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São Paulo | nº 13 | jul-dez | 2016 | ISSN: 2177-4273

Montagem e imagem 1
Walter Benjamin e a teoria das redes

Antonio Rafele 2

RESUMO
Por meio de um minucioso estudo das obras Passagens e Origem do drama trágico alemão de Walter Benjamin,
este artigo destaca um retículo terminológico (representação, consciência, fragmento, montagem, imagem,
tempo, alegoria) em que o filósofo alemão mostra ser um precursor em comparação com as reflexões recentes e
relevantes sobre os modos de conhecimento em rede.

Palavras-chave:
Representação; Imagem; Experiência; Alegoria; Montagem

REPRESENTAÇÃO E IMAGEM

O ponto de partida da reflexção de Benjamin sobre o conhecimento é ligado ao


problema da representação. Identificada a oposição qualitativa que separa um discurso
intencional por um pensamento que, pelo contrário, cresce circularmente ou por germinações
internas, a representação configura-se como o próprio método do conhecimento, como se
quisesse dizer que o estilo torna-se sentido e fundamento dos processos gnoseológicos.
Altamente conotado por meio de algumas características constitutivas, como o percurso, a
escrita, a imagem e o leitor, esse estilo afirma um modo de investigação bem como um campo
específico de estudo, o que, em seguida, corresponde aproximadamente ao estudo dos
processos de comunicação.
1
Este artigo é parte de uma pesquisa de pós-doutorado realizada com bolsa de FAPESP no período 2013-2015
na ECA-USP, no interior do Centro de Pesquisa Internacional ATOPOS, sob a supervisão do Prof. dr. Massimo
Di Felice.
2
Doutor em Sociologia, pesquisador do Centro de Pesquisa Internacional ATOPOS, Universidade de São Paulo
e do Centro de Estudos sobre o Atual e o Cotidiano, CEAQ, Universidade Paris Descartes La Sorbonne. Entre
suas publicações: Representations of Fashion. The metropolis and mediological reflection between the
nineteenth and the twentieth centuries (San Diego University Press, 2013).

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É próprio da literatura filosófica reencontrar-se, a cada vez,


novamente de frente ao problema da representação. Na sua forma
sistemática realizada, essa se apresentará como doutrina, mas não
entre os poderes do mero pensamento daquilo que lhe confere uma tal
realização sistemática. A doutrina filosófica repousa sobre uma
codificação histórica e não é possível evocá-la do nada, more
geometrico […] Se a filosofia pretende conservar a lei da sua forma,
não como preparação para o conhecimento, mas como representação
da verdade, então aquilo que importa será a prática dessa forma, e não
a sua antecipação sistemática. […] A representação é a quintessência
de seu método […] Porque nas ideias não são incorporados aos
fenômenos. Geralmente, as ideias são as suas coordenações virtuais
objetivas. Mas se essas não contêm os fenômenos incorporando-os,
nem se volatilizam em funções, nas leis fenomenais, em hipótese, se
colocam as questões de como se alcançam os fenômenos. E a resposta
será: na representação dos próprios fenômenos (BENJAMIN, 1984,
pp. 50-51).

A dificuldade reside na impossibilidade de "duplicar" linearmente um objeto que não


é adequado. Não só este pertence a um fluxo indistinto de eventos com o qual mantém uma
variedade de relações escondidas, mas essenciais para fins de compreensão, tornando
impossível, senão na condição de perder qualquer possibilidade de conhecimento, o ato de
delimitar ou dissecar a priori o assunto escolhido. Mas, sobretudo, isso indica um modo de
ser do Eu, e é, portanto, indissociável da própria natureza do observador. A única maneira de
elevar o fenómeno a um certo grau de conhecimento, nesse contexto, é dado pelo próprio ato
de representar. E, evidentemente, em uma escrita, ou em um caminho reflexivo em que
existam simultaneamente a matéria e o observador, como é o caso de um espelho ou um duplo
perfeito. Todos em um processo cujo ritmo coincide com um progressivo desintegrar-se da
matéria até que ela atinja uma imagem completa.

