-si. Quando aludo ao repensar das ciéncias sociais e da pré- pria filosofia, em face da nova problematica a que o pensa- mento juridico tradicional permanece alheio, tenho em men- te o horizonte da agao social, da participagdo consciente na tarefa, que € de todos, de construgdo e reconstrugio de um mundo humano; essa praxis representa, com efeito, 0 deno- minador comum das quest6es que vieram impedir que a teo- ria do social caisse no vazio. A esse novo estatuto repugna a separagio entre a teoria e a experiéncia, nao mais considera- das como entidades separadas no plano teérico, mas como termos de uma relagio que reflete uma dialeticidade imanente, eis que ambas ja nao suportam a atribuigdo de estatuto ontolégico estanque, como realidades em si, mas apenas 0 estatuto de principios da Unica realidade: o ser humano individual e so- cial, cuja ontologia, esta sim, pode servir de fundamento a qual- quer teorizagao. Em outras palavras, a questao ontoldégica da juridicidade é um falso problema que a tradicional filosofia do direito renoya em retérica sempre mais sofisticada. Falso, porque elide a quest&o ontolégica real, que é a da sociedade, em que 0 direito nao é um ser, mas um conjunto ideolégico de prin- cipios daquela realidade social construfda pelos individuos INTRODUGAO 9 e pelos povos, no processo hist6rico em permanente trans- formagao. E falso ainda porque as tentativas de captar a juridicidade como algo-em-si acabam por ubiquar-se no plano ret6rico da legitimagao da ordem social, recuperando-se 0 velho principio socratico de que a obediéncia as leis € uma necessidade 6ntica e nio um principio de agao. Fica portanto estabelecida importante distingAo: a ten- tativa de elaborar uma teoria realista do direito no quadro teérico ora definido situa-se como uma teoria critica, mas nao a rigor como um realismo jurfdico. Se a expressdo rea- lismo alude A realidade do direito entendida como objeto que estd af, 0 qual atua como condicionante das teorias juri- dicas, ha que renunciar a esta pretensdo. Os diversos realismos constitufram evidentemente im- portantes marcos na elaboragao de uma teoria critica do di- reito, mas nfio me parece que tenham eles se ocupado da problematica social, absortos que estavam com as aparén- cias ideolégicas dessa realidade. O psicologismo judicial da escola realista estadunidense, 0 empirismo socioldgico dos realistas escandinavos, 0 realismo analitico da escola de Oxford, o nominalismo pragmiatico dos fil6sofos da linguagem juridi- ca, bem como outras aproximag6es setoriais a uma concep- ¢ao do direito enquanto revelagio do proprio histérico-so- cial, nfo fizeram mais do que estruturar conceitualmente os aspectos estanques que mais Ihes pareciam vinculados ao fe- némeno da juridicidade. Mas mantendo a separagiio algo ma- niquefsta entre teoria e experiéncia, filosofia e ciéncia, indi- vidual e social, racional e emocional, sem oferecer resposta adequada aos problemas que a insuficiéncia do pensamento juridico tradicional suscitava quando confrontado com a rea- lidade hist6rica. Qual entao o sentido e alcance da postura critica preco- nizada nestas paginas? Ao evitar-se a desnecessdria rotulacdo de realismo, resta porém outro nivel de separagao, a que ocorre entre as teori juridicas criticas e as nao-criticas, mas tao-somente em decor- réncia da necessidade de estabelecer um referencial apto a 10 TEORIA CRITICA DO DIREITO abranger a variedade de significados que a palavra critica suscita. Embora seja um significante que se ressente de certo desgaste, algo como simples modismo decorrente da abertu- ra politica ocorrida recentemente nos paises designados emer- gentes, longamente dominados por ditaduras — refiro-me em especial 4 América Latina —, a critica nao se exaure no mero compromisso com a verdade, no sentido de oposigao do cer- to/cientifico ao erradosideoldgico, a partir de sua prépria légica,” mas envolve um compromisso mais profundo com a dentincia histérica. E assim, o critério que possibilita a dis- tingao, no que tange a filosofia do direito, vem a ser a articu- lagdo dos varios planos em que se manifesta a teoria jurfdica com os aspectos também articulados do hist6rico, politico, econémico etc., que constituem 0 concreto histérico, o que desde logo evoca uma interdisciplinariedade, mas dentro de um compromisso com a sociedade e seus problemas reais, visando solucioné-los. O projeto basilar de uma teoria critica do direito trata, em suma, de pensar o direito em fungao da dialeticidade do social, mas envolvendo um compromisso ético e politico muito mais profundo do que o simples acatamento 4s leis e as insti- tuigGes que através dela se consolidaram, 0 que transcende em muito 0 quadro de uma teoria do direito positivo. Além disso, muito mais do que uma interdisciplinariedade do saber juridico articulado com os diversos planos das ciéncias da sociedade, a teoria critica se constitui numa transdisciplinarie- dade, isto, em fungao de sua prépria légica dialética. Este quadro teGrico inicial pode, nao obstante, ser leva- do a efeito segundo os paradigmas epistémicos tradicionais, em que a imbricagao entre a teoria e a experiéncia conduziu a uma teorizacao retrospectiva e descritiva daquelas articula- ces. E o caso das teorias que ubiquam o direito no contexto determinado pelas relagdes de produgio, na esteira da famo- alusao de Marx a evidéncia de que a consciéncia é deter- = CHAUL, Marlena. Criticae ideologi: Sdo Paulo: Brasiliense, 1981. In: O discurso competente e outras falas. INTRODUGAO. 1 minada pelo ser social do homem."} Essa perspectiva marxiana abre a via para uma dialética do social, entendida como o repensar do real a partir do real e nfo das idéias as quais a ele se referem ou que o pretendem representar, mas nao muda o paradigma da separagao entre a teoria e a praxis. Ainda que de modo fragil, € 0 inicio de uma via para a busca de um compromisso com a verdade que deflui da pr6pria realidade social. Isso € bastante compreensivel em face da atual crise das ciéncias sociais, tanto no plano teérico quanto no que se reve- la na experiéncia dos socialismos reais, em relagdo aos quais se procurou a alternativa da chamada terceira via. A critica marxista do direito e do Estado, por isso mesmo, ou se man- tém no vestibulo da epistemologia das ciéncias sociais, ou se restringe aos aspectos descritivos do real hist6rico caracteristi- co da sociedade burguesa e do modo de produgao capitalista. E sintomatico que pensadores marxistas notdveis mani- festem perplexidade ante a escassa produgao teérica do mar- xismo voltada para o pensamento politico.'* Apesar dos insu- ficientes desenvolvimentos analiticos do programa de Engels 8 Citagiio extrafda do “Prefacio” a obrade MARX. Para a critica da economia politica. Sao Paulo: Abril Cultural, 1982, p.25. (Colegio Os Economistas) Alem de outros autores que serdo citados adiante,convém lembrar como exem- plos de produgiio tedrica no contexto de um pensamento filos6fico marxista: MICHEL, Jacques. Marx et la société juridique. Paris: Publisud. 1983. Tb. MO- NET, Philippe: SELZNICK, Philip. Law and society in transition toward res- ponsive law, London: Harper Torchbooks, 1978. Tb. EDELMAN, Bernard. La légalisation de la classe ouvriére. Paris: Christian Bourgois, 1978, t. 1. “entreprise”. Tb. ANDERSON, Perry. A crise do marxismo: inodugio aum debate contempordneo. Sao Paulo: Brasiliense, 1984. Tb. CORREAS, Oscar. Critica del derecho modemo. (ezboz0). Puebla: Universidad Auténomade Puebla, 1985. Tb. MIAILLE, Michel. Epistemologie: la représentation. Fasc. 3. Montpellier: CERTE, 1985. Tb. HABERMAS, Jiirgen. Mudanga estrutural da esfera piiblica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, MIAILLE, Michel. Raison et légitimité. Paris: Payot, 1978. Tb. GUERRA FILHO, Willis S. Introducdo 4 filosofia e a epistemologia juridica. Porto Alegre: Livrariado Advogado, 1999; e, especialmente sobre a fundamentaciio de regras na ambientagdo do Estado mo- demo: HABERMAS, Jiirgen. Pensamento pés-metafisic Trad. de Flavio Beno Siebeneichler: Rio de Janeiro: Tempo Br 12 TEORIA CRITICA DO DIREITO referente 4 comuna de Paris, néo se elaborou, até agora, um modelo politico alternativo adequado aos socialismos de gé- nese marxista, ou que responda ao grande dilema da historia contemporanea sobre as possibilidades reais de um socialis- mo democratico.’* O mesmo pode ser dito da produgao tedrica voltada para o direito. Considerando-se que a tradigio juridica dos paises socialistas é basilarmente romanista, que seu Estado segue o modelo histérico do Estado moderno, e que a legi- timidade de suas leis procura fundamentar-se tao racional- mente quanto no resto do mundo ocidental, ainda que suas fontes possam inspirar-se em ideais socialistas, é natural que as escassas tentativas!® de elaboragiio de teorias juridi- cas, no 4mbito da filosofia marxista, pequem pela falta de originalidade e limitem-se a critica do direito burgués. Tudo isso agravado pela dogmatizagao dos princfpios marxistas, cerceando-se a liberdade do pensamento criativo e provo- cando uma tendéncia generalizada ao desprezo da tradigao jusfilos6fica do ocidente, sob 0 pretexto de que se trata de um mundo burgués. Nesse sentido é que Gramsci, quando atribufa 0 éxito da persisténcia histérica dos modelos juridico-politicos do capitalismo a elaboragao teérica que os ampara, cuja tradi- ¢ao milenar a critica marxista nado pode ignorar. Talvez uma produgio mais livre e mais preocupada com os fundamen- tos cientificos dos modelos juridicos e politicos do socialis- mo tivesse podido contribuir para evitar os erros histéricos do estalinismo, da nova classe e¢ da nomenklatura.” 2.ed. Rio 'S BOBBIO, Norberto. Qual socialismo? Trad. de Izade Salles Trez: de Janeiro: Paze Terra, 1983. "© PASUKANIS, E. A teoria geral do direito ¢ o marxismo. Trad. de Soveral ra: Centelha, 1977. Tb. MUSSI, Ricardo. As raizes marxistas da Escola de Frankfurt. In: A Escola de Frankfurt no direito. Curitiba: Edibej, 1997. Tb. ADOMET, Klaus. Introduccién a la teoria del derecho. Trad. de Enrique Bacigalupo. Madrid: Civitas, 1984, p. 111. VOLENSKI, Michel. La nomenklanira, les privilégiés en URSS. Patis: Belfond, 1980. INTRODUGAO 13 Penso im, que uma teoria critica do direito deve ir além da simples dentincia das contradigGes sociais, do mero estudo da manipulagao a que estéo sujeitas as estruturas so- ciais em proveito de grupos privilegiados, da desmistificagao das aparéncias e fantasmas que os estamentos dominantes pro- curam incutir no inconsciente dos cidadaos, para elidir-Ihes a opressdo social a que estio sujeitos; mas indicar 0 caminho da superagfo dessa realidade cruel do mundo contempora- neo, contribuir para a elaboragdo de novas categorias aptas a pensar prospectivamente o que é melhor para o homem e para a sociedade, bem como engajar-se na participagao po- litica por elas conscientemente informada. Com isso, a filoso- fia do direito assume sua dimensiao politica sem reduzir-se a uma filosofia politica estanque, superando outra antinomia que se manifesta no saber juridico acumulado: a separacio entre a teoria dogmitica do direito e a politica juridica, a qual reflete a separagao quase abissal entre o saber juridico, a ex- periéncia profissional do jurista ¢ a praxis relacionada com o fenémeno social da juridicidade. Essa dimensao transdisciplinar extravasa os modelos tra- dicionais, inclusive os paradigmas influenciados pela feno- menologia, presentes na poderosa tradigao culturalista ibero- americana. Fica assim definido o contexto da teoria critica do direi- to como a unido dialetizada entre a teoria e a experiéncia, na realizagao do direito como espago de luta e conquista com vistas & autonomia dos individuos e 4 emancipagio das socie- dades. Do mesmo modo, a teoria critica do direito procura subsidiar a elaboragéo de um modelo prospectivo, apto a realizar o ideal, a que se referia Roscoe Pound, do direito como construgao social; e fica igualmente definido o con- texto do que se deve entender por critica: sem que deva necessariamente reduzir-se 4 critica marxista, 0 direito deve ser Operado como o locus de refigio das reivindicagoes so- ciais, o lugar da consolidagao das conquistas dos fracos, opri- midos socialmente e exclufdos de todo tipo. Trata-se, enfim, de recuperar o jus como o universo da libertagio. 