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Povoamento inicial da América do Sul: contribuigdes do contexto brasileiro LUCAS BUENO! ¢ ADRIANA DIAS" POVOAMENTO inicial da América do Sul nao foi um processo homogé- neo. Em termos cronologicos as evidéncias apontam para a ocupagao de diversas regides da América do Sul ja em fins do Pleistoceno e inicio do Holoceno, com datas anteriores ou ao menos contemporineas ao Horizonte Clovis na América do Norte. As dinamicas do proc: novos tei so de colonizagao desses itérios também foram marcadas por uma grande variedade de estr tégias. Os distintos ecétones nao foram ocupados simultancamente. Observa-se a existéncia de conjuntos de sitios de uma mesma matriz cultural separados por grandes distincias ¢ muitas reas geogréficas sO passaram a ser exploradas em tempos mais recentes (Borrero, 2006; Bueno, 2011; Bueno et al., 2013a; Dias, 2004; Dias; Bueno, 2013; Dillehay, 2009; Faught, 2008; Goebel et al., 200: Gruhn, 2005; Lanata et al., 2008; Mioti; Saleme, 2003; Steele; Politis, 2009). modelo fluvial também preve a existen de hot spots eM certas areas, constantemente ocupadas a0 longo de milénios que resultaria em agrupamentos de sitios com longas sequéncias estratigratic Outras areas, cuja ocupagao estaria associada a ciclos sazonais de mobilida combinando momentos de agregacio e dispersio de grupos humanos, seri caracterizadas por assinaturas arqueolégicas mais discretas ¢ de baixa visibilida (Anderson; Gillian, 2000; Anthony, 1990; Beaton, 1991; Haezelwood; Steel 2003; Kelly, 2003; Sauer, 1944; Steele et al., 1998). Entre doze mil ¢ oito mil anos ap o leste da América do Sul ja se enco trava ocupado por uma populagao estavel de cagadores coletores, caracteriza por diversificadas estratégias de adaptagio aos processos de transformagio d paisagens holocénicas. O predominio de sistemas de subsisténcia generalistas a grande variabilidade de estilos regionais das induistrias Iiticas para esse perio evidenciam os limites dos modelos classicos sobre 0 povoamento da Améri para a compreensio dos processos de colonizagao inicial dessa regiao. Uma re EsTUDOs AVANCADOS 29 (83), 2015 119 critica da bibliografia concernente ao contexto brasileiro indica 359 datagdes © treze mil ¢ sete mil anos ap associadas a 117 sitios arqueolégicos, distri- los por todo o territério nacional. De fato, 0 néimero de datas é maior, mas amostra representa somente aqueles sitios que apresentam dados confiaveis aterial datado, o método de coleta ¢ andlise, a referéncia de oratorio, a proveniéncia estratigrafica ¢ 0 contexto cultural associado a amos- datada, bem como um sigma inferior a trezentos anos (Bueno et al., 2013a). nto ao tipo de m mbém nao foram consideradas datas anteriores a treze mil anos ap por en- blverem contextos cujas caracteristicas discr relagio entre datagdes ¢ atividades antrdpicas (Dias; Bueno, 2014; Meltzer al., 1994; Prous; Fogaga, 1999; Schmitz, 1990). Embora essa represente a ior amostra de datagdes para 0 periodo em comparagio aos demais paises da a Latina, esses dados sao negligenciados na construgio dos modelos de voamento do continente americano por estarem publicados, na maioria, em gua portuguesa (Anderson; Gillian 2000; Bueno et al., 2013b; Lanata et al., J08; Steele et al., 1998; Haezelwood; Steele, 2003; Hubbe et al., 2010) A colonizagio inicial do atual territério brasileiro teria sido contempo- rinea ao Horizonte Clovis da América do Norte, apresentando caracteristicas culturais distintas daquelas previstas pelos modelos ortodoxos. Na transi¢do Pleistoceno-Holoceno, pelo menos trés distintos eventos de colonizagao teriam contribufdo para 6 povoamento original do Brasil. Um primeiro conjunto de evidéncias, entre doze mil ¢ onze mil anos ap, refere-se 4 ocupagio da Floresta dpical € do Cerrado, cujos extensos sistemas fluviais interligam norte, nordes- te ¢ centro-oeste do pais, servindo de rota de acesso ao interior do continente (Figura 1). Em interagao com esses mosaicos de paisagens tropicais pela sazonalidade das chuvas ¢ alternancia entre areas de vegetacio aberta ¢ tas levantam questOes a respeito marcados fechada, os cacadore-coletores da Tradigao Itaparica investiram em estratégias generalistas, baseadas em sistemas de mobilidade sustentados por amplos ter- rit6rios, cujos dominios cram demarcados pelos estilos regionais das indistrias liticas e da arte rupestre. Entre onze mil e oito mil anos atrés uma segunda frente populacional ( guras 2,3 ¢ 4), culturalmente relacionada as populagdes pioneiras que coloniza- ram o extremo meridional do continente, passa a expandir-se da Bacia do Prata em direcSo ao norte ¢ a costa Atlantica, chegando a atingir a zona de trans com as savanas tropicais. O clima mais ameno, sem alternancia sazonal acentua da, ¢ a abundancia de recursos associados 4 Mata Atlantica contribuiram para a fixag3o dos cagadores coletores da Tradigio Umbu que passam a desenvolver estratégias gencralistas de exploragio dos recursos, marcando uma ruptura cul- tural com os contextos pampeanos. 