O seu primeiro sinal característico é a renúncia a um percurso linear e


sem interrupções. O pensamento repreende continuamente desde o
início, retorna com minuciosidade a mesma coisa. Esse movimento
metódico da respiração é o modo de ser da contemplação. Essa,
realmente, seguindo os diversos graus de sentido na observação de um
único e mesmo objeto, traz o impulso a um sempre renovado começo
e justifca, ao mesmo tempo, a própria ritmica intermitente. Como nos

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mosaicos, a caprichosa variedade de peças individuais não afeta a


majestade do todo, assim a consideração filosófica não teme o
fragmentar-se do impulso. Ambos se compõem de elementos
disparados; nada poderia transmitir com mais eficácia o esplendor
transcendente do ícone ou da verdade. O valor dos fragmentos únicos
de pensamento é tão mais decisivo quanto menos imediata é a sua
relação com o todo, e o fulgor da representação depende do valor
desses fragmentos, como o brilho do mosaico depende da qualidade
do vidro fundido. A relação entra a elaboração micrológica e a forma
global exprime aquela lei para a qual o conteúdo da verdade de uma
teoria se deixa captar apenas na penetração mais precisa dos detalhes
mínimos de um conceito (BENJAMIN, 1984, p. 55).

A dificuldade que é inerente a tal representação demonstra que essa é


uma forma congenitamente prosaica. Enquanto o orador sustenta as
frases individuais com a voz e com a mímica, mesmo lá onde não
seria capaz de reger sozinho, e as conecta em um fluxo único de
pensamento – frequentemente incerto e vago – como se estivesse
esboçando de um só traço um desenho de longo fôlego, é próprio da
escrita parar e recomeçar do início a cada frase. A representação
contemplativa deve observar mais que qualquer outra coisa este
princípio. Essa não se propõe a persuadir e excitar. Essa é segurança
do seu feito quando força o leitor a parar nas “estações” do percurso.
Quanto maior é o seu objeto, mais interrompido será o percurso. A sua
sobriedade prosaica, bem distante do gesto imperioso do discurso
doutrinal, continua a ser a única forma de escrita condizente com a
pesquisa filosófica (BENJAMIN, 1984, p. 57).

Aquilo que Benjamin apresenta é uma situação comunicativa na qual o objeto


coincide com a própria exposição. As estações individuais do percurso não se sucedem em
grandes quantidades, mas mantêm, como partes de um mesmo objeto, a memória do que foi
dito em outros pontos, anteriores ou posteriores. Em uma compreensão simultânea do passado
e futuro, a reflexão constrói e cruza o argumento decisivo, fornecendo a impressão de que
"tudo está presente de uma vez". Nenhum dos momentos, mesmo no final do percurso, é para
ser considerado como perfeitamente terminado ou finalizado, uma vez que, precisamente a
sua viva e constante interpenetração, tanto na escrita que retorna sobre si mesma quanto numa
leitura "obrigada a parar nas estações do percurso", indiretamente evoca o que é feito, o ícone.
Essa imagem pode ser atingida a posteriori, como por sobressalto e em seguida aos rastros

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recorrentes e obsessivas que a reflexão encontrou no seu mesmo ritmo. A imagem ajustada,
ou está prestes a surgir, nas dobras da reflexão, sem, todavia, coincidir exclusivamente com
essas, sendo antes uma descontinuidade temporal que, por salto, oferece uma visão orgânica
do todo.

EXPERIÊNCIA E IMAGEM

Na dialética entre "consciente" e "ainda-não-consciente", a dialética de toda interna à


representação, estrutura-se de vez em quando a consciência. A imagem depende do fenômeno,
mas não coincide exatamente com ele.

