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Eamam

R. Mendonça Venâncio

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Mapa de Aventura

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Uma visita rabugenta

Em um mundo fantástico, louco e distante, com terras verdejantes, algumas


flutuantes e máquinas a vapor feitas por goblins invocados de outro plano,
acidentalmente, por um mago não lá essas coisas, existem heróis audaciosos (ou burros),
mas dispostos a desvendar novas terras e caçar tesouros que foram perdidos em tempos
distantes.

Fluxo é uma cidade em terra firme, quase tranquila, tirando o fato de abrigar um
gnomo baixinho (ele é baixo até para os padrões de sua própria raça) piromaníaco,
ferreiro e inventor que estudou alguns anos com os goblins, aprendendo a sua tecnologia
e testando novas invenções.

Essa história fadada ao fracasso, começa, não com o gnomo, mas num belo e lindo
dia, milagrosamente sem incidentes quando Eric acorda com o som de batidas fortes na
porta de sua casa. Era ainda muito cedo e ele estava no seu dia de folga, não esperava
por ninguém. Direcionou-se a porta aos trancos e barrancos e quando abriu, deparou-se
com o antigo funcionário da biblioteca carregando uma bolsa que pesava bem mais do
que seus músculos podiam aguentar.

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O senhor tinha estatura mediana, era magro, careca e tinha uma barba fina e
grisalha, seus olhos eram de um azul quase branco.

Eric ficou surpreso com a presença do velho, ele o observava sem saber o que
fazer, isso acontecia com mais frequência do que gostaria.

- Será que posso entrar ou você vai ficar só me olhando com essa cara infestada
de remelas? Aproveite e pegue essa bolsa, ela é mesmo para você.

- Ah, claro – respondeu.

Pegou a bolsa sem jeito, ela escorregou de sua mão e bateu nos dedos nus de seu
pé, o que o fez despertar com a dor.

- Seu idiota! Não consegue segurar nem uma bolsa. Como consegue manejar as
canecas da taverna?

- Elas são bem mais leves – respondeu sem jeito.

- É verdade – respondeu o velho soltando uma risada baixa – também achei.

O velho entrou na pequena casa de Eric, reclamou da bagunça, desorganização e


sujeira. Ordenou para que lhe fizesse um café e pediu também biscoitos amanteigados.

Com a bebida na xicara e a comida na mesa, eles conversaram por um bom tempo
sobre vários assuntos, como as novas invenções dos goblins e também sobre o futuro
trem que passaria por Fluxo, de acordo com o prefeito. Isso se ele não desviasse quase
toda a verba em benefício próprio, como fez com a grande escola que seria construída na
cidade. Hoje ela não passa de quatro paredes com uma porta e uma janela, e não menos
importante, sem professores, a lembrança do fato fez o velho Oscar ficar mal-humorado
novamente.

Depois dos assuntos discutidos, Eric recolheu a bagunça e tentou arrumar o local
enquanto seu estranho visitante fumava um cachimbo curto de madeira. O fumo tinha um
aroma que lembrava cerejas, o que era melhor que o cheiro habitual de mofo de sua
minúscula (pequena se vista por um goblin ou gnomo) e humilde casa.

- Bom, o que me traz aqui não é empatia por sua pessoa e nem pela sua conversa,
vide que mal convivo com você e pelo que conversamos, não é lá muito inteligente –
disparou Oscar – mas sua mãe era uma pessoa muito querida para mim, assim como o
seu pai, e foi uma lástima eles terem ido tão cedo.

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Eric paralisou, quando estava prestes a perder a paciência, esmurrar o velho e
expulsá-lo a pontapés, o que de fato ia contra seu código de conduta, mas abriria uma
exceção, ele ouviu aquele rabugento citar os seus progenitores. Não havia convivido com
nenhum dos dois, seu pai morreu antes que completasse um ano, sua mãe ficou tão
desolada e desapareceu dois meses depois e ninguém teve mais notícias dela.

O pequeno bebê foi deixado em casa. Os soldados o acharam quase morto dois
dias depois, ainda estava no berço e chorava de sede e fome. Só foram averiguar por
insistência de Patrus, dono da taverna Javali na Chapa e amigo de longa data do casal.

O taverneiro criou o menino até os dez anos, quando morreu com fortes dores no
peito num dia de serviço e desde então a administração é de Eric, que se achava o cara
mais azarado do mundo pois perdera todos que o cercavam, mesmo aqueles que fizeram
isso por pouco tempo. Os silvícolas já diziam que ele era uma espécie de viúva negra
masculino.

O pouco que sabia era que seu pai, Lúcio, tinha sido um bom homem e um
guerreiro renomado, que depois de diversas aventuras pelo mundo (incrivelmente
sobreviveu a todas elas) resolveu viver em Fluxo, a cidade que escolhera como lar e
morreu defendendo-a. Eric sempre imaginou que seu pai podia ter um dedo melhor para
escolher cidades, mas nunca disse isso para ninguém.

Já a sua mãe, Emma, era de uma inteligência ímpar, ensinava os filhos dos
plebeus a ler e escrever e, segundo dizem, sabia algo sobre as artes ocultas, hoje
malvista, graças a Cisão Druídica.

Eles se conheceram em alguma aventura pelo mundo e depois se estabilizaram


com uma boa vida. Não lhes faltava nada, possuíam algumas casas e terras, mas a sorte
de Eric não podia durar tanto.

Com o tempo, todos os seus bens foram tomados, um a um, pelos prefeitos da
cidade no decorrer de sua vida. Todos alegavam a mesma coisa: inadimplência nos
impostos, nenhum deles pagavam os próprios, mas era assim que funcionava a “bela”
cidade.

A taverna nunca rendera muito lucro, não pela falta de fregueses, mas pelos
impostos abusivos. Javali na Chapa gerava o suficiente para mantê-la junto com a casa
que fazia parte da construção, na verdade a taverna era o maior cômodo. Estava
precisando de reformas a bastante tempo, mas só agora Eric conseguira o valor
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necessário, nada mais, e como não tinha como pagar o que lhe era cobrado pelas suas
antigas posses, que jamais usufruiu, foi perdendo tudo que diziam ser seu, só lhe restou a
taverna conjunta com a casa.

Eric observava o bibliotecário ainda incrédulo.

- Não me olhe com essa cara! E sim, eu conhecia seus pais... sua mãe me fez
prometer que entregaria isso a você quando fizesse quinze anos e depois sumiu –
completou Oscar.

- Por... Você nunca me disse que conhecia meus pais. E... o que é isso? – Falou
com a voz fraca, sua cabeça doía com as informações de seus pais e de Patrus que
agora estavam latentes em sua memória.

- É verdade que nunca disse, contudo, você também nunca me perguntou, sendo
assim posso dizer que estamos empatados – Oscar puxou a fumaça do cachimbo e
soprou vagarosamente – Com relação a sua pergunta, eu não sei, mas basta abrir o
pacote, pensar nisso não requer muito intelecto, você só acaba de confirmar o que já
descobri assim que começamos a conversar.

- O que? – Quis saber.

- Você é lerdo.

As orelhas do taverneiro ficaram vermelhas enquanto os olhos encaravam o chão


de madeira. Mentalmente contava até dez.

- Só achei que você já soubesse o que tinha dentro, afinal... – não terminou a frase.

Eric atendia todos os tipos de pessoa em sua taverna e honestidade não se


encaixava em nenhuma delas, com exceção de aventureiros e viajantes, que não
conhecia, portanto, não os julgava. Mas nessa maldita cidade, como costumava dizer, a
corrupção ia do menor ao maior grau. De plebeus a nobres.

- Garoto, não me ofenda, não é porque a maior parte dos habitantes daqui não são
boas pessoas que você pode me incluir como grão da mesma safra. Honestidade é parte
do caráter e pode incluir isso em uma de minhas qualidades.

- Me desculpe – disse envergonhado.

Eric sentou-se em uma almofada no canto da parede e analisou o seu pacote por
algum tempo. Era uma mochila de aventureiro feita em couro marrom escuro já

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desgastada com o tempo, enrolado em tecido preto grande demais para ficar oculto, havia
algo pesado que foi retirado cuidadosamente. Além disso, foram retirados um livro, uma
cota de malha incrivelmente impecável e estranhamente morna, alguns pedaços de tecido
corroído, um cinto que havia se partido em dois e uma pequena bolsa que rasgou-se,
liberando peças de ouro e prata pelo chão, elas possuíam diversos tamanhos, formatos e
artes. A quantidade assustou Eric que nunca havia visto tanto dinheiro em sua vida.
Instintivamente olhou para Oscar, mas este estava ocupado demais fumando o cachimbo
e admirando a suja paisagem do lado de fora. Fechou então a mochila com as moedas e
voltou sua atenção para o último item.

Ao desembrulhar, o tecido foi se desfazendo conforme ia-se arrebentando os laços


que o amarravam, Eric se deparou com uma belíssima espada longa, daquelas que
homens fortes (isso não o incluía) usavam com uma ou duas mãos, sua empunhadura era
envolta em couro macio e uma pedra verde incrustada na base concluía a arte da forja
com elegância, sua bainha era de um couro da mesma tonalidade da mochila, mas
estava nova, o que o fez duvidar das palavras do velho, mas ao se lembrar que as
moedas ainda estavam ali, ficou em dúvida.

Quando a lâmina se encontrou com a luz do sol que entrava pela janela, parecia
recém forjada, emanava um leve brilho e tinha alguma inscrição em um idioma
desconhecido. Possuía a mesma temperatura morna da armadura.

Oscar observava, pelo canto do olho, aquele rapaz azarado e raquítico que em
nada se assemelhava aos pais. Talvez fosse a vida dura a que fora submetido ou o senso
de humor perverso de um dos deuses de Eamam. A única coisa que conseguiu sentir
naquele momento foi pena.

- Está escrito honra no alfabeto rúnico – disse quebrando o silêncio vendo que o
rapaz se demorou nas inscrições.

Eric soltou a espada com o susto, ela quase decepou um de seus dedos ao cair.

- Contudo, o que acabou de fazer foi estupidez, o que é bem diferente, caso não
saiba.

- Você me assustou – resmungou pegando a espada do chão e colocando-a na


bainha – e o que eu faço com isso?

- Bom, meu caro acéfalo – respondeu arqueando uma das sobrancelhas – a


espada serve para se defender e manter os oponentes longe, já o restante... melhor
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deixar de ser preguiçoso e analisar o que tem primeiro e me fazer perguntas depois.

Eric iria perguntar o que significava acéfalo, mas resolveu evitar ser ainda mais
humilhado. Oscar podia ser rabugento e grosso, mas uma coisa chamara sua atenção:
sua honestidade, coisa rara em Fluxo. Pelo menos os amigos, seus pais sabiam escolher,
se fosse qualquer outra pessoa jamais receberia aquilo.