120 EsTuDOs AVANCADOS 29 (83), 2015 : Figura 1 € onze mil anos ap. S — Figura 2 — Mapa com a localizagao dos mil e dez mil anos ap. EsTUDOS AVANGADOS 29 (83), 2015 — Mapa com a localizagao dos sitios arqueolégicos com datas entre 12.500 wing sitios arqueolégicos com datas entre onze 121 Figura 3 - Mapa com a localizagao sitios arqueoldgicos com datas entre dez mil ¢ nove mil anos ap. Figura 4 — Mapa com a localizagao dos sitios arqueolégicos com datas entre nove mil ¢ oito mil anos ap. 122 EsTubDOs AVANCADOS 29 (83), 2015 Uma iiltima frente de colonizacao original do Brasil esta representada pelo inicio da ocupagio humana da planicie litorinea a partir de oito mil anos ap (Fi- gura 5), onde predominam estratégias de exploragao especializada em recursos aquaticos ¢ sistemas de mobilidade restritos. Distribuida desde a desembocadura do rio Amazonas até 0 litoral norte do Rio Grande do Sul, a ocupagao do litoral Atlantico apresentou uma alta diversidade regional, indicando origens culturais e bioldgicas distintas das populagdes continentais e padrdes comportamentais ti- picos do Periodo Arcaico. Embora uma ocupagio pioneira mais antiga nao possa de todo ser descartada, as evidéncias arqueolégicas apontam que 0 povoamento definitivo do litoral esteve associado ao aumento da produtividade ambiental nessa area, decorrente das flutuagées do nivel do mar que a partir do Holoceno Médio afetaram as dinamicas de formagao das paisagens costeiras. Figura 5 - Mapa com a localizacao dos sitios arqueolégicos com datas entre oito mil ¢ sete mil anos ap. A inclusao do contexto brasileiro nos debates sobre povoamento da Amé- rica permite demonstrar que no Holoceno Inicial quase todos os espagos das Terras Baixas da América do Sul ja haviam sido ocupados ou pelo menos co- nhecidos, visitados ¢ mapeados por grupos humanos. A transi¢o Pleistoceno- -Holoceno constituiu-se, portanto, no periodo em que essa paisagem se tornou territ6rio, onde histérias, sentimentos ¢ atividades foram definitivamente as ciados a marcos geograficos, criando uma sensagao de apropriacio, familiaridade o- EsTUubDOS AVANCADOS 29 (83), 2015 123 € pertencimento (Rockman, 2003; Zedeno, 1997; Zedeno; Anderson, 2010). A diversidade dos padroes arqueolégicos nesse periodo sugere fluxos de migra- 20 com rotas, velocidades ¢ comportamentos variados. Pere be-se também um processo de diversificagao constante das estratégias adaptativas, em consonancia com as transformacées das paisagens ao longo do espago e do tempo. Evidéncias da Bacia Amaz6nica: a primeira colonizagao cagadora-coletora da Floresta Tropical Estudos paleoambientais realizados no centro-oeste da Amazonia indi- cam que no auge da iiltima glaciago, em torno de vinte mil anos ap, a dimi- nuigdo das precipitagdes foi insuficiente para a redugio da cobertura vegetal ¢ fragmentagao da floresta em areas de refiigio. Estudos sedimentolégicos na desembocadura do rio Amazonas apontam para uma baixa deposigao de po- len de gramineas, indicando a predominincia das florestas tropicais durante 0 Pleistoceno (Colinvaux et al., 1996, 2000). Apesar de ainda pouco numerosos, estudos arqueolégicos na Amazénia colombiana ¢ brasileira, assim como nas savanas do plato das Guianas, tém aportado dados que reforgam a ideia de uma adaptacao antiga aos ambientes tropicais, com datas que remontam a cerea de onze mil anos ap (Meggers; Miller, 2003; Mora; Gnecco, 2003; Roosevelt ct al., 1996). Para o Brasil, existem no momento 32 datagdes radiocarbonicas en tre 11.145 ¢ 8.080 anos ap para doze sitios arqueolégicos na Floresta Tropical (Bueno et al., 2013a). As caracteristicas dos conjuntos liticos associados a essas ocupagdes apontam para a existéncia de uma variabilidade regional, embora haja um predominio de estratégias expeditivas de produgao de artefatos unifaciais em diversos pontos dessa macrorregiao (Bueno, 2010c, 2010a). Porém, tanto nas savanas das Guianas, onde encontramos o Complexo Sipaliwini, quanto no baixo Amazonas, especialmente no abrigo da Pedra Pintada € no sitio Dona Stela, ha evidéncias de uma indtstria litica com artefatos uni € bifaciais que apresentam também pontas de projétil pedunculadas (Boomert, 1980; Costa, 2009; Roosevelt et al., 2002) Com base na localizacdo dos sitios, na cronologia € composigio dos con- juntos artefituais, podemos dizer que para a Floresta Tropical 0 contexto de Ocupagao humana entre onze mil ¢ oito mil anos ap aponta para uma ampliag2o ¢ diversificacao no processo de povoamento. As caracteristicas da organizagio recnologica associada aos conjuntos liticos mais antigos sugerem a presenga de industrias uni ¢ bifaciais no Médio e Baixo Amazonas, possivelmente associadas a uma rota de colonizacao de ambientes tropicais que inicialmente ocupou © norte do Planalto das Guianas, Venezuela ¢ Colombia, entrando no Brasil no final do Pleistoceno pelos rios da parte norte do pais (afluentes pela margem esquerda do rio Amazonas) e pelo corredor seco existente no baixo Amazonas. Essa hipétese baseia-se em dados cronolégicos ¢ similaridades estilisticas entre 0 Complexo Sipaliwini da Guiana ¢ 0 sitio Pedra Pintada, no estado do Para (Boomert, 19805 Rostain, 2008; Roosevelt et al., 1996). Propomos ainda que essa rota norte es- 124 Esrupos AVANCADOS 29 (83), 2015 teja relacionada a sitios antigos localizados no médio vale do rio Orenoco ¢ nas montanhas do interior da Colombia (Barse, 2003, Gnecco;, Accituno, 2006). Nesse caso, a conexdo dessas areas com o norte do Brasil seria facilitada por rios como rio Branco, Trombetas, Paru de Leste ¢ pelo corredor ja mencionado. Para a regiio de Carajas ha o predominio de estratégias expedientes mar- cadas pela produgao de artefatos unifaciais, sendo as pontas de projetil bifaciais encontradas enquanto achados isolados. Esse contexto apresenta um padrao mais similar ao que encontramos no Brasil Central no mesmo periodo, possivel- mente representando um epis6dio de colonizacio de ambientes tropicais mais