14 TEORIA CRITICA DO DIREITO Esta dimensao libertéria parece algo pacifico no con- texto da filosofia polftica que tem por referéncia o mundo europeu, mas adquire especial importéncia quando se toma por referéncia a América Latina, onde somente agora, ja no limiar do terceiro milénio, os direitos humanos comegam a ganhar espaco na produgdo juridica do Estado.'* Ademais, que tal perspectiva passa a ser ponto de con- vergéncia das vertentes realistas que se tém articulado nos mais recentes desenvolvimentos da filosofia do direito. Por- tanto, coerente com a rejeigio hd pouco esbogada a tendén- cia marxista a um rompimento radical com o pensamento dito burgués, procura-se identificar essas vertentes, especifi- cando 0 quadro teérico que ora se define em linhas gerais. Dada a vastidio do assunto, privilegiam-se as que no contex- to da interdisciplinariedade do social se me afiguram mais importantes, do ponto de vista das articulacdes que delas possam dimanar entre a filosofia do direito e as grandes expres- sdes da filosofia contemporanea, bem como entre estas e uma visdo construtiva do saber juridico. Ea partir desse qua- dro que se ira formar o modelo epistémico ao qual denomino critico, como também iraio dimanar as teses basicas a serem tratadas, num plano articulado com 0 politico, 0 sociolégico. 0 semiolégico e o psicanalitico, entre outros que deverao enri- quecer a visao transdisciplinar do objeto das pesquisas. Também nesse mesmo contexto, procura-se definir o estatuto ontolégico desse objeto da critica, isto na medida em que se possa atribuir ao jurfdico uma determinada natu- reza objetivamente implicada pelo ser social. Dai a exigéncia de uma reflexio metodolégica inicial, pois € a partir das circunstancias objetivamente interdisci- plinares que se esbogam as categorias aptas a pensar o direi- to sob a Gtica da transformagao de seu objeto, as quais deno- mino categorias criticas, em complementagio, nao oposi- ¢4o, 4s categorias formais da perspectiva kantiana e As reais is GOMEZ, José M. Elementos para uma critica concepeio juridicista do Estado. In: Seqiiéncia. Revista dos Estudos Juridicos e Politicos da UFSP,n. 2, 1980. INTRODUGAO. 15 da fenomenologia, as quais jd estéo incorporadas 4 tradigéo dogmatica do saber juridico ocidental, construfdo ao longo do milénio, nao podendo ele, de modo algum, ser ignorado e muito menos desprezado. Isso nado obstante, entende a teoria critica do direito que essas duas maneiras de encarar as categorias do saber juridico, como a priori formal e a priori material, na verda- de excluem 0 cognoscente como sujeito de uma agio politica transformadora que age no mundo e sobre o mundo, eis que sao condicionantes nio somente do conhecimento objetivo do real, como também das manifestagées histéricas dessa realidade, ou seja, as categorias formais do apriorismo anali- tico, tal como as reais do apriorismo fenomenolégico, nao comportam a visio do ser cujo conhecer é também um a; consciente. E mediante a nogao de categoria critica que pretendo introduzir no conhecimento juridico essa dimensao constru- tiva e prospectiva do saber, no sentido de que ele possa ao mesmo tempo servir de meio de acesso 4 verdade objetiva e de instrumento de sua transformagao objetiva. Em outras palavras: inserir o direito na praxis. Mas de que mancira tao diferentes aspectos podem con- vergir para tratamento epistémico unitério? Deve-se con derar que toda elaboragado procura fixar certos principios te6- ricos que servirao de base para a construcdo de todo um con- junto de conhecimentos. Sendo assim, cada aspecto interdis- ciplinar deve convergir num principio, que no sera necessa- riamente um postulado, mas somente uma instancia possfvel que estar integrada nas teses fundamentais da teoria critica, as quais nao constituem de modo algum princfpios dogmaticos, mas a expressio das categorias que se forjaram ao longo do estudo das vertentes do pensamento critico. E que 0 projeto epistémico ora proposto exige o desen- volvimento dessas formas de pensamento adequadas ao tra- to prospectivo e construtivo do fendmeno jurfdico, sem que ele corra o risco de cair no vazio, restringindo-se a filosofia do direito sem tratar do direito, internalizando aquelas deficién- 16 TEORIA CRITICA DO DIREITO cias j4 constatadas quanto as correntes do realismo juridico e As correntes derivadas do marxismo ortodoxo. Evidentemente, 0 universo da concreg&o juridica nio poderia ser tratado nas minticias da teoria do direito positi- vo, mas a teoria crftica pode formar uma estrutura te6rica a servigo da critica do direito positivo. Por isso, o caminho escolhido foi o de repensar os pressupostos ideol6gicos da dogmiatica juridica, concebida como modelo tradicional de saber, que fornece o quadro sistematico do direito positivo. Tais pressupostos sdo analisados em alguns conceitos fun- damentais, os quais formam o niicleo da teoria geral do direito que, tanto na versio classica dos pandectistas quan- to nas mais modernas de Kelsen e Hart, por exemplo, pre- tende sistematizar os conceitos, categorias e princfpios mais gerais inferidos da experiéncia hist6rica do direito. Em face do questionamento dessa pretensio, a teoria critica do direito procura constituir uma resposta adequada, ou seja, uma teoria do direito voltada para a concregao da- quela experiéncia. O denominador comum destes estudos € 0 que deno- mino dialética da participagdo, proposta metodoldégica dimanada da constatagao de que, no direito como na socie- dade, 0 sujeito cognoscente estd situado dentro do objeto que estuda, com ele se identifica e nele exerce sua atividade transformadora — € nesta participagio, que também é uma transformaco, que o jurista se revela como sujeito da praxis. A teoria critica do direito tem dois aspectos coimplicados: um objeto material — 0 direito — e um objeto formal — a critica —, sendo esta mais uma conjungio de pontos de vista sobre os efeitos sociai: juridico do que propriamente uma teorizagio com enfoque unitério. Daf que ambos podem ser tomados como ponto de partida: tanto uma nova concepgao do direito que suporte o enfoque critico ora definido quanto o exame das circunstan- cias do aparecimento de novo tipo de saber que pode preci- samente ser definido como critico. Ambos sao desenvolvi- dos simultaneamente: a nova concepgio do jus, motivada pelo desencanto da sociedade diante do fracasso da organizagio INTRODUGAO 17 estatal, com seu direito positivo oficial, como forma apta a promover a dignidade da vida humana, e a nova concepgao do saber, pela evidéncia de que as concepgGes de verdade da ciéncia e a prépria verdade como meta a atingir estaéo limita- das pelas insuficiéncias de um tipo de racionalidade analitica que se tornou prevalecente. Ambos os aspectos sfio examinados nesta pesquisa; to- davia, a tentativa de reconstrugdo do saber juridico, a partir de identificagaio dos pressupostos ideoldgicos da dogmatica juridica, é precedida por um estudo metodoldégico prelimi- nar e pela avaliagéo das man agGes mais significativas do pensamento filosGfico e jusfilosofico, os quais constituem apro- ximagao A teoria critica. Além dos diferentes aspectos a que j4 se aludiu, a com- plexidade dos temas tratados exigiu cuidados especiais quanto a linguagem, ao método de exposigio e 4 ordem de apresentagiio. A fim de tornar a obra mais acessivel ao leitor situado fora do pequeno circulo dos versados na jusfilosofia, pro- curou-se evitar os excessos da linguagem permeada pelo tecnicismo, observando-se a tradugéo nas citagdes de tex- tos em idioma estrangeiro. A metodologia adotada procurou igualmente afastar o apego excessivo aos esquemas lineares da derivagao analiti- ca, de conclus6es inferidas a partir das premi: construfdas ao longo do texto, mas optou por um modelo circular de re- flexdo sobre as idéias exsurgidas no contexto do pensamento erftico. O trabalho é dividido em trés partes: a primeira exp6e os fundamentos epistemolégicos e metodolégicos da teoria critica do direito, bem como as vertentes, no contexto interdis- ciplinar da filosofia e da teoria da sociedade, em que foram forjadas as principais categorias do pensamento critico e que subsidiam a construgao das categorias criticas do direito: cons- titui 0 titulo I, com os quatro capitulos iniciais. Esse estudo propedéutico converge para os fundamentos epistemolégicos do direito segundo um enfoque correspondente 4 dimensfo do saber juridico definida como critica social. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. TITULOL O PENSAMENTO CRITICO aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 24 TEORIA CRITICA DO DIREITO. cismo, configurando um empiroceticismo, pois coloca em dtivida que o exame dos fatos da experiéncia possibilite ¢ mar aqueles principios como verdadeiros, pois a observagao oferece apenas 0 espetaculo de uma sucessao regular e nao 0 de uma necessdria ligagéo entre os fatos, ndo excluindo a possibilidade de que poderia ocorrer de modo diverso.’ Tal é 0 problema da objetividade do conhecimento cien- tifico, o qual, embora remonte aos pensadores socraticos3 revestiu-se de particular interesse a partir de nova vis processo de conhecimento introduzida por Kant. Trat uma primeira abordagem critica, configurando um criticismo gnoseologico. Kant, sob a influéncia do empiroceticismo de Hume, pretendeu supe: a antinomia da prevaléncia do sujeito ou do objeto no processo de conhecimento, concebendo as ca- tegorias como formas a priori do intelecto destinadas a coor- denar os dados da experiéncia. Assim, na visio do autor, os primeiros principios nado podem ser tirados da experiéncia, porque se constituem em formas independentes e aut6éno- mas do espirito, as quais se imprimem a si mesmas nos da- dos da experiéncia. Assim configurou-se, na hist6ria da filosofia, auténtica revolucdo coperniciana, com a inversao na ordem de prevaléncia dos elementos da relagdo cognoscitiva. Antes de Kant, a con- cepgio gnoseoldégica geral era a de que o intelecto receberia os dados dimanados dos objetos em sua forma exterior, 0 que parecia téo ébvio quanto a evidéncia ptolomaica de que a ter- ra seria © centro do universo. O criticismo kantiano demons- trou porém que, na relagiio entre 0 sujeito e o objeto do co- nhecimento, é 0 pr6prio intelecto, o fator sujeito portanto, capaz de exercer a fungao constitutiva em relagdo ao seu ob- jeto, pois é este que se reveste das formas que o espirito es belece de maneira apriorfstica, isto é, independentemente da DEL VECCHIO, Giorgio. Ob. cit, p. 167. * COELHO, Luiz Fernando. Introdugdo histérica a filosofia do direito, Rio de Janeiro: Forense, 1977. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 28 TEORIA CRITICA DO DIREITO g6es e inferéncias e procurando sua razao de ser, adquire 0 conhecimento hierarquia cientil ca. Conhecimento vulgar e conhecimento cientifico sao, pois, as duas modalidades dessa relagao intelectual entre o sujeito e 0 objeto. No primeiro, prevalecem as simples representa- ces Ou imagens mentais, no segundo, os conceitos produzi- dos pelas abstracg6es das imagens e dos préprios conceitos mais particularizados Oconjunto dos conceitos em torno de determinado objeto, ordenados conforme certas exigéncias de racionalidade que a tradigao filo: ‘a do ocidente desenvolveu, constitui a cién- cia. Tal é a definigado objetiva de ciéncia. Subjetivamente ela se confunde com o pr6éprio conhecimento, quando produzi- do segundo os paradigmas adotados pelo senso comum ted- rico de modo geral. Essas exigéncias da racionalidade ocidental formam um modelo de saber, ou paradigma, a0 qual se ajustam os re- sultados do conhecimento para formar o sistema cientifico, isto é, a ciéncia objetivamente considerada. E usual a separagao entre 0 conhecimento cientifico e 0 filos6fico. Trata-se de certa graduacio estabelecida em fun- gAo da maior ou menor generalidade dos conceitos, cuja fron- teira nfo é rigorosa. Costuma-se dizer que 0 conhecimento cientifico se preocupa com as causas imediatas dos fendme- nos e que o filos6fico dirige-se 4s causas mediatas ou primei- ras. Essa opiniao ¢ no minimo discutivel, j4 que 0 conceito de causa é controverso, além do que as causas dos fenéme- nos nao sio o tinico escopo do conhecimento. Penso que 0 conhecimento cientifico em si é substancialmente uno, mas se for necessdrio estabelecer uma separagaio deve-se levar em conta que a ciéncia corresponde a uma primeira abstra- ¢ao, pela qual se sistematizam, ou simplesmente retinem, os conceitos referidos imediatamente aos fendmenos, de acor- do com certas regras estabelecidas em fungao dos paradigmas da ciéncia, e que a filosofia corresponde a um segundo grau de abstragao, que ocorre no momento em que se produzem e retinem conceitos referidos aos préprios conceitos produ- aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 30 TEORIA CRITICA DO DIREITO objeto de ciéncia, nao obstante submetido ao enfoque deste segundo grau de abstragao. Nao resta dtivida de que o avan- go cientffico contribui para o enriquecimento do filos6fico. Nos dias atuais, quando as fronteiras do conhecimento tangenciam os limites da capacidade humana, a ciéncia e a filosofia se reencontram nesse limiar em que a inteligéncia parece hesitar em ir além de sua propria e, aparentemente, limitada capacidade. O reencontro da ciéncia e com a filoso- fia parece querer indicar 0 retorno da ciéncia ao seu tronco origindrio. O conhecimento é apandgio do ser humano e existe em fungao do homem. Esta fungaio pode traduzir-se de duas maneiras. Primeiramente, pela satisfacao intelectual do su- jeito em sentir estar-se realizando como ente racional, ou seja, o conhecimento pelo simples conhecimento, dentro da visao de que o nivel da humanidade tem alguma relagfo pro- porcional com o conhecimento. No entanto, desta visio nao se deve retirar a tese de que os seres humanos, aos quais nao foi dada a oportunidade de se educar, ou que, por fatores diversos, especialmente o subdesenvolvimento econémico, permanecem marginalizados das conquistas da civilizagao, possam ser considerados inferiores. Nao ha que se falar em escala humana, pois cada homem é dotado de humanidade, toda sua, que o dignifica enquanto individuo, mas que nao pode sobrep6-lo aos demais nem lhe concede direitos sobre a natureza. Isso vale para a produgdo do conhecimento, tan- to quanto para 0 uso que dele se faz. Aqui encontramos a segunda maneira de evidenciar 0 sentido humanistico da ciéncia. Trata-se da técnica. o saber a servico de alguma coisa. Toda ciéncia desemboca numa técnica e toda técnica é infor- mada por uma ou diversas ciéncias. Nao fosse a anterior salva a respeito do valor do conhecimento em si, como fator de perfeigao, dir-se-ia que a ciéncia sem a técnica é vazia, destitufda de contetido. A técnica é a criagio e o resul- tado da técnica € 0 conjunto de obras da humanidade, as quais formam a cultura e a civilizagao. res PRELIMINAR METODOLOGICO 31 Também aqui podem ser salientados dois aspectos: um relativo ao aperfeigoamento humano como realizagao de sua vocacao, quando a técnica se transmuta em arte e moral, e outro referido a objetividade do mundo exterior. No primeiro caso, intervém os valores estéticos e éticos, consubstanciados na beleza e no bem como sentidos da ati- vidade humana. O objetivo humanistico a que se vincula esse aspecto da técnica decorre do fato de que ela se realiza pela vivéncia individual, seja pela identificagdo pessoal com a be- leza através da obra artistica, seja pela identificagao com o bem através da conduta eticamente orientada. Em ambos os casos, com vistas ao aperfeigoamento pessoal, 0 que niio pode ser encarado isoladamente, pois € irrealizdvel sem que 0 todo, onde 0 individuo se insere, também se aperfeigoe. Isso de- corre da dimensio social do homem. Homem e sociedade, esta € a dialética fundamental de todo 0 conhecimento, de toda ciéncia e de toda filosofia. Quanto ao segundo aspecto, ele se manifesta no conjun- to de fatores destinados a estimular 0 aperfeigoamento da hu- manidade: a técnica propriamente dita, sob a égide de valo- res diversos, tais como a utilidade, 0 desenvolvimento, o tra- balho e o progresso tecnolégico, que nado se confundem com valores estéticos e éticos, embora estes no devam jamais estar ausentes de qualquer atividade humana. Ou seja, faz parte da vocacgaio do homem para seu préprio aperfeigoamento e para 0 aperfeigoamento de sua comunidade transpessoal, que ele busque realizar no trabalho tecnicamente orientado, além dos objetivos técnicos, os valores da beleza e do bem. A arte, a ética e a técnica constituem aspectos pragma- ticos da ciéncia, os niicleos dos fatores que a configuram como atividade criadora. A correlagio entre a ciéncia e aqueles nucleos também aqui se evidencia, pois nao existe arte ou técnica sem um mfnimo de ciéncia, como também € impensdvel uma ciéncia, por pura que possa ser, sem que 0 sujeito a exercite com um minimo de técnica, condigao para o desen- volvimento da ciéncia; e pode-se, igualmente, falar em uma 32 TEORIA CRITICA DO DIREITO ética-ciéncia a informar a elaboragio dos princfpios orientadores da conduta, tanto quanto em uma ética propriamente normativa ou pratica, identificada naqueles princfpios. Sado dois aspec- tos distintos a caracterizar a ética, de um lado como ciéncia, filosofia, doutrina ou ideologia, e de outro como norma de conduta. Tais consideragées explicam porque as pessoas costu- mam confundir técnica e ciéncia, cujas fronteiras, como vi- mos, no estao suficientemente definidas. Todavia, a partir da interagio sujeito/objeto, pode-se concluir que a ciéncia deixa de ser encarada como simples descrigdo da realidade, mas passa a ser vinculada 4 ordenagao racional da realida- de. Desaparecem as fronteiras entre a ciéncia e a técnica, pois enquanto a razio exige provas, recusando as certezas e expe- riéncias imediatas, ela reorganiza o mundo, nao para consta- tar a ordem que se pressupGe imanente, mas voltando-se para © futuro, para criar uma nova ordem, num processo inces- sante de construgao e reconstrugado da realidade, nao a falsa realidade petrificada nos fantasmas da razao abstrata, mas 0 real concreto da razfo dialética, a realidade da qual o homem € participe atuante e seu auténtico criador. Resta finalmente a compreensao de que o conhecimen- to, em todos os graus e sob qualquer aspecto, deve estar a servicgo do homem, e s6 é valido na medida em que contribui para sua plena realizagdo, ontol6gica e eudemonistica, como pessoa, como sociedade e como humanidade. A consciéncia dessa dimensao e da unidade que dela decorre entre 0 pensar e 0 agir, e entre ambos concebidos unitariamente e 0 préprio ser, constituem o ponto de partida, © fundamento do repensar de toda a metodologia cientifica, que desemboca no pensamento dialético. 2. O PENSAMENTO DIALETICO Platao considera 0 processo gnésico como dividido em trés partes ou etapas: a dialética, a éticu e a fisica. A dialética designa a etapa que corresponde ao descobrimento das idéias e de suas relag6es, elevando-se a alma humana ao nivel dos PRELIMINAR METODOLGGICO 33 principios-ideais que impregnam 0 cosmos da natureza e 0 cosmos da sociedade; a ética corresponde ao processo de derivagio desses principios-ideais para estabelecer o cosmos da sociedade; e a fisica refere-se 4 construc&o do cosmos da natureza mediante as idéias. Nessa concepe¢ao inicial, a dialética € a mais elevada das ciéncias, tendo por forma o didlogo e por contetido a descoberta da ordem dos conceitos e dos seres, segundo uma hierarquia presidida pelo bem. Os criticos modernos atribuem a dialética platénica o significado de movimento do espirito, que se eleva do singu- lar ao universal, ou seja, das sensagGes as idéias, da beleza ao principio do belo, dos fins individuais 4 justic¢a universal. Assim, quando se relaciona 0 platonismo com essas trés or- dens, fala-se separadamente numa dialética dos conceitos, numa dialética dos sentimentos e numa dialética das aces. Por outro lado, € possivel ainda distinguir em Platao trés significados do termo dialética, mais ou menos comple- mentares: como arte do didlogo e da discussao, como técnica relativa a classificagao dos conceitos e como postura metodo- l6gica relativa 4 maneira de remontar aos primeiros princi- pios e as idéias mais gerais, as quais, para o filésofo, tém valor ontolégico. Em Aristoteles, a dialética €é uma das formas do pensa- mento légico. O estagirita denomina dialéticos aos silogismos que, baseados em t6picos (7opoi), premissas apenas prova- veis, levam a conclusdes também provaveis e que, por isso, distinguem-se dos silogismos apoditicos. O pensar dialético, estudado na Tépica, é o niicleo da retérica, entendida como atividade tedrica voltada para a persuasdo. A dialética aristotélica se configura, pois, como o elo de ligagiio entre a analitica e a retdrica, com 0 predominio do significado metodolégico haurido em Platao.” 7 DILTHEY, Wilhelm. Hist6ria da filosofia. Trad. de Manuel Fraziio. Lisboa: Presenga, p. 71. Tb. FRANCA, Pe. Leonel S. J. Ligdes de historia da filosofia. 