Em silêncio, olhou os objetos novamente e pegou o livro. Sua capa era de um


couro tingido de verde musgo. Se havia algo nela, se perdera com o tempo. Sentou-se
novamente e começou a folhear. As letras eram belíssimas, algumas ele não conseguia
reconhecer, tinha vários idiomas e diversas imagens, algumas tão assustadoras e outras,
apenas formas geométricas. A tinta usada possuía um tom vermelho, como sangue
fresco.

Um bom tempo se passou até que um pequeno papel deslizasse do seu interior.
Com todo o cuidado Eric o desdobrou. Era a mesma caligrafia majoritária do livro, mas em
tinta preta, porém o que chamou sua atenção foi a primeira linha:

AO MEU QUERIDO E AMADO FILHO ERIC

Eric parou e releu a primeira linha diversas vezes, não sabia o motivo, mas fora a
primeira vez que via a palavra filho antecedendo o seu nome. Isso o fez achar que era
alguém mais do que somente ele. Demorou um tempo para ele passar a ler, enfim, o
restante do texto.

FILHO, SE ESTIVER LENDO ESSA CARTA É PORQUE NÃO CONSEGUI RETORNAR


COMO QUERIA. PEDI A PATRUS QUE FICASSE COM VOCÊ CASO ISSO
OCORRESSE E DEIXEI ALGUNS PERTENCES COM OSCAR. NÓS ESTUDAMOS
JUNTOS POR ANOS, ELE PODE APARENTAR SER RABUGENTO, MAS TEM UM
CORAÇÃO DE OURO, É JUSTO E HONESTO, PODE CONFIAR. PATRUS TEM MAIS
CARACTERÍSTICAS PATERNAS, MAS É MUITO ESQUECIDO.

NA SUA MOCHILA TEM O ANTIGO UNIFORME DO SEU PAI, ASSIM COMO SUA
ARMA. SEI QUE COM O TEMPO ELA VAI GOSTAR DE VOCÊ COMO GOSTOU DELE,
TEM TAMBÉM A MINHA ANTIGA ARMADURA, ELA É MAIS RESISTENTE DO QUE
PARECE.

O DINHEIRO VAI AJUDAR VOCÊ NO QUE PRECISAR, USE COM SABEDORIA,

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MAS O MAIS IMPORTANTE É O GRIMÓRIO, ELE AGORA É SEU, CONTÉM OS MEUS
SEGREDOS NELE, COM TEMPO E DEDICAÇÃO PODERÁ REALIZAR TUDO QUE JÁ
REALIZEI E AINDA MAIS.

SEI QUE TEM INÚMERAS PERGUNTAS, MAS INFELIZMENTE NÃO POSSO


RESPONDÊ-LAS.

SE QUISER SABER MAIS, VÁ ATÉ TRÍADE E PROCURE POR HELIUS, ELE É O


SEU AVÔ.

COM AMOR,

MAMÃE.

Eric ficou em choque, não sabia o que pensar ou fazer. Ficou olhando a carta por
um longo tempo. Leu-a diversas vezes até sentir um misto de raiva e tristeza. Se
perguntara onde raios ficava Tríade e o que ela quis dizer com a espada gostar de alguém
e se isso era possível. Quanto a grimório, ele nunca havia ouvido essa palavra na vida.

Oscar deu um tempo, sabia o que estava se passando, devia ser uma sensação
horrenda ser privado dos pais antes mesmo de falar, e pior: possuir uma certeza firmada
em línguas de terceiros. Ele se deparou com verdades que provavelmente desconhece,
até mesmo Oscar desconhecia o conteúdo da carta, que só veio à tona depois de Eric ler
em voz alta, pelo menos ler ele sabia muito bem.

- Porque só agora? – Perguntou Eric

- Escute com atenção, sua mãe foi a mulher, se é que posso chamar assim, mais
inteligente que conheci, ela tinha seus motivos e segredos, era diferente de qualquer
outra pessoa em Fluxo. Lecionava para os discriminados, para pessoas que estavam a
margem da sociedade e graças a isso incomodou quase toda a nobreza que ansiava por
manter a população a mais estúpida possível.

Oscar parou, fitou o teto e depois o pobre menino que o olhava curioso.

- Seu pai era um homem honrado – disse respirando profundamente e depois


continuou – Durante um curto período de tempo, foi um pai perfeito, mas teve um triste
fim, justamente por defender e apoiar as ideias de sua mãe. Ele levava o sentido da

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espada a sério, sempre repetia que a espada era para defender os fracos e oprimidos,
defender aqueles que não tinham força ou habilidade.

- Mas meu pai não morreu defendendo a cidade?

- Isso foi a afirmação da nobreza, mas as verdades aparecem com o tempo e não
foi diferente com Lúcio, seus antigos amigos provavelmente sabem da verdade, a maioria
deles pediu dispensa da milícia e saiu pelo mundo a fora, sabe-se lá com qual intuito.
Talvez fosse por revolta, tristeza ou vergonha.

- Afinal, o que houve com o meu pai? E a minha mãe...

- Com relação ao seu pai, suspeito que tenha sido assassinado, mas não tenho
provas quanto a isso – disse com sinceridade, sua voz pesava – Já a sua mãe, era uma
mulher com segredos, uma pessoa poderosa. Veja bem, Emma era nativa de Tríade, uma
cidade druídica de antes da Cisão, uma pessoa com poderes mágicos tão belos quanto
terríveis. O que você segura nas mãos é o livro que ela sempre carregava, tenho
conhecimento em história e leis, sei que ser for pego portando um livro desses aqui em
Fluxo, será decapitado.

- O que eu posso fazer? Mal tenho força para levantar essa espada, não entendi
metade das informações da carta, não sei lutar como meu pai e não faço a mínima ideia
do que a minha mãe fazia – desabafou Eric ainda com dificuldade de compreender aquilo
tudo de uma vez.

- Nisso eu posso ajudar, embora não tenhamos contatos, sei de quase tudo o que
fez nos últimos quatorze anos, não me leve a mal, mas eu precisava saber sobre você e
graças a essas observações, posso afirmar que você é digno de confiança.

Oscar parou, seus olhos azuis encaravam aquele ser frágil e oprimido. Pareceu
escolher cuidadosamente cada palavra.

- Você sempre foi honesto e bondoso, mesmo quando nada ajudava e isso
aconteceu várias vezes e dobrou o número após a morte de Patrus. Você manteve sua
crença a duras penas, uma coisa rara, teve uma boa criação com o seu pai adotivo. Então
saiba – ele agora sussurrava – temos uma resistência montada em Fluxo e está na hora
de você conhecê-la.

- Resistência? – Disse surpreso, mas logo desacreditou – Como saber que não
estou sendo enganado e usado como seu bode expiatório?

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- Olha! – Os olhos do velho brilharam – um sinal de inteligência nessa cabeça oca,
nem tudo está perdido. Bom, você realmente não tem como saber, mas você não tem lá
muitas escolhas, Tríade fica no meio de uma floresta, hoje proibida a qualquer pessoa por
diversas cidades e reinos, sua rota foi perdida e sua localização modificada após a Cisão.
Caso queira fazer tudo sozinho, está livre para ir. Sinceramente? Não acho que terá
sucesso.

Eric levou um tempo para assimilar as informações.

- Terei mesmo que confiar em você, não é?

- Não estou mentindo, jamais abri essa bolsa e só descobri que havia uma carta
hoje, quando leu em voz alta. Quanto a resistência, eu iria apresentá-lo mesmo sem saber
o conteúdo da carta, se sua mãe achava que com essa idade você estaria preparado para
receber tudo isso, estaria também preparado para resistir aos abusos dessa gente e raios,
você teria utilidade, Javali na Chapa é um reduto frequentado por todo o tipo de gente.

Oscar encheu uma xicara de café e deu um grande gole.

- Estamos em número baixo e desconfiamos até de nossa própria sombra, se


formos descobertos, seremos mortos, um por um. Só estou contando isso porque o
estudo desde que nasceu.

- Mesmo que eu acredite, ainda tenho o Javali na Chapa, não tenho como sair,
mesmo com essas coisas que me trouxe e com a possível carta da minha mãe.

- Quanto a taverna, podemos dar um jeito – afirmou Oscar pegando mais uma
xícara de café.

- Te darei um voto de confiança Oscar, e pelos deuses, espero que esteja dizendo
a verdade! – Respondeu sentindo-se esgotado.

Eric pegou uma pegou uma bela dose de leite e bebeu, pois não gostava muito do
sabor do café. A manhã já havia terminado.

- Desculpe-me por isso, mas como disse, estudei-o por quatorze anos – disse
Oscar olhando para a jarra de leite e depois para o copo de Eric.

- Filho da... – sua língua embolou antes de terminar a frase.

Oscar retirou lentamente o copo de sua mão e conduziu o rapaz até o chão, depois
direcionou-se para seus pertences espalhados no chão.

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Eric lutou inutilmente para se manter de pé, sentia-se coberto por um manto sem
cor, o som não chegava mais aos ouvidos, como pude ser tão burro, pensou antes de cair
desacordado.

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Discurso

Eric acordou com fortes dores de cabeça. Estava deitado em uma cama mais
confortável que a sua (qualquer uma era) em um cômodo pequeno todo trabalhado na
pedra, sem o costumeiro cheiro de mofo. Havia apenas uma porta de madeira do seu lado
esquerdo e um pequeno baú no direito, onde repousavam seus pertences em cima da
tampa reta, incluindo a espada, alguns pães com carne seca e queijo e uma jarra de suco.
Ele se sentou e deparou-se com uma banheira e um espelho, objeto de certa raridade no
mundo em que vivia, seu reflexo não era nada agradável: era magro e um pouco alto para
a sua idade. Estava trajando suas roupas habituais, uma calça preta e uma camisa verde
musgo, ambas surradas, seu cabelo curto estava um furacão e seu rosto era liso,
contrariando sua vontade de ter uma bela e lustrosa barba.

Levantou-se feliz por não ter morrido, comeu tudo que estava por ali. Parecia ter
dormido por horas e sua fome confirmava o fato. Depois da refeição, verificou seus
pertences e estavam todos lá, incluindo as moedas em um novo saquinho de couro.
Preso a bainha da espada, estava um bilhete com letras bonitas, embora um pouco

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brutas.

ERIC,

DESCULPE-ME POR TÊ-LO FEITO DORMIR, MAS A MEDIDA ERA NECESSÁRIA.


VOCÊ NÃO PODE SABER NOSSA LOCALIZAÇÃO ATÉ SER APRESENTADO AO
CONSELHO. É UMA REGRA COMUM A TODOS.