Porque nas ideias não são incorporados os fenômenos […] Todavia,


essas permanecem obscuras no ponto em que os fenômenos não se
reconhecem nelas nem se reúnem em torno delas […] Então se coloca
a questão de como alcançar os fenômenos. E a resposta será: na
própria representação dos fenômenos […] A verdade não entra nunca
em relação, ainda menos em uma relação intencional. O objeto do
conhecimento, o qual se determina na intenção conceitual, não é a
verdade. A verdade é um ser inintencional formado de ideias. O
comportamento que a ela convém é, portanto, não uma compreensão
conhecedora, mas sim um resolver-se e um desaparecer em si mesma.
[…] Cada ideia é um sol, e a sua relação com as outras ideias é como
uma relação entre outros tantos sóis. A relação harmoniosa entre essas
essências é a verdade (BENJAMIN, 1984, p. 66).

Como ocorre, portanto, a conjugação entre experiência e imagem? Essa conjunção


manifesta-se imediatamente, pela identificação, no jogador, ou no autor que, como um leitor
de si mesmo, prende-se em um ponto de todo o percurso. Os fenômenos não são suficientes
para explicar a imagem, e vice-versa, sem eles a imagem perderia toda a sua autenticidade.
Mas esse é exatamente o alcance da verdade da qual fala Benjamin: a relação entre
experiência e imagem é originário, mas também, inevitavelmente indireta. Qualquer tentativa
de tornar explícita a sua relação - na descrição, classificação, passo a passo a reconstrução das
diferentes seções de um evento - tem o efeito imediato de eliminar a descontinuidade que está

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sujeito a dois planos midiáticos diferentes, o real e a linguagem, criando uma paradoxal
confusão onde o nível abstrato parece adquirir tal autonomia de se fazer crer que eventos
coincidem ou até mesmo existam na articulação virtual dos signos. Precisamente por causa de
uma tensão objetiva aplicada a isso que é profundamente subjetivo (o fenômeno existe
enquanto forma apenas quando se torna um modo de ser do Eu), essa postura leva tão distante
o fenômeno a favorecer as ligações entre entidades ou dados que são gerados em uma tábula
abstrata de conceitos, em vez da seleção de partes significativas e essenciais e, portanto,
reconhecíveis em precisos momentos da vida cotidiana. O resultado, disfarçado de uma
presenta solidez da reflexão, é, porém, a perda de qualquer contato autêntico, concreto, entre o
real e o conhecimento. Em uma grade brilhante e vazia de signos, dissolve-se todos os
esforços de chegar e "acender" o "fusível explosivo" colocado nos fenômenos, todas as
oportunidades de evocar (e este é, finalmente, a propósito do conhecimento) a forma que estes
mesmos fenômenos tomados de forma individual, nas dobras de seu próprio corpo ou agir.

TEMPO: PRESENTE E PASSADO

O observador tem aqui ao mesmo tempo a posição do fruidor. Se fenômenos


concretizam-se quando eles tornam-se modos de ser, as imagens, consequentemente, são a
transposição linguística desses "hábitos" que tem invadido a vida cotidiana sem que o Eu
pudesse opor-se a eles com nenhuma defesa ou resistência. As imagens dialéticas tornam-se
"transparentes" na linguagem da referência indireta ao fenômeno, e, ao mesmo tempo, tendo
consistência linguística, reativando nomes, palavras e figuras do passado, e não já uma
repetição do idêntico, mas em uma atualização fulminante do "já estado".

O acontecimento, que circunda o histórico e do qual faz parte, estará


sempre na base da sua exposição como um texto escrito com tinta
invisível. A história que ele apresenta ao leitor constitui, por assim
dizer, as citações desse texto e são somenta essas que se apresentam
em modo legível a cada um. Escrever história significa, portanto,
citare história. No conceito das citações é, contudo, implícito que o

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objeto hisórico venha arrancado do seu contexto (BENJAMIN, 2007,


p. 516).

