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A Imigração haitiana no Brasil nas páginas dos jornais: Análise das

reportagens sobre o tema entre 2010 e 20151

MAGALHÃES, Luís Felipe Aires (Doutorando em Demografia na Universidade


Estadual de Campinas - UNICAMP)2
Observatório das Migrações em Santa Catarina (Udesc)/SC
SILVA, Camila Rodrigues da (Mestre em Economia pela Universidade Federal de Santa
Catarina – UFSC)3
Observatório das Migrações em Santa Catarina (Udesc)-SC

Resumo:
Desde 2010, pelo menos 50.000 haitianos passaram a residir no Brasil, buscando trabalho e melhores
condições de vida. Migram também em razão da crise e da seletividade migratória em países como
Estados Unidos e França, outrora preferenciais. No mercado formal de trabalho brasileiro, inserem-se
sobretudo na produção de bens e serviços industriais, especialmente na construção civil, nas regiões
Sudeste e Sul. Este artigo pretende analisar como a presença haitiana no Brasil é caracterizada pelo maior
jornal do país, a Folha de São Paulo. Pretende-se investigar a narrativa que é construída em torno dos
seguintes momentos: i) o terremoto que ocorreu no Haiti, ii) a concentração de imigrantes na fronteira
com o Peru, iii) as resoluções normativas que permitiram concessão de CPF, Carteira de Trabalho e Visto
Humanitário, iv) o processo de recrutamento e de dispersão pelo país e v) a inserção social e laboral e
suas dificuldades. A metodologia combina revisão teórica sobre o fluxo migratório e a análise de
conteúdo das reportagens. A hipótese a se verificar é se o tratamento conferido a estes imigrantes pelos
jornais reforça a criminalização da migração, a interpretação do imigrante haitiano enquanto um problema
e, por consequência, sua subalternidade na sociedade de destino.

Palavras-chave: Imigração haitiana; Folha de São Paulo; Análise de Conteúdo.

1 Trabalho apresentado no GT de Historiografia da Mídia, integrante do 6º Encontro Regional Sul de


História da Mídia – Alcar Sul | 2016.
2 Economista formado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), pesquisador do
Observatório das Migrações em Santa Catarina (UDESC), especialista em Educação à Distância pela
Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Mestre e Doutorando em Demografia pela Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP).
3
Jornalista formada pela Universidade Cásper Líbero, mestre em Economia pela Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC). Pesquisadora no Observatório das Migrações em Santa Catarina (UDESC).
Introdução
Este artigo objetiva analisar a forma com que a imigração haitiana no Brasil é retratada
nas páginas dos jornais. A pesquisa se deu a partir da consulta pela palavra “haitianos”
no acervo on-line do jornal Folha de São Paulo4, no período entre o dia 12 de janeiro de
2010 (data de ocorrência do terremoto no Haiti, que vitimou mais de 200.000 pessoas,
desalojou mais de 1,5 milhão de habitantes e deteriorou as já precárias condições
econômicas e sociais no país) e 12 de janeiro de 2015, compreendendo um período de 5
anos. A escolha se deve ao fato de ser a Folha de São Paulo o maior jornal impresso
diário de circulação nacional no Brasil (ANJ, 2015) e ter forte impacto nos jornais de
todo o país, na medida em que aponta as pautas jornalísticas e é, inclusive, amplamente
replicado por esses outros veículos de comunicação.
Esta primeira consulta on-line nos mostrou um universo de 389 matérias. Muitas delas,
no entanto, continham o termo buscado mas não se referiam especificamente ao
processo imigratório. Para facilitar a escolha das matérias e organizá-las periódica e
qualitativamente, definimos cinco momentos ou dimensões (dado que estamos nos
referindo a um processo não necessariamente linear) para selecionar o objeto de estudo.
São eles:
- O terremoto que ocorreu no Haiti, em 12 de janeiro de 2010;
- A concentração de imigrantes na fronteira com o Peru no final de 2010;
- As resoluções normativas que permitiram que os imigrantes circulassem pelo
território brasileiro e tivessem um Cadastro de Pessoa Física (CPF) e uma
Carteira de Trabalho, bem como abrir o protocolo de solicitação de Vista
Humanitário, para aqueles que ainda não o possuíam;
- O processo de recrutamento e de dispersão pelo território nacional e;
- A inserção social e laboral e suas dificuldades.
Assim, após a classificação dos resultados da busca on-line segundo estes cinco
momentos, chegamos ao universo de 108 textos, entre reportagens, notícias e artigos
opinativos. As matérias selecionadas foram analisadas a partir de uma metodologia
inspirada nas pesquisas do coletivo de comunicação social Intervozes (2011; 2014)5.
Para isso, criamos um questionário6 com 20 perguntas, que foi “aplicado” a cada uma

