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OS BISPOS E A INQUISIÇÃO PORTUGUESA ( 1 5 3 6 - 1 6 1 3 ) *

JO SÉ PEDRO PAIVA ••

Introdução

N este estudo pretende-se avaliar um assunto que. estranham ente, não


tem m erecido grande atenção: a relação entre o s bispos e a Inquisição por­
tuguesa no período do seu estabelecim ento e organização '. D ig o estranha­
m ente. pois é hoje perfeitam ente sabido, com o foi dem onstrado por Adriano
Prosperi, que desde o período da sua fundação, a Inquisição Moderna criou
um problem a de poder no interior da Igreja: o da definição dos lim ites e das
com petências dos órgãos com capacidade para intervir no d om ínio da veri­
ficação das práticas relig io sa s c. m ais am plam ente, d os com portam entos
das p o p u la çõ es \ Tanto m ais que. co m o refere o autor, reportando-se ao
ca so italiano, h ou ve, d esd e o in ício , uma am b ição sem lim ites da Inqui­
sição. que pretendeu esten d er ao m áxim o a sua área de intervenção, o que
teria gerad o c o n flito s e so b rep o siçã o de poderes com o s tribunais e p is c o ­
pais já ex iste n te s \

* Este artigo é a versão porluguesa de uma com unicação apresentada no C olóquio


Internacional Inquisition et pouvoir, realizado em A ix-en-Provencc (França), cm N ovembro
de 2002. Esta variante é m ais com pleta que a versão original francesa.
** Faculdade de Letras da U niversidade de Coim bra. C entro de H istória da S o cie­
dade c da C ultura.
1 Sobre as várias etapas de im plantação do Tnbunal da Fé em Portugal, até à reo r­
ganização decisiva desencadeada pelo inquisidor-m or Pedro de C astilho, é indispensável
consultar Joaquim R om ero M agalhães, "E m busca dos tem pos da Inquisição (1573­
-1615)". R evista de H istória das Ideias, vol. 9. (1987), p. 191-228. que aqui seguim os para
delim itar o term o cronológico final da investigação,
1 Ver A driano Prosperi, Tribunali delia coscienza. Im /uisitori, confessori, m issio ­
na ri. Torino. G iuliu Einaudi Editorc. 1996, p. 62-63.
1 Ver. Idem . p. 2 8 1. Para além disso, a Inquisição e os bispos, sobretudo depois de

t . t J S I T A M A S A C R A , 2" s é r i e . 15 (2 0 0 5 1 4 5 -7 6
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D e igual m odo, em Portugal, a Inquisição foi procurando alargar a


sua área de intervenção. A bula Cum uü n ih il m a g is , de 23 de M aio de
1536, que m arca a institu ição defin itiva do Santo O fíc io português, dava
poderes ao Tribunal para perseguir as h eresias de ju d a ism o , protestan­
tism o. isla m ism o e feitiçarias, m as o prim eiro m onitório da fé. ainda de
1536. refere já a bigam ia e algum as p rop osições heréticas \ Em 1552 a
Inquisição co n seg u e am pliar a sua ju risd ição sobre ca so s de contrabando
em terras de m ouros, em 1562 sobre sodom ia (co n su m ação no p lan o do
direito de uma prática que já exercitava), finalm ente, a partir de 1599,
tam bém a so licita çã o em c o n fissã o passa a estar sob a sua alçada \
Tam bém em Portugal, num prim eiro m om ento, esta introdução de
um a nova instância suscitou dúvidas, criou e q u ív o c o s e por certo alguns
c o n flito s, não só entre o s titulares d estes poderes, mas tam bém entre as
p op u la çõ es a quem com p etia fazer denúncias \

T rento. foram protagonistas dc dois program as diversos de actuação. Os prim eiros agiriam
através de um a presença sistem ática junto das populações usando uma "m isericórdia ev an ­
gélica”, a segunda leria actuado por via da repressão punitiva, ver idem p. 278-289.
4 A bula de fundação está publicada em Corpo diplom ático Portuguez contendo os
actos e relações política s e diplom áticas de Portugal com as diversas potências d o m undo
desde o século XVI a té aos nossos dias. Lisboa. Typographia da A cadem ia Real das
Sciencias/lm prensa N acional. 1862-1959. vol. Ill, p. 302-05. A bula está publicada em
versão latina com tradução portuguesa em Isaias da Rosa Pereira, D ocum entos para a
H istória da Inquisição em Portugal. Porto. Arquivo H istórico D om inicano Português,
1984, p. 23-27. Uma versão do m onitório da fé, de 18 de N ovem bro de 1536, pode ler-se
cm M aria José Pim enta Ferro Tavares. Judaism o e Inquisição. Estudos, Lisboa, Editorial
Presença. 1987. p. 194-99.
' O breve papal que o consente. Muneris nostri. data de 12 de Janeiro de 1599 e pode
ver-se em C ollectorio das Bulias e Breves Apostolicos. cartas, alvarás e provisões reais
que contém a instituição e progresso do Santo Officio em Portugal. Lisboa, Lourenço
Cracsbeeek, 1634. fl. 83v-84v. Sobre este assunto ver Francisco Bethencourt, História das
Inquisições Portugal. Espanha e Itália. Lisboa. Círculo de Leitores. 1994, p. 149 e Paulo
Drum ond Braga. A Inquisição nos Açores, [s.l.J, Instituto C ultural de Ponta D elgada. 1997,
p. 294, 404-405 e 448. Note-se, todavia, que ainda antes de 1599 já o Santo O fício instau­
rara processos por solicitação. Esses processos foram recentem ente revelados num estudo
de G iuseppe Marcocci e reportain-se a dois sacerdotes de Eivas, André Fialho e João
G onçalves, sentenciados eni 1569, ver G iuseppe M arcocci, / trihunali delia fe d e in
Portogallo nell età dei concilio di Trento. Inquisilori, vescovi, confessori. Pisa. (s.n.|, 2002,
tese de licenciatura apresentada à Universidade de Pisa, p. 286-302.
‘ Refiro apenas três exem plos. Em 1542 um habitante de G ouveia veio à M esa da
Inquisição de C oim bra para delatar um conterrâneo que vivia em concubinato, delito que
era da jurisd ição episcopal, cf. Instituto dos A rquivos N acionais/Torre do Tom bo (a partir
de agora sem pre IA N/TT), Inquisição de C oim bra. Livro segundo das denunciaçoes. Livro
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A raiz de tod o o problem a residia na noção de heresia. Esta, m esm o