especifico ou uma adaptagao regional ao ambiente da Serra dos Carajés (Maga- Ihaes, 1994, 2005). Evidéncias do nordeste e centro-oeste do Brasil: cagadores-coletores da Savana Tropical Os dados paleoambientais disponiveis para as regides nordeste ¢ centro- -oeste do Brasil provém de anilises polinicas ¢ sedimentos de lagos de diferentes locais, indicando mudangas na duragao e intensidade de climas secos no final do Pleistoceno ¢ inicio do Holoceno (Behling, 1998, 2002; Behling; Hooghiems- tra, 2001; De Oliveira et al., 1999; Ledru, 1993; Ledru et al., 1998, 2006; Mark graf et al., 2000; Salgado-Laboriau et al., 1997, 1998). Enquanto as evidéncias do nordeste apontam para a predominancia de climas tmidos durante o final do Pleistoceno, os dados para o Brasil Central apresentam uma tendéncia geral para condigdes de intensa aridez. No inicio do Holoceno, essas areas apresentam diferentes padrdes de mudanga climatica, embora prevalega uma tendéneia para climas marcados por uma intensa sazonalidade ¢ com predominio de condigdes secas ¢ ambientes do tipo savana dominando a paisagem. Apds dez mil anos ap, para o Brasil Central ha evidéncias que apontam para condigdes mais timidas € quentes, enquanto para o Nordeste a tendéncia parece indicar climas também mais quentes, mas predominantemente secos. Finalmente, no Holoceno Médio eventos de seca de curta duragdo aparecem distribuidos em varias dre duas regides. Nesse sentido, desde 0 Pleistoceno Final até o Holoceno Mé- dio um mosaico de condigdes clims 30 de respostas especificas em escala microrregional. Um exemplo des- dessas ticas ¢ formages vegetais deve ter ocorrido em ra sas variagées locais pode ser visto numa area ao centro-sul do Planalto Central brasileiro, no centro do estado de Minas Gerais, associada 2 floresta mesofitica semidecidual. Essa area localiza-se em uma zona de transigao entre a savana € a floresta tropical ¢ esta associada a formagdes carsticas. Do ponto de vista arqueo- logico constitui-se em uma area de especial relevancia uma vez. que apresenta um denso registro arqueoldgico com datas entre 12.400 € oito mil anos ap. As pesquisas arqueolégicas mais intensas nessas regides permitiram a iden- tificagio de 66 sitios arqueoldgicos com 218 datagdes radiocarbénicas entre 12.440 ¢ oito mil anos ap associados a indiistrias liticas essencialmente unifacial associadas 4 Tradigao Itaparica (Bueno et al., 201 3a). EstTupos AVANGADOS 29 (83), 2015 As datas disponiveis para a transigio Pieistoceno-Holoceno para essa re- gi80 apontam para uma dispersio direcionada para 0 interior do continente. As duas regides mais importantes para o estudo do periodo entre 12.440 e nove mil anos ap sao a Serra da Capivara, no nordeste do Brasil, e 0 Vale do rio Peruagu, no Planalto Central brasileiro (Figuras 1, 2 € 3). Ambas as regides tém uma co- nexao com a bacia do rio Sio Francisco, o principal rio que conecta 0 nordeste € o Brasil Central ¢ oferece uma fonte perene de égua, além de locais excepcio- nais para obtencao de diferentes tipos de recursos, tanto para tecnologia (como material litico e madeira) quanto para subsistencia (peixes, mamiferos e plantas). Entre onze mil ¢ dez mil anos ap a amostra de sitios datados da Tradigio Itaparica aumenta de forma significativa, envolvendo a manutengio da ocupagz0 de areas antigas (tais como Serra da Capivara ¢ Peruagu) ¢ a colonizagio de novas areas distantes do vale do Sio Francisco, em diregao as porgdes norte ¢ oeste do Planalto Central Brasileiro (Bueno, 2011; Schmitz et al., 1989, 2004; Veron 1992) (Figura 2). As similaridades dos conjuntos liticos entre sitios que mais de dois mil quilmetros de distancia estao baseadas no comportamento de obtengao das matérias-primas ¢ na cadeia operatéria de produgao dos artefatos formais, especialmente as “lesmas” (Figura 6). Ha ainda similaridades no padrio de assentamento, no que se refere 4 implantagao dos sitios e a variabilidade tecnoldgica inter-sitios (Bueno, 2005-2006). A maioria das amostras provém de abrigos, mas hi alguns sitios a céu aberto bastante densos, especialmente no médio curso do rio Tocantins (Bueno, 2007, 2008), No entanto, embora haja essa similaridade entre o médio Tocantins, 0 vale do Peruagu ¢ a regiao de Serra- népolis, ha também evidéncias de variagdes inter-regionais na cadeia operatoria de produgdo dos artefatos formais que podem estar relacionadas a m de transmissio cultural ¢ padrdes particulares de interagao social (Bueno, 2005- 2006, 2007; Foga¢a, 2001, 2003; Lourdeau, 2010; Rodet, 2006). Na Serra da Capivara, entre onze mil ¢ 10.500 anos ap, varios sitios com fogueiras associadas a conjuntos liticos apresentam as mesmas caracteristicas tee- nol6gicas, podendo ser associados também a Tradigio Itaparica. Para além do conjunto litico, no abrigo Toca do Joao Leite pesquisadores encontraram pig- mentos amarelos associados a zagao (Guidon et al., 2009) e no final desse periodo as mais antigas evidéncias de pintura foram registradas para os abrigos da Serra da Capivara (Guidon, 1985; Martin, 1996; Pessis, 1987, 1999). Estilos de arte rupestre semelhante ao defi- lo a ‘anismos. lascas apresentando evidéncias de mareas de utili- nido para essa regio durante esse perfodo sio encontrados também nos estados de Pernambuco ¢ Rio Grande do Norte, com datas entre nove mil ¢ oito mil anos ap. Essas evidencias estio associadas 4 Tradiggo Nordeste ¢ sua principal caracteristica € a representagio de atividades do cotidiano, com um intenso foco em narrativas ¢ agdes representando figuras humanas. Com relagio a subsisténcia escavagdes arqueolégicas realizadas em diver- sos contextos do periodo nos estados de Goids ¢ Minas Gerais revelaram a pre- 126 Esrupos AVANCADOS 29 (83), 2015 dominancia de estratégias generalistas para exploragio dos recursos das savanas tropicais nas primeiras fases dessa ocupagao, destacando-se 0 consumo de vea- dos (Mazama americana e Ozotocerus benzoarticus), porcos do mato (Tayas- su tajacu), tatus (Cabassous tatouay, Euphractus sexcintus e Dasypus novencinc- tus), macacos ( Alouatta caraya, Lagothrix lagothricha e Cebus apella), capivaras (Hydrochoeris hydrochoeris), lagartos (Tupinambis teguxin ¢ Ameiva ameiva) ¢ tartarugas (Chelonia sp.), bem como de varias espécies de peixes, aves € gastré- podes. Também ha evidéncias antigas de consumo intenso de frutos sazonais como a gueroba (Syagrus oledcea), 0 jeriva (Syagrus romanzoffiana), 0 acuma (Syagrus flexuosa), 0 jatoba (Hymenea stigonocarpa), 0 babacu (Orbignya sp.), © caju (Anacardium sp.), 0 licuri (Syagmuscoronata) ¢ 0 pequi (Caryocar brasi- liense) (Jacobus, 2003; Kipnis, 2002; Schmitz et al., 2004). Figura 6 — Artefatos caracteristicos da tradicao Itaparica, Esses dados em conjunto suportam a hipétese de uma rota de interiori- zagao do povoamento na transi¢gio Pleistoceno-Holoceno que seguiu especial- mente 0 Sao Francisco ¢ outros vales de rios principais que conectam as regides norte, nordeste ¢ centro-oeste do Brasil. As evidéncias arqueolégicas sugerem ao menos duas rotas principais distintas para essa colonizagao inicial das savanas tropicais na transi¢ao Pleistoceno-Holoceno. Uma rota pioneira poderia estar associada as areas do Caribe a nordeste da América do Sul, com uma possivel conexio entre norte € nordeste através de um corredor florestado no entorno Esrupos AVANGADOS 29 (83), 2015 127 de pequenos rios que cruzam a regiio (De Oliveira et al., 1999), Nessa rota, a bacia do rio $40 Francisco ofereceria 0 principal eixo de ligagao entre a costa Atlintica, o nordeste e 0 sudeste do Brasil ¢ sua ocupasio estaria associada a Tradigdo Itaparica entre o periodo de 12.440 anos ¢ nove mil anos ap (Bueno, 2011). Uma segunda rota, que poderia ser contemporanea a primeira, viria do noroeste, seguindo o extenso sistema fluvial amazénico em diregao do Planalto Central brasileiro ¢ estaria representada por sitios como Santa Elina. Apesar de as datas disponiveis para os sitios do nordeste serem mais antigas do que para os sitios do noroeste, isso poderia estar relacionado a um vies amostral, uma vez que ha pouquissimas pesquisas no oeste ¢ no noroeste do Brasil savanas Outro importante conjunto arqueolégico que deve ser mencionado € 0 Complexo Lagoa Santa, 0 qual inclui sitios em Lagoa Santa ¢ Serra do erra do Espinhago). Esses sitios poderiam estar relacionados tanto a.um fluxo populacional a partir do oeste quanto a uma expansio derivada do vale do Sao Francisco, alcangando ai sua mais alta latitude (Bueno, 2013a), No entanto, a tecnologia litica, a arte rupestre ¢ os conjuntos de sepultamentos hu- manos relacionados a esses sitios apresentam caracteristicas distintas em relagio a Tradigao Itaparica ou a Tradigio Umbu, criando a possibilidade de entender esse complexo como um fendmeno tinico ¢ especifico que deve responder ques- tes contextuais de ordem local (Bueno, 2013a, 2013b). pd (ex- tremo sul da Associados a Floresta Semidecidual, ha nessa regiao sitios nos quais predo- mina uma industria litica local, composta por conjuntos com artefatos expedi- tivos, com intenso uso de tecnologia bipolar ¢ exploragao de matéria-prima de disponibilidade local, como 0 quartzo. Em geral, os sitios da regiio de Lagoa Santa ¢ da Serra de Cipé poderiam estar associados a0 Complexo Lagoa Santa datado entre 9.720 ¢ 8.230 anos ap (Hurt, 1960; Hurt; Blasi, 1969) Sepultamentos humanos esto também presentes em uma série de abri- gos sob-rocha da regido de Lagoa Santa ¢ Serra do Cipé durante esse periodo, constituindo a maior ¢ melhor amostra preservada de sepultamentos humanos do Brasil para o Holoceno Inicial (Prous, 1991a, 1992/1993; Neves; Hubbe, 2005; Neves et al., 2003). Na Lapa do Santo, por exemplo, foram encontrados 26 sepultamentos com 36 individuos, para os quais foram obtidas sete datas di- retamente a partir dos ossos humanos, definindo um periodo de ocupagao entre 8.730 ¢ 7.400 anos ap (Neves et al., 2003; Strauss, 2010). houve dois picos de enterramentos nessa area: um antigo, entre dez mil ¢ oito mil bp anos ap ¢ um mais tardio entre dois mil ¢ mil anos ap. Por outro lado, para o Holoceno Médio, ha poucos sitios arqueolégicos registrados ¢ nao ha, no registro arqueolégico da regiao, nenhum sepultamento humano, Essa configu- ragio pode estar relacionada a periodos de intensa aridez enfrentados pela regio periodo, No que se refere 4 fase de ocupagao tardia dessa drea, ela estd relacionada a uma populago horticultora sem nenhuma relagio biolégica com os primeiros grupos cagadores coletores (Araujo et al., 2003). studos sugerem que durante es 128 Estupos AVANCADOS 29 (83), 2015 Ao sul da Serra do Espinhaco, proximo a Lagoa Santa, também temos uma evidéncia de arte rupestre bem datada, consistindo em um bloco com gra- vuras que foi encoberto por sedimentos e encontrado nas eseavagoes do Grande Abrigo de Santana do Riacho (Prous, 1991b). Duas amostras de carvio foram coletadas ¢ datadas: uma bem embaixo do bloco (9,350+ 80 anos ap) € outra sobre 0 bloco (7.810+ 80 anos ap). Também nesse sitio foram encontradas evi- déni de pigmentos ¢ raspadores associados a varios sepultamento humanos datados entre dez mil ¢ oto mil anos ap (Prous, 1999). O estilo de arte rupestre associado a essas evidéneias é denominado Tradigio Planalto e tem como princi- pal tema das pinturas a representagio de animais (Isnardis, 2009; Prous. 