DENTRO DO BAÚ ACHARÁ ALGUMAS INDUMENTÁRIAS QUE AGORA SÃO


SUAS, ASSIM COMO OUTRAS COISAS QUE TOMEI A LIBERDADE DE ADICIONAR.
QUANDO ESTIVER PRONTO BATA NA PORTA E SE AFASTE, VOCÊ SERÁ
ESCOLTADO ATÉ A SALA DO CONSELHO.

SEM MAIS,

OSCAR.

Como não tinha muita opção, abriu o baú e a primeira coisa que viu foi uma nova
mochila, com bolsas laterais e acabamento primoroso, seguida de um cinto já com uma
adaga simples presa a ele. Tinha também suportes para pendurar a espada e um par de
luvas e botas, todas com o mesmo acabamento em couro da bainha de sua espada, ele
nunca havia visto peças tão caras em um único baú. Além disso, tinham também duas
camisas de algodão da mesma cor que sua antiga camisa, uma era curta e a outra ia até
os joelhos, para colocar sobre a armadura, a peça possuía um símbolo bordado em prata
que parecia um cajado com dois círculos no seu topo vazado, dentro de um círculo maior
formado por inscrições que ele nunca viu, e por último, uma capa com capuz que
combinava com todo o restante.

Sentiu um pouco de dificuldade para se preparar, não estava habituado com tais
trajes. E quando ficou pronto, mesmo deixando de lado a armadura, a segunda camisa e
a capa, que ficaram dentro da mochila, agora muito mais pesada, ele se sentiu ridículo,
estava tudo frouxo, como se alguém mentalizasse ele como um forte guerreiro e não
como um taverneiro raquítico.

Eric colocou a mochila nas costas e sofreu com o peso, se direcionou a porta,
bateu e se afastou, como diziam as instruções.

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A porta se abriu revelando dois anões fortemente armados e protegidos. Um tinha
um rosto bruto, marcado pela idade e uma barba ruiva com uma única trança grossa
presa a um enfeite de couro; o outro era um pouco mais alto e jovial, tinha uma bela barba
castanha separada em duas tranças, no final de cada uma delas havia uma presilha de
couro com um enfeite de um martelo em prata (uma pequena inveja se apoderou de Eric,
desejava apenas um décimo daquelas barbas).

- Bom dia, jovem senhor! Espero que tenha descansado bem, meu nome é HolfBar
e este é meu primo de terceiro grau GrakBar – falou o anão ruivo com uma voz alta e
rouca, apontando para seu primo com a mão esquerda e com a direita segurando um belo
machado – vamos escoltá-lo até a sala do conselho e de lá para o portal.

- Ou para o cemitério. – retrucou o outro.

- Não se incomode com GrakBar, ele não é lá muito otimista. Por favor, jovem
senhor, vá entre nós dois e não faça nenhum movimento brusco. – disse dando
passagem.

Eric nunca tinha visto anões, raramente eram encontrados em Fluxo, eles
desapareceram há muitos anos e agora que os conhecera, preferia continuar em sua
ignorância racial. Contudo, o infeliz taverneiro travestido de guerreiro não tinha muita
escolha, estava armado, sim, mas duvidava de que os anões eram piores que ele em luta
com armas, mal aguentava com o peso da espada na cintura, quem dirá nas mãos.
Respirou fundo, resmungou alguma coisa inaudível e seguiu como ordenado.

O local onde se encontrava era, como suspeitava, subterrâneo, após ver um quarto
feito em pedra e dois anões entrando pela porta, não se podia esperar algo diferente,
pensou. Toda a estrutura era composta por diversos corredores que se entrecortavam em
vários pontos. Passaram por salas grandes e pequenas, mas Eric não pode ver muita
coisa a mais no caminho por onde passavam, embora parecesse grande, o local não tinha
muita iluminação e quase não se via pessoas.

- Só temos nós aqui? – Perguntou Eric envergonhado após tropeçar numa


saliência do piso de pedra e quase cair no chão com o peso que carregava.

- Não, mas também não tem muita gente, é uma antiga mina anã abandonada e
sem recursos. Os antigos moradores se mudaram há 138 anos, como eu – respondeu
HolfBar tranquilamente atrás dele.

- Ah, que pena! Não sabia que vocês podiam carregar alguma coisa após uma
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centena de anos.

- Há! Sim, nós podemos, eu tinha quarenta e dois anos quando me mudei, tinha me
alistado havia apenas dois anos.

- Não era um pouco tarde para se alistar? – Perguntou Eric deixando escapar sua
curiosidade.

- Como podia ser tarde se eu havia acabado de me tornar um adulto? Claro que
não! Nós, anões, não vivemos tão pouco como vocês.

- Entendi. – mentiu Eric – e por...

- Chegamos! Agora você precisa entrar sozinho. – cortou GrakBar, sem cerimônia.

Eric se deparou com uma porta de madeira reforçada, em cada um dos lados, em
vãos trabalhados na própria rocha, repousavam tochas que davam uma boa iluminação.
Ele tentou imaginar, sem sucesso, como seriam os conselheiros e qual seria o seu
destino. Orou por bons acontecimentos e tentou, em vão, excluir a ideia de cemitério da
cabeça, empurrou um dos lados da porta e entrou.

O cômodo era enorme e muito bem iluminado: seis colunas de pedra sustentavam
um teto de mesmo material, tudo dentro da sala era ricamente detalhado com runas e
desenhos de pessoas trabalhando, riquezas e pessoas trabalhando, combates e pessoas
trabalhando, pobreza e pessoas indo embora.

Eric ficou impressionado e teve certeza de que os anões trabalhavam bastante. Por
alguns segundos se esqueceu do que viera fazer ali. Quando (finalmente) olhou para
frente, viu uma grande mesa de madeira simples com cinco cadeiras ocupadas atrás dela,
eram as únicas mobílias do local, de pé, à frente da mesa com um olhar impaciente
estava Oscar, o homem que o envenenara. Ele gesticulava para que Eric parasse ao seu
lado.

Assim que o fez, observou as pessoas que o encaravam, o homem da esquerda


era o dono do mercado de Fluxo, um sujeito gordo que sempre usava camisas coloridas,
ao seu lado estava um dos soldados da milícia, Eric gostava dele, foi um dos homens que
o resgatou na casa de seus pais, hoje, com mais idade, só comandava os soldados,
desconfiava que era o único honesto dentre eles, em seguida havia um homem alto com
barba curta e negra, seus olhos pareciam penetrar na alma, o que o deu arrepios, na
próxima cadeira sentava-se um anão de rosto redondo e idoso, sua barba e cabelos eram

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grisalhos e seu nariz tinha uma cicatriz horizontal horrenda, mas ele parecia mais
preocupado em observar seu anel do que o garoto prostrado a sua frente como uma
vareta com excesso de peso. Por último, sentada de maneira relaxada estava uma jovem
muito bonita, com cabelos negros que iam até a cintura, ela estava usando um leve
vestido azul que combinava com a pedra pendurada em seu fino colar de prata, ela o
olhava divertidamente.

Oscar deu um passo à frente, olhou para Eric e depois para cada um dos que
estavam sentados e respirou fundo.

- Este é Eric, filho de Emma, Guardiã-Verde, e Lúcio, Corre-Lâmina – disse com


profundo respeito – acompanho-o desde que era um bebê, assim como alguns de vocês –
continuou Oscar recebendo olhares afirmativos dos dois homens que se sentavam a
esquerda – e posso afirmar que conheço sua índole e o vejo com bons olhos.

Durante anos os deuses o testaram com severidade, se me permitem dizer, e em


todos os testes ele se mostrou integro, respeitoso e honrado. Patrus deu-lhe uma
excelente educação e ele provou herdar o espírito tanto de sua mãe quanto do seu pai.

Antes do seu primeiro ano de vida ele foi privado de seus pais sanguíneos e graças
ao prefeito da época, quase morreu de inanição, e isso teria realmente acontecido se não
fossem pela insistência de Patrus e também a minha junto a guarda da cidade, agradeço
até hoje pelo acato do pedido pelo Sr. Marcus – ele fez uma reverência ao atual tenente.

Com o passar dos anos o menino aprendeu a ler e a escrever, seu guardião podia
ser esquecido, mas tinha capacidade. Vezes ou outra recebia-o na biblioteca, procurando
por alguns livros de estudo que Patrus indicava, o que ele não sabia é que essas
indicações eram, em sua maioria, minhas – ele olhou para Eric orgulhoso e com um
sorriso debochado.

Ao completar sete anos, passou a ajudar a servir as mesas e no primeiro dia,


lembro-me como se fosse hoje, era uma noite chuvosa, houve uma briga no Javali na
Chapa, Patrus escondeu Eric atrás de uma mesa e o menino viu alguém levando as
moedas que estavam atrás do balcão, sabia quem era o ladrão e assim que teve uma
deixa correu atrás dele, seguindo-o até em casa, estava prestes a entrar pela janela da
cozinha e resgatar as moedas quando mudou de ideia e retornou.

Eric corou, lembrava-se vagamente do ocorrido.

- O homem que havia roubado foi o mesmo que começou a confusão. Sua filha
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estava doente, precisava de um médico com urgência, como o pouco que tinham não era
suficiente, o sujeito tomou medidas drásticas. O que Eric ouviu foi a discussão dele com a
sua esposa que o desaprovara, ela ficou arrasada, mas ambos sabiam que não poderiam
devolver a quantia, sua filha era o bem mais precioso que possuíam e o único pelo qual
valia a pena lutar. Assim que a menina se recuperou eles saíram da cidade.

Oscar fez uma pequena pausa tática, dando tempo para os conselheiros
absorverem a informação.

- Aos dez anos ele foi testado novamente, perdeu a única figura que considerava
da família, nosso velho amigo enfartou trabalhando em uma das tardes de verão, como
quase todos aqui bem lembram. Eric herdou sua taverna e teve que administrá-la sozinho,
um menino com a responsabilidade de um homem. Ao mesmo tempo, soube sobre suas
posses e as dívidas que essas carregavam. Ele iria perder todas elas caso não pagasse
os impostos atrasados.

Sabemos, caros amigos, os quão mentirosos e abusivos eram aqueles impostos,


ele perdeu todos os seus bens, um a um, com o passar dos anos. A única coisa que lhe
resta agora é uma minúscula casa mofada ligada a uma taverna velha.