entre o s te ó lo g o s, tinha con torn os flu id os, o que d ificultava a d elim itação
rigorosa entre a jurisdição ep iscop al pré-existente e a inquisitorial, cuja
função era a de au xiliar o s ordinários na repressão das h eresias 7. D e facto,
em bom rigor, a criação das In qu isições não privou o s b isp os d essa c o m ­
petência. C o m o foi já exem plarm ente dem onstrado por A g o stin o B orro­
m eo, um a bula de In ocên cio IV, datada de 1252, confirm ou o princípio da
co m p etên cia com u m de ordinários e inquisidores em ca so s de heresia.
Esta so b rep o siçã o abria a p ossib ilid ad e de am bos poderem proceder nesta
matéria e até em relação ao m esm o caso, o que acabou por gerar situ a çõ es
in con v en ien tes. O s can on istas rom anos tentaram re so lv ê -lo e. no c o n c ílio
de V iena ( 13 11 - 13). o papa C lem en te V. através da co n stitu ição M u ltoru m
Q u e re la , regulou esta s relações, estab elecen d o que am bos podiam p roce­
der. mas que tinham que actuar conjuntam ente em três situações: quando
q u isessem agravar as c o n d iç õ e s de encarceram ento dos réus (situ ação que
nunca se praticou em P ortugal), su b m etê-los a tortura e, finalm ente, na
fase de sen tencear o s p ro cesso s (v o to co leg ia l dos p rocesso s). Esta c o n s ­
tituição foi publicada em 1317. por João X X II, nas céleb res C le m e n tin a s,
tendo assim ficad o d efinitivam ente esta b elecid o o princípio da ju risd ição
cum ulativa em q u estõ es de fé *.
Estas normas vigoraram em Portugal quando a Inquisição foi estab ele­
cida. A bula da fundação definitiva, com o referiu Fortunato de A lm eida,
determ inava que o s inquisidores agiriam de acordo com os ordinários dos
lugares, habilitando-os tam bém a intervir nas causas de heresia intentadas
pelos bispos. Isto é. e seguindo as suas palavras, que devem ser bem subli­
nhadas: “N enhum dos diplom as pontifícios concernentes ao estabelecim ento

n° 75. fl. 212v. Por seu lum o. em 1569, o inquisidor-geral ordena aos inquisidores de
C oim bra que rem etam ao bispo do Porto réus acusados de bigam ia que lhes haviam sido
enviados pelo próprio bispo do Porto, pois o caso era de foro m isto, pelo que o prelado
linha jurisdição para proceder, cf. IAN/TT. Inquisição de C oim bra. Caderno de provisões
carias e outros papeis desde o anno de 1536 athe todo o ano de 1599, Livro 271. fl. 25.
Km 1609 ainda os próprios inquisidores de Évora linham dúvidas se deviam proceder nos
casos de solicitação cum ulativam ente com os bispos e prelados das religiões ou “in soli-
diim ". cf. IAN/TT. C onselho Geral do ianto O fício. Correspondência recebida das in q u i­
sições de Lisboa e de Évora. Livro 97. fl. não num erado, carta 76.
1 Ver A driano Prosperi, Tribunali delia coscienza..., op. cit.. p. 278.
* Ver Agostino Borrom eo, "C ontributo alio studio dell 'Inquisizione e dei suoi raporti
con il potere episcopali nell Italia Spagnola dei Cinquecento", A nnuario d eli'Istituto Storico
Italiano p e r L 'E td m oderna e contem porânea, vol. 29-30, 1977-78, p. 225-27.
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da Inqusição acusa o pensam ento de derrogara jurisdição dos ordinários em


matéria de heresia” *. O que a bula M ed ita tio C o rd is, de 1547, que fortalece
o âm bito da acção inquisitorial, também não altera. Isto apesar de tanto D.
M anuel I, em 1515, co m o D. João III, em 1531, nas instruções que deram
aos seu s em b aixad ores em Rom a tendentes à criação da Inquisição, terem
in sistid o para que o direito de perseguir os hereges p assasse a estar e x c lu ­
sivam ente co n fia d o aos inquisid ores l0. A ssim , em m uitas C o n stitu içõ es
das d io c e se s, m esm o nas prom ulgadas nos sé c u lo s XVII e X V III. o s b is ­
pos nunca deixaram de ordenar aos fiéis que lhes fo ssem d en u n ciad os os
c a so s de heresia, e o s prim eiros pontos que constavam nos ed itais das
v isita çõ es d o s prelados, pediam expressam ente para e sse s crim es serem
delatad os ",
S u ced e que, nos reinos ib éricos, por pressão d os m onarcas, se foi ten ­
d endo a criar o hábito de o s bisp os rem eterem aos inq u isid ores o s ca so s
de heresia de que tiv essem co n h ecim en to Na prática, a partir de finais

’ Cf. F ortunato dc Almeida. H istória da Igreja em Portugal, nova edição. Porto;