1991a, 1991b; Ribeiro, 2006) Contorme mencionamos, a possibilidade de que o processo de coloniza- ¢40 das savanas tropieais tenha ocorrido através de rotas de interiorizagao asso- iadas a diferentes pulsos populacionais ¢ sustentada também pela distribuicao espacial dos sitios arqueoldgicos localizados no oeste do Brasil Central, como na, estado do Mato Grosso. Esse sitio esta localizado nos limites entre a © ocupada pelas savanas tropicas ¢ pela floresta tropical, em uma area onde se localizam as cabeceiras tanto de rios que correm para a bacia amazénica quan- to para o planalto central e regiao sudeste do pais. Fm Santa Elina, embora nio tenhamos datas para o momento ha datas disponiveis para o Pleistoceno Tardio, desde treze mil até 27 mil anos ap, associadas a vestigios liticos e de megafauna (Glosorherium lettsomi). No entanto, a origem cultural da amostra de carvao datada ¢ problemas tafonomi- cos colocam algumas questdes a essas amostras que ainda precisam ser melhor discutidas (Vilhena-Vialou, 2003; Vialou, 2003). Por outro lado, esse mesmo radiocarbénicas entre 10.120 © 9.320 anos ap, associadas a uma industria litiea caracterizada por uma tecnologia unifacial ¢ ex- peditiva ¢ por um estilo de arte rupestre que nao apresenta correspondéncia com nenhum outro conhecido no Brasil Central para o mesmo periodo, Embora essa area ainda seja pouco conhecida para além desse sitio, cla esta em um local muito importante para discussdes sobre as primeiras rotas de povoamento uma vez que representa 0 sitio mais a oeste para esse primeiro periodo de entrada e disper do povoamento. Nesse sentido, Santa Elina, em razio de sua localizacio, cro- nologia ¢ composigao artefatual pode representa uma possivel conexao entre as Terras Altas do oeste e as ‘Terras baixas do leste da América do Sul ‘specifico da transigio Pleistoceno-Holoceno, sitio apresenta nove data > E também importante notar que entre nove mil e vito mil anos ap ha uma mudanga cultural abrupta no registro arqueolégico para essa macrorregiao da Savana Tropical: em todos os locais onde havia inicialmente uma ocupagio as- sociada 4 Tradi¢io Ttaparica, obserya-se a produgdo de um conjunto artefatual novo ¢ diferente. Essa mudanga parece indicar um processo de regionalizacio das industrias liticas com caracteristicas tecnolégicas distintas (Bueno, 2007, 2011; Schmitz, 1987; Schmitz et al., 2004). Essas mudangas si especialmente EsTubOs AVANCADOS 29 (83), 2015 129 evidentes apés 8.500 anos ap quando conjuntos liticos assumem caracteristicas regionais ¢ na maioria dos casos sio caracterizados pela produgio de artefatos informais produzidos sob matéria-prima local. Mas esse nao ¢ 0 tinico aspecto que apresenta evidéncias de mudanga, Ainda para o mesmo periodo os estilos de arte rupestre regionais estio também mudando, com diferengas locais emer- gindo tanto no Planalto Central brasileiro quanto na regiio nordeste (Guidon et al., 2009; Martin, 1996; Prous; Ribeiro, 1996/1997; Ribeiro, 2006; Schmitz, 1987; Schmitz et al., 1989; Schmitz er al., 1996), Evidéncias do sudeste ¢ do sul do Brasil: cacadores-coletores da Mata Atlantica e do Pampa A colonizagio inicial das regides sudeste ¢ sul apresenta data centes quando comparadas com o Brasil Central, com 26 datas radiocarbénicas entre 10.810 ¢ 8.020 anos ap, associadas a doze sitios arqueoldgicos que apre- sentam industrias liticas bifaciais, com pontas de projétil de diferentes formas ¢ tamanhos (Bueno et al., 201 3a). A diversidade ecoldgica ¢ as condigdes climati- cas benignas corresponderam a fatores de fixagao populacional antiga para essa area, contrastando com as restrigdes de umidade, temperatura ¢ sazonalidade de recursos associadas ao povoamento do Brasil Central (em relagio 3 disponi- bilidade de chuvas) ¢ do Pampa argentino (em relagio as baixas temperaturas) (Araujo et al., 2003; Dias, 2011, 2012; Hadler et al., 2013). A Mata Adantica corresponde & segunda maior floresta tropical da Amé- rica do Sul. Embora o desmatamento tenha reduzido sua extensio original em mais de 90%, estima-se que abrangeria 15% do territério brasileiro, estendendo- se por todo 0 litoral Atlantico ¢ interiorizando-se até os vales dos rios Paraguai ¢ Parana (Oliveira Filho; Fontes, 2000). O processo de formagao desse bioma iniciou-se na transi¢3o Pleistoceno-Holoceno. As anilises polinicas indicam que entre 12.300 ¢ 9.800 anos ap passou a ocorrer um aumento progressivo da umi- dade ¢ do calor no Brasil Meridional, estimulando 0 desenvolvimento das flo- restas até ento restritas a encostas ¢ vales de rios. As pradarias que dominavam esse cendrio no Pleistoceno restringiram-se as altitudes mais elevadas do planalto sul brasileiro ¢ a regiio sudoeste do Rio Grande do Sul. No litoral a expansio da Mata Atlantica s6 passou a ocorrer a partir de cinco mil anos atras, quando cessaram as ingress6es marinhas sobre a planicie costeira (Angulo et al., 2006; Behling, 1998, 2002; Behling; Negrelle, 2001). O conjunto mais antigo de evidéncias da Tradigio Umbu no sul do Brasil relaciona-se ao bioma Pampa ¢ esta representado por dois sitios a céu aberto, Laranjito ¢ Milton Almeida, com datas entre 10.800 ¢ 10.200 anos