2. ed. Rio de Janeiro: AGIR, 1969, p. 55. Sobre a dialética aristotélica, v. 34 TEORIA CRITICA DO DIREITO Em Kant, a dialética é relacionada com a légica transcen- dental, definida como o estudo das condigées, a priori, do entendimento, a qual se distingue da dialética transcendental, © estudo das aparéncias transcendentais, as que resultam da natureza mesma do espirito. Essas aparéncias transcendentais completam o contexto formado pelas aparéncias l6gicas, como os sofismas, e pelas empiricas, como as ilusGes de 6tica. Assim, os raciocinios ilusGrios sao denominados dialéticos e a dialética em geral € definida como uma légica da aparéncia. Para Hegel, a dialética consiste numa aplicagio cientifi- ca do princfpio, inerente ao pensamento em si mesmo, de sua conformidade as leis do seu préprio desenvolvimento e do desenvolvimento do ser em geral. Essas leis se manifestam como um processo de tese, antitese e sintese, o qual revela 0 tornar-se ou o vir a ser. Cada coisa, cada ente, é, ao mesmo tempo, uma sintese da tese e antftese anteriores e também sua contradig&o, que se superam em outra sfntese superior, afirmada como nova tese a engendrar sua prépria e nova antitese, numa trans- formagio continua e ascendente. A mesma lei estio sujei- tas as transformagGes do espirito, as quais engendram as da matéria. O mundo nao é um conjunto de unidades auté- nomas, pois a Gnica coisa completamente independente € o todo, que, para Hegel, equivale ao ser absoluto, o qual é igualmente dinamico. Em seu dinamismo imanente, 0 absoluto exterioriza seu proprio ser, engendrando a natureza. Mas o absoluto, como tese oposta 4 natureza, isto 6, como sua antitese, retorna a si, como sintese suprema, no momento em que toma cons- ciéncia de seu préprio ser, de sua mesmeidade. E assim, as transformagées do espirito, sujeitas a idéntico processo triddico, ANDRADE, Almir de. A dialética aristotélica e 0 principio de contradi¢ao. Revista Brasileira de Cultura, Brasilia, MEC, Conselho Federal de Cultura, n. 5, p.95. Tb. Vide a propésito, de autoria de Fabio Ulhoa Coelho, 0 prefiicio. A edi¢ao brasileira do Trarado da argumentagao de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, publicado pela Martins Fontes em 1996, cuja terceira tira- gem éde 1999, PRELIMINAR METODOLOGICO. 35 dao origem As transformag6es da matéria. Por isso, Hegel identifica o mundo racional com a prépria realidade, pois tudo o que é real é racional e tudo o que é racional é real.* O pensamento, seguindo suas préprias leis, ocorre tam- bém na conformidade do desenvolvimento do ser e, em con- seqiiéncia, 0 processo dialético é a verdadeira natureza pr6- pria das determinagées do entendimento, das coisas e, de modo geral, do finito,’e consiste, essencialmente, em se conhecer a unidade dos contrérios e descobrir o principio dessa uniéo em uma categoria superior. Pela primazia concedida ao espiritual sobre o material, a dialética hegeliana é idealista, idealismo que impregnou a maior parte da filosofia p6s-hegeliana. Mas no contexto da prépria escola de Hegel inicia-se a conversdo do idealismo para 0 materialismo, gragas a Feuerbach, obra completada por Karl Marx. Esse materialismo pés-hegeliano fixou-se no princfpio de que, ao contrario do que afirmara o idealismo hegeliano, siio as coisas que se transformam, sendo que essas transfor- mag6es refletem-se no pensamento, dando origem as idéias. Esta visao materialista aceita o principio triddico da evolugaio dialética das coisas, mas nega a realidade do espirito, redu- zindo-o a reflexo ou representagao da realidade material. Em Marx, a evolugio da sociedade € explicada por suas contradig6es internas, donde a nogio de luta de classes a impulsionar a histéria e 0 progresso econ6mico-social. A classe momentaneamente dominante, formada pe- los detentores dos meios de produgdo, tem sua prépria an- titese identificada na massa dos dominados, a classe dos prole- * HEGEL, Georg W. Friedrich. A fenomenologia do espirito. Trad. de Henrique Claudio de Lima Vaz. Sao Paulo: Abril Cultural, 1974, v. XXX. (Colegdo Os Pensadores). Tb. Hegel y la Escuela Hegeliana, Trad. José Gaos. Madrid: Revista do Ocidente, 1931. Idem. Enziclopiidie der Philosophischen Wissenschaften. Hamburg: Verlag von Felix-Meine, 1959. 36 TEORIA CRITICA DO DIREITO tdrios que, ao assumir 0 poder, geraré nova sociedade, mais livre e igualitaria e menos opressiva. Este materialismo dialético levou a uma nova interpre- tagio da hist6ria, cujos atores, em vez de herdis, monar- cas, santos e generais, sio os trabalhadores, sendo o traba- Iho a grande forga que move a sociedade. Por esta visio dia- lética da hist6ria compreende-se como, no mundo antigo, os escravos constitufam a antitese das castas privilegiadas, re- sultando a sociedade medieval como sintese do desapareci- mento das classes antag6nicas do mundo romano, que eram os escravos e os patricios, estes aliados ou apoiados na clas- se plebéia. No mundo medieval, os polos dessa dialética eram cons- titufdos pela nobreza aliada ao clero, tendo a burguesia mar- ginalizada como antitese; esta, ao erigir-se em classe domi- nante através das revolucGes burguesas — 0 processo dialético é necessariamente violento -, que eclodiram na Europa entre os séculos XII e XVIII, época da formagio e consolidagao do Estado moderno, engendrou sua prépria antitese, consti- tuida pelo proletariado. Ainda, segundo esta cosmovisio, no momento em que © operariado assumir o poder, haveré o equilibrio social, pois esta classe nao permitiré a instituigao de grupos privilegiados, desaparecendo, com a aboligao da pro- priedade privada, a prépria razdo de ser da luta de classes. Segundo a concepgao ortodoxa do marxismo, as revo- lugGes sao inexoravelmente violentas, por corresponderem a lei da autodestruigao das classes antagénicas erigidas em tese e antitese; ou seja, toda sociedade que se afirma como or- dem mais ou menos estdvel constitui a sintese da oposi¢a do conflito entre as classes sociais que haviam se afirmado como tese e antitese naquela ordem social superada, isto é, tera sido construfda sobre os escombros da ordem social anterior. Esta, para Marx, é intrinsecamente injusta, porque fundada na propriedade privada e na produg&o da mais-va- lia, exigindo a exploragio do homem pelo homem em virtude de sua prépria légica. Eis aqui, sumariamente, a concepgao dialética da hist6- ria, a qual tem sido utilizada pela ala extremista do marxismo PRELIMINAR METODOLOGICO, 37 para legitimar, tanto a violéncia revoluciondria no interior das nagGes quanto a violéncia internacional que culmina no ter- rorismo. Tal violéncia, para os marxistas ortodoxos, nao é somente uma necessidade revolucionaria, ela é inevitdvel, pois sua implicagao provém de uma lei natural, o principio dialético da evolugio do ser social. O marxismo consolida a cosmovisao dialética, concebi- da em dois planos: objetivamente, como processo de desen- volvimento da realidade, segundo as leis que lhe sao préprias ou imanentes,' ¢ subjetivamente, como a apreensio cognos- citiva desse desenvolvimento. Entretanto, 0 fator contradigdo que, tanto em Marx como em Hegel é a prépria esséncia do pensar dialético, passa a configurar apenas um dos aspectos de uma totalidade. Neste sentido alude Reale a uma dialética de complementariedade ou de implicagao, que compreende um processo din&mico e aberto, no qual os elementos se implicam e se complementam, inclusive os elementos opostos que, sem se anularem numa sintese superior, simplesmente se integram numa estrutura totalizadora e totalizada. A dialética, desde a antigiiidade, foi entao pensada sob duas formas distintas: como arte de operar com conceitos, correspondendo ao sentido plat6énico, e como processo de assimilagio tedrica da realidade, sentido jA detectado em Her4clito. Observa Kopnin que esses dois modos de conce- ber a dialética opunham-se como 0 légico ao ontolégico, ten- do Hegel procedido @ sua identificagao no sentido idealista e Marx no sentido materialista.'! Hoje em dia a dialética é a propria mundividéncia que, pressupondo o movimento imanente do ser, considera 0 ente em sua totalidade, a qual se volta para si mesma como indivi- dualidade total e se projeta no mundo como implicagao total. REALE, Miguel. Ligdes preliminares de direito.3. ed. Sao Paulo: Saraiva, 1976, p.90. KOPNIN, P. V. Fundamentos ldgicos da ciéncia. Trad. de Paulo Azevedo, Rio de Janeiro: Civilizagaio Brasileira, 1972, p.74. 38 TEORIA CRITICA DO DIREITO O sentido do movimento esté presente em todas as dialéticas, da plat6nica 4 marxiana, ¢ nao escapa, ainda que sutilmente, ao silogismo dialético de Aristételes e & Id6gica das aparéncias de Kant. A dialética entende que o estado de parado ou estdtico € mera abstragao e que a realidade das coisas € 6 movimento ou dinamicidade, o qual ocorre em varias dimensGes: hd uma dinamicidade espacial que se ma- nifesta no movimento da matéria no espago; uma dinamicidade temporal que se expressa no desenvolvimento do ser no tempo; ha dinamicidade légica na atitude do espirito que relaciona conceitos, formando jufzos e raciocfnios; ¢ ha dinamicidade 6ntica no desenvolvimento das co’ em obediéncia as for- gas que Ihe sao imanentes. Essas quatro dimensdes do movi- mento, espacial, temporal, légica e ontolégica, estao presen- tes, respectivamente, na natureza, na histéria, no pensamen- to e no ser em geral, isto é, nos fenédmenos, constituindo o fundamento de uma dialética da natureza, uma dialética da histéria, uma ldgica dialética e uma dialética fenomenolédgica. O pensamento dialético vislumbra, portanto, os objetos do conhecimento do ponto de vista de sua dinamicidade. Nao exclui todavia 0 conhecimento metafisico tradicional nem o desvaloriza, mas o abarca e 0 utiliza, integrando-o no mes- mo processo dinamico. E assim, a légica dialética, que cor- responde a uma razao dialética, nio exclui a légica formal, correspondente 4 razfo analftica, mas a absorve e completa, por consider4-la insuficiente para a compreensao de certos fen6menos. Isso envolve um novo logos que niio se opée pro- priamente ao pensamento analftico, mas o supera em fungdo da compreensio do real em outro plano, o do movimento im- bricado com a totalidade. Assim, a légica dialética implica a metodologia do préprio pensar no sentido da verdade objeti- va, porque articula o pensamento com as leis do préprio objeto. Vieira Pinto, depois de advertir que as operagdes do pen- samento sao de carater cognoscitivo ¢ destinam-se a apreen- sao dos contetidos inteligiveis de todo dado existente, distin- gue duas possibilidades de pensar, correspondendo, respecti- vamente, a l6gica dialética e 4 formal. Aquela assume, neste PRELIMINAR METODOLOGICO. 39 autor, foros de modalidade do pensamento légico e & consi- derada parte da ciéncia da légica; neste sentido, a dialética “diz respeito 4 compreensao dos processos de pensamento, referindo-os ao curso do seu desenvolvimento, enquanto ma- nifestagao da faculdade historica do animal humano em evo- lugdo, de captar as leis mais gerais e intimas da ordem e da atividade dos seres. A dialética constitui-se nesta forma es- pecial de concepgao légica, justamente porque aprecia 0 pro- cesso da génese do pensamento em fungiio dos processos de desenvolvimento da realidade em conjunto.”!? Assim sendo, a dialética é sistema de pensamento racional que reflete fidedig- naimente o movimento real das transformagdes que se pas- sam no mundo exterior, fisico e social.’ A légica formal, Vieira Pinto considera nociva na medida em que “obstaculiza © caminho da compreensao dialética, evolutiva, hist6rica da ldgica, cegando-nos desde 0 primeiro momento para a acei- tagao da racionalidade como processo bioldgico que se de- senvolve ao longo de toda a escala animal, culminando na autoconsciéncia de que o homem é dotado.”