L isboa. Liv. C ivilização. 1967-71. vol. II. p. 401-02 e 421.
* Ver Instrução dc D Manuel I a D. M iguel da Silva c C arla de D. João III para o
D ouior Brás Neto em As Gavetas da Torre do Tombo. Lisboa. C entro de Estudos
H istóricos U ltram arinos, vol. I, respectivam ente p. 60-63 c p. 271-73.
11 Ver, por exem plo, o edital referente à visita da diocese de C oim bra em 1743.
publicado por lsaíax da Rosa Pereira, “As visitas pastorais com o fonte histórica". Revista
da Faculdade de Letras de Lisboa. III série. n° 15. 1973, p. 66-67. Em algum as dioceses
houve o cuidado dc retirar a palavra heresia do edital, não deixando, todavia, dc se inqui­
rir por ela através da seguinte formulação; “Sc sabem , ou ouviram d izer dc algum a pessoa
que tenha dito. feito ou com etido algum a coisa contra a nossa santa fé católica", cf.
"R egim ento do auditorio ecclcsiastíco do bispado de Viseu e dos officiaes da justiça cccle-
siaslica do dito bispado" in C onstituiçoens synodais do bispado de Viseu. C oim bra. N ico­
lau C arvalho. 1617.
11 Ver A gostino BotTomco. "C ontributo alio studio delL Inquisizionc...” , op. cit.,
p. 246-47. Em Portugal tal prática é prom ulgada cm m uitas C onstituições das dioceses.
Por exem plo nas de Lamego. decretadas em sínodo de 1639, ordena-se aos vísitadores;
"Sc achar algum as pessoas com preendidas ou culpadas no crim e dc heresia, ou apostasia,
feiticeira com pacto expresso, blasfem a heretical, no pecado nefando, ou de com eter o
sacerdote algum a mulher no acto da confissão, ou casados com outra m ulher sendo a p re ­
cedente viva. e outros casos que pertencem ao Santo O fício, para nele se processarem e
decidirem na form;1 do direito e breves apostólicos rem eterá as culpas aos inquisidores
apostólicos da ca- a c distrito dc C oim bra...’’, cf. C onstituições synodaes do B ispado de
lutmego. Lisboa. M iguel D eslandcs. 1683. p. 543-544. Nas do Porto de 1687 estipula-sc
m esm o, no Livro V. título I, constituição I. "Q ue se denunciem ao Tribunal do Santo
O fício os hereges ou suspeitos de heresia", cf. C onstituições synodaes do bispado do
Porto. Porto. Joseph Ferreira. 1690.
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do sécu lo X VI ", em Portugal, o Santo O fício passa a exercer e sse poder


em ex clu siv o , tendo ficado sem pre salvaguardado o princípio do vo to c o le ­
gial u. E isso sem pre se praticou, ainda que, paulatinam ente, se fo sse in s­
talando a tendência para o s bispos delegarem o seu voto num representante
do próprio Tribunal da Fé Ou seja, de facto e não de direito, criou-se
uma ex clu siv id a d e inquisitorial no tratamento da heresia, o que alguns tra­
tadistas de S e isc e n to s e S etecen to s chegaram a assum ir c o m o direito '6.

1 Não é actualm ente possível precisar com rigor quando é que tal sucedeu. É de
crer que isso não tenha ocorrido exactam ente ao mesm o tem po em todas as dioceses. Em
Espanha, de acordo com Bartolom é Benassar, desde 1562 que a Inquisição tem esta co m ­
petência em exclusivo.
14 O prim eiro R egim ento da Inquisição, de 1552, consagra o voto colegial da sen­
tença nos capítulos 47 e 49, ver Regim ento da Santa Inquisiçam . publicado por A ntónio
Baião. A Inquisição em Portugal e no fírazil. Subsídios para a sua história. I.isboa, Of.
Tip. - C alçada do C abra. 1906, p. 42, (existe um exem plar deste R egim ento em IAN/TT.
C onselho Gerai do Santo O fício, Livro n°330). Os processos julg ad o s confirtnam -no.
" O s prim eiros de que tem os notícia foram os bispos do Porto e do B rasil, logo no
ano de 1559. ver IAN/TT. Inquisição de Lisboa, Livro 330, docum entos 80 e 81. publica­
dos por Isaías da Rosa Pereira, D ocum entos para a história da Inquisição em Portugal
(século XVI). Lisboa. C áritas Portuguesa, 1987, p. 79-80. Houve casos em que o inquisi-
dor-geral, D. H enrique, na sua qualidade de legado papal, deu autoridade a inquisidores
para fazerem as vezes dos ordinários. Ou seja. invocou o seu poder papal delegado para
derrogar um poder episcopal. Assim sucedeu, em 8 de Junho dc 1564, quando autorizou
A m brósio C am peio, inquisidor de Lisboa, para “autorictate apostolica", com o ordinário
das dioceses da G uarda e Lam ego, assistir a processos de reús daqueles bispados, cf.
IAN/TT, Inquisição de Lisboa. Livro 330, docum ento 95, publicado por Isaías da Rosa
Pereira. D ocumentos. .. op. cit., p. 90. O bispo da G uarda, naquele tem po, era D. João de
Portugal, com quem o cardeal teve enorm es pendências, ver C arlos M argaça Veiga.
"R eform a tridentina e conflitualidadc: o litígio entre o bispo da G uarda. D. João de
Portugal, e o cardeal D. H enrique" in Amar. Sentir e viver a H istória - Estudos de h o m e­
nagem a Joaquim Veríssimo Serrâo, Lisboa, Edições C olibri, 1995, p. 305-319. O prelado
de Lam ego era D. M anuel de N oronha, que tam bém nunca tivera laços de grande proxi­
m idade com a Inquisição, sobre a sua biografia e acção ver M. G onçalves da C osta.
H istória do bispado e cidade de Lamego. O ficinas G ráficas de Barbosa e X avier Lda.,
1982, vol. 3, p. 30-41. Nos finais do século XVI a pressão do Tribunal foi enorm e para
inviabilizar que os bispos delegassem o seu poder, não aceitando nom eações de quem não
fosse previam ente aprovado pelo Inqusidor-gcral ou pelo C onselho G eral. Em carta para
a Inquisição de C oim bra o inquisidor-geral diz expressam ente: "daqui em diante não
adm itam nenhum ordinário de novo sem me avisarem ou ao C onselho", ver IAN/TT,
Inquisição de C oim bra. Caderno de provisões cartas e outros papeis desde o an n o de 1536
athe todo o ano de 1599. Livro 271, fl. 468.
'* Foram os casos de L. M olina, C. C arena e F. C astro Palao, ver A gostino
Borrom co. "C ontributo alio studio deliT nquisizione...” , op. cit.. p. 248.
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Perante o enquadram ento norm ativo-legal que se acaba de apresentar,