ap. Ambos 05 sitios estiio localizados no médio rio Uruguai ¢ as caracteristicas tecnologicas das induistrias liticas apontam para similaridades com os contextos uruguaios € argentinos contemporaneos. No entanto, a auséneia nos sitios brasileiros de pontas de projétil do estilo rabo de peixe permite sugerir que a Tradi¢io Umbu pode estar relacionada a primeira ocupagio dos vales fluviais do centro da Amé- es Mais re- 130 Estupos AVANCADOS 29 (83), 2015 rica do Sul, atingindo a porgio leste do continente através da Bacia do Prata (Dias, 2004; Dias; Jacobus, 2001, 2003; Dias; Bueno, 2013). As evidéncias mais setentrionais de tais rotas pioneiras de interiorizagio foram encontradas no sudeste de Minas Gerais, nas cabecciras do rio Sao Fran- isco, em uma zona ecologica de transigdo entre Trata-se do sitio Gruta do Marinheiro, com uma datagio de 9.610 anos ap associada a uma grande variedade de pontas de projétil (Koole, 2007). Por sua vez, as evidéncias mais antigas de ocupag3o da bacia do Parané estio represen- tadas nos sitios Capelinha ¢ Batatal I, em Sao Paulo, com datas entre 9.850 € 9.050 anos ap. Ambos os sitios correspondem a sambaquis fluviais construidos, principalmente, de carapagas de moluscos terrestres ¢ localizam-se no vale do rio Ribeira do Iguape, uma das principais vias de conexdo entre o interior ¢ a costa Atlantica. Embora distantes mais de mil quilometros, as induistrias li bifaciais dos sambaquis fluviais apresentam varias similaridades com as do vale do rio Uruguai_para o mesmo periodo, incluindo a presenga de pontas de pro- jétil. Esses sitios também apresentam as evidencias mais antigas de exploracao de recursos da Mata Atkintica ¢ do ambiente costeiro, neste tltimo caso materiali- zada em adornos feitos em conchas marinhas ¢ dentes de tubarao (Penin, 2005; Plens, 2007). Uma relagao antiga com os dominios da Mata Atlantica esta atestada na regido nordeste do Rio Grande do Sul, com datagdes entre 8.790 ¢ 8.090 anos ap para os sitios Sangao, Pilger ¢ Garivaldino (Dias, 2003; Dias; Neubauer, 2010; Ribeiro; Ribeiro, 1999), Esses sitios em abrigo sob rocha esto situados a Mara Atlantica e 0 Cerrado. cas na borda do planalto sul brasileiro € possuem sequéncias continuas de ocupagio que datam até 6 Holoceno Recente. Com uma distancia média de cem quild- metros entre cles, esto localizados em vales de rios pertencentes a bacia do lago Guaiba © sua ocupagao inicial esta relacionada as rotas fluviais de colonizagio do vale do rio Uruguai. Todos 08 sitios possuem recorréncias significativas nas caracteristicas estruturais dos assentamentos € na organizagao da tecnologia ¢ observa-se uma alta regularidade em termos sincrénicos ¢ diacrénicos, relacio- nada a producao ¢ manutengao de pontas de projetil e a exploragao das matérias- -primas locais (Figura 7). A redugao bifacial esta preferencialmente voltada ao processamento do basalto ¢ do arenito silicificado, enquanto a técnica bipolar a ao lascamento do quartzo ¢ da calceddnia. A variagio tipolégica das s de projétil, por sua vez, segue uma variedade de estratégias tecnoligicas, mas a anilise diacrénica de sua distribuigio nas sequéncias regionais indica a coexisténcia de diferentes técnicas ao longo do tempo (Dias, 2003, 2007, 2011, 2012; Dias; Neubauer, 2010). Também observa-se uma conexao antiga desses contextos com o emergente bioma Mata Atlantica. A exploragio dos recursos faunisticos é caracterizada por estratégias gencralistas, com captura preferencial de tatus (Dasypus sp.), veados (Mazama americana ¢ Ozotocerus bezoarticus), porcos do mato (Pecari tajacu) ¢ preds (Cavia aperea), bem como de lagartos Esrubos AVANGADOS 29 (83), 2015 131 de médio porte ( Tupinambis sp.), aves (especialmente da familia Tinamidac) € moluscos, representados por gastrépedes ( Meqalobulimus) e bivalves (Diplo- don). Porém, o maior aporte alimentar provinha de cagadas oportunisticas de Varios tipos de mamiferos, estando a diversidade ecolégica local representada jados a ecossistemas florestais por uma ampla gama de grupos taxonémicos assoc € dreas de tensio ecolégica com o pampa, atestado também pelo alto consumo de ovos de ema (Rheaamericana) (Rosa, 2010; Rosa; Jacobus, 2010). » | s@ fe Bi 4 me tr GF a iP) A s% % a fie A tb oS Nf tes i Tet - . F ) % -— >» Umbu. Consideragées finais: definindo rotas de povoamento Com relacio 4 amplitude da dispersio ¢ diversificagio regional da ocupa- sao do interior do Brasil, hé um marcador temporal bem claro e generalizado Para todas as regides que ocorre hi 10.500 anos ap. A partir desse momento o numero de sitios cresce consideravelmente, ha evidéncias de ocupagio humana 30 da costa Atlintiea), ¢, mais importante, em todas as regides (com ex cendrio indica a existencia de uma diversidade cultural inter-regional (Figura 2). Nesse sentido, esse perfodo representa uma transicio entre dois momentos distintos do processo de povoamento do Brasil. Durante o Pleistoceno Tardio Estupos AVANCADOS 29 (83), 2015 ha a selecdo por locais de referéncia na paisagem, locais que se destacam pela sua configuragao “monumental”, locais que representam marcos na paisagem local. Isso ocorre em uM Momento em que essa paisagem pri € mapeada, fazendo que esses marcos desempenhem um papel importante faci- litando 0 conhe nento, a orientagio e a dispersio de grupos humanos em uma area pouco ou ainda nao habitada. Os vales dos grandes rios, cisa ser conhecida imento ¢ reconheci tanto no nordeste quanto no Brasil Central, na Amazénia ou na regiao sul, parecem