* Nio concordo com esta capitis diminutio da légica formal, jA que ambas tém sua razao de ser segundo os obje- tivos colimados pela atividade pensante. Além disso, o pensamento € uno, sendo a légica formal e a dialética dois momentos de uma elaboracao racional que em si € una. Pode-se afirmar que as abstrag6es matemiaticas constituem 0 lado extremo do campo privilegiado da légica formal e que a ciéncia da sociedade, o campo privilegiado da légica dialética. O que nao se admite é a mitua exclusao das duas maneiras de pensar o objeto nem a oposigao entre elas, pois 0 pensamento e 0 objeto sio os mesmos em ambas as l6gicas, num sentido de complementariedade que vem a ser a propria esséncia da dialética. PINTO, Alvaro Vieira. Ciéncia ¢ existéncia. Rio de Janeiro: Paze Terra, 1969, p68. Idem. ‘Idem. 40 TEORIA CRITICA DO DIREITO. Todavia, o autor citado nos conduz a duas nogGes fun- damentais para o pensamento critico: a de transformagdo e a de autoconsciéncia, as quais nos vao abrir 0 caminho para uma dialética da sociedade a que denomino dialética da par- ticipagao. Ela vem a ser 0 ponto de convergéncia, no con- texto da ciéncias da sociedade, das aproximagées parciais providas pelo pensamento dialético. 3. A DIAL ICA DA PARTICIPACAO O pensamento dialético, ao vislumbrar a totalidade e 0 movimento em que os objetos se constituem, engendra um problema epistemolégico insolivel sob 0 ponto de vista do paradigma positivista de ciéncia, a aporia manifesta na im- possibilidade de um conhecimento do social através dos mo- delos cientificos tradicionais, as formas de saber assimiladas no senso comum. Se aceitarmos que o campo privilegiado do pensamento dialético é 0 ser social, a primeira conseqiiéncia desta nova maneira de vislumbré-lo como objeto cientffico sera ent4o a necessidade de construir um paradigma de saber adequado as especificidades deste objeto, superando os mo- delos dimanados da concepgio positivista. Na esteira da undécima tese, é necessdrio advertir inicial- mente que a proposta de uma teoria critica aceita como basilar que, muito mais do que descrever o social nas suas relagdes de causalidade ou funcionalidade, importe as agdes que se traduzem na sua transformagao objetiva. Por isso, encarar dialeticamente as manifestagdes da vida social, entre as quais o direito, importa em considerd-las em sua totalidade e dina- micidade imanentes. Essa cosmovisao implica a consciéncia de que. se 0 sujeito cognoscente — em nosso caso o jurista — € parte do objeto que estuda, o fenédmeno juridico, a prépria atividade de conhecer o direito, tal como em relagao a socie- dade, jé é uma atuagio participativa que modifica 0 objeto. O grau de consciéncia dessa participagao, quando o sujeito a assume como algo que ele mesmo se propde, completa a dia- aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 44 TEORIA CRITICA DO DIREITO genuamente acredita nessa falsa identidade entre o real ¢ 0 conceitual, entre a realidade objetiva e o imagindrio que se reputa racional, seja porque conscientemente adere ao ima- gindrio como se fosse real, seja ainda porque, em se dando conta da insuficiéncia do proprio conhecimento, trata de es- camotear a realidade por procedimentos considerados cienti- ficos pelo senso comum, sua atitude é ideolégica. Nao que © conhecimento situado num plano ideoldégico nao possa ser cientifico, mas sim, que a inconsciéncia ideoldgica que tra- duz a alienagéo compromete a cientificidade, cujo escopo liltimo € o real. E que o sujeito constrdi o objeto mediante o conhecimento, apesar da evidéncia de que 0 mundo exterior existe independentemente do homem, na medida em que esse mundo é conhecido, deixa de ser somente mundo e passa a ser objeto. Embora a realidade possa ser concebida como algo independente, ela inexiste enquanto se objetiva para o homem e pela medi 5 do homem. Em conseqiiéncia, 0 co- nhecimento nao se dirige propriamente & realidade, qual seja, & natureza, ao mundo, a sociedade € ao préprio homem, mas & realidade construfda em fungao das representagdes. O ob- jeto do conhecimento sao essas formas fenoménicas do real, as aparéncias que se reproduzem na mente dos individuos in- seridos numa praxis hist6rica. E essa realidade construfda pelo préprio conhecimento.'’ Dai que o objeto do conhecimento, no senso comum, transcende o mundo real, ele nao se limita 4 matéria, mas pode consistir no imaterial, abstrato ou metafisico e até no imaginario, ou ainda em objetos cujo ser se exaure no pr6- prio ato de pensd-los, como as entidades légicas. Ha objetos ainda constitufdos por algo que s6 pode ser concebido em fungao de uma totalidade, como as coisas culturais e a pré- pria sociedade, também o direito, a moral, a religiao, a cién- cia e a filosofi 1. Em suma, objetos que se manifestam no complexo dos fendmenos imediatos e auto-evidentes, que os " KOSIC, Karol. Dialéticado voncreto. Trad. de Célia Neves e Alderico Toribio. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 9e ss. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 48 TEORIA CRITICA DO DIREITO metia, renunciando a adaptagao dessas possibilidades as exi- géncias conscientes ou inconscientes, determinadas pelas mo- dificagdes do préprio objeto, implicados pela agdo do sujeito cognoscente. Na consideragaéo ontolégica da dialética da participa- cao, os estratos ideolégico e social se fundem na mesma unidade e projetam-se prospectivamente, nio como condicio- nantes da acaio do sujeito, mas como o meio onde esta ocor- re. Daf que as categorias, mediante as quais 0 sujeito pensa, age ¢ interage na agio politico-social, nado podem ser nem inteiramente abstratas nem universais, € muito menos neu- was em relagao ao estrato ideolégico do social. Pelo contré- rio, as categorias dimanadas da dialética da participagao de- vem corresponder a um espago e a um tempo historicamen- te definidos, jamais constituindo fim em si mesmas, mas adqui- tindo significado real e concreto na medida em que sao os meios de compreensao holistico da sociedade, envolvendo a op¢ao politica pela transformacdo dessa mesma sociedade. Em outras palavras, as categorias do pensamento criti- co interpretam a realidade fazendo parte dessa mesma reali- dade, com ela interagindo como categorias transformadoras. O tempo e 0 espaco histéricos a que se referem sao 0 mundo atual, com toda sua carga de sofrimento, a exigir um posi- cionamento por parte das pessoas que dele tomam conscién- cia, nao se deixando seduzir pela adesdo reacionaria a uma ordem social que precisa ser transformada, nem permane- cendo naquele estado de inconsciéncia social, em que o s jeito se deixa levar pela manipulagao das idéias em beneficio dos grupos e individuos privilegiados. O mundo atual reme- te-nos ao complexo das relagGes humanas em seus diversos estratos de manifestagao, tais como 0 econémico, o politico, 0 social e 0 juridico, determinados em fungio da histéria. E essa concregio histérica que vai evitar que as categorias da dialética da participagao se purifiquem, se isolem atras de uma aparéncia de neutralidade ideolégica, mas se confun- dem com o proprio real em sua imanente dialeticidade. O papel das categorias exsurge da ativa relacdo entre 0 cientista e o ambiente 0 qual ele pretende modificar, derivado aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. wn n TEORIA CRITICA DO DIREITO Dai que as quais 0 pensamento criti- co se prope a tarefa de conscientizagdo nao configuram in- vengao do autor, nem podem ser atribuidas a determinado filésofo ou sistema filos6fico. Elas constituem produto de pa- ciente elaboragao intelectual, dentro do processo de constru- co do patrim6nio cultural da humanidade, representadas lingit ticamente como sociedade, ideologia, alienagdo e praxis; mas também poder, hegemonia, legitimagdo, trabalho, liber- dade, direitos humanos, democracia, Estado de Direito e outras consideradas pela eritica social. as categorias com Mas a dialética da participagdo erige como categorias fundamentais os conceitos de sociedade, ideologia, aliena- ¢do e praxis, que vém a ser o nticleo do pensamento critico e que permeiam todas as outras, as quais ficam assim despo- jadas de sua conotagéo metafisica tradicional e passam a inte- grar-se no mesmo projeto politico da transformagio social. Elas foram hauridas no contexto interdisciplinar das con- tribuigdes da filosofia contemporanea ao pensamento critico, entre as quais merecem especial destaque a fenomenologia de Edmund Husserl, a sociologia de Max Weber, a concepgio dialética da histéria de Karl Marx, a teoria critica da sociedade da escola de Frankfurt, a epistemologia de Karl Popper e Gas- ton Bachelard. a lingtifstica de Ferdinand de Saussure, a psica- nélise de Sigmund Freud e a sociopsicandlise pés-freudiana A obra desses autores constituem vertentes privilegia- das do pensamento critico, sem se erigirem em obstéculo para outras contribuigdes nado menos valios: aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 56 TEORIA CRITICA DO DIREITO cimento do social através das formas de saber assimiladas pelo senso comuin, Desde os gregos, 0 senso comum internalizara um con- junto de praticas e concepgGes que, enriquecidas pelos prin- cfpios elaborados tanto pelo racionalismo, quanto pelo em- pirismo, vieram a culminar no positivismo e no neopositivismo, consolidando um modelo de saber definido como ciéncia. Nesta cosmovisao, 0 conceito de ciéncia pGde ser ela- borado a partir de certas caracterfsticas bé S que O senso comum vem atribuindo ao conhecimento voltado para a des- coberta da verdade. Caracterfsticas que, ja no século IV a.C., foram sistematizadas pelos pensadores socraticos: hilemorfismo, racionalismo, atomismo e universalismo. O hilemorfismo enfatiza que a verdade radica na idéia, a esséncia imutdvel e eterna, a “forma”, no sentido platoni- co, mas que existe em intima e indissoltivel unido com a materia, na qual deve ser procurada. O racionalismo estabe- lece que a verdade é racional, que 0 valor do conhecimento radica na possibilidade de sua demonstragio a partir de pres- supostos aceitos pela razio como de verdade evidente (dog- matismo). O atomismo privilegia a concepgiio at6mica do mundo, a idéia de que as coisas sao constitufdas por partfcu- las elementares, sendo que a descoberta da verdade é depen- dente do conhecimento da menor dessas partes. Assim, a cien- tificidade do conhecimento depende de sua capacidade de di- vidir 0 objeto em suas partes componentes para explicd-lo em suas causas e efeitos. O universalismo finalmente postula que a verdade é universal, ou seja, una, eterna e imutdvel. Antecede assim que um enunciado, para conquistar 0 grau de cientifico, precisa ser aceito como verdadeiro em todo o tem- po e lugar. Tais caracteristicas, que definiam a elaboragado teérica como cientifica, emanavam ainda da crenga no significado aut6nomo da realidade, a qual se impunha ao sujeito cognoscente em virtude de uma normatividade também imanente. Ou sej as “leis” da natureza exsurgiam do préprio objeto e condicio- navam, metodologicamente, 0 respectivo conhecer. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 60. TEORIA CRITICA DO DIREITO dessa condigao todos os critérios subjetivos ou sociais deter- minantes dos processos de significagdo.