Não é que o passado lançou a sua luz sobre o presente, ou o presente a


sua luz sobre o passado, mas a imagem é aquilo que foi unido
fulminantemente com o agora em uma constelação. Em outras
palavras: a imagem é a dialética na imobilidade. Porque, enquanto a
relação do presente com o passado é puramente temporal, contínua, a
relação entre aquilo que foi e o agora é dialética: não é um curso, mas
uma imagem descontínua, a saltos. – Apenas as imagens dialéticas são
autênticas imagens (isto é, não arcaicas); e o lugar nas quais elas se
encontram é a linguagem (BENJAMIN, 2007, p. 517).

O passado é uma imagem do presente que o estabelece. A interpretação da história


polariza-se no instante presente, deslocando cada linearidade ou continuidade do tempo. Para
uma linha cronológica dos eventos se sobrepõe uma constelação de imagens entre elas
descontínuos. A ser predominante não é a história em si ou para si, em todas as suas possíveis
ramificações, mas apenas aqueles pontos (que na realidade são modos de ser) nos quais ela
chega a capitar à atenção do indivíduo. Como um novo estilo que se afirma no reino da moda,
a história em algum lugar reconfigura as formas de vida, a elaboração de uma "télescopage"
do passado através do presente. As imagens são o reflexo dessas mesmas circunstâncias, no
entanto, como as fotografias das roupas, marcas e tendências: "arrancam" os objetos do
continuum a que pertencem e dão-lhes uma total visibilidade.

A VISÃO ALEGÓRICA

A secularização do espaço corresponde atualidade da visão alegórica:

Enquanto no símbolo, com a transfiguração da transitoriedade,


manifesta-se fugazmente o rosto transfigurado da natureza na luz da
redenção, a alegoria mostra aos olhos do observador as facies
hippocratica da história como paisagem original enrijecida. A história
em tudo o que ela tem desde início do imaturo, do sofrimento, do
fracasso, imprime-se em um rosto, mais: no crânio de um homem
morto. E se for verdade que ele não tem qualquer liberdade de

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expressão “simbólica”, qualquer harmonia clássica da figura, qualquer


humanidade, nesta figura – que entre todos é a mais degradada – se
exprime significativamente sob a forma de enigma, não apenas a
natureza da existência humana em geral, mas a historicidade
biográfica de uma existência única. É este o núcleo da visão alegórica,
da exposição barroca, profana da história como via crucis mundana:
esta tem significado apenas nas estações da sua decadência. Tanto é o
significado quanto é o abandono à morte, porque é próprio da morte
escavar mais profundamente a linha de demarcação entre physis e
significado. Mas se a natureza é desde sempre exposta à morte, então
essa é alegórica desde sempre (BENJAMIN, 1984, p. 141).

Enquanto o "símbolo" pertence uma visão que ordena os momentos da história em


um movimento ascendente e progressivo, ou uma reprodução disfarçada do idêntico, à
"alegoria" se deve uma mudança significativa de perspectiva na qual o centro se encontra o
valor descontínuo e intermitente dos eventos. As figuras alegóricas e as imagens do
pensamento, trazem "à luz" alguns momentos da experiência vivida, mas constituem uma
representação mortuária. A alegoria não é apenas uma figura de linguagem, mas a forma que a
própria linguagem assume no reino do efêmero. Como a moda, a alegoria intervém com
sempre novas surpresas impedindo a formação de hábitos.

Com este imenso desenvolvimento da técnica, uma miséria, de todo


nova, abateu os homens […] Que valor tem, portanto, o inteiro
patrimônio cultural, se a nossa própria experiência não nos aproxima
disso? O que pode simular ou compreender com engano, essa terrível
confusão de estilos e de visões de mundo do século passado, o que
fizemos muito claramente, por termos considerado desonroso
confessar a nossa pobreza. Sim, enfrentamo-la: esta pobreza de
experiência da humanidade em geral. E com isso uma espécie de nova
barbárie. Barbárie? Isso mesmo. Dizemos assim para introduzir um
novo conceito positivo de barbárie. O que nunca induziu o bárbaro da
pobreza de experiência? É induzido a recomeçar do ínicio; a iniciar do
novo; a fazê-lo com pouco: a comstruir a partir do pouco, além de não
olhar nem para a direita nem para a esquerda (BENJAMIN, 2007, p.
414).