ter desempenhado um papel importante nesse perfodo, concentrando e direcionando a expansio que rapidamente atinge novas e distantes areas sem que preencha completamente o vasto territorio que se estende entre esses pon- _ Além de representarem fei e reconhecidas, 0 vale desses rios concentra uma diversidade de recursos, tanto em termos de subsisténcia quanto de tecnologia, que certamente seria valoriza- do em situagdes em que se tem pouco ou nenhum conhecimento sobre as areas have nessa paisagem, facilmente localizadas ocupadas Em contraste a essa configuragae, no Holoceno Inicial, essa dispersio toma outra diregdo, expandindo-se radialmente € criando novas rotas ¢ am- pliando a extensio das areas ocupadas, em um processo de construgio de uma gem agora familiar ¢ socialmente incorporada. Hii evidéncias de variagao pa cultural regional, possivelmente associadas com a detinigio de areas de ocupagio com menor extensio espacial, mas sujeitas a uma grande densidade ocupacional integrada em um ciclo regular de mobilidade anual, Dessa forma, 0 Holoceno Inicial marca uma fase de ocupagio efetiva do interior do Brasil, com a delimi- tacio de fronteiras tetritoriais associadas a um processo de povoamento que envolve miiltiplas rotas e dinamicas de dispersao. As anilises bioantropologicas tém oferecido suporte para a criagio de mo delos demograficos para o povoamento do continente compativei gio de intensos fluxos populacionais de origens variadas. De acordo com esse com a no- modelo, a0 menos dois componentes biolégicos constituem as populagoes que originalmemte colonizaram a América. A ocupagao mais antiga foi realizada por pessoas com morfologia craniana generalizada, similar a normalmente encon- trada entre populag leceu no leste da Asia durante boa parte do Pleistoceno Tardio, As caracteris- indigenas africanas ¢ australianas, a qual também preva ticas dentarias dessas colegdes antigas indicam a predominancia de um padrao mais proximo aos sundandontes do que aos sinodontes que hoje predominam nas Américas. Esse padrio biolégico é modificado entre o Holoceno Inicial ¢ Médio, quando uma morfologia mongoloide ¢ sindadonte rorna-se dominante entre as populagdes nativas na América. E onda populacional com uma morfologia clissica mongoloide entrou nas Améri- cas através do estreito de Behring durante o final do Pleistoceno, As mudangas biolgicas dos nativos americanos atuais indicam uma transigio abrupta, possi yelmente envolvendo substituigao populacional por competisao ¢, em menor s dados sugerem que uma segunda ESTUDOS AVANGADOS 29 (83), 2015 133 erau, hibridizagao. Essas caracteristicas sugerem que o intervalo de tempo entre as duas ondas populacionais com distintos conjuntos bioldgicos pode ter sido bem curta, por volta de dois ou trés milénios (Neves; Pucciarelli, 1991; Neves et al., 2003, 2004; Neves; Hubbe, 2005). Nesse sentido podemos sugerir trés rotas principais para o interior do con- tinente, ocupando todo o leste da América do Sul (Figura 8). Embora elas nao sejam todas contemporineas, jd estavam presentes ha dez mil anos ap: bo Franciac Basin Rove La Plot Beon Rate Figura 8 ~ Mapa com indicagio das principais rotas de interiorizagio da colonizagio entre o final do Pleistoceno ¢ 0 Holoceno Inicial. 134 Estupos AVANCADOS 29 (83), 2015, 1) Rota da bacia do Sao Francisco: Essa seria a rota de interiorizagao mais antiga com datas para o periodo da transigao Pleistoceno-Holoceno. Esta as- sociada a Tradigio Itaparica ¢ provavelmente relacionada a uma rota de po- voamento que uniria o Caribe, a costa Atlantica ao norte ¢ porgdes da cadeia de montanhas andinas, como sugerido por Sauer (1944) ¢ Anderson e Gillian (2000). Nessa rota, o rio Sao Francisco teria ligado a costa Atlantica ao norte com o nordeste ¢ 0 Brasil Central. Esse processo continuou até o Holoceno Inicial, com uma expansio radial conectando outras importantes bacias hidro- graficas do Brasil Central, como Araguaia~Tocantins ¢ Paraguai. Por fim, uma intensa diversificacio cultural deve ter ocorrido apés 8.500 anos ap, originando distintos complexos tecnolégicos regionais (Bueno, 2011; Dias; Bueno, 2013). 2) Rota da bacia amazonica: Durante o Holoceno Inici | a segunda leva de coloniza io pode ter conectado o norte do Platé das Guianas, Venezuela ¢ Colémbia, entrando no Brasil pelos rios da parte norte do pais ¢ pelo baixo Amazonas (Bueno, 2011). Essa hipétese esta baseada na cronologia e em simi- laridades estilisticas entre 0 Complexo Sipaliwini da Guiana ¢ o registro arqueo- légico do baixo Amazonas (Boomert, 1980; Roosevelt et al., 2002; Rostain, 2008). No entanto, ao contrario da hipétese de Sauer (1944) ¢ de Anderson € Gillian (2000), as datas do contexto brasileiro para esse periodo suportam a ide de uma antiga adaptagio para as Florestas ‘Tropicais, 0 que também é confirmado pelo registro arqueolégico colombiano (Aceituno; Loaiza, 2007; Gnecco, 2003; Gnecco; Aceituno, 2006; Mc Gnecco, 2003). Pode-se ainda propor que essa rota norte esteja relacionada a sitios antigos do vale do médio rio Orenoco € com as montanhas do interior da Colémbia. A conexio com 0 norte do Brasil seria facilitada por rios como o Branco, Trombetas ¢ Paru de Leste (Barse, 2003). 