pretend e-se agora averiguar co m o decorreram , no plano prático, as rela­
ç õ e s entre o s d ois poderes.

I. Paradigmas individuais de actuação

U m a m eto d o lo g ia segura para avaliar as relações entre a Inquisição e


o ep isco p a d o co n siste na reconstituição d o d esem p en h o de um conjunto
de bisp os no que se reporta ao e x ercício da sua ju risd ição, no decu rso de
d istintas conjunturas. Trata-se de um percurso m oroso m as que autorizará
c o n c lu sõ e s co n sisten tes, ao m esm o tem po que permitirá avaliar c o m m ais
d etalhe o s con tornos que essa s relações foram assum indo.
Este cam inho tem um sério obstáculo. O desaparecim ento quase total
dos arquivos dos Tribunais (A uditórios) d iocesan os. E xcluindo alguns pro­
c e sso s oriundos da justiça episcopal, actualm ente conservados nos A r­
quivos da Inquisição, que não consentem , todavia, o esb o ço de um quadro
geral do que foram as características, volum e, ritm os e severidade do exer­
c íc io dos tribunais dos bispos, e a referência a um ou outro livro com
extractos d os culpados condenados não há outra docum entação que per­
mita ilum inar esta faceta do passado. E xistem , no entanto, outras fontes que
dão a conh ecer o clim a relacional que se estabeleceu entre o Santo O fíc io e
o s prelados das d io ceses. São de grande interesse c o le c ç õ es de correspon­
dência, as séries de consultas do C onselho G eral, a troca de inform ações
entre o s Tribunais Distritais e o C on selho Geral do Santo O fício.
P esquisas que já realizei perm itiram encontrar abundante inform ação
sobre alguns prelados e sp e c ífic o s. S e le cc io n e i d o is c a so s, absolutam ente
d istin tos, que m erecem recon stitu ições m on ográficas posteriores. O de
um b ispo que m anteve quase sem pre uma relação de estreitíssim a c o la b o ­
ração co m o Santo O fício e outro que foi protagonista de am plos c o n fli­
tos c o m o Tribunal da Fé.
O prim eiro foi D. A fo n so de C astelo B ranco, b isp o do A lgarve ( 1 5 8 1 ­
-8 5 ) e posteriorm ente de C oim bra (1 5 8 5 -1 6 1 5 ) ", A sua actuação perm ite

” Infelizm ente, os raros easos até agora identificados são todos referentes aos sécu­
los XVII e XVI11. Ver Arquivo da Universidade de C oim bra. Livro de extratos de culpados
do arcediagado do Vouga, Ill/D , 1,4,5,45, c A rquivo H istórico do Patriarcado de Lisboa,
Livro de assentos da Relação Patriarcal de Lisboa (1719), Livro 475.
11 N ão existe actualm ente nenhum estudo m onográfico com pleto sobre a sua bio­
grafia e actuação. Alguns dados, ainda que com um tom m uito panegírico e centrados na
O S B I S P O S E A I N Q U I S I Ç Ã O P O R T U G U E S A ( 1 5 1 6 1611) 49

vislum brar m uitos tó p ico s que caracterizaram a coop eração entre estes
d ois im portantes p ó lo s de poder do cam po religioso. É bom ter presente,
para e n te n d e r m elh o r esta franca c o o p e r a ç ã o , c o m o o b isp o de C o im ­
bra tinha s id o c a p e lã o m or d o cardeal H en rique e , p ortanto, h o m em de
sua co n fia n ça , por certo, bom conh ecedor, por esta via. dos cam in h os e
estratégias da acçã o inquisitorial Ele. sobretudo enquanto b isp o de
C oim bra, assistia p esso a lm en te ao desp acho d os p rocessos inquisitoriais
(quer de réus da d io c e se quer de outras) *, delegava a sua representação
em inq u isid ores quando não podia estar presente íl, pregou em vários