Não bastasse isso – falou alterando sua voz – o mais novo taverneiro de Fluxo
tinha que pagar uma cota dos lucros para a guarda da cidade, descobriu que não as
pagar era uma perda maior do que o contrário. No primeiro final de semana após a sua
recusa, Javali na Chapa foi invadida, roubada e destruída, os criminosos nunca foram
encontrados, pois, como sabemos, eram membros da própria guarda, defensores dos
fracos e oprimidos e protetores da ordem e dos bons costumes, pelo menos é o que
alegam. A taverna só se recuperou graças a ajuda de outros comerciantes e nosso rapaz
foi obrigado a pagar a maldita cota.

O velho parou, estava com um ar preocupado e seu mal humor havia tomado conta
novamente. Contou até dez mentalmente e retomou a calma. Bebeu uma boa quantidade
de água, mirou o chão como se quisesse lembrar de algo a mais e olhou novamente para
os seus ouvintes.

- Além disso tudo, Eric já salvou três rebeldes em sua taverna – retomou o discurso
com calma e seriedade – um deles foi no ano passado, quando Robert, um conhecido
tanto dele quanto nosso, entrou desesperado taverna adentro, pedindo ajuda, afirmava
que os soldados estavam tentando matá-lo e foi escondido no armário de despensa, o

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que o salvou no fim do dia. Os outros dois foram anteontem, estavam bebendo em uma
das mesas ao fundo quando três soldados entraram procurando-os, Eric conseguiu
entretê-los ganhando tempo para Daniel e Julius, por sorte quase ninguém gostava dos
guardas por já terem sofrido alguns tipos de abusos físicos, mentais ou materiais e graças
a isso ninguém fez questão de alertá-los quanto a fuga dos supostos criminosos.

Eric percebeu que Marcus sentiu-se envergonhado, como se a culpa das ações
dos soldados fosse inteiramente sua, o que de fato, não era verdade. Marcus era um bom
tenente, integro e honesto, contudo, estava inserido em um ambiente onde a corrupção e
os abusos estavam no auge.

- Por essas razões meus caros conselheiros – continuava Oscar – que trouxe o
órfão que aqui está e peço sua aceitação como membro. Vale salientar, mais uma vez,
que ele é o filho de Emma, Guardiã-Verde e pode ser o nosso elo com os druidas que não
estão em nossa caçada. Agora deixo que decidam pelo seu destino – encerrou
enxugando o suor de sua testa com as costas da mão.

Os conselheiros ouviram tudo com muita atenção, o antigo bibliotecário devia ser
um membro respeitado, desconfiava Eric. Eles agradeceram o discurso e pediram
gentilmente para que aguardassem a decisão do lado de fora, afirmaram que seriam
chamados assim que tivessem um veredito.

Os dois obedeceram, abriram a porta deixando-os decidirem o destino de um


garoto sem muita sorte.

Eric estava surpreso de quanto Oscar e alguns presentes da mesa o conheciam.


Definitivamente não gostava da sensação de ter sido vigiado sua vida inteira, mas se isso
pudesse beneficiá-lo em um local que ele desconhecia, não se importava. Além disso,
depois desse discurso e das pessoas que estavam no conselho, ele teve certeza de que
com eles estariam onde seu coração gostaria (e que provavelmente seria extinto uma
hora ou outra). Estaria em um grupo que lutava pelo bem-estar das pessoas e pela
diminuição dos abusos de seus governantes e sua corja armada, ao mesmo tempo, não
se via como alguém que teria serventia, fraco e sem habilidade seria o resumo perfeito,
pensou. E é claro, não entendeu a parte de elo com os druidas.

- Por que minha mãe é tão importante? – Perguntou Eric olhando para Oscar.

- Como já disse, sua mãe é uma druidesa de antes da Cisão e você sendo seu
filho, possa, talvez, formar uma aliança dos rebeldes com eles. Não sei se você consegue
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captar a seriedade disso tudo, mas é o que posso dizer por hora.

- Sua mãe era uma boa pessoa pelo que dizem, mas o seu pai, nossa! Era um
guerreiro por excelência, ele manejava essa espada como nenhum outro ser jamais
conseguiu – era GrakBar surpreendendo até mesmo o seu primo.

- Você conhecia o meu pai? – Perguntou Eric e pelo clima, todos estavam ansiosos
para saber.

- Conheci o seu pai em uma de suas aventuras, perto das montanhas onde eu
morava, ele ajudou um grupo de mercadores anões a se safarem de uma emboscada dos
orcs, eu era um dos soldados que protegia a caravana. Ele é o homem mais ágil que já vi,
derrubava os orcs com tanta rapidez que quase não sobrou nenhum para mim – disse o
anão soltando uma gargalhada alta – demorei a lembrar de onde conhecia essa espada,
seu pai era querido entre os anões do Norte, foram eles que a forjaram garoto, tenha
orgulho dela como o seu pai tinha e talvez ela também se orgulhe de você – disse
apontando para a espada.

Eric admirou sua própria espada, embora não entendesse como a espada poderia
se orgulhar de seu portador, contudo, ficou feliz em saber um pouco mais sobre sua
família e seus pertences.

- Garoto, não consigo confiar na sua espécie com facilidade, mas raios! Você é
filho de Corre-Lâmina! – Bradou – quando soube da morte de seu pai fiquei imensamente
triste, meus pêsames garoto. Aceite minhas sinceras desculpas por não o reconhecer na
hora e se puder, me considere seu amigo.

GrakBar fez uma reverência e surpreendeu a todos com o gesto, depois estendeu
uma das mãos.

- Muito obrigado GrakBar, aceito suas desculpas assim como sua amizade –
respondeu Eric apertando a mão do anão, sentia-se feliz, mesmo com seu destino sendo
decidido atrás de uma porta.

- Olha, não é que GrakBar tem coração? – Intercedeu meio zombeteiro o seu
primo.

- E Eric, embora estupido, sabe pronunciar belas palavras – uniu-se Oscar.

- Ah, calem a boca! – responderam GrakBar e Eric.

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Após alguns minutos que pareceram horas a porta se abriu delicadamente
revelando a bela jovem com um vestido azul que ia até os tornozelos e possuía cortes
laterais que findavam um pouco acima dos joelhos, seus olhos extrovertidos brilhavam,
eram de um azul vivo e forte. Tudo nela era perfeito, simples e encantador, seu cheiro
lembrava flores silvestres e sua pele a mais fina seda.

- Já temos um veredito, queiram entrar por favor, vocês também podem, se


quiserem – disse olhando para os anões, sua voz era melodiosa, parecia fazer parte do
vento, mesmo não tendo um soprando por ali.

- Espero que não seja mandado para o cemitério – disse GrakBar.

Eric se assustou, mas logo se repôs.

- Eu também espero – sussurrou, pensando que o anão podia ter algumas aulas
sobre motivação, pois não era o seu forte.

Os conselheiros estavam de pé, esperaram que todos parassem, os anões ficaram


na retaguarda. Marcus deu um passo à frente, o que deixou Eric mais aliviado, se fosse
uma notícia ruim, duvidava que seria o seu salvador a dá-la.

- Eric, fico feliz em dizer que você foi aceito para resistência por quatro votos a um,
seja bem-vindo! – Falou esboçando felicidade, sua voz era firme, como alguém que
passou a vida dando e recebendo ordens – Você receberá instruções e recursos, assim
como missões que terá que cumprir. Tudo será explicado lá em cima, agora, sem
delongas, vamos para o portal – ordenou seguindo para o fundo da sala e entrando na
lateral de uma parede que só era possível reparar a menos de um metro de distância,
tamanha a habilidade anã em construção e arte.

- Vamos garoto, eu te ajudo na primeira viagem, segure isso, vai precisar – disse
Oscar lhe passando um saco médio de couro.

Eric seguiu o grupo até o local que parecia invisível, a parede escondia uma ampla
sala abobadada, em seu centro havia um arco de pedra trabalhada como se duas
serpentes se enroscassem, o centro da escultura brilhava com uma luz púrpura que não
revelava o que ficava atrás, as pessoas sumiam uma a uma. Oscar colocou a mão no
ombro do novato e caminhou com ele em direção a luz, desapareceram.

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22
3

Contratempo e perguntas

A viagem foi horrível, toda a paisagem púrpura parecia rodar numa velocidade
descomunal, Eric saiu de costas do portal, o peso de sua mochila junto com a tonteira de
alguém que estivesse bêbado fez com que perdesse o equilíbrio. Ele caiu de costas, em
cima da mochila, num ângulo nada digno, não conseguiu levar o saco a boca no tempo
correto e o seu café da manhã saiu na mesma velocidade que entrou, sua bela roupa
estava agora suja e com um cheiro extremamente azedo.

Quando tudo passou a rodar com menos intensidade, descobriu meia dúzia de
rostos lhe observando e rindo sem nenhuma moderação. Oscar se aproximou e estendeu
a mão.

- Estúpido, era para vomitar dentro do saco, não fora dele! Agora terá o trabalho de
lavar essa sujeira, não está nada apresentável para o almoço – falou com seu mal humor
típico.

- A primeira vez é sempre a pior, depois você se acostuma e aprende a sair de


frente e, não menos importante, sem cair – brincou HolfBar soltando uma gargalhada –
Seja bem-vindo a sede da resistência!
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O salão era ainda maior que o anterior, doze colunas sustentavam a abobada de
pedra esculpida e ornamentada com mais anões trabalhando. Para o alívio de Eric, havia
poucas pessoas no recinto, mas, para sua decepção, tinha certeza que sua entrada
triunfal seria lembrada por um bom tempo, afinal, as poucas pessoas que ali se
encontravam ainda não tinham parado de rir.

Quando tudo finalmente parou de se mexer e o novato conseguiu ficar de pé sem


ajuda, foi conduzido por um caminho que passava por diversas salas, corredores e portas.
Imaginava como eles conseguiam se localizar sem ver a luz do Sol, contudo, o ambiente
era bem iluminado. Deixaram-no em frente a porta do que disseram ser o seu quarto
enquanto estivesse por ali.

- Se limpe e esteja pronto para o almoço, lá discutiremos sua serventia. GrakBar irá
buscá-lo daqui a pouco – martelou a voz do tenente Marcus, deu meia volta se
distanciando como se estivesse marchando para a guerra.

Seu cômodo era de tamanho mediano, maior que o seu quarto na taverna
(qualquer coisa era), abrigava mobília simples, mas confortável. Havia uma cama com
travesseiro, um baú e uma banheira que, pela fumaça, estava com água quente, ao lado
desta encontravam-se um cabideiro e um penico.

Eric tirou a roupa e foi se banhar, assim que terminou ouviu um estrondo forte que
fez tremer levemente o seu quarto, ele saltou da banheira para a cama como um rato
assustado, rolou e abriu o baú com pressa, havia ali uma camisa branca e uma calça
marrom simples que vestiu, sentia que seria chamado para conter uma invasão dos
guardas a qualquer momento. Sentou-se na cama, agora úmida, arremessou a roupa suja
na banheira, lavaria mais tarde caso ainda estivesse vivo, e calçou as meias pensando
em como poderia manejar uma arma pesada demais e sem prática alguma. Seus
pensamentos foram interrompidos por fortes batidas na porta.