* Em outras palavras, uma ciéncia do social, do direito ou da histéria, é algo im- possivel,* pois do ponto de vista da objetividade, s6 & possi- vel fazer ciéncia do social se o seu objeto for concebido como ente real ou ideal. E assim, os conceitos éticos funda- mentais nfo séo verificéveis, pois nenhum critério pode ser- vir como referencial para sua validade, e s6 é possivel argu- Ss pressupondo-se um sistema mentar sobre questGes mor de valores.* repensar dos fundamentos metodologicos das cién- is poderia levar a elaboragado de novos paradigmas, mais adequados 4 visdo dindmica e holistica exigida pelos objetos daquelas ciéncias, sobretudo, seria necessdrio repen- sar o problema da objetividade e estabelecer novos critérios de verdade para o conhecimento do social. E af que a epistemologia critica vai introduzir 0 concei- to de “construgaéo objetiva” fazendo integrar-se aos modelos de saber a determinagao, no plano conceitual, de uma elabo- ragao teérica a partir do futuro, separando o velho saber descritivo e retrospectivo dos modelos positivistas. Segundo este novo modelo, todo conhecimento cienti- fico é uma a ruptura com © conhecimento comum, procuran- spectos do real que nado sao dados imediatos, mas resultados construfdos pelo cientista. A racionalidade é, assim, projetada em outro plano, 0 construtivo em oposigao ao descritivo, 0 operacional em oposigao ao causal. O pres- suposto que esta na base do novo modelo é a cons ata WARAT, Luis Alberto. La Filosofia Lingtifstica y el Discurso de la Ciencia Social. Revista Seqtiéncia, Florianopolis, n. 1, 1980. Ver tb. do mesmo autor: Mitos ¢ teorias na interpretagao da lei. Porto Alegre: Sintese. 1979. Tb. HABERMAS, Jiirgen. Pensamento pds-metafisico: estudos filoséficos. Trad, de Flavio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. * WARAT, Luis Alberto. Ob. cit + AYER, A.J. Eletrculode Viena. Ct. por FARRE! del positivismo légico. Ob. cit., p. 133. Martin Diego. La metodologia aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 64 TEORIA CRITICA DO DIREITO ciéncia é conscientizar-se do papel criador ¢ transformador do cientista, tanto na natureza quanto na sociedade. Mais importante do que 0 padrao metodolégico é o projeto politi- co, e mais importante do que a descrigdo do projeto € sua realizagao. O pensamento critico vem justamente responder ao anseio por um novo paradigma que seja capaz de superar os proble- mas da objetividade das ciéncias sociais e que possa contri- buir para a solucao dos imensos problemas da humanidade. Eles nao podem continuar sendo elididos numa falsa neutra- lidade cientifica. A epistemologia vem a ser vertente do pensamento cri- tico em dois momentos: a) num primeiro, pelo questionamento da pretensao de verdade do paradigma neopositivista quan- do se verificou que, se a verdade pode ser definida como a correspondéncia com os fatos, também os fatos podem ser definidos como a correspondéncia com a verdade,'’ o que é oO mesmo que asseverar que a realidade, tal como a concebe- mos, € construfda pelo saber: e b) quando se constatou que 0 critério da objetividade apenas elidia os significados dima- nados da produgdo social, que nio pudessem reduzir-se a uma objetividade empfrica ou analitica, mas que nao tinha o condao de destrui-la como verdade. Quando surgiu o problema da natureza ontolégica do social enquanto objeto de conhecimento, verificou-se que ele nao poderia ser abstratamente concebido como algo real, um fato in abstracto, pois nele estao mesclados elementos ideais que determinam secu significado. As némicos estao mesclados com objetos ideais, como moeda, valor, capital, mercadoria, prego, lucro, saldrio etc.; e os fa- tos do direito, com lei, norma, ordem, seguranga etc. im, os fatos eco- A solugao para esta auténtica aporia, a questio da obje- tividade das ciéncias sociais, foi primeiro tentada no sentido do culturalismo, mediante a elaboragio do paradigma dialético. POPPER, Karl. Conhecimento objetivo. Ob.cit., p.203. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 68 TEORIA CRITICA DO DIREITO que as significagGes sao operacionais, pois tem sua génese no préprio homem. Para ela as coisas nado tém um significa- do em si, mas que este deflui da fungao semidtica dos signos que as representam, ou seja, que todo significado é ideolégi- co. Assim sendo, a sintaxe e a semantica néo podem ser con- sideradas isoladamente, mas ambas tém base pragmitica.'* O significado passa, portanto, a constituir meio de acesso a agdo politica, desde que se deixe de encardé-lo em sua pu- reza e em seu isolamento semanticos, mas se o considere em seus efeitos na comunidade onde sao empregados os respec- tivos signos. Todo signo envolve um significante e um significado, 0 qual compreende uma designagdo, uma conotagéo e uma denotagio. A designagio é 0 conjunto de requisitos que a denotagiio deve preencher, e esta corresponde ao conjunto dos objetos que satisfazem aquelas condigées designativas, as quais se articulam com © aspecto idcolégico que coloca- mos na definigaéo de um objeto. Esse aspecto é precisamente a conotagao. Tais consideragées, elaboradas no contexto de um ‘Sa- ber relativamente circunscrito, sio repensadas em s plicagées mais amplas e profundas na filosofia da linguagem e da comunicagao Considera-se Wittgenstein o fundador, ou pelo menos 0 pioneiro da filosofia da linguagem. Na verdade, ja muito an- tes ela deixara de ser considerada simples sistema de signos que exprimem pensamentos, algo secunddrio em relacdo as idéias, para integrar-se 4 totalidade do ser: a linguagem passa a ser encarada como instituigdo, dentro da qual se formam identidades humanas, e por meio da qual as pessoas estabe- lecem o mundo em que vivem. Antes de Wittgenstein, Charles Sanders Pierce, fundador do pragmatismo e um dos pionei- ros da moderna Idgica matematica, afirmava que a sua lin- “ FERRAZJR., Tércio Sampaio. Direito, retérica e comunicagdo. Sao Paulo: raiva, 1973. Tb. TODOROV. T.; DUCRO, O. Diciondirio enciclopédico das ciéncias da linguagem. Sio Paulo: Perspectiva, 197, p.96. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 72 TEORIA CRITICA DO DIREITO explicagao dos fendmenos culturais. O pensamento critico vem, assim, buscar apoio em Freud para encontrar respostas a inumeras problematizagoes atinentes as relagdes intersub- jetivas e a vida social em geral. Entre essas problematizacGes, destacam-se as que tra- tam de explicar o fendmeno da ideologia, onde se acham presentes explicagées elaboradas pelo prdprio Freud, articu- ladas em torno do conceito de identificagdo, a mais remota expressao de um lago emocional com outra pessoa, uma das formas de defesa do inconsciente; esta consiste, precisamen- te, num processo de interiorizagao, seja de certo aconteci- mento, seja de uma pessoa, instituigao, ou mesmo de um ideal. Desta forma, ocorre a identificagao ao chefe ou a uma idéia, por exemplo, a nacao, o regime, o partido," traduzindo © que veio a ser designado como amor ao censor.° No universo teérico que procura explicar as origens das instituigdes sociais, destaca Freud as observagées an- tropolégicas que levaram a crenga de que a origem dos ho- mens é& marcada pelo convivio sob 0 que se convencionou denominar hordas, cada uma delas sob a dominagao de um macho violento e ciumento, déspota absoluto e senhor de todas as fémeas, dono da vida e da morte de seus filhos, vistos como rivais. Estes se revoltam, matam o pai e 0 de- voram. Apés o parricidio, arrependem-se, interiorizam © re- morso, unem-se fraternalmente e renunciam & posse sobre as mulheres de seu pai. Esta é a origem da exogamia e da proibigio do incesto, bem como 0 inicio da obediéncia as leis, * RAUCENT, L. Cours d’introduction a la theorie génerale dit droit. Bruxelles: Cabay 1980, p. 112. LEGENDRE, Pierre. L'amour du censeur: Essai sur Vordre dogmatique. Paris, 1974. Ver ainda, de outra perspectiva, MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Sujeitos coletivos de direito: pode-se consideré-los a partir de uma referéncia A psicandlise? Revista de Direito Alternativo. n. 3, 1994, p.79 ess. Tb. MAR- QUES NETO, Agostinho Ramalho. Subsidios para pensar a possibilidade de articular direitoe psicanilise, In; Direito eneoliberalismo, Elementos parauma leitura interdisciplinar Curitiba: EDIBEJ, 1996, p. 19 ess. Tb, ROUANET, Sér- gio P. Teoriacriticae psicandlise. 4. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1998. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 76 TEORIA CRITICA DO DIREITO nao-impulso de morte e canibalismo. Também, nao pode- mos escapar ao dominio da maioria por uma minoria, pois, pondera Freud, a massa humana nao renunciaria a seus tintos por argumentos, mas somente mediante a coagao. S6 pela influéncia dos melhores dotados, reconhecidos como dirigentes, podem os individuos do grupo social ser movidos a realizagao do trabalho e a rentincia aos instintos, pois isso ssegura a estabilidade da civilizagao. Enfim, decorre da andlise freudiana que as instituigdes sé podem ser conservadas gra- gas a um minimo de coagio, e que os individuos n&o encon- tram prazer no trabalho, nao aceitando argumentos contra seus sofrimentos. As classes desprezadas invejam os privile- giados, e isso faz desenvolver-se uma soma durdvel de insa- tisfagao no meio civilizado, e os oprimidos desenvolvem contra a civilizagdo uma hostilidade intensa e, pelo trabalho, procu- ram adquirir uma pequena parte dos bens culturais. Assim os oprimidos n&o interiorizam as proibicGes (superego, moral, religiao e direito), antes as reconhecem e esforcam-se por destruir a propria civilizagdo, suprimindo-Ihe até os propési- tos. A hostilidade 4 cultura é tao patente nessas classes, que até faz cair no esquecimento a hostilidade para com as clas- ses sociais dirigentes. ins- A soma de interiorizagdo das normas culturais ~ que é o nivel moral dos individuos — nao é 0 tinico bem psiquico que traz dignidade a uma civilizagaio. Existem também os ideais e as criagdes artisticas, cujos resultados extraidos de ambos Freud denomina sublimagdo.