sua acção de benem erência caritaliva, podem colher-se em João de A lm eida Soares. Vida
e m orte de Dom A ffonço C axtelbranco Hispo de Coimbra Conde de Arganil, Senhor dc
Coja e A lcayde m ór de Arouca, Vizo Rey deste Reyno dito Portugal, A cadem ia das
C iências de L isboa, M anuscrito 194 Vermelho c Manuel A ugusto R odrigues. "D. A fonso
de C astelo B ranco, estudante da U niversidade de Coim bra, bispo do A lgarve c de C oim bra
- a sua concio num auto de lê". Boletim do Arquivo da U niversidade de C oim bra, vol. XV-
XVI. (1995-96). p. 1-71, este com referências a outra bibliografia sobre o assunto.
Já tinha este cargo, pelo m enos em 8 dc N ovem bro de 1572, quando tom ou posse
de um a concsia na Sé de Évora. cf. Biblioteca Pública de Évora. Arquivo do C abido da Sé
de Evora, Livro das posses das d ig n id a d es/C E C -\4 -X \\-U ), fl. 36.
Ver IAN/TT, C onselho G eral do Santo O fício. C orrespondência recebida da
Inquisição de Coim bra, l.ivro 95. 11 não num erado, carta 7 1. Trata-se de uma carta datada
de 6 de D ezem bro de 16 1 1. assinada por Francisco de M eneses e João A lvares Brandão.
Estes dois inquisidores inform am o C onselho G eral que foram ler com o bispo pedindo-
-Ihc para nom ear com issário para assistir ao despacho dc réus do bispado. O prelado
nom eou o seu provisor e disse que cm casos graves o avisassem que ele iria pessoalm ente.
Dois dias depois o bispo escreveu ao inquisidor João Alvares Brandão pedindo-lhe que o
avisasse quando com eçaria o despacho, pelo que os inquisidores acharam que a intenção
do bispo era assistir ao despacho dos processos dos seus súbditos c não súbditos “com o o
fez no tem po do archiduque” .
11 Ver IAN/TT. C onselho Geral do Santo Ofício. Correspondência recebida da
Inquisição de Coimbra. Livro 95, fl. não numerado, carta 63. Trata-se de carta datada dc 18
de Setem bro de 1606, na qual se verifica que a cooperação do hispo com a Inquisição se fez,
mesmo quando houve casos delicados a perturbá-la. A carta é assinada pelo inquisidor João
Alvares Brandão: “Fomos cm pessoa ao bispo desle bispado Dom Afonso C astcllo Branco
c lhe significam os com o tínham os alguns processos de pessoas seus súbditos para despachar
c cada dia podião soceder outros e com o devido comedimento lhe pedim os fosse servido
nomear hua pessoa que tevese as partes necessárias para em seu nome assistir a estes d es­
pachos. porquanto o doutor Antom o Velho seu provisor que Unha nom eado, não podia ser
adm itido a isso por alguas justas causa que auia. Kcspondconos que sempre fora zeloso das
cousas do Santo Officio e as aiudava em tudo o que podera e assi faria no que de novo se
oferecesse, porem que folgaria de saber se o seu provisor era cristão novo, porque a sello se
não serviria dclle. D issem oslhe que quando chcgavam os a lhe pedir nom eação dc outra
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a u tos-d a-fé e a e le s assistia no e sp a ço que a Inquisição lhe reservava sem


provocar co n flito s em relação ao lugar que ocupava publicam ente na c er i­
m ónia dava pareceres para o provim ento de lugares de o fic ia is e m in is­
tros do Santo O fício rem etia para a Inquisição o s ca so s de heresia de

pessoas devia Sua Senhoria ler por certo que as causas dcvião ser justas (posto que não sabía­
mos se clle o era) nem lhe podíam os dizer mais. Dissenos que por ora para os processos das
pessoas de seu bispado que por qualquer via estivessem ja denunciados no Santo O fficio ou
se tivessem vindo presentar nelle nos nomiava e com itia suas vezes, de que deu com issão
por escrito, e que não nomeava outra pessoas de fora porque queria que isto ficasse em
segredo até saber as causa para o seu provisor não aver de ser cham ado, pedindonos com
muita instancia lhas declarássem os: e por lhe dizerm os que nao tínham os ordem para mais
nos deu a entender que nao daria outra com issão athe lhas declararem . Façanos V.S. merce
de nos m andar avisar se neste particular se aode fazer mais alguns ofícios e se o bispo nos
falar nestas cousas o que lhe poderemos responder, e foramos do parecer que se fosse dissi­
mulando com elle c que quando depois fosse necessário prorogação da com issão que agora
nos deu se lhe pedisse. E temos por provável que a não negará e com este meio alcançará o
Santo Officio o que pretende e não dará ocasião a se averiguarem as causa do provisor, a
quem o bispo esta tão atado (segundo dizem ) que não deixará de se servir dele” . Nos pro­
cessos actualm ente existentes nos fundos da Inquisição, no IAN/TT. não resulta qualquer
processo contra António Velho, provisor e vigário geral do bispo, cargo que ainda exercia
em Junho de 1612, com o se pode ver através de carta de Felipe II para o cabido da Sé de
Coim bra. Arquivo da Universidade de Coim bra. Cartas para o cabido e outros, caixa 3, V
Piso, doc. não numerado.
Sujeitando-se. inclusive, a ocupar lugar de m enor destaque do que os inquisido­
res e contribuindo para que, nessas condições, o cabido da Sé se fizesse representar em
corpo, ver IAN/TT, C onselho Geral do Santo O fício, C orrespondência recebida de arce­
bispos e bispos. Livro 91, fl. não num erado, carta 43. Trata-se de carta autógrafa do bispo
para o C onselho Geral na qual o prelado diz: “Tam bem lem bro a VVM M que ha tres annos
que levo quasi por força o nosso cabido ao Auto da Fee, por que lhe não dão o lugar que
devem ter as Sees cathedraes e pera os mais obrigar a irem me assento com ellcs no
m esm o banco que nenhum a differença tem mais dos que estão ordinários no cadafalso que
estar eu nelle. E porque soube que o arcebispo d 'E v o ra se assentava no A uto em cadeira e
o cabido d 'E v o ra em bancos sem elhantes aos dos inquisidores tendo obrigação de estar em
os autos da fee que se fizerem em Evora, a qual não tem este nosso cabido, me pareceo
que convinha avisar a VVMM deste particular para que m andem tom ar resolução geral e
igual pera os prelados e cabidos, porque avendo desigualdade nem eu. nem o cabido pode­
rem os ir ao auto; e falo tão claro porque com eu ir a tres e do m odo que VVM M terão
sabido não poderão dizer que faço esta lem brança com vaydadc pois atee aqui lenho ser­
vido este Santo O ficio, assim no tem poral com o no espiritual, com o VVMM quererão e eu
sem pre desejarei”.
!* Ver IAN/TT, C onselho Geral do Santo O fício, C orrespondência recebida de
arcebispos e bispos. Livro 91,11. não num erado, carta 101. Trata-se de carta de A fonso de
C astelo Branco, para o inquisidor-geral. em 29 de N ovem bro de 1592. na qual o louva por
ter escolhido o bispo de Eivas para deputado do C onselho G eral “por ser pessoas muito

CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA RELIGIOSA


O S B I S P O S E A I N Q U I S I Ç Ã O P O R T U G U E S A <1536 1613) 51

que tinha co n h ecim en to através d o o fíc io regular das visitas pastorais que
em preendia, inform ava a Inquisição dos locais da d io ce se onde havia
grandes com un idad es de cristãos-novos que necessitavam de ser objecto
da acção inquisitorial 24, elaborou um as C on stitu ições diocesanas onde
prescreveu norm as detalhadas do exercício das visitas pastorais totalm ente
respeitadoras das prerrogativas do poder inquisitorial a . em c a so s d u v id o ­
so s não d esen cad eava p r o cesso s no seu A uditório sem previam ente c o n ­
sultar o s inq u isid ores * . deu pareceres sobre o m odo de converter os

experiente e com qualidades" e na qual reitera parecer que diz já ter feito de que a
Inquisição de C oim bra precisava de mais um inquisidor para ajudar a A ntónio Dias c
outros oficiais, sugerindo nom es de m uitas pessoas que a seus olhos poderiam servir o
Santo O fício. Em carta anterior, de 2 de Janeiro de 1589. dirigida ao inquisidor-geral. pede
que ele não nom eia para deputados da Inquisição de C oim bra duas pessoas que pela
Inquisição de C oim bra foram pedidas, cm virtude de a seu parecer elas não terem as q u a ­
lidades requeridas para "Ião santa lunção", ver IAN/TT. C onselho G eral do S anto O fício,
C orrespondência recebida de arcebispos e bispos. Livro 91. fl. não num erado, carta 32.
■'* Ver IAN/TT. C onselho G eral do Santo O fício. C orrespondência recebida de
arcebispos e bispos. L ivro 91, fl. não num erado, carta 99. Trata-se de c a n a datada de 2
Janeiro de 1593. na qual a dado passo o bispo informa: "O s dias passados escrevi a VA
quanto im porta a honra de D cos. descargo da consciência, proveito do santo ofticio m an­
dar visitar a beira e antre douro e nnnho: porque em todas estas partes polas visitações dos
ordinureos se ve aver m uitos judeus e nas partes da serra da estrella. deste bispado, m uitos
m ais ao que parece pellas cousas que delles se di/. nas visitações ord in an as. E o tem po tem
m ostrado quao nccessaria c a visitação do santo oficio neste particular de que eu posso ser
boa tistim unha pois andei tres annos cm requerim ento que se m andasse visitar o reino do
A lgarve, por entender polas visitaçois que fiz estar chco de judeus c não me enganei. E a
visitação que se fez nas partes que digo foi causa de se descobrir o judaísm o...".
** Ver C onstituicoens synodaes do B ispado de Coim bra .... op. cit.. C oim bra.
A ntom o de Mari/.. 1591, sobretudo Título XXVIII. Veja-se ainda um a confissão do p ró ­
prio bispo, datada de 12 de A gosto de 1592. "Q uanto ao que toca as dcnunciaçõcs que
neste particular se fazem aos prelados e seus visitadores tenho provido nas C onstituições
novas que fiz e estão im pressas, conform e a carta de VA e a lem brança tam im portante que
nella. com tanta ra/ão . m anda lazer aos bispos. E provi neste negocio negocio tanto antes
por ver as prisoens que se fizerão cm alguns bispados, sem forma, nem ordem de justiça,
e sem a consideração devida aa qualidade de negocio tam im portante; c com cila se viram
jaa os inquisidores deste districto em trabalho por lhe ser forçado correrem com os taes
presos sendo m andados a este cárcere injustam ente.", cf. IAN/TT. C onselho G eral do
Santo O fício. Correspondem ia recebida de arcebispos e bispos. Livro 91. fl não num e­
rado. carta 50.
* Ver IAN/TT, C onselho G eral do Santo O fício, C orrespondência recebida de
arcebispos e bispos. Livro 91. fl. não num erado, carta 35. Trata-se de uma carta, de 29 de
A bril de 1589, na qual o bispo relata que prendeu no aljube um a M aria Dias. a que cha-
mavum "a beata de C elas". C onta que esta m ulher era visionária e pretendia saber coisas
52 JO S É P E D R O PAIVA

cristã o s-n o v o s ” , d isp o n ib ilizo u o seu aljube para que aí fica ssem presos
cond enados p elo Santo O fício “ . U m a carta que escreveu para o C o n selh o
Geral da Inq uisição, em 28 de Janeiro de 1588. é bem o e sp elh o d o seu
p o sicio n a m en to e até. n ote-se, de algum a su b serviên cia em relação à
Inquisição. N ela se lê: “Eu vou todos os dias ao d esp ach o ordinário com o
Sua A lteza (o inquisidor-geral, cardeal A lberto) m e m andou tirando as
segu nd as e sextas feiras em que a ssisto na relação aos d esp ach os d os fe i­
tos deste bispado. E tenho feito a pregação para o auto da fé que c o n fio
em N o sso Senhor seja digna daquele dia e eu m ais contente estou dela que
da passada e nisto e em tudo o m ais que for serv iço do Santo O fic io farei
sem pre com m uito g o sto , m andando-m o Sua A lteza e V ossas M ercês” ” ,
E ste z e lo e lealdade eram recon h ecid os pelos inquisid ores de C oim bra