3) Rota da bacia do rio da Prata: Para o Holoceno Inicial uma terceira rota de colonizagao do interior voltada para a regido sul esta representada pela Tradi- gio Umbu. Possivelmente esteve associada ao sistema fluvial dos rios Paraguai, Parand ¢ Uruguai. Embora haja poucas evidéncias para essa rea, as informacdes disponiveis parecem sustentar as propostas de Sauer (1944) ¢ de Anderson ¢ Gillian (2000), de que 0 Chaco boliviano parece ter sido um “hot spot” para a dispersio de populagdes no sul da América do Sul. Nesse cenario a bacia do rio da Prata poderia representar um primeiro caminho cone a Costa Atlantica, ou ainda com a bacia amazénica para o norte. No Brasil - ¢ provavelmente no Paraguai ¢ nordeste da Argentina — esse fluxo de colonizagio, associado a indiistrias bifaciais ¢ composto por uma variada gama de pontas de projétil pedunculadas ¢ triangulares, foi estimulado pela expansio do bioma da Floresta Atlantica ao longo do Holoceno Médio (Dias, 2012; Dias; Bueno, 2013). tando os Andes com As rotas aqui propostas definem também os principais vazios que pre samos preencher para entender melhor 0 processo de povoamento das terras EstuboOs AVANCADOS 29 (83), 2015 135 baixas do leste da América do Sul. Nao ha dtivida de que as areas mais estraté- gicas ¢ relevantes para futuras pesquisas estejam na parte norte € oeste do pais: como essa enorme area coberta pela Floresta Tropical foi ocupada pelos grupos de primeiros imigrantes? Sera que ela foi evitada ou a dispersio pelas florestas da América central forneceu a essas primeiras populagdes conhecimento e habilida- des para lidar com © ambiente da floresta tropical? Por toda a parte norte do Brasil, os rios que oferecem uma rede de cone xdo natural entre Colombia, Venezuela, Guiana, Roraima ¢ norte do estado do Para parecem ser lugares bastante importantes e interessantes para se procurar por locais relacionados aos primeiros momentos de entrada das populagdes hu- manas na América do Sul. O mesmo pode ser dito para a parte oeste do pais, proximo a sitios como Santa Elina, incluindo ai toda a parte oeste do estado de Mato Grosso ¢ 0 estado de Rond6nia. Essa area, como ja dissemos, conccta 0 Brasil com a parte central das Terras Baixas Sul-Americanas (Chaco boliviano) ¢, ao mesmo tempo, apresenta rios que estio relacionados a bacia amazénica ¢ 4 bacia do Paraguai, o que torna possivel a conexdo com a parte mais ao sul do continente através da bacia do rio da Prata. para futuros trabalhos que queiram leste da América do Sul. O que pre antigos para essas dreas ¢, portanto, 0 que precisamos fazer é procurar por ou- tros sitios na grea de entorno e, po: issas io as areas mais estratégicas plorar a conexio entre as partes oeste € sa ser enfatizado é que nds j4 temos sitios ivelmente, retornar aos sitios j4 escavados a fim de obter mais informagdes sobre seu processo de formagio, assim como novas ¢ bem contextualizadas amostras para datagio ¢ analise. Outra area que merece um programa de pesquisa sistemitico & a costa norte/nordeste brasileira, Essa pode ter sido uma importante rota de entrada para o interior, via bacia do Si0 0. ancis Na parte sul do pais, uma questio-chave é a relagao das primeiras ocupa ses nos Pampas € adaptagdes mais ao norte da Argentina ¢ do Paraguai, Toda a parte sudoeste do pais apresenta evidéncias de ocupagdes bem antigas que podem estar relacionadas a rotas de migragao oriundas também do noroeste (Bolivia e norte da Argentina). As rotas aqui propostas constituem-se numa hipétese de pesquisa que pode ¢ deve ser testada no registro arqueolégico. Nossa intengio com este texto €realear 0 potencial do contexto arqueolégico brasileiro para testar essas hipote ses e, a0 fazer isso, contribuir para a discussio sobre 0 processo de poveamento da América do Sul ‘Talvez, no entanto, mais importante do que selecionar ar turos trabalhos, seja re novas para fil- forgar a necessidade de uma melhora em nossos métodos gional. Conforme apresentamos ao longo do texto, propomos anilises € a construgao de modelos de larga escala para compreender processos de dispersio e ocupa- gio. Nao se trata aqui de uma “corrida” para ver quem acha 0 sitio mais antigo. de escavagio ¢ registro € direcionar nosso foco para projetos de escala r e Esrubos AVANCADOS 29 (83), 2015 Nossa atengao est voltada para a construgio de um conjunto sélido ¢ robusto de dados que torne possivel uma discussio sobre como os grupos humanos percebem, decidem ¢ selecionam estratégias para ocupar diferentes tipos de am- bientes; como esses grupos obtém informagdes para lidar com novas terras pre viamente inabitadas, ou ainda como se da a cooperacao, a intera¢io com outros grupos nos momentos em que o estresse ambiental causa um rompimento, uma dissolugio nos limites territoriais ja estabelecidos. Esse € outros trabalhos que temos produzido sobre o tema procuram construir contextos, gerar hipoteses com base no conjunto de dados disponiveis a fim de que possamos mudar 0 foco da discussio sobre o povoamento da América indo além de pedras ¢ datas para discutir processos de ocupagio ¢ dispersio de grupos humanos que envolvem conhecimento, construgao ¢ transformacao de paisagens ¢ territérios. Referéncias ACEITUNO, F. J.; LOAIZA, N. Domesticacion del Bosque en el Cauca Medio Colom- biano entre el Pleistoceno Final y ef Holoceno Medio. BAR International Series 1654. Oxford: Archaeopress, 2007. ANDERSON, D.; GILLIAN, C. Paleoindian colonization of the Americas: implications from an examination of physiography, demography, and artifact distribution. American Antiquity, v.65, n.1, p.43-66, 2000. ANGULO, Rs LESSA, G.; DE SOUZA, M. C. A critical review of mid- to late-Ho- locene sea-level fluctuations on the eastern Brazilian coastline. 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