- Posso entrar? – Soou a voz de GrakBar abafada.

Eric suou frio, estrou a calma do anão, esperava ser surpreendido e não
educadamente abordado.

- Claro – respondeu afobado, terminando de calçar as botas e levantar.

- Não precisa se apressar, temos tempo. Crimblin incendiou o caminho novamente,


HolfBar vai nos avisar quando pudermos passar – falou com normalidade – maldito
gnomo.
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- Crimblin é membro da resistência? – Surpreendeu-se lembrando de sua oficina
em Fluxo e de todos os acidentes que já haviam ocorrido, ele é um perigo, pensou.

- Sim! Ele é meio louco, mas um bom gnomo. Quase tudo que fabrica é de alto
risco e explode antes mesmo de testarmos, mas as poucas invenções que dão certo,
valem a pena – fez uma pausa e concluiu – oh... se valem!

- Menos mal – respondeu Eric receando qual seria a margem de sucesso – eu...
eh... bem... já que temos tempo... eu tenho algumas perguntas, se importaria...

- De maneira nenhuma, manda ver garoto! – Interrompeu GrakBar com sua voz
alta, cheia de orgulho e felicidade – Se eu puder ajudá-lo, ficarei satisfeito.

- O que sabe sobre meus pais?

- Bom, sobre o seu pai não sei muito mais do que já lhe falei e sobre sua mãe,
bem... sei que era uma druidesa portadora de magia, filha de Helius, um elfo nobre da
antiga Tríade que não se aliou a caçada dos homens após a Cisão, e nem podia, afinal,
sua avó era uma humana.

- Minha mãe era uma elfa com dons mágicos? – Eric levantou da cama com euforia
– E eu só sei disso agora?

- Na verdade meio-elfa. Perdoe-me, não sabia que ignorava essa informação –


respondeu calmamente.

- Ninguém fez questão de me informar isso durante quinze anos, eu realmente não
sei quem foram os meus pais – sua voz estava pesada.

- E foi a melhor opção, poucas pessoas sabiam de sua mãe, caso contrário já
estaria morto. Achavam que os boatos sobre a magia dela eram falsos, mas os
governantes fizeram questão de vigiá-lo sabia? Foi um inferno trazê-lo até a base
escondido.

- Como assim? – O som de surpresa saiu mais alto do que gostaria.

- Eric, todos os druidas são elfos ou meio-elfos pois, detém o dom da magia
natural, mas nem todos os elfos são druidas. Eles se davam bem com os humanos, mas
temiam o seu avanço rápido e a destruição da vida selvagem, o seu lar. O estopim foi
quando descobriram que os humanos estavam tentando aprender magia, poderosa e não
natural, você nunca deve ter ouvido falar, mas existem magos humanos, são poucos, é

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verdade, mas eles tendem a crescer. Contudo, na época em que sua mãe sumiu, com os
boatos que se tinham dela, mesmo não confirmados, os governantes ficaram com medo
de serem verdades, então passaram a vigiá-lo e continuam desde então, não sei como
não o mataram.

Eric engoliu em seco, nunca soube que corria risco de vida, mas tentou não focar
na parte de morrer precocemente.

- Ainda bem que não sei fazer fogo sem lenha – disse sem animação – Então
foram os humanos os responsáveis pela Cisão Druídica?

- De certa forma, assim como os elfos. Após a descoberta houve um conselho só


com os grandes mestres druidas, mas eles não chegaram a um consenso. Parte deles
achavam que era um caminho de descoberta da raça humana e que eles deveriam trilhá-
lo e aprender com os seus próprios erros e acertos, isso inclui a linha de pensamento do
seu avô. Já a outra metade achava que era um risco muito grande, se eles já se
multiplicavam e destruíam com rapidez, com o auxílio da magia eles seriam os
destruidores da Grande Mãe, pelo menos é o que eu sei.

- Só não consigo entender o grande temor de parte dos druidas, eles conheciam a
magia a muito mais tempo. Além disso, eles nunca apareceram em Fluxo, nem mesmo os
aventureiros gostam de comentar sobre esse assunto.

- Acho que o temor tem a ver com a vinda dos goblins para nossa terra, embora
ignore a história completa. Entenda, a falta de consenso do conselho não ficou só em
palavras, quase a metade dos druidas passaram a caçar e destruir os humanos e seus
lares, em contrapartida, a outra parte, sentindo-se responsável pelos atos de seus irmãos,
passaram a protege-los, entrando em uma guerra civil que perdura até os dias atuais.

Grakbar respirou fundo e continuou.

- Os primeiros anos foram os piores, aterrorizantes para dizer a verdade, ficaram


incrustados na memória de alguns reinos humanos e também élficos. Mas a proteção
dada pelos elfos diminui a cada dia, pois os homens não conseguem diferencia-los e por
vezes atacam seus defensores. Já os aventureiros, familiarizados com a variedade de
culturas e raças, conseguem fazer a distinção sem maiores problemas. Não tocam no
assunto dentro das cidades, pois a simples menção aos druidas pode ser considerado
crime em muitas delas.

- Então minha mãe sumiu por ser caçada?


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- Não sei dizer. Acho provável que ela tenha ido embora para que você não
corresse riscos, quando você nasceu, pelo que sei, havia muita tensão em Fluxo, a
resistência havia atacado e fora derrotada, seus pais eram membros e os governantes
suspeitavam disso, Corre-Lâmina deu a vida para que sua mãe não fosse descoberta,
estava nas fileiras da milícia e lançou-se de peito aberto numa espada aliada da
resistência. Foi tratado como um herói dos dois lados, mas o preço foi alto demais. A
desconfiança havia diminuído, mas alguns falavam que ele havia morrido rápido demais.

Uma pontada de dor surgiu no peito de Eric, nunca pensou em seus pais, pois
nunca convivera com nenhum deles, mas agora, sabendo o que fizeram, sentia-se em
débito. Isso o deixou pensativo. Após um breve momento ele voltou a olhar o anão
sentado em sua cama.

- Por que falam dessa espada como se ela fosse viva? – Tentou mudar de assunto
apontando para ela em cima do baú, não sabia se queria ouvir mais sobre seus pais. Sua
respiração estava pesada, não queria uma enxurrada de arrependimento e pensamentos
negativos, não agora, teria tempo para isso depois ou assim esperava.

- Por que ela tem vida, e um belo nome também – respondeu o anão ignorando a
mudança brusca no assunto – por sorte ela não é uma espada falante, elas são bem
chatas e acabam com sua privacidade.

Eric olhou para a espada como se esperasse um protesto de sua parte. A


explicação de GrakBar só o fez pensar em mais perguntas, mas Eric tentou manter o
foco.

- Como é possível um objeto ter vida, como ela se chama?

- Responderei a segunda pergunta primeiro, se me permite, Dodelig é o seu nome


– respondeu com uma profunda admiração na voz – Elas são forjadas com
encantamentos, especialidade de nossa raça e...

A porta se abriu bruscamente, interrompendo a explicação de GrakBar. Eric pulou


para trás enquanto seu companheiro erguia sua arma. HolfBar estava coberto de fuligem
e com uma cara nada pacífica.

- Abaixe essa coisa antes que se arrependa de tê-la erguido – exasperou olhando
para GrakBar –Venham logo, as pessoas estão esperando, com sorte eu encontro e chuto
aquele gnomo miserável.

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Os dois se olharam contendo os risos (finalmente a piada não era do órfão
atrapalhado), levantaram e seguiram o caminho antes que HolfBar os arrancasse do
aposento a machadadas. A tensão foi aliviada e as perguntas esquecidas
momentaneamente.

Passaram por um corredor parcialmente desmoronado e completamente


incendiado, caixas e barris de madeira destruídos espalhavam-se pelo chão, só poderiam
ser reaproveitados como carvão agora. Em meio aos destroços observaram um pequeno
ser correr assim que foram vistos, deduziram que era o Crimblin fugindo do seu caçador
irado, para a sua sorte, HolfBar parecera não o notar.

Diferente da ala de antes do portal, essa estava cheia de gente, pessoas andavam
para lá e para cá, conversavam, alguns com olhares tensos, outros bem mais calmos. Eric
viu duas pessoas cochicharem após observá-los de passagem, mas a maioria apenas
acenava a cabeça com respeito para o anão mais velho.

- Tem quantas pessoas aqui em baixo?

- Aqui em cima – corrigiu uma voz bela e feminina que todos conheciam – pouco
mais de duas centenas.

Eric foi o único que se surpreendeu com a nova companhia, os anões pareciam
acostumados com esse tipo de abordagem. A jovem do conselho estava com um vestido
semelhante, mas agora em tom branco, um cinto fino e prateado circulava sua cintura e
prendia-se pela lateral, numa espécie de amarra, deixando dois longos cordões que
sustentavam pequenas esferas vermelhas na ponta. Seu cabelo estava preso num coque,
mechas paralelas caiam sobre o seu rosto e revelavam pontudas orelhas.

- Você é uma elfacima, isso não é um ambiente subterrâneo? – Indagou Eric


atrapalhando-se com as palavras.

- Elfa e não elfacima – respondeu ela, acompanhando a risada dos dois anões que
seguiam em frente enquanto o novato corava de vergonha – E sim, é um ambiente
subterrâneo, mas se localiza em uma ilha voadora a sudoeste de Fluxo, então,
teoricamente, é aqui em cima, sem elfa.

Os anões soltaram uma gargalhada alta, o que fez HolfBar perder o mal humor e
se divertir com a cara que Eric estava fazendo (virou piada de novo).

- Aquela terra voadora coberta de montanhas? – Perguntou tentando conter a

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vergonha e desviar o olhar para a nuca do anão mais próximo – não sabia que pessoas
viviam lá, ou melhor, aqui.

- Ela mesma! – Respondeu a elfa ainda sorrindo – Esperamos que continue assim.

- Se depender de mim, assim será – afirmou – Eu me chamo Eric, mas você já


sabe disso...

- Ainda não fomos formalmente apresentados, então sua apresentação é pertinente


– consolou – eu me chamo Analiel Arde-Chamas, mas pode me chamar de Ana.

- É um prazer conhece-la... Ana.

- O prazer é todo meu, filho de Emma, Guardiã-Verde – respondeu com


sinceridade.