As garras do Angelus Novus; esse anjo rapaz, que preferiria libertar os


homens privando-os de qualquer coisa, ao invés de elogiá-los

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ofertando qualquer coisa, é similar à nave que transporta os imigrantes


desta Europa de humanismo para a terra prometida do canibalismo
[…] Quando o trabalho humano é unicamente destrutivo, trata-se
então de um trabalho humano por assim dizer, natural, nobre. Por
muito tempo, a ênfase foi colocada sobre o lado criativo. E, portanto,
o não humano é, entre nós, como o embaixador de um humanismo
mais real. É o vencedor sobre a frase feita. Solidariza não com o que
foi delgado, mas com o avião que o consome, não com o metal nobre,
mas com o forno que o refina […] O homem desumano é a superação
do homem mítico. Ele se solidarizou com a natureza destruída. Assim
como o velho conceito de criatura originada do amor – no qual o
homem podia purificar a própria relação com os outros juntamente
com a satisfação do impulso sexual – o novo conceito de criatura,
aquele em que o homem desumano parte do devorar-se – enquanto
antropofago purifica a própria relação com os outros juntamente à
satisfação do impulso de nutrir-se. Não existe um superação
idealística, mas sobretudo uma superação materialística do homem
mítico: é esta a verdade pela qual o homem desumano é próximo do
homem. Essa superação materialística do homem mítico – da culpa –
cumpre-se através da associação da criatura com força destruidora da
natureza (BENJAMIN, 2007, p. 405).

Quer se trate de um texto ou de um evento, ou mesmo de um conceito, o


procedimento realizado pela reflexão é o mesmo: a criação ex nihilo de um momento
reflexivo no qual essas coisas perdem toda a objetividade para serem incluídos em um
percurso tenso, não tanto a delimitação ou classificação, como a valorização de uma parte da
experiência, ou das ligações e referências sutis, dos fragmentos que constituem e estão
sujeitos à sua forma. Assim, as coisas são "distorcidas" do contexto de pertencimento, mas
apenas nesta "forçação", que revelam uma profunda utilidade. Esses tornam-se momentos
reflexivos do Eu, as estações de um processo tenso destinado a mais autêntica função das
coisas, tornar evidente, "trazer à luz" em um emaranhado de laços e conexões, uma maneira
de ser. Este caminho aparece como um procedimento sempre tenso a obter uma evidência, de
fato, por sua vez coincide com a revelação de um conjunto de relações que antes era deixado
nas sombras ou na escuridão.
A clareza a que se faz referência não coincide com a ordem ou sequência do
discurso. Isto é, ao contrário, a imagem de um percurso que tem se tornado cada vez mais

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evidente aos olhos do Eu. A ser posto no centro da cena é exatamente o caminho, que é o
conjunto de relações que surgiram ao longo da marcha de reflexão, incluindo as minúcias do
qual o percurso é constituído. Para serem compreendidas e claras, as várias passagens exigem
do leitor um esforço, esse exercício imaginativo, para ser colocado no mesmo ponto de vista e
na situação em que essas reflexões e minúcias começaram, tornando quase uma sobreposição
entre leitor e autor.

FORMISMO E MONTAGEM NO ESTUDO DO NETATIVISMO NAS REDES


DIGITAIS

O estudo das redes, seja em suas dimensões sociais (A. L. Barabasi, M. Callon, B.
Latour) seja em seus formatos digitais (B. Wellmann, P. Levy, M. Castells) tem optado por
privilegiar a dimenão agregativa e social por meio do estudo de seus dinamismos em suas
diversas modalidades: observação, interpretação, cartografia, rastreamentos, monitoramentos.
Diferencia-se de tais perspectivas o recente estudo de Massimo Di Felice sobre as ecologias e
as formas não sociais das interações nas redes digitais, onde, como em uma sala circular de
espelhos, coexistem tanto os caracteres do assunto investigado quanto os signos e as minúcias
da reflexão. Apresento aqui alguns trechos:

O ato conectivo se configura, assim, como a expressão de uma forma


comunicativa do habitar instável e emergente que se reestabelece
continuamente, através da intermitência da prática conectiva das
interações entre os diversos actantes, as características e as dimensões
da condição habitativa (DI FELICE, 2009, p. 33).