4
Deste ponto em diante, nos referiremos ao Jornal Folha de São Paulo como FSP
5
As pesquisas foram: “Vozes Silenciadas - Mídia e Protestos”, de 2014, sobre a cobertura dos jornais O
Estado de São Paulo, Folha de São Paulo e O Globo das manifestações de Junho de 2013; e “Vozes
Silenciadas - A cobertura da mídia sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra durante a
Comissão Parlamentar Mista de Inquérito”, de 2011.
6
Ver Anexos.
das matérias, e que levou em conta os métodos de análise de enquadramento, análise de
discurso e análise de conteúdo (INTERVOZES, 2011; INTERVOZES, 2014).
Neste artigo, buscamos ainda verificar a hipótese de se o tratamento conferido a estes
imigrantes pelos jornais reforça a criminalização da migração, a interpretação do
imigrante haitiano enquanto um problema e, por consequência, sua subalternidade na
sociedade brasileira – o que tem repercussões econômicas e políticas importantes. A
perspectiva que se utiliza é a do histórico-estruturalismo (SINGER, 1995; BRITO,
1996; BAENINGER, 2012) para a análise da formação deste fluxo (PATARRA, 2012;
MAGALHÃES e BAENINGER, 2014) e suas características (COTINGUIBA, 2014;
FERNANDES, 2014) e a teoria crítica do jornalismo (GENRO FILHO, 1987;
TRAQUINA, 2004) para a compreensão sobre a relação entre os meios de comunicação
e as estruturas de poder e de dominação.
Antes, no entanto, de analisar a forma com que o jornal FSP retrata a imigração haitiana
no Brasil, é necessário caracterizarmos, ainda que de forma breve, esse processo
migratório, situando-o no contexto dos processos históricos de emigração no Haiti. Mais
que um recurso histórico, acreditamos que com isto apontamos de modo mais claro as
especificidades existentes neste fluxo em relação aos fluxos tradicionais da emigração
haitiana - como Estados Unidos, França e Canadá.