Logo após a conversa chegaram ao seu destino, HolfBar parou e abriu uma porta a
sua direita que revelava uma sala média com quatro colunas quadradas, não havia
nenhum ornamento com exceção do chão que era trabalhado em figuras octogonais em
duas cores, o teto era quadrado e os dois cantos superiores de fronte a porta eram
vazados em linhas diagonais, de maneira que a luz do Sol e o ar pudessem entrar por ali.
No centro da sala via-se uma grande mesa repleta de carnes, frutas, verduras e legumes,
jarras de vinho, cerveja, suco, leite e água completavam o banquete. Sentados nas
cadeiras estavam todos os membros que participaram do conselho e mais três pessoas
que Eric desconhecia.

- Entrem e vamos começar logo com isso, estou com fome e sem tempo! – Berrou
um Marcus impaciente e faminto.

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4

Apresentações

A comida estava deliciosa, tudo muito bem temperado e suculento, Eric se


perguntava se as refeições eram sempre assim. Todos pareciam felizes, HolfBar, seu
primo e o anão grisalho trocavam informações sobre os treinos e táticas de combate junto
a Marcus. Rudick, o dono do mercado, conversava animado com Oscar e Ana sobre o
cultivo de verduras e legumes. Os três desconhecidos abordavam assuntos sobre
geografia e sobrevivência. O único que não falava era homem cujos olhos desafiavam
qualquer aproximação de bom humor, tinha certa idade, mas uma forma física impecável,
estava vestindo roupas simples e escuras, não tanto como sua barba e olhos. Sério e
assustador durante todo o tempo.

- Aquele é Vanion, foi ele quem provavelmente votou contra você no conselho, não
aprova ninguém para resistência, mas sua fidelidade é inquestionável – respondeu
GrakBar interrompendo sua conversa sobre treinamento militar quando percebera em
quem seu amigo focava a atenção.

Quando o olhar daquele homem atípico encontrou-se com o de Eric, um arrepio foi
sentido em sua espinha, parecia-lhe que o espírito seria sugado de seu próprio corpo,

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desviou o olhar para o seu prato com medo.

- Ele me parece cruel – afirmou.

- E é, com os seus inimigos, por sorte estamos do mesmo lado.

- Por que ele nunca aprova ninguém?

- Lembra do que lhe falei a pouco tempo – o anão não parecia confortável com a
pergunta – sobre o ataque que fracassou?

- Sim.

- Então – GrakBar aproximou-se e sussurrou – ele fracassou por que havia um


traidor na resistência, descobriram depois que foi o menino que Vanion havia indicado e
treinado, por fim, ele foi o seu próprio algoz.

- Isso é assustador – cochichou.

- De fato, Vanion jamais esquecera e se culpa todos os dias pelas vidas que se
perderam no ataque.

- Incluindo a do meu pai – respondeu com amargura.

- Sim, incluindo a de Lúcio.

GrakBar não tocou mais no assunto, ofereceu um pedaço de costela de porco, mas
Eric havia perdido o apetite. As conversas perduraram ainda por um longo tempo, parecia
que todos estavam mesmo precisando descontrair, por fim, os próprios integrantes se
levantaram para arrumar e limpar o local.

Com tudo pronto, não demorou para que o clima ficasse tenso novamente, já em
seus devidos lugares, todos olharam para Vanion como se esperassem alguma ação,
visto que não ocorreria, Marcus tomou a iniciativa.

- Vamos começar? – Perguntou em alto e bom som, a mesa concordou – todos


sabem que Eric, o mais novo membro da resistência, talvez seja a nossa ponte para uma
aliança com os elfos, com relação a isso não há dúvidas...

- Mas o primeiro elfo, ou melhor, elfa que conheci foi Ana – falou Eric com as
palavras saindo se sua boca sem o seu consentimento, e, é claro, atraindo o olhar de
todos para si.

- Sim, mas você é o neto de Helius, um poderoso chefe druida. Agora, espere o Sr.
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Marcus terminar o seu discurso e não me envergonhe na frente dos outros novamente –
respondeu Oscar como vontade de martelar a cabeça do menino inconveniente como um
prego.

- Obrigado Oscar – agradeceu o tenente com sua voz firme e inabalável – Nós bem
sabemos que as chances deles nos ajudarem é mínima, contudo, podem nos beneficiar
com a informação dos elfos que foram banidos de suas terras no Pós Cisão, esses talvez
tenham algum interesse, assim como tiveram o Clã do Martelo e seu grande Mestre,
BrutBar, Duro-Escudo – fez uma pequena reverencia ao anão grisalho.

Eric se perguntava se haveria algum interesse que não fosse terra para os elfos
banidos, afinal, foram banidos. Além disso, por que não usavam Ana, era uma elfa e com
certeza tinha mais experiência. Queria saber quais eram os interesses dos anões, eles
haviam saído de Fluxo a anos, e, no entanto, estavam de volta, se o subterrâneo eram
deles, por que não o reivindicavam? Por fim, lhe incomodava o fato de todos os nomes
dos anões terminarem em “Bar”, Oscar com certeza diria ser uma pergunta idiota, mas
isso não o fez ficar menos interessado na explicação.

- Os abusos dos governantes estão se tornando cada vez piores – continuava


Marcus – o rei em nada difere, nomeia prefeitos cada vez mais corruptos e envia nobres
somente para supervisionar o envio correto de sua parte. Os impostos ficam cada vez
mais altos e muitas pessoas vivem numa miséria cada vez maior. Não fosse nosso
pequeno envio de mantimentos, muitas famílias já estariam mortas. Em contrapartida, os
superiores, protegidos por uma milícia torpe, cujo pequeno soldo garante obediência,
vivem uma opulência desproporcional, não obstante, fazem questão de demonstrar seu
poder e riqueza ao povo massacrado.

O clima intensificou, todos pareciam a ponto de brandir armas e enfrentar a milícia.


Eric sabia da corrupção, mas não com os detalhes que ouvira, até mesmo ele, raquítico e
sem prática alguma em combate, sentiu-se encorajado a tirar aquela corja do poder.
Talvez fosse esse o maior dom de Marcus, elevar o moral das pessoas para que
tomassem medidas inconsequentes. Não gostava nada daquilo.

- Por isso você tem um papel importante aqui – Marcus olhou para Eric, estava
sério e falava com certa preocupação – Você, como um parente próximo de Helius, talvez
obtenha a informação que precisamos, as chances são de fato pequenas, mas é melhor
do que a que temos agora, nada.

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- Não seria melhor mandar a Ana? – Indagou, sentia-se confuso e com medo, sua
voz saia tremida – Além de ser uma elfa, deve ter prática em viagens e combate melhores
que as minhas, visto que não sei fazer nem uma coisa, nem outra.

- Ela não é da mesma raça que sua mãe, nem sequer vive nessa terra, seus
ancestrais foram os instrutores de magia que deram poder aos que não nasciam com
dons druídicos. Ana não é bem-vinda em Tríade, ninguém da sua linhagem é, e se fosse
uma cidadã, teria sido banida no Pós Cisão como os outros de mesmas habilidades – era
Vanion, com sua voz fria e firme.

Todos se calaram e prestaram atenção em suas palavras, sem ousar interrompê-lo.

- Se pudéssemos fazer o que disse – continuou – já teríamos feito e você não seria
um dos presentes nessa mesa hoje. Não me leve a mal, nada tenho contra você, e nem a
favor, mas és desprovido de experiência e habilidade, além de ser jovem demais para
estar aqui, que fique claro, contra a minha vontade. Se viver no primeiro dia de viagem,
morrerá no segundo.

Ninguém o confrontou ou tentou dissuadi-lo, até mesmo Marcus, com seus


músculos e tamanho avantajado parecia com medo ou ter um profundo respeito, o
sentimento se confundia. Todos observavam sérios, não se ouvia nada, nem mesmo do
lado de fora.

- Concordo! – Quebrou o silêncio BrutBar, seus olhos encontraram os de Eric e


vibraram – Mandá-lo na atual condição seria enviá-lo para a morte certa, teremos muito o
que fazer para colocar um pouco de músculos nesse saco de ossos.

- Isso! – Responderam os outros dois anões em uníssono.

- Iremos ensiná-lo a ler mapas e aproveitar a geografia do local, além de darmos a


provável localização de Tríade – falou um dos três desconhecidos a Eric – a propósito,
meu nome é Sandro, esses são Vitor e Carlos, estamos juntos nessa empreitada.

- Também irei ajudar, vamos descobrir se ele é um druida, se for, nossas chances
irão aumentar bastante – era Ana.

- Para a sorte dele, espero que seja – complementou Oscar fitando-o – com o seu
cérebro, ser um mago está fora de cogitação.

Eric mirou a mesa vazia.

33
- Desculpe-me, mas Oscar nos contou que a carta de sua mãe pedia para ir a
Tríade, encontrar com o seu avô, podemos ajudá-lo a chegar lá, não será uma jornada
fácil, tenho que dizer – falou Marcus fazendo com que todos prestassem atenção –
Pedimos em troca, que consiga a informação sobre os elfos exilados, acredito ser uma
troca justa, além do mais, Fluxo também é o seu lar e foi dos seus pais antes de você.
Será que podemos ter um acordo?

- Podemos – respondeu um menino perdido perante os presentes, ainda sem saber


se fizera a escolha certa.

- Fico satisfeito com a sua resposta. Agora vamos as apresentações formais,


Carlos, Sandro e Vitor, que acabam de se apresentar, são caçadores e aventureiros com
experiência, sabem aproveitar e sobreviver em quase qualquer tipo de terreno e são
ótimos com mapas. Analiel Arde-Chamas é nossa convidada de honra a bastante tempo,
é uma elfa da lua e uma maga excelente que, sempre que pode, premia-nos com a sua
visita. BrutBar Duro-Escudo é o chefe do Clã do Martelo, ele fez um acordo com a
resistência e desde então somos agraciados com a sua ajuda, GrakBar e HolfBar, você já
conhece, são os nossos melhores guerreiros e serão seus instrutores de treino.

Os anões inflaram o peito com orgulho.

- Oscar é... bem... o nosso consultor, ele conhece as tramas de vários reinos, suas
histórias e culturas que vão muito além de Fluxo, sua presença nos é muito cara – disse
observando o olhar surpreso de Eric – Rudick é um dos nossos financiadores e também
nos mantem informado sobre o que os soldados andam falando e fazendo, mesmo sendo
um dos tenentes da milícia, não consigo prestar atenção em todos como gostaria. E ali
está Vanion, um dos fundadores da resistência e o mais sagaz líder do conselho.

Eric olhou para Vanion, sua expressão ainda mais assustadora depois da
apresentação, estava claro que guardava uma ira sem igual, mortal até mesmo para o seu
portador.

- Obrigado Eric, sua nobre ação jamais será esquecida – disse Marcus com afeto.

- Será após a sua morte – cortou Vanion retirando-se da sala.