que só Deus podia conhecer e que falara m esmo no Prior do C rato. A dianta que não a pode
ter em segredo no aljube, por este ser pequeno e acrescenta a finalizar que “não avendo
esta m ulher de ser julgada polo Santo O fficio possa eu com conselho de V. Ms proceder
nesta cousa com o D eus m anda...” .
■ Ver IAN/TT. C onselho Geral do Santo O fício, C orrespondência recebida de
arcebispos e bispos. Livro 91,11. não num erado, cartas 50 e 51. Na prim eira, datada de 12
de A gosto de 1592, escreve que "Q uanto ao cathecism o para os reconciliados poderei eu
ajudar nelle hum pedaço avendose de fazer, por ter studada esta m atéria, assi pelos rab i­
nos antigos, com o pelos sanctos e Sagrada E scritura principalm ente do Testam ento
Velho...", explicando que o fez por ter pregado nos quatro últim os autos que se fizeram em
C oim bra e acrescentando que. na maior parte dos casos os reconciliados saiam dos cárcere
m as “finos e figadacs judeus" do que antes. Por isso acha que o m elhor C atecism o que se
podia dar a “esta gente desavergonhada dos seus erros" era o rei não lhes d ar honras, nem
m ercês, nem favores, sobretudo privando-os de poderem possuir lugares na "republica".
Na carta 51, doze dias depois, acrescenta sobre a m esm a m atéria que se lem brou que ta l­
vez o m elhor fosse tirar aos judeus os filhos de seu poder para serem ensinados c instruí­
dos na doutrina cristã "e assim tirarse toda a ocasião aos pais pera depois os não fazerem
judeus".
Ver IAN/TT. Inquisição de Coim bra. Caderno de provisões carias e outros
papeis desde o anno de 1536 aihe todo o ano de 1599. Livro 271. fl. 294. Trata-se de uma
inform ação do C onselho G eral, datada de 9 de N ovem bro de 1589. pela qual inform am
que foi sentenciado na Inquisição de Lisboa um João de M endonça, abade de M arm elo
que foi m andado recolher por certo tem po no m osteiro de Rendufe. De lá inform aram ,
posteriorm ente, que este abade fazia m uitas desordens, rogando que fosse de lá tirado.
A ssim , pedem que os inquisidores de Coim bra m andem lá um oficial buscar o abade e
peçam ao bispo conde, da parte do inquisidor-geral e do C onselho que consinta que ele
fique no seu aljube da cidade de Coim bra, sustentanto-se para isso com o rendim ento da
sua igreja.
” C f. IAN/TT, C onselho Geral do Santo O fício, C orrespondência recebida de
arcebispos e bispos. Livro 91, fl. não num erado, carta 31.
OS BISPOS E A INQUISIÇÃO PORTUGUESA (1*36-1613) 5.3

que, ao escreverem para o m esm o C o n selh o , em 23 de Julho de 1592, afir­


mam: "as p e sso a s que nos parece devem a ssislir a este d esp a ch o são o
b ispo de C oim bra, p esso a a que tanto deve esta Inquisição, c que com sua
autoridade e v oto honra este Tribunal, m orm ente tendo dado eni todos os
desp ach o s que até agora a ssistio tanta satisfação ,0.
N o outro p ó lo tem o s a actuação do arcebispo de Évora D. T eotón io
de Bragança (1 5 7 8 -1 6 0 2 ) E ste, ao invés do prelado con im b ricen se e,
creio poder afirm á-lo a partir d os in d ícios existentes, em sen tid o contrário
ao da m aioria d os seu s con gén eres, teve várias pendências com o Santo
O fício no intuito de defender o que considerava ser a sua legítim a ju risd i­
ção e a representação pública do seu estatuto Raramente assistia aos
d esp ach os na Inquisição de Évora 15 e recu sou -se m esm o a fa z ê-lo na pre­
sença do inquisidor Rui Pires da Veiga viu alguns dos representantes que

