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Café Kubista ‘Vou pensando que um livro nasce de uma insatisfagio, nasce de uum vazio, cujos perimetros vio se revelando no decorret ¢ no fi- al do trabalho. Escrever, certamente, é preencher esse vazio. No ivro que termine’ ontem, todos os personagens acabam sendo exploradores do abismo, ou melhor, do contesido desse abismo. Perscrutam o nada e no param até dar com um de seus possiveis conceidos, pois decerto nao gostariam de ser confundidos com niilistas. Todos eles adotaram, como aticude diante do mundo, en- carar 0 vazio, E estéo ligados, sem sombra de divida, « uma frase de Kafka: “Fora daqui, este € 0 meu objetivo”. Vou andando por Praga pensando nisso, vou a passos ripidos, inad: meu corpo levemente curvado, a cabega um pouco i peando como se rajadas de vento me arrastassem para um lado ¢ para o outro da calgada. Minhas mios esto cruzadas nas costas, ‘minhas passadas sio largas. Uma ansiedade indefinida me assalta, com ela um abismo mortal ¢ o tédio sereno dos tiktimos meses, mas esse ¢ um vazio muito otimista. Afinal, no posso esquecer ‘que estou indo ao Café Kubista. Quando finalmente enero no local, acomodo-me numa das esas com janclas que dio para a rua Ovocny lembrando que na noite de ontem fui jantar com um amigo aqui de Praga ¢, a0 sair do restaurante, ele me apontou a casa na qual, durante anos, vi- veu 0 poeta Vladimir Holan. Eu nunca chegado a apenas duas horas e tinha a impressdo de que ainda nao acahara de aterissar. Nio sabia quase nada sobre a obra desse poeta, mas de repente fembrei que, trinta anos antes, inventei dois versos dele colocando- . como epigrafe, na abercura de Novas impresses de Praga, sexto ‘aphtulo do liveo mais euférico de todos os que eserevi na juventude: Olscura a negritude Ido mirmore na neve. para o amigo quc me acompanhava de minha relagao mi- ima ¢ estranha com Vladimir Holan: dois versos inventados nao F capricho, mas porque precisava de uma citagio que falasse raste entre © branco € 0 preto € nao a encontrara em ne- nhum livro. A medida que caminhdvamos pelo bairto de Malé Serana, eu ia me lembrando daquele capiculo sobre Praga de meu antigo livro e contei a meu amigo como naquele capitulo, com versos falsos de F \cluidos, ex transferira para essa cidade a paixio que sentia, na época, pela negritude, Especulara, em meu » sobre uma Praga branca e nevada em contraste nu cru com a presenga da negritude em suas ruas, bares © cabarés, Perguntava-me por que fizera aquilo ¢ nem eu mesmo sabia bem coneluf, hesitante ¢ quase envergonhado com a simplicidade de minha busca. “Branco ¢ preto”, disse ele, falando também com simples e eternos de minha vida. Acontece que eu sou simples, ‘muito singelo. No xadrez, por exemplo, sempre joguei com as preras. Se me oferecem as brancas, eu me esfumo, desapareco; 9 menor sinal de irritagéo, vou embora tentando disfarcar imcu leve espanto. O branco! © branco ¢ preto sempre foram um de meus eternos dile- mas, Mas por que em minha juventude eu transferirao dilema para Praga, cidade na qual, aliés, eu jamais estivera? Ao chegar ao final «da rua Ovoeny e ver a0 longe 0 terrago noturno do Café Kubista, decid tirar a primeira foro de minha viagem. Captei com a cimera imagem daquele local sicuado no térreo de uma bela casa Depois, a0 me aproximar um pouco mais do edificio, jé na esquina 1m a rua Celetnd, soube que ele era conhecido como 0 imével dda Virgem Negra, porque tinha, limitada por grades, aquela virgem escura na fachada. A casa ostentava um estilo tcheco tinico, do ini- cio do século xx, chamado de “cubismo tcheco”, popular entre os arquitctos progressistas da época. Nela se venerava, exposta entre grades na fachada, a Virgem Negra de Praga, de madeira de ébano procedente das Cruzadas. ‘Aquela extravagante cor que fizera da cidade, tive uma iluminagao e me lembrei de re- pente que muitos anos antes, em Nowas impressées de Praga, eu nto 6 inventara dois versos de Holan como, além disso, naquele mesmo naginara as luzes de um cabaré ou antro da negritude, 0 animadissimo Ziekow, que sicuei justamente nos porées da casa da Virgem Negra. A ideia daquele cabaré surgira depois de cu ter lido numa revista uma reportagem sobre a casa cubista da rua Celemd de Praga ¢ outra sobre a Antologia negra de Blaise Cendrars. Da capri- chosa associago da Virgem Negra com a antologia viera a ideia da transformar Praga e seu cabaré no centro mundial da megritude.

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