Todos se calaram novamente e esperaram.

- Perdoe-me por isso.

- Talvez eu o entenda – disse Eric.


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- Você não irá se acostumar com o jeito dele, acredite, ninguém se acostuma –
disse Marcus com tristeza – Você ficará para o treinamento durante toda a primavera até
o meio do verão, só assim conseguirá um bom resultado para a viagem.

- E como vou fazer para administrar o Javali na Chapa?

- Eu administrarei o local, forjaremos uma saída da cidade para você – respondeu


Oscar – você só será visto por aqui novamente quando regressar de Tríade.

- Você na taverna?

- Qualquer idiota pode fazer o seu serviço moleque, contudo poucos conseguem
fazer o meu.

- Não foi isso que quis diz...

- Não me interessa o que quis ou não dizer, sua opinião de nada me ajuda,
concentre-se em aprender para sobreviver, pois estou tendendo a concordar com Vanion
e o seu precoce fim no primeiro ou segundo dia – finalizou.

Até mesmo Eric concordava, iria seguir para Tríade como aconselhou sua mãe,
contudo precisava de ajuda e os únicos dispostos a isso eram os membros da resistência.
Aceitar a resistência, ou melhor, ser empurrado para ela, foi o melhor que podia
acontecer, duvidava conseguir ajuda em qualquer outro lugar.

Além do mais, ali poderia saber mais sobre as outras raças e culturas e as vastas
regiões de Eamam. Gostava de imaginar isso, sempre admirou os aventureiros que
chegavam no Javali na Chapa, mas sempre teve medo de fazer o que faziam, com
treinamento, talvez conseguisse. Eric tinha certeza que Patrus iria se orgulhar onde quer
que estivesse, sua falta era sentida todos os dias desde seu trágico fim.

- Sua saída terá que ocorrer amanhã ao nascer do dia, quando os portões
começarem a abrir. Estarei fazendo a ronda no local, não precisará se preocupar com a
guarda, deixe essa parte comigo – afirmou o tenente – você tem que preparar os alforjes
de sua mula ainda hoje.

- Isso não será um problema – respondeu sabendo ter pouquíssimos pertences –


quando posso descer?

- Agora mesmo.

Eric se despediu e seguiu para o portal com Marcus e Rudick que se voluntariou

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para a ajuda. Foi aconselhado a deixar seus novos pertences na sede, pois chamariam
muita atenção, repôs suas antigas indumentárias e seguiu para o portal.

A decida foi tão ruim quanto a subida, todas as visões púrpuras girando em grande
velocidade e depois da saída do portal tudo continuava a rodar, a diferença era que
tinham as cores normais. Eric se desequilibrou e caiu pela segunda vez, mas conseguiu
mirar o chão antes de ejetar o almoço.

Desta vez ninguém riu, pareciam ter esquecido como se fazia. Deixaram as
intermináveis salas e seus corredores subterrâneos para saírem dentro da loja de Rudick:
era um mercado simples, enfeitado com frutas verduras e legumes, alguns jarros de grãos
aqui e acolá e peças de carnes penduradas acima do balcão. Era fim de inverno, então,
mais da metade dos seus produtos já haviam sido vendidos.

Marcus foi o primeiro a sair da loja fechada e aconselhou-os a darem mais um


tempo antes de seguirem com os planos. No meio tempo tomaram um chá quente e
conversaram sobre assuntos menos importantes.

Ao cair da noite, seguiram para o Javali na Chapa.

Tudo estava em ordem e no mesmo lugar de sempre. Rudick reclamou do cheiro


de mofo enquanto separava algumas poucas panelas e copos. Eric, já acostumado, fazia
tudo com mais agilidade, pegou a sua segunda muda de roupa, tão surrada quanto a
primeira, um cobertor, duas tochas e mais nada, não tinha mesmo mais nada.

- Vai dar tudo certo amanhã Eric, tenho certeza – falou Rudick – que os deuses te
abençoem.

- Obrigado, mas eles não foram lá essas coisas até agora.

- É por que ainda não rogou para o deus certo – respondeu com simpatia – Tenha
uma excelente noite de sono meu jovem.

- Talvez tenha razão. Uma excelente noite para você também Rudick – desejou
com sinceridade – e até amanhã.

- Até!

Eric trancou a porta, alimentou a lareira que haviam acendido quando chegaram e
sentou-se em uma das cadeiras do Javali na Chapa. Contemplou a visão como se fosse a

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última vez que a veria em sua vida e lembrou-se com saudade de Patrus, refletiu sobre
suas novas escolhas, seu novo caminho, mas o cansaço o venceu, era forte o bastante
para afastar até o seu medo, deitou-se exausto e dormiu.

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Correndo para a salvação

Foi uma noite fria e mal dormida, a cabeça de Eric não parava. Pensava em como
sua vida era simples e pacata, e, de um instante para o outro se transformou em algo
perigoso e imprevisível. Descobriu mais sobre seus pais e o próprio Patrus, seu amado
guardião. Se perguntava por que ele nunca havia dito nada sobre a resistência, talvez
esperasse que adquirisse mais idade, infelizmente, esse dia não chegou. A dor em seu
peito aumentava e diminuía no decorrer da noite. Tinha dúvidas se Oscar saberia tocar o
Javali na Chapa, seu último e único patrimônio.

Levantou-se cambaleante e afundou seu rosto em uma bacia com água. Seguiu
para atrás do balcão onde tinha um pequeno compartimento secreto, de lá tirou todas as
moedas que economizara para fazer a reforma, as entregaria para Oscar na melhor hora.
Orou para que as usasse como pediria, guardou as moedas dentro de suas calças. Fluxo,
definitivamente, não era um lugar seguro.

Saiu pela porta dos fundos e preparou o alforje e a mula. O vento soprava frio, seu
velho casaco já não o esquentava como antigamente, mas tentou não desanimar, não é
uma viagem de verdade, repetia para si mesmo, pelo menos, não hoje.

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Quando começou o caminho em direção aos portões o sol estava começando a
nascer. Via com desgosto a sujeira que fazia parte da paisagem, assim como o cheiro
ruim intensificado em tardes quentes. Chegou aos portões quando terminavam de abri-lo.
Os guardas o olharam com desdém, contendo risadas.

- Vai dar um passeio, Eric? – Perguntou um deles – cuidado para não morrer com
esses trajes, duvido que possa te proteger do frio durante muito tempo, principalmente à
noite, caso esteja pensando em dormir fora.

- Pelo menos não será roubado – uniu-se o outro – os trapos não servem nem para
serem reaproveitados. Lembre-se de separar a nossa cerveja hoje à noite ou a
quantidade dobrada amanhã, não vai querer problemas, não é?

Riram sarcasticamente.

Eric apenas acenou afirmativamente com a cabeça e continuou a caminhar ao lado


de sua mula.

- Garoto insolente! É assim que se comporta frente a autoridade? – Retomou o


primeiro batendo com a parte de madeira da lança em sua costela – somos a lei,
esqueceu?

- Me desculpem, senhores! – Respondeu contendo a raiva e o medo de ser


perfurado – Estejam certos que hoje terão uma noite agradável no Javali na Chapa.

- Assim está bem melhor.

- A plebe está cada vez mais abusada por aqui, temos que dar um aperto maior
para que volte o respeito – falou o segundo sem se preocupar em ser ouvido.

Eles acreditavam estar entre os plebeus e os nobres, sempre comiam e bebiam na


taverna, mas nunca pagavam. Assim era a vida por ali, assim os guardas sempre agiam.
Lá no fundo, Eric sentia-se aliviado por se afastar. Talvez quando voltasse, as coisas
poderiam ser um pouco diferentes. Como estava enganado.

O jovem rapaz quase não passava dos muros, exceto quando era estritamente
necessário. Tinha medo de ser roubado ou comido por qualquer fera ou monstro, mas
agora estava ali, desarmado, com frio e com fome. Após uma boa caminhada. o Sol se
revelou completamente, não havia mais neve em lugar algum. Adentrou a trilha da
Floresta dos Lenhadores e ainda no início, onde havia combinado o encontro, avistou um
homem encapuzado saindo de trás de uma das árvores. Parou.
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- Tens passos lentos, rapaz. Achei que não fosse chegar nunca – disse retirando o
capuz.

Carlos estava bem diferente do dia anterior. Sua capa cobria parcialmente uma
armadura de couro batido, uma aljava com muitas flechas enfeitava suas costas, um
grande arco repousava em sua mão esquerda e na cintura carregava uma cimitarra,
algumas adagas e diversas bolsas. Era um homem de estatura mediana, porte atlético e
que parecia ser bastante ágil, seus cabelos castanhos eram curtos e seus olhos não se
fixavam em nenhum ponto por muito tempo.

- Bom dia e me desculpe.

- Não precisa se desculpar. Venha, eu lhe ajudo a conduzir o animal – falou indo na
direção de Eric e estendendo a mão – não falo de você, me passe a corda – finalizou
dando uma bela risada.

Eric acabou rindo junto com o seu guia.

A floresta ficava mais densa a medida que caminhavam, galhos e raízes altas se
espalhavam pelo chão. Carlos, incrivelmente, não quebrava nenhum com seus pés, nem
mesmo barulho fazia, já Eric tropeçou diversas vezes, escorregou outras e deu uma forte
cabeçada em um galho baixo que não notara, o que lhe rendeu um belo arranhão e
gargalhadas de seu companheiro.

- Tome mais cuidado – falou mais de uma vez.

O Sol já se adiantara bastante quando avistaram uma paisagem diferente, as


árvores estavam rareando e pedras maiores começaram a enfeitar o chão.

- Estamos chegando na entrada – falou baixo.

- Ainda bem, estou farto de verde – disse após tropeçar mais uma vez em uma
raiz.

Carlos caminhou em direção as rochas, até que se tornassem a paisagem


predominante. Logo depois embrenhou-se numa trilha estreita onde a mula teve
dificuldades para fazer o caminho. Parou em frente a uma parede natural e como se por
magia ou pura arte, o caçador abriu o que parecia ser liso e sólido, revelando uma
passagem em direção a escuridão.

Eric acabava de se arrepender do comentário sobre a floresta quando com a

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lanterna acesa, entraram e se trancaram em um túnel que parecia não ter fim.

- Como isso é possível, não existia nada ali! – Disse Eric conduzindo a mula
novamente.

- Isso você deve perguntar aos construtores anões, fiquei tão estupefato quanto
você a primeira vez que vi – respondeu Carlos segurando a lanterna a frente – incrível,
não?

- Sim! Queria realmente saber qual a sua extensão.

- Na verdade, isso aqui é só uma rota de fuga, vamos fazer o caminho todo de
volta em um único corredor até chegar às proximidades de Fluxo.