w Cf. 1AN/TT. C onselho Geral do Santo O fício, C orrespondência recebida da


Inquisição de C oim bra. Livro 95, fl. não num erado, carta 46.
11 Existem já bastantes estudos sobre a vida e acção deste arcebispo, se bem que
nenhum aflore a questão das suas relações com a Inquisição. Ver N icolau A gostinho,
Relaçam sum m aria da vida do senhor Dom Theolonio de Bragança. Évora, Francisco
Sim oes. 1614; J. Pinharanda G om es. O arcebispo de Évora D Teotónio de Bragança
(escritos pastorais). Braga. Ed. autor. 1984; Durval Pires de Lim a. "D ois arcebispos da
C asa de Bragança: D. T eotónio e D. M artinho de Portugal", A nais da A cadem ia
Portuguesa de H istória, vol. 31, 2* série, (1986). p. 55-132; o m elhor é Fedcrico Palom o.
"La autoridad dc los prelados posiridentinos y la sociedad m oderna. El gobierno de don
Teotonio de B ragan/a en c! arzobispado de Évora (1578-1602)", H ispania Sacra. Vol.
XLVII. n° 95 (1995). p. 587-624.
12 Não foi apenas face ao Santo O fício que o prelado procurou defender a sua ju ris ­
dição. Isso aconteceu, dc igual m odo, em relação ao cabido da catedral e às O rdens
M ilitares. Sobre o assunto ver Federico Palomo. “La autoridad de los prelados postriden-
tinos...", op. cit.. p. 607-621.
” Em carta do próprio, datada de 6 de Junho de 1587, dirigc-sc ao inquisidor-geral
e afirma: "As m inhas indisposiçois me obrigão a não poder asislir a todas as cousas de
meu officio com o eu desejo e particularm ente nas do santo offtcio a que sou m uito in cli­
nado polo zelo que tenho do serviço que nellas se fas a Deus e polo que im porta fazerse
com autoridade e gravidade e exacção que requerem negocios em que vai a alm a. a honra,
a vida, a fazenda de m uitos e o credito ou descredito das cousas de nossa santa fee com
estes herejes e infiéis", cf. IAN/TT, C onselho Geral do Santo O fício, C orrespondência
recebida de arcebispos e bispos. Livro 91. fl. não num erado, carta 15.
u Sobre todas estas polém icas entre o arcebispo e o inquisidor e cónego Rui Pires
da Veiga, a m erecerem detalhada reconstituição, ver IAN/TT, C onselho Geral do Santo
Ofício, Cartas que os Senhores Inquisidores G erais escreverão ao conselho e respostas de
consultas que o conselho fe z sobre varias m atérias. Livro 130. fl. 18 e seguintes; C onselho
G eral do Santo O fício, C orrespondência recebida de arcebispos e bispos. Livro 9 t , fl. não
54 J O S É P E D R O PAIVA

nom eou para o m esm o despacho serem vetados pelos inquisidores 1S, teve
d isputas por causa do lugar e do tipo de cadeira que queria para si nos

num erado, carta 15 c C onselho Geral do Santo O fício. C orrespondência recebida das
inquisições de Lisboa e Évora, Livro 97. fl. não num erado, cartas 39, 46 c 47. Para aqui,
im porta apenas referenciar o caso, para o que se invoca um a consulta do C onselho G eral,
datada de 13 de A gosto de 1593, através da qual se tonta conhecim ento de que o arcebispo
de Évora escreveu para o inquisidor-geral a dizer que não assistiria a despachos de p ro ­
cessos na Inquisição de Évora, na presença do Inquisidor Rui Pires da Veiga. O s dep u ta­
dos do C onselho afirm am , na sequência disso, que "visto com o o inquisidor Rui Pires da
Veiga hc hum dos Inquisidores de que se tem m aior confiança por suas boas letras c v ir­
tude e fazer os negocios do Santo O fficio com m uita inteireza e haver creado os proces­
sos que se hao de despachar que são m uitos e graves, de que he necessário de que dê
inform ação, deve V. A. ser servido que não saia da dita Inquisição c assista ao despacho e
que se o arcebispo tiver pejo despachar com elle devja V. A. dar ordem que nom easse hum
letrado canonista em que concorram as partes nccessarias e lhe com etta suas vezes para
assistir no despacho com o ordinário c isto seria de mais im portância para o bom despacho
dos negocios que acharse ali o arcebispo com D. João seu sobrinho |tra ta --se de D. Jo ã o
de B rag a n ç a , q u e e ra in q u isid o r de É v o ra e so b rin h o d o a rc e b isp o D. Teotónio de
B ragança|. E quanto as causas que o arcebispo alega de ter pejo de estar com Rui Pires não
fazem a proposito do que ele requere porque he m atéria de Justiça que se trata com o
Inquisidor e o cabido em que se não pode dar determ inação sem ouvirem as partes e o
inquisidor pelas certidões que manda o arcebispo parece que procede com ju stificação c
que não deve ser por isso m olestado". A seguir, em fl. não num erado, aparece um a da carta
do arcebispo "Q ueixasse muito o arcebispo d 'E vora do inquisidor Ruy Pires da Veiga e ha
dias que isto dura e agora presentem ente o faz sobre a m atéria da certidão ju n ta a este
m em orial. Diz que o ditto inquisidor foi seu vigário geral e lhe pedio então a conesia que
agora tem, que o arcebispo lhe deu e que processandosse diante do ditto v igário a causa
porque foi tirado ao conego G aspar Dias a sua conesia. per onde se ouve a conesia por
vaga e pretendendo-a elie vigário, o arcebispo se escusou de lha dar estranhandolhe ser
elle nisto parte avendo sido ju iz, o que Ruy Pires não recebeu bem , e se despediu logo do
A rcebispo e lhe não entrou mais cm casa senão em Lisboa, per m andado de S. A. e depois
quando o arcebispo veio a Evora c lhe intentou suspeições indecentes apresenta o arce­
bispo estas cousas a S. A. e lhe lem bra que avendo de aver despacho do Santo O fficio em
que elle se hade achar e tam bem o ditto Ruy Pires da Veiga deve S. A. aver por bem que
não estem am bos nelle”.
” Ver IAN/TT, C onselho Geral do Santo O fício, C orrespondência recebida de
arcebispos e bispos. Livro 91, fl. não num erado, carta 15. Reporto-m e a carta do a rc e ­
bispo, já referida, datada de 6 de Junho de 1587, na qual diz que há uns dias que escreveu
ao inquisidor-geral com unicando que nom eara para o substituir no despacho da Inquisição
um fr. Sim ão da Luz. dom inicano, doutor em teologia e seu confessor, ju stificando “e o
tom ei (por confessor) depois de feitos m uitos exam es se tinha algum a raça de christáo
novo, ou algum im pedim ento para me não confessar com elle e poderlhe com unicar os
negocios de que tivesse escrupollo em m atérias do Santo O fficio” . C om unicou esta d eci­
são ao inquisidor Lopo Soares que lhe