Os processos históricos de emigração no Haiti


O Haiti possui uma formação econômica e social marcada pela dependência na divisão
internacional do trabalho (MAGALHÃES e BAENINGER, 2014). Embora estabelecida
como colônia espanhola já no primeiro momento da conquista de nosso continente, é
apenas em 1697, com o Tratado de Ryswick, que a então colônia hispânica passa a ser
de domínio francês. Com o Tratado, a região insular, São Domingos, é dividida em uma
porção à oeste (o Haiti, de colonização francesa, correspondendo a um terço do
território total da ilha) e uma porção à leste - a República Dominicana, de colonização
espanhola, equivalente aos dois terços restantes do território total da ilha (GRONDIN,
1985; JAMES, 2010).
Com a partilha colonial da ilha, o Haiti e a República Dominicana seguem caminhos
distintos (GRONDIN, 1985), embora conectados no âmbito do sistema colonial. No que
se refere ao Haiti, o país passa a dedicar-se à produção e exportação de açúcar e índigo,
culturas através das quais se desenvolvem suas relações de produção, assentadas na
exploração de mão-de-obra escrava e na estrutura agrária latifundiária (JAMES, 2010;
SEGUY, 2014).
O sistema de possessões coloniais e o exclusivismo comercial garantiam à França que a
produção do açúcar fosse um negócio rentável: mantinha no país 793 engenhos de
produção açucareira, 3.117 fazendas de produção cafeeira, 789 plantações de algodão,
3.115 plantações de índigo, 54 plantações de cacau, 182 instalações produtoras de
cachaça e 370 fornos de cal (SEGUY, 2014). “Em 1789, São Domingos produzia 180
milhões de libras de mercadoria, muito mais que todas as colônias inglesas e espanholas
das Antilhas, as quais, juntas, produziam por 117 milhões de libras” (SEGUY, 2014, p.
136). Somente no ano de 1767, o Haiti exportou “35 mil toneladas de açúcar bruto e 25
mil toneladas de açúcar branco, quinhentas toneladas de anil e mil toneladas de
algodão” (JAMES, 2010, p. 56). O Haiti se constituía como a colônia mais próspera do
sistema colonial, representando dois terços do comércio exterior da França. Seu apelido
de “Pérola das Antilhas” possuía, portanto, um sentido real.
Foi do processo de conversão de colônia mais próspera do mundo a país mais pobre da
América, que os haitianos se constituem historicamente como um povo migrante
(MAGALHÃES e BAENINGER, 2014). A história desse processo emigratório se inicia
ainda no final do século XIX, quando se formam os primeiros grandes fluxos para o
trabalho na produção açucareira na República Dominicana e em Cuba (CASTOR,
1978). Estes fluxos, todavia, diversificaram-se e massificaram-se na segunda metade do
século XX, momento a partir do qual se consolidam outros destinos da emigração
haitiana, como França, Canadá e Estados Unidos (CASTOR, 1978; COTINGUIBA,
2014). Cada um destes fluxos assume suas particularidades históricas e condições -
sociais, econômicas e políticas - específicas, mas é importante ressaltar que se tratam de
países centrais que recebiam, nesta conjuntura, fluxos de imigrantes provenientes de
países da periferia do sistema capitalista. O desenvolvimento capitalista desigual, a crise
econômica permanente nos países periféricos e a consequente distribuição desigual das
oportunidades econômicas e sociais no espaço, motivaram, de um modo geral, estes
fluxos. Esta conjuntura, que subalterniza o imigrante periférico e destinava a eles os
empregos do chamado mercado de trabalho secundário, altera-se a partir do ano de
2008, quando a crise capitalista incide diretamente sobre os países centrais e repercute
nos níveis de emprego, salário e, por consequência, de remessas (CEPAL, 2009). Esta
crise, que ademais precarizou as condições de trabalho de um modo geral e dos
imigrantes em particular, produziu contradições econômicas e sociais que foram
apropriadas sob a forma de discurso e prática xenófobos, aprofundando com isso a
seletividade migratória nestes países. Ocorre a partir daí uma transformação importante
na emigração haitiana.
O acirramento da seletividade migratória e a degradação das condições de emprego,
salário e remessas contribuíram para a transformação na dinâmica das migrações
internacionais: na primeira, diminuíram as possibilidades de entrada e permanência para
milhões de migrantes, e mesmo esta permanência se tornou mais precária e perigosa por
conta do sentimento e da prática xenófobas (MAGALHÃES e BAENINGER, 2014). Na
segunda, diminuiu principalmente o nível das remessas de migrantes, se constituindo
esta, segundo levantamento da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe
(CEPAL, 2009), como a principal via de contágio da crise capitalista na América Latina.
Isto é particularmente grave para os fluxos migratórios que partem de um país tão
dependente de remessas como o Haiti: entre 2005 e 2014, as remessas de migrantes para
o país oscilaram entre 22,33% e 25,91% do Produto Interno Bruto (PIB) haitiano
(UNCTAD, 2015). A diminuição das remessas se converteu de problema familiar à
problema nacional, exigindo a construção de alternativas migratórias, nas quais
certamente se insere o Brasil.
Paralelamente, o Brasil passava por um ciclo expansivo de sua economia, alicerçado
sobretudo na expansão dos gastos do governo e no acesso ao consumo, via expansão do
crédito e endividamento das famílias. A realização de grandes eventos internacionais
(como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, no Rio de janeiro) bem
como o aumento da demanda por trabalho em setores da agroindústria e da construção
civil moldavam um cenário mais atrativo à força de trabalho imigrante. Em outras
palavras, as atividades em expansão (obras e reformas de aeroportos, estradas e
estádios; a expansão da exportação de commodities, o crescimento do extrativismo
mineral, a criação de um terceiro turno de trabalho em muitos frigoríficos e o
crescimento da produção agroindustrial) exigiam contratação de amplos contingentes de
trabalhadores para serviços pesados e preferencialmente mal remunerados
(ZAMBERLAN, CORSO, BOCCHI e CIMADON, 2014).
O Brasil, que já estava presente, econômica e militarmente, no Haiti desde 2004,
coordenando a Missão de Estabilização da Paz no país (MINUSTAH) passou a ser visto,
então, como uma alternativa, um destino da emigração haitiana7.
Atualmente, mais de 50 mil haitianos residem no Brasil (FERNANDES, 2014). Seu