Emerge, assim, uma ecologia interativa composta por um conjunto de


ecossistemas interativos e abertos que não podem mais ser pensados
como um sistema ou um conjunto holístico coerente, mas como uma
sucessão intermitente de variados níveis de agragação e de
desagregação. Os ecossitemas reticulares, através da geração de
reagrupamentos instáveis e não duradouros, produzem a contínua
redefinição de todo “actante” (humano e não humano) e da sua

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condição ecológico-interativa, por meio do distanciamento do seu


nível de equilíbrio provocado pelo todo das interações conectivas (DI
FELICE, 2009, pp. 34-35).

Medium e meio ambiente, sincronia e atualização, imagem e observador,


configuração e forma, dependência e vício, apresentam-se como os elementos de um habitar
não social. Estas interpolações linguísticas e conceituais constituem um retículo que visa
tornar operativa uma interpretação dos processos comunicativos, que se situa além de
qualquer dicotomia entre sujeito e objeto, entre natureza e cultura, recuperando e atualizando,
ao contrário, uma tradição de estudos desde as primeiras formulações românticas sobre a
forma até aquelas explêndidas intuições de Heidegger sobre o habitar e a a teoria mediológica
de McLuhan. Um nó temático e reflexivo, este de Di Felice, essencial e decisivo, do qual é
possível extrapolar e articular três princípios e três imagens chaves que, juntas, contribuem
para o retículo terminológico proposto para o estudo das interações nas redes digitias. À luz
de tais considerações podemos indicar três principios orientadores para o estudo das redes
digitais, inspirados em alguns conceitos de W. Benjanim e que acrescentam-se como uma
possivel contribuição:
a) o principio de forma. Esse conceito indica: a complementaridade entre sujeito e
objeto, entre meio (medium) e natureza, com uma aproximação progressiva para a
consideração do meio (medium) como um ambiente comunicativo total; a proximidade que se
estabelece nos processos de conhecimento entre observador e matéria, até que eles não
consigam distinguir entre o objeto e o ponto de observação, mas sim dando prioridade à ideia
de "recíproca estratificação". Aqui contaria com a proposta de Ciro Marcondes Filho, o quase
método, metáporo (meta+poros), em que a pesquisa exige do pesquisador uma perene
recomposição dos procedimentos, abertura ao outro, aquilo que está sempre em movimento e
nos escapa em continuação; a prevalência do percurso, do fragmento, das imagens e da
constelação, na interpretação de processos comunicativos, em uma oposição clara e firme à
respeito aos processos de aplicação e ao conceito de sistema;
b) o conceito de temporalidade. Esse conceito indica: uma visão particular da
inovação como um agente pelo qual se determina pelo salto e pela descontinuidade uma nova

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configuração da vida, uma forma de habitar estendido ao plano material até o psicológico
(estilo de vida, percepção, opinião, sentidos); o desdobrar de uma temporalidade quase
instantâneo no qual ocorrem, mais uma vez por salto, as reatualizações entre presente e
pedaços do passado em uma relação que inclui e se esgota o sentido último das inovações
comunicativas. Em outras palavras, o tempo e a forma da inovação possuem um alto poder de
transfiguração;
c) o conceito de dependência. Este tercerio conceito indica as ligações profundas
entre o conceito do habitar e aqueles dos vícios e hábitos, fazendo, portanto, prevalecer a
concreta e recíproca estratificação, para além de qualquer distinção, entre o humano e a
natureza, humano e não-humano.

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