*° A satisfagado nas coisas da arte e da cultura é uma forga que se antep6e a hostilidade natural do homem contra a civi- lizagao. Nao é sé a classe privilegiada que goza de certos be- neficios da evolugao cultural, como cinema, televisio, tea- tro, artes plasticas, mtisica, danga, gindstica, jogos, mas tam- bém os oprimidos. Ao participar, eles sentem-se com o direi- to de desprezar os beneficios das outras culturas, 0 que com- pensa os danos sofridos dentro da sua prépria. O homem ® Tbidem, p. 24, aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 80 TEORIA CRITICA DO DIREITO Mas além dessa aproximagio propriamente freudiana ao pensamento critico, este se apresenta mais ou menos difuso em autores que, ao se afastarem da psicandlise ortodoxa, concederam certa autonomia a elementos psiquicos, tais como inveja, gratidao, 6dio, amor, ansiedade e sentimento. Ao conjunto desses autores, em fungao das repercussdes de seu trabalho no estudo das neuroses coletivas, 6 que denomino socio- psicandlise, para distingui-los da psicandlise freudiana. Tal processo inicia com Jung, criando as nogGes de in- consciente coletivo, tipos psicolégicos e simbolismo da men- te’ e vai culminar em Melanie Klein, que, ao postular o: instintos de vida e de morte como elementos fundamentai: da esséncia humana, atuantes e em oposi¢do reciproca, esta- beleceu os sentimentos de amor e ddio como fatores consti- tutivos dessa esséncia, existentes de modo aut6nomo em re- lag&o aos elementos somaticos que a ortodoxia freudiana apre- sentava como causa. a kleiniana ainda situa a inveja, definida como um sentimento irado de que outra pessoa possui e desfruta de algo desejvel, sendo o impulso inyejoso de tiré-lo dela ou espolid-la, como sentimento que acompanha 0 ser humano desde a primeira manifestagdo, no bebé, como inveja do seio.” O tema da inveja, que Freud vira nos doentes mentais graves, foi assim retomado para aplicacéo nos casos de neurose, dando-se grande impulso ao Ligada ao instinto de morte, a teo da critica da cultura, vide. MATOS, Olgiria C. F. Os arcanos do inteiramente cola de Prankfurt, a melancolia ed. Sao Paulo: Brasiliense, 1995. * CASSEB, José Elias C. A terapéutica psicossomatica. Revista de Psicandlise Integral, Sao Paulo, n. 10, edigdo da Sociedade Internacional de Trilogia Ana- litica, 1982, p.43. * BERTAZZONI, Regina Célia. Psicanalise de Melanie Klein. In: Psicoterapias alienantes, Ed. da Sociedade de Psicandlise Integral. Séo Paulo: Proton, 1980, p. 103, Vertb. MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson. Jurisdigao, psicandli- se ¢ omundb neoliberal. In: Direito e neoliberalismo. Elementos para uma leitura interdisciplinar. Curitiba: EDIBEJ, 1996, p.39 ess. 7 Tbidem, p. 113-124. outro: A arevolugac aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 84 TEORIA CRITICA DO DIREITO Nao esté no escopo desta obra discutir teses tio atraen- tes, Evidentemente, nao condizem com as propostas basicas da teoria critica, nem com o historicismo — visao de ciclos hist6ricos que se sucedem inexoravelmente — nem com o dogmatismo mecanicista — a explicagéo causal das neuroses como negagao do que o autor entende por real — e muito menos com 0 sectarismo teolégico ou cultural — a maneira como 0 autor privilegia a concepgao religiosa, o judo-cristia- nismo e a cultura ocidental dos paises ricos; nado condizem porque evidentemente todas elas representam um preconcei- to taéo condendvel quanto os que o préprio autor condena. Todavia, 0 conceito de inverséo como fundamento da ideologia e, de resto, a visio integral do homem como senti- mento, raz4o e consciéncia fornecem indubitavelmente uma fundamentagao psicanalitica ao novo modelo epistémico pro- curado pela teoria critica, assim como a proposta de uma dia- lética Oposta & contradigdo, vém ao encontro da metodologia consubstanciada na dialética da participagde. Da intertextualidade desses diferentes autores pode-se inferir que estratificam uma visio do direito como o estrato cultural-ideolégico do Estado moderno, mas nao isenta de criticas, as quais vém a ser explicitadas pelo pensamento critico voltado para o direito, Este, a partir das nogGes de civilizagdo e pulsdo de morte, pde em relevo que toda extrapolagao do individual para o social carece de objetividade e permanece naquele plano idea- lista que tende a justificar a realidade em fungao do que ela aparenta ser. Para a realidade latino-americana, isso pode con- duzir & aceitagao dos populismos e paternalismos estatal-his- t6ricos, de que é exemplo 0 coronelismo brasileiro, a partir da explicagao freudiana para as agGes politicas particulares. Entretanto a caréncia de intelectuais orgfnicos dos gru- pos dominados e marginalizados da sociedade, bem como a necessidade de resgatar a histéria que a meméria nacional nos cobra, ap6s perfodos obscuros de ditadura, Ademais, 0 preciosismo ret6rico-formal da dogmatica juridica, ainda que aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VERTENTES DO PENSAMENTO CRITICO (II) 89 A partir do encontro entre 0 a priori material, que fornece 0 sentido da objetividade, com o a priori formal, denominado por Husserl de intencionalidade, que igual- mente fornece o sentido da subjetividade, a fenomenologia husserliana propGe a reconstrugio do objeto, mas através da intuig&o eidética derivada desse encontro. Ocorre assim a constituigdo da objetividade na subjetividade,' 0 que explicaa miitua dependéncia entre ambos. Com fulcro na fenomenologia é possivel estabelecer a distingio entre o empirico e o real, que os fenomendlogos denominam concreto. Na tradigao da filosofia européia, 0 empirico e o con- creto se confundem na viséo empirista do real, mas a feno- menologia identifica o empirico com o dado, o qual passa pelas formas de pensamento que caracterizam o abstrato para chegar ao concreto, e o concreto é 0 histérico que se revela na atuagiio racional do homem como ser individual e social. O pensamento critico recupera entéo o dualismo da esséncia e do fendmeno e os projeta numa categorizagao do real como concreto-esséncia e empfrico-fendmeno. E o empirico passa a ser nado somente o dado em que tem inicio 0 processo de conhe: que, estruturalmente integrado ao concreto, nao se exaure nos elementos atomisticos da sensibilidade. imento, como também vem a ser algo E assim, 0 processo dialético do conhecimento esta apto a partir do concreto para a ele retornar como concreto pensado. Esse esclarecimento é de Kosic, asseverando que, se 0 empirico ocorre como relacdo imediata entre 0 pensa- mento € 0 concreto mediante a intermediagio do abstrato, as categorias desse pensamento abstrato devem articular-se HUSSERL, Edmund. Investigagoes logicas. Sexta investigagao. Elementos de uma elucidagdo fenomenologica do conhecimento, Selegioe tadugao de Zelyko Loparice Andréa Maria A. C. Loparic. 2. ed, Sao Paulo: Abril, 1980. (Colegio Os Pensadores) aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VERTENTES DO PENSAMENTO CRITICO (II) 93 dos atores sociais, que nao podem furtar-se as influéncias de suas representagGes em seu préprio comportamento em fun- ¢do do grupo; esse real imagindrio € a propria realidade social vislumbrada através das imagens mentais, conceitos, catego- rias e raciocinios utilizados pelos individuos para apropria- rem-se do mundo dos fato: Esse mundo imagindrio — lugar privilegiado da teoria ju- ridica do senso comum — pode ser considerado do ponto de vista de cada um dos trés elementos que formam o processo de conhecimento, quais sejam, sujeito, objeto e conceito.* Do ponto de vista do sujeito cognoscente, 0 imagindrio social pode ser pensado em quatro planos: a) como conjunto de representag6es, imagens mentais e conceitos, constituin- do o mundo psicolégico individual; b) como plano psicolégi- co-social, compreendendo as representagdes comuns fixa- das em mitos, lendas e idéias mais ou menos generalizadas, inclusive os valores elaborados em determinados momentos histéricos; ¢) como manipulacao, por determinados atores sociais, dessas representagdes individuais e coletivas, tendo em vista os interesses circunstanciais dos mesmos atores, agentes dessa manipulagao; ¢ d) como a nada pela conscientizagéo desse mundo imaginario. io social determi- Do ponto de vista do objeto do conhecimento, esse mundo imagindrio se manifesta: a) no plano das aparéncias fenomé- nicas, na medida em que encobrem os processos reais, a coi- sa-em-si do objeto; b) no plano da dinamica natural do mun- do circundante em suas repercussées no homem e na sua cir- cunstancia, ou seja, a agao da prépria natureza enquanto mo- dificadora dos comportamentos individuais e coletivos; e c) no plano da dindmica social, isto é, a propria sociedade como fato natural determinante de modificagdes comportamentais. E do ponto de vista do conceito: a) no plano estatico das categorias formais do pensamento; b) no plano dinami- co da comunicagao intersubjetiva dessas categorias, for- Ver Capitulo, aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VERTENTES DO PENSAMENTO CRITICO (II) 97 trutura e a priori material. Essa passagem da fenomenologia para a sociologia possibilita que a dimensdo prospectiva, que Max Weber atribui ao seu Idealtypus, seja estendida ao a priori material, na medida em que este deixa de ser visto como estrutura a condicionar 0 olhar inocente da ciéncia e passa a ser encarado, também, como produto de uma cria- ¢ao conceptual e instrumento de um agir consciente. A verstehende Soziologie desenvolveu-se em oposi¢ao A sociologia positivista. Um dos mais caracteristicos pensa- dores desta corrente, Emil Durkheim, procurou levar a cabo a tarefa proposta por Comte, de fundagao de uma sociologia no sentido positivista, pretendendo estabelecer 0 método da sociologia de maneira andloga ao das ciéncias naturais. Com tal desiderato, estabeleceu como regra fundamental, para que a sociologia preservasse sua objetividade, a separagio radi- cal entre o sujeito e o objeto do respectivo conhecimento, ou seja, 0 cientista social deveria tratar o fato social como coi- sa, independente do pesquisador, de seus desejos, ideais, va- lores, interesses, crengas e concepgio do mundo, como algo existente em Si e por si mesmo, a ‘ado de qualquer teleolo- gismo ou valoragéo. Com isso estaria assegurada a neutrali- dade do pesquisador, pois um conhecimento do social que nao fosse neutro seria preconceituoso, ideoldégico.” A impraticabilidade do método de Durkheim decorre da simples constatagao de que a pretendida neutralidade nao passa de ficgao, pois o pesquisador € parte do objeto de seus estudos, 0 que desde logo se tornou evidente, como tam- bém o carater aporético da metodologia da neutralidade ideo- légica em ciéncias sociais.’ A averiguagiio de tal aporia é 7 DURKHEIM, Emil. As regras do método sociolégico. Trad. de J. Rodrigues Meréje. Sao Paulo: Brasileira, 1937, p.270ess. ’ VAZQUEZ, Adolfo Sanchez. La ideologia de la“neutralidad ideologica” en las ciencias sociales. Comunicagao ao I Coléquio Nacional de Filosofia. Morelia, Michuacan, ago. 1975. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VERTENTES DO PENSAMENTO CRITICO (11) 101 plete com outra caracteristica, a qual vai precisamente de- finir o Estado moderno: a racionalizagao do direito, 0 que implica a especializagio dos poderes Legislativo e Judicia- rio, além de um poder de policia encarregado de proteger a seguranga dos individuos e manter a ordem, e uma forga mili- tar permanente. A existéncia do Estado depende da obediéncia da po- pulagiio a autoridade, a qual, para ser efetiva, necessita de um minimo de consenso, em fungao do qual se alicerga a legitimidade do poder exercido pelos seus detentores. A legitimidade radica portanto no principio do consen- timento. Segundo Weber, 0 poder € necessdrio, porém con- servado dentro de certos limites. pois pressupde consenti- mento e certo grau de reciprocidade. A legitimidade impli- ca portanto a adesio da comunidade ao principio que a autoridade pretende representar, ¢ sua realizagio efetiva no corpo social esté sujeita a certos mecanismos, que configu- ram os tipos-ideais de dominagao legitima: tradicional, carismatica e legal-racional. A dominacgio tradicional radica no carater mistico das tradigdes, no fetichismo do passado e na legitimidade do poder transmitido de acordo com os costumes. Ou seja, os mecanismos de controle da obediéncia sio considerados le- gitimos porque teriam existido de acordo com a tradigao, cuja validade nao € questionada. A dominagio carismatica é exercida em razio do carisma de um lider, cujas qualidades 0 credenciam perante o corpo social como apto a ser o depositdrio de sua confianga e de suas esperangas. Santidade, herofsmo e exemplaridade sao algumas das qualidades que o lider carismatico eventual- mente ostenta, as quais o credenciam para impor-se aos demais como seu chefe e dirigente. E forma de dominagio que inicia no seio de uma sociedade tradicional ou legal, em oposig&o A ordem institucionalizada, ilegitima em sua géne- se portanto, mas que cresce em sentido revolucionario para depois estabilizar-se, tornando-se legitima pelo carisma do lider. A dominacgdo carismatica é sobretudo emocional. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VERTENTES DO PENSAMENTO CRITICO (11) 105 que podem ser vislumbrados de pontos de vista diferentes, inclusive jurfdico e politico, mas jamais estanques, em pre- juizo da nogao dialética do todo. E necessdrio frisar também que, nessa totalidade, a ideo- logia é fator que deve ser elucidado e assumido como neces- sdrio componente do social, caminho pelo qual o saber pode ser menos ideolégico e mais cientffico; e finalmente, que toda teoria da sociedade que leve em conta tais pressupostos exige um projeto politico de transformagio social. Estas diretrizes gerais estao presentes, mais ou me- nos difusas, na teoria critica da sociedade da Escola de Frankfurt. As repercussGes sociais do modo como a ciéncia é con- cebida e manipulada na sociedade capitalista contemporanea so © tema central do grupo de pensadores formados no scio do Instituto de InvestigagGes Sociais da Universidade de Frank- furt.'* Formada principalmente por Walter Benjamim, Max Hork- heimer, Theodor Adorno, Herbert Marcuse e Jiirgen Habermas, a Escola de Frankfurt desenvolveu suas investigagGes de filo- sofia social a partir dos fundamentos da psicandlise e dentro do espirito de revalorizacgao do pensamento marxista que nao se identifica com certa ortodoxia imposta pelo comunismo soviético, a que se denominou sovietismo. O nucleo de suas teses € 0 questionamento do axioma positivista da separagao entre a ciéncia e ética e os desas- trosos efeitos dessa separagdo num mundo de tecnologia mo- derna. Dentro desse espfrito, propuseram-se estabelecer as 'S BENJAMIN, Walter; HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W.; HABERMAS, Jiirgen. Textos escolhidos. Trad. de José Lino Griinnewald et al. 2. ed. Siio Paulo: Abril, 1983. (Colegao Os Pensadores) V. texto introdutério de Paulo Eduardo Arantes. Tb. BRONNER, Stephen E. Da teoria critica e seus tedricos. Campinas: Papinus, 1997; LOWY, Michael. A Escola de Frankfurt ea modemidade: Benjamin e Habermas. Trad. de Murilo Marcondes. Novos Estu- dos, Cebrap, n. 32, mar. 1992; MATOS, Olgaria C. FA Escola de Frankfurt: luzes e sombras do [uminismo, Sao Paulo: Moderna, 1995. Idem. Os arcanos do inteiramente outro: a escola de Frankfurt, a melancoliae arevolugao. 2. ed. Sao Paulo: Brasiliense, 1995. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. AS VERTENTES DO PENSAMENTO CRITICO (ID) 109 fortalecimento da sociedade através de um esclarecimento geral e de uma educagio critica da propria sociedade civil. E possivel afirmar que a teoria do conhecimento da Escola da Frankfurt, retomando categorias kantianas, mas nao as revivendo ao criticar o simplismo gnoseolégico dos positivismos, superou-os ao trazer A tona a praxis social como elemento mesmo do processo de conhecimento. Outra evidéncia de superagiio do positivismo é a afirmagio da iden- tidade 6ntica entre politica ¢ ciéncia, 0 que de certa forma desmistifica a nefasta concepgao de que o saber e a praxis social existem compartimentalizados e nado se comunicam no real concreto. A mistificagdo das idéias, ocultando a realidade social, é caracteristica inerente 4 teoria tradicio- nal, que n&o se preocupa nem com a génese social dos pro- blemas nem com a sociedade como espago da atividade hu- mana, em que a ciéncia é usada em fungio dos fins aos quais ela realmente se presta.”! Assim articulada, a teoria critica da sociedade, apos sua formulagdo mais ou menos consolidada pelos fil6sofos e juristas da Escola de Frankfurt, passa a catalisar as de- mais categorias utilizadas nos discursos criticos setoriais, articulando-os no mesmo ideal escatolégico voltado para a concreta realidade humana. Sobre as categorias criticas anteriores, uma parece pre- valecer. E 0 conceito de dominagdo e o modo como o exer- cicio real da dominagao é ideologicamente dissimulado na sociedade contemporanea, Daf que a ciéncia politica, libe- rada dos mitos e dos preconceitos dimanados da deificagao do Estado, volta-se para a realidade social 4 qual se refere. Essa mudanga de orientag&o nucleia as categorias elabora- das no contexto das demais vertentes do pensamento criti- co. E a politica, considerada pelo senso comum como uma | HORKHEIMER, Max. Teoria tradicional e teoria critica. In: Textos Escothidos, ob. cit, p. 117. Elucidativoé tb. otexto de GUERRA FILHO, Willis S. A Contri- buigdaio de Karl Marx parao desenvolvimento da ciéncia do direito. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, n.28, ano 28, p. 69 € ss.. 1994/1995, aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. CRITICA SOCIAL E CATEGORIAS 113 est4 presente em quase todas as manifestagdes do saber que almeja a verdade, as ciéncias particulares sempre pro- curaram seu préprio dtomo, em fisica e quimica, e seu equi- valente identificado no fato histérico, no fato econdmico, no fato politico, no individuo como dtomo da sociedade e na norma juridica como dtomo do direito. A sociedade sempre foi assim definida em fungao de suas menores particula os individuos que a compdem, e, do mesmo modo, a nogio comum de direito o relaciona com a idéia de um conjunto de normas. Nos dias atuais, entretanto, especialmente em virtude de novas maneiras de vislumbrar o real trazidas pelo pensa- mento dialético, a sociedade deixa de ser considerada sim- ples aglomerado de individuos para ser vista como um todo, ou, pelo menos, como uma reuniao de grupos sociais mais ou menos definidos. Por isso, é possfvel falar em microsso- ciedade, que alude a cada um desses grupos, e macrosso- ciedade, 0 conjunto dos diversos grupos que convivem num determinado espago histérico, geografico ou politico: a ma- crossociedade é 0 povo, a nagio, a sociedade propriamente dita e a humanidade. Tal definigao atem-se aos componentes materiais da sociedade, isto 6, aos elementos empiricamente verificdveis que a constituem. Sob outro aspecto porém, ela pode ser definida em fungao de seus componentes formais, os quais indicam 0 modo como os elementos materiais — indivfduos e grupos — apresentam-se, inclusive as maneiras como se relacionam inter e intra grupos. Nesse sentido, a sociedade pode ser definida como 0 conjunto das relagGes interindividuais e intergrupais no espago e tempo determinados. Pode-se estabelecer entéo que para a compreensio da sociedade, além de seus componentes materiais, devem ser levados em conta os formais, pois o estudo das relagdes so- s envolve a dinamica e as transformagGes dos grupos, tio importantes, ou mais ainda, do que a consideragio estética de critérios materiais para identificd-los e defini-los. Essas relagGes, tanto no plano individual quanto no grupal, sio relagGes de poder. $6 que a palavra poder, pelo aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. 116 TEORIA CRITICA DO DIREITO. superar alguma forma de opressdo e construir uma nova sociedade em que nao haja nem opressores nem oprimidos. Por ut6pico que possa parecer, vale como um projeto de vida que faz com que se dé sentido a atuagao consciente das or- ganizagGes sociais. Em sum: de requer a di teoria critica do direito € 0 dos movimentos sociais; neles podem ser enfatizados os elementos basicos que, atuando de maneira articulada, respondem as exigéncias de sua pr6- pria dinamica. Mais do que componentes de um fenémeno, siio os fatores que determinam seu éxito ou fracasso. a compreensiio de um conceito de socieda- igio de um ponto de vista: o proposto pela Um movimento social, no sentido de atividade libertadora dos individuos, grupos ou povos oprimidos, pressupGe uma proposta politica das mudangas a serem promovidas, a qual se concentra num conjunto de valores e principios que a orien- lam, ou seja, uma ideologia racional, que se distingue da ideo- logia propriamente dita, em seu sentido mais difuso, a qual permanece no campo da irracionalidade, no inconsciente co- letivo. Essa segunda forma da ideologia ser estudada no pré- ximo item. Mas além da ideologia racional, 0 movimento social pressupGe certo nivel de organizagdo com vistas a articula- cao das atividades dos individuos que atuam no movimen- to, e, finalmente, a agdo propriamente conscientemente trans- formadora. A partir do momento em que todos esses elemen- (0 reunidos no movimento social, enriquecido com a cons- éncia de seus objetivos politicos, este se transforma em c praxis. Ideologia e praxis portanto sAo corolarios do conceito critico de sociedade, e, como veremos, 0 conceito difuso de ideologia pressupée o de alienagao, terceira das catego- i s fatores funcionam como cate- y, isto é, instrumentos teéricos de reconstrugdo, a um tempo conceitual e objetivo do social, mediante a participa- ¢do também consciente do sujeito no objeto de seu saber. criticas propostas. Ess goria CRITICA SOCIAL E CATEGORIAS. 117 3. A IDEOLOGIA Dialeticamente integrada na fenomenologia do ser so- cial, a ideologia passa a integrar o nicleo dos estudos em ciéncias sociais. Ela é 0 denominador comum, apto a supor tar um enfogue interdisciplinar, e também um conceito es- sencial para o deslinde da problematica epistemol6gica, nota- damente a questao das possibilidades do conhecimento em ciéncias sociais. Além disso, trata-se de uma categoria funda- mental para o deslinde da questio politica, a dos meios ade- quados de controle social que possam garantir a realizacgao efetiva de certos valores, nio pelos valores em si, pelos quais a ideologia se manifesta, mas pela sua expr portamentos, no sentir e viver humanos. Antes de estabelecer um conceito de ideologia como categoria critica, convém examinar algumas nogdes que o precederam. O histérico do conceito de ideologia nos remete as suas origens em Destutt de Tracy e seu grupo de idedlogos, tratando de fundar uma ciéncia da génese das idéias. ao real nos com- No inicio do século XIX, os chamados idedlogos ela- boraram uma teoria sobre as faculdades sensiveis do ho- mem — vontade, razio, percepgao e memoria — as quais reduziram a génese de todas as idéias que se expressam, respectivamente, no querer, julgar, sentir e lembrar.! Esses idedlogos eram liberais e antimonarquistas, 0 que nao im- pediu que fossem incompreendidos e até ridicularizados por Napoledio Bonaparte. Este, em discurso proferido em 1812 HALL, Stuart. O interior da ciéncia: ideologia ¢ a “sociologiado conhecimen: to”. In: A. A.V. V. Da ideologia. Coletanea organizada pelo Centre for Con- temporary Cultural Studies, da Universidade de Birmingham. Trad. de Rita Lima. Riode Janeiro: Zahar, 1980, p.16-17. CHAU, Marilena. Texto introdutério: ao volume sobre CONDILLAC, HELVETIUS e DEGERANDO. 2. ed. Siio Pau- lo: Abril, 1980. p. XVI. (Colegao Os Pensadores) Idem. O que éideologia? 4, ed. Paulo: Brasiliense, 1981. Tb. GIMENEZ, Gilberto. Ideologiay derecho. México: Arte, Sociedad e [deologia, 1980. Tb. ROUANET, Sérgio P. Imagind- rioe dominacao. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1980. (Colegao Diagrama)

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