- Que divertido – respondeu nada satisfeito.

Carlos riu.

- Não tinha outra maneira, tínhamos que sumir com você, se fosse mais próximo
alguém poderia notar – falou com mais seriedade – ainda bem que é em linha reta,
contudo, passaremos em locais que raramente vamos quando estivermos mais a frente,
fique com os olhos e ouvidos atentos.

Eric sentiu um frio na barriga, mas concordou com a cabeça, inutilmente, já que
Carlos ia na frente.

- Como essas construções podem ser tão grandes? Nunca tinha ouvido falar delas
até parar num quarto de pedra depois de um envenenamento – falou tentando afastar o
medo.

- Envenenamento?

- Depois te explico. Minha resposta primeiro.

- Bom – começou um pouco desconcertado – poucas pessoas, além de um


punhado de nobres, as conhecem e todos a temem.

- Não quero saber nem o porquê.

- Basicamente, graças as nossas defesas.

Carlos continuava andando a passos rápidos enquanto ouvia a história de como


Eric viera parar na Resistência.

- Ótima história, espere até os outros saberem.


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- Como? Você não pode...

- Deveria ter dito antes de me contar, caro taverneiro – disse em meio a risos
baixos.

- Vou me lembrar da regra – resmungou – ainda falta muito? Isso é maior do que
havia suspeitado.

- Se você acha que as construções sob a cidade são grandes, imagina quando
conhecer os aposentos das Montanhas Douradas.

- Onde ficam as Montanhas Douradas? – Ofegou curioso.

- É a atual Rocha Alta, a Norte de Fluxo, mudou de nome há muitos anos, mas não
para os anões.

- Gostaria de conhecer um dia, com certeza.

- Quem sabe não possamos embarcar em uma aventura por lá depois que retornar
– Carlos falava animado – fiquei sabendo que ainda tem alguns tesouros que os antigos
mestres anões não levaram, embora duvide disso, anões não se distanciam de tesouros
facilmente.

Eric ficou empolgado com a ideia. Antes só ouvia gente pedindo mais cerveja e
mais comida, agora falavam sobre aventuras mas logo desanimou, não sabia se iria
sobreviver. As palavras de Vanion ainda martelavam em sua cabeça.

O imenso túnel por onde passavam era simples, completamente liso e monótono.
Quando não conversavam, os únicos sons eram de seus passos e o casco da mula. Nas
paredes via-se suportes para tochas em intervalos regulares, embora o espaçamento
entre eles fosse grande.

- Devia ser difícil enxergar algo aqui sem uma lanterna, mesmo com as tochas
acesas em seus lugares – argumentou Eric.

- Para nós sim, mas não para os anões – respondeu Carlos com a voz baixa – eles
têm uma visão excelente, um pequeno ponto de luz é o suficiente.

- Incrível – pensou em voz alta.

- É sim, seria tão mais fácil se compartilhássemos dessa característica.

- Por que GrakBar ou HolfBar não vieram com você?

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- Infelizmente, tinham uma ordem de Duro-Escudo para cumprir, só os veremos
daqui a uns dois dias, se forem rápidos.

- Que droga.

- Tenho que concordar com você. Odeio passar por aqui sem um deles.

Eric sentiu-se chateado e acabou se calando, gostaria que pelo menos GrakBar
estivesse com ele. Apenas um dia e já estava familiarizado com o anão, um
acontecimento raro entre essas duas raças.

Depois de muitos passos avistaram uma porta de madeira reforçada. Carlos abriu-
a com facilidade, se depararam com um cômodo que parecia ser retangular, algumas
portas podiam ser vistas dos dois lados, assim como os pares e as colunas trabalhadas,
mas a parca iluminação não deixava ver mais além.

- Me dê só um tempo, tenho que conferir o mapa – Carlos lhe passou a lanterna –


Segure isso por favor, aproveite e recarregue.

Eric pegou a lanterna e o óleo. Enquanto recarregava, seu companheiro pegou o


mapa num tubo preso ao seu cinto. Observou-o por um tempo, enquanto fazia algumas
afirmações e dizia uns sins para si mesmo.

- É por aqui, siga-me – disse guardando o mapa e retomando a lanterna.

Pegaram a terceira porta a direita e seguiram caminho, ignoraram mais algumas


salas e corredores. O mesmo som perdurava durante todo o percurso, passos e cascos,
passos e cascos, passos e cascos.

Carlos parou de supetão e o aprendiz de aventureiro (muito atento) esbarrou em


suas costas.

- Ei, preste atenção – sussurrou Carlos.

- Me desculpe.

- Pare de se desculpar o tempo todo rapaz. Só tenha mais cautela.

- Certo!

Encontravam-se em uma sala com diversos objetos espalhados


desordenadamente. Mesas e cadeiras quebradas se espalhavam e até onde a luz
alcançava.

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- Não era para estar assim – sussurrou – não era mesmo.

- Como era para estar? – Perguntou Eric segurando a mula um pouco mais forte,
ela não estava cooperando – O que faremos?

- Tenho que olhar o mapa novamente – disse passando a lanterna para Eric de
maneira apressada – vou ver se encontro um caminho alternativo, não estou gostando
desse cheiro.

Eric não sentia nenhum cheiro diferente ali, mas não estava gostando da situação.
A luz revelou uma coloração diferente de relance, quando fixou os olhos, reparou que
eram ossos, vários ossos, não muito distante de onde estavam.

- Aquilo faz parte da decoração? – Perguntou apontando e afastando-se mais para


o lado direito.

- Definitivamente não – Carlos guardou o mapa e preparou o arco – ouviu isso?

Eric não ouviu nada: ou seu companheiro era louco ou tinha os sentidos muito
aguçados. Quaisquer das alternativas era assustadora.

A mula pisou em uma segunda pilha de ossos que estava mais próxima. Eric
assustou-se com o barulho, desequilibrou e caiu, batendo ruidosamente com o cotovelo
no chão. A mula, agora solta, correu por onde entraram, mas alguma coisa bloqueou o
seu caminho e ela parou no ar. Em pouco tempo, uma sombra grande desceu e enrolou a
infeliz num casulo e não se ouviu mais o relinchar apavorado.

- Droga! – Gritou Carlos – são aranhas, levante-se depressa e tente achá-las.

Ouviu-se o silvo da flecha e logo depois o barulho dela quebrando-se inutilmente


na parede de pedra.

- Merda! – Frustrou-se o arqueiro.

- Viu alguma coisa? – Perguntou com a voz coberta de pavor.

- Você é cego? – Irritou-se Carlos.

Eric sentiu um frio na barriga, mas tentou seguir a ordem que recebera. As aranhas
que conhecia não prendiam mulas em teias, muito menos enrolavam-nas tão rapidamente
para o desjejum.

- Pegue isso! – Bradou o arqueiro dando-lhe uma adaga e aprontando novamente

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seu arco.

Eric imaginava quão útil seria uma adaga num braço dolorido contra algo que
comia bestas no café da manhã, mas guardou o comentário para si.

- Ali! – Gritou apontando desesperadamente para a aranha que corria pela parede.

Rápido como uma águia, Carlos disparou três flechas seguidas. Na terceira ouviu-
se um guincho alto, um baque e som de ossos quebrando. Ele era veloz, a lanterna
tentava, sem muito sucesso, dar-lhe algum suporte.

Uma aranha desceu entre os dois. Eric saltou para trás. Seu cotovelo ainda doía
mas viu um problema maior quando se deparou com oitos olhos negros que brilhavam
com a luz, suas garras estavam banhadas de algo verde e seus quatro pares de patas
não eram nada convidativos.

Ela investiu. Eric escorregou em um pedaço de osso (o que salvou sua vida), e
tentou se afastar arrastando-se pelo chão. A lanterna ficou acesa em algum lugar, a
iluminação estava ficando mais fraca conforme recuava. Quando se levantou, percebeu
que sua calça estava molhada, seu corpo tremia de pavor.

Do outro lado, Carlos tentava desvencilhar-se do inimigo que o interceptou para


ajudar seu companheiro. A aranha ferida queria sua vingança, mas descobriu que seu
oponente era experiente. Fechas zuniram certeiras em sua carcaça peluda, com dor,
pulou para as sombras, teria que aguardar uma oportunidade melhor. Com velocidade,
colocou o arco no ombro enquanto corria ao mesmo tempo que tirava a cimitarra da
bainha.

A aranha gigante fitava sua presa indefesa e investiu pela segunda vez. Eric
segurou a adaga na frente com as duas mãos e gritou fechando os olhos. Sentiu a adaga
fincar-se num couro duro, ouviu um grito vindo de cima, mas algo entrou em sua carne. O
tronco ardeu, tombou, ainda consciente, abriu os olhou a tempo de ver Carlos tirando sua
lâmina da enorme cabeça cheia de olhos e escorregando pela sua lateral.

A outra amiga de oito patas, agora irada, ignorava a dor e vinha em carga. Seu
oponente arremessou o sabre e preparou o arco. Ouviu-se um chiado alto e uma de suas
patas dianteiras começou a se movimentar estranhamente, o retardo foi o suficiente, mais
dois silvos e um tombo, flechas certeiras perfuraram seus dois maiores olhos, mandando-
a para o reino dos mortos.

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Eric assistiu tudo do chão, sentindo seu corpo inteiro molhado. Reparou que estava
em uma poça vermelha e verde, sua força estava se esvaindo.

- Amigão, preciso de você – disse se abaixando e levantando a cabeça daquele


frágil ser.

Sentindo que o azar não lhe dava folga, ainda tentou pronunciar alguma resposta,
mas só conseguiu cuspir uma boa quantidade de sangue.

- Não fale, tivemos sorte de não haver três.

A dor era excruciante, sua visão embaçava e já não ouvia mais nada. Seus olhos
fechavam-se lentamente.

Carlos o colocou em seus ombros junto com o arco, por sorte o garoto era leve,
pegou o sabre no caminho e correu, correu como se sua própria vida dependesse disso.
Orou para que desse tempo.

Seu corpo doía com o esforço, estava coberto de sangue e suor. Eric remexia-se
ferozmente em seu ombro, dificultando sua movimentação. Gritava com os olhos ainda
cerrados e de repente nada, estava inerte.

- Não, amigão, não agora, por favor, resista – gritava assustado sem ninguém para
ouvir.

Chegou nos cômodos que lhe eram familiares, reuniu toda a força que lhe restava,
mais salas e corredores. Parece interminável, pensou. Demorou, mas avistou o que
queria, seguiu para o local que brilhava em púrpura e se jogou pelo portal.

- SOCOOOOOOORRO! – Gritou batendo de costas no chão, já sem forças, na


sede flutuante.

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