7
Para mais informações sobre a imigração haitiana no Brasil, consultar MAGALHÃES e BAENINGER,
2014; FERNANDES, 2014; e COTINGUIBA, 2014.
processo de inserção social e laboral se dá mediante recrutamento das empresas,
inicialmente na fronteira do Brasil com o Peru, mas também nos centros de acolhimento
e principais cidades receptoras – entre elas, muitas situadas no Estado de Santa
Catarina, onde residem mais de 10.000 haitianos - 6.357 com vínculo formal no
mercado de trabalho ao final de 2014 (CAGED/MTE, 2015). No entanto, a vigência de
uma política migratória baseada no princípio da segurança nacional e no
desenvolvimentismo se soma à discriminação étnico-racial característica da formação
econômica e social brasileira para compor uma conjuntura migratória também seletiva.

A Imigração Haitiana nas Páginas da Folha de São Paulo: alguns resultados da


pesquisa
Para interpretação dos dados obtidos, partiremos da interpretação de Genro (1987) de
que “os fatos jornalísticos são um recorte no fluxo contínuo, uma parte que, em certa
medida, é separada arbitrariamente do todo”, mas que para evitar a subjetividade e o
relativismo, admite-se que as escolhas no momento da apuração, redação e edição estão
delimitadas pela matéria objetiva, ou seja, por uma substância histórica e socialmente
constituída, independentemente dos enfoques subjetivos e ideológicos em jogo
(GENRO FILHO, 1987).
Também é importante apresentar conceitualmente os três tipos de análises nos quais ele
foi embasado. A análise de conteúdo se apresenta como um conjunto de técnicas de
análise das comunicações que aposta no rigor do método como forma de não se perder
na heterogeneidade de seu objeto. Laurence Bardin descreve alguns dos métodos da
análise de conteúdo, argumentando que a discussão trata, sobretudo, de abordagens
qualitativas, nas quais são consideradas a presença ou ausência de conteúdos, fontes ou
outro um conjunto de características em determinado texto, e quantitativa, em que “
os pesquisadores se preocupam em estudar a frequência de determinada palavra,
conceito ou expressão (BARDIN, 1979).
A análise de discurso, segundo Nogueira, preocupa-se com o modo como a linguagem
constrói os objetos, os sujeitos e as subjetividades, levando em conta que o mundo não
pode ser explicado por teorias gerais, que os interesses dominantes ajudam a moldar os
discursos e que a linguagem e a informação são instrumentos de poder (NOGUEIRA,
2001). A análise de enquadramento, de acordo com Stephen Reese (2001, p. 7), é aquela
que identifica o modo como os eventos são organizados e fazem sentido, permitindo-
nos responder como os temas são construídos, discursos estruturados e significados
desenvolvidos. Robert Entman (2001) afirma que os estudos de enquadramento
apresentam ao menos quatro áreas no processo de comunicação: o comunicador, o texto,
o receptor e a cultura. Para analisar o quadro (frame), o mesmo autor defende que é
preciso definir o problema, os personagens envolvidos e as causas do problema. Nesta
análise, é necessário identificar os elementos que compõem a narrativa (símbolos,
imagens, metáforas etc.) e que ajudam a detectar os frames (SANTOS, 2010).
Quanto ao período ou dimensão do processo migratório a que se referem as reportagens,
podemos perceber relativo equilíbrio da cobertura, com predominância de matérias
sobre “A inserção social e laboral e suas dificuldades”, seguida pelo “Terremoto que
aconteceu em 12 de janeiro de 2010”. O momento do processo migratório com menor
cobertura por parte do jornal é “As resoluções normativas que permitiram que os
imigrantes circulassem pelo território brasileiro e tivessem um CPF e uma Carteira de
Trabalho”. Neste grupo, inserem-se notícias sobre a legislação migratória e de refúgio
de uma forma geral, contemplando temas como o visto, as resoluções normativas e
acesso à documentação por parte dos imigrantes. Nota-se, inicialmente, que o jornal tem
se ocupado mais diretamente da vida social e laboral destes imigrantes no Brasil e da
tragédia do terremoto (inclusive com matérias recentes sobre a realidade no Haiti após o
abalo sísmico) e menos das questões de documentação desses imigrantes e da legislação
migratória brasileira.

Gráfico 1 - Matérias segundo o momento do processo migratório haitiano no Brasil

Fonte: levantamento elaborado pelos autores, 2015.


Alguns critérios de edição, como presença ou não de fotos, assinatura do repórter
responsável pela matéria, posição na página e quantidade de páginas ocupadas indicam
o destaque das matérias analisadas e a importância que o jornal tem dado ao assunto. Os
números mostram que a FSP não tem utilizado agências e fontes terceirizadas para
cobrir esse assunto e que, em geral, seus repórteres têm apurado in loco. As matérias são
assinadas em 89,81% dos casos, tanto nos textos informativos quanto nos textos
opinativos, e as fotos estão presentes em 52,78% das matérias. Em geral, na mídia
impressa, a presença de fotos indica um maior esforço da reportagem, que envolve o
deslocamento de um profissional até o local do fato.
Da mesma forma, a posição e o tamanho das matérias denotam importância concedida
ao tema, destacando-se matérias longas e em posições privilegiadas. Em relação às
colunas, 68,5% das matérias ocupam 5 ou 6 colunas (que é o total da largura padrão do
jornal); 30,56% estão situadas na metade superior e 39,81% ocupam uma ou mais
páginas inteiras. Além disso, no período de cinco anos, quatro cadernos especiais foram
publicados, com reportagens que tiveram quatro ou mais páginas dedicadas ao assunto.
Ainda sobre as escolhas de edição, 48,15% têm chamada de destaque na capa ou são
manchetes do caderno em que estão inseridas.
Qualitativamente, analisamos ainda a capacidade de as matérias contextualizarem o
processo migratório com uma descrição das suas origens e razões, ou seja, se as
matérias possuem foco descritivo na situação em que se encontra o país de origem do
imigrante, de modo a explicar sua mobilidade e a vinda ao Brasil.

Gráfico 2 - Matérias segundo foco descritivo nas origens e razões do processo


migratório

Fonte: levantamento elaborado pelos autores, 2015.


Como mostra o Gráfico 2, quase 70% das reportagens não contextualiza o fluxo
migratório e, na mesma proporção (71,3%), os temas escolhidos por esse estudo são
apresentados em reportagens com abordagens negativas em suas manchetes, como
“Haitianos no Acre sofrem com superlotação em alojamento” (21/12/2011) e “Acre
quer fechar a divisa com Peru para barrar haitianos” (16/01/2014).
Outro resultado importante da metodologia revela que em metade das matérias
jornalísticas não há nenhum ator mencionado em ação positiva. Na outra metade, os
atores são, principalmente, o Estado, em suas múltiplas dimensões (20,37% do total das
matérias) e os imigrantes e associações de imigrantes (12,96% do total das matérias). O
Estado é, também, o principal ator mencionado em ações negativas (43,52% do total das
matérias), seguido por “nenhum” (31,48%) e “imigrantes e associações migrantes”
(21,30%):
Gráfico 3 - Matérias segundo atores em ação positiva

Fonte: levantamento elaborado pelos autores, 2015.


Gráfico 4 - Matérias segundo atores em ação negativa

Fonte: levantamento elaborado pelos autores, 2015.


A comparação entre os gráficos 3 e 4 nos permite concluir que, quando mencionados, os
imigrantes e as associações migrantes são retratados mais em ações negativas que em
ações positivas. Também desta comparação, percebe-se a escassa menção à atuação,
tanto positiva como negativa, das empresas recrutadoras e empregadoras desta força de
trabalho.
No que se refere ao contraponto (que, no jargão jornalístico, é o “ouvir o outro lado”),
chama a atenção a predominância de matérias em que não há responsabilização de
nenhum dos atores envolvidos. O fato pode ser explicado, em parte, pelas diretrizes do
Manual do jornal, que exige que os jornalistas não fiquem atrelados ou dependentes de
atores externos (a não ser o leitor), mas compromete, em muitos casos, a compreensão
do problema exposto pela notícia.
As matérias que continham acusações estiveram mais presentes nos momentos “A
concentração de imigrantes na fronteira com o Peru no final de 2010”, feitas
principalmente contra o Governo Federal e o governo estadual do Acre pelas condições
de alojamento dos imigrantes, e “O processo de recrutamento e de dispersão pelo
território nacional”, em que acusações eram feitas contra o governo estadual do Acre
pelo envio de haitianos à São Paulo e outras cidades brasileiras.

Gráfico 5 - Matérias segundo divergências, acusação e o princípio do contraditório

Fonte: levantamento elaborado pelos autores, 2015.

Nessas matérias jornalísticas, não raras são as que utilizam termos que contribuem à
estigmatização dos imigrantes, como a palavra “ilegal”, que reforçam sua
subalternidade política e institucional e reforçam a criminalização do imigrante.
Também observamos a utilização dos termos “invasor” e “invasão haitiana” por duas
influentes colunas de opinião, sugerindo existir na imigração uma situação de
ilegalidade e de ameaça aos brasileiros.
Um fator crítico de avaliação da qualidade da cobertura é a multiplicidade de atores
ouvidos em uma reportagem: em 27,8% das matérias, somente uma fonte foi ouvida, a
maioria delas, fontes oficiais. Em 61,1% de todo o conteúdo levantado, nenhum
imigrante foi entrevistado, enquanto as fontes oficiais estiveram ausentes em 27,8% das
matérias.
Esta desigualdade na escolha das fontes é ainda mais discrepante quando analisamos os
lides8 das matérias pesquisadas. Em 45,37% dos casos, alguma instância do Estado é
citada como fonte protagonista das notícias e reportagens, enquanto os imigrantes e
associações de migrantes são citados em apenas 18,5%.
Um dado importante é que 47,22% do material jornalístico avaliado não cita qualquer
pesquisa ou dado estatístico como fonte, e 71,43% dos textos sequer menciona a
legislação migratória brasileira. O segundo número tem uma repercussão mais grave,
visto a importância dessa informação para a compreensão do processo de chegada de
estrangeiros, a diferenciação entre imigrantes e refugiados, e sobretudo o conhecimento
pelo leitor da responsabilidade do Estado na questão e dos direitos que tanto imigrantes
como refugiados possuem.

Considerações finais
O presente estudo se propôs a analisar a cobertura jornalística do Jornal FSP acerca da
imigração haitiana no Brasil, entre janeiro de 2010 e janeiro de 2015. Foi possível
identificar uma média de 21 matérias por ano, contando os cinco temas elencados,
sendo 90% delas fruto de apuração do próprio jornal.
O conteúdo, entretanto, apresenta uma série de falhas de apuração por conta,
principalmente, da falta de contextualização do fluxo migratório. Em outras palavras,
não se nota um esforço jornalístico de explicar o porquê da chegada de haitianos ao
Brasil. Uma das causas desse contexto seria a ausência de textos que se proponham a
analisar a conjuntura do país de origem e explicar a Legislação Migratória brasileira.
Outro ponto crítico é que a cobertura do jornal também tem contribuído para reforçar
uma visão preconceituosa por sugerir, ainda que em 10,71% de suas matérias, que o
imigrante ameaça o emprego do trabalhador brasileiro por meio de insinuações de que
há uma disputa por vagas no mercado de trabalho e que o imigrante haitiano constitui,

8
O jornalismo usa o termo para resumir a função do primeiro parágrafo: introduzir o leitor no texto e
prender sua atenção.
portanto, mais que um sujeito diverso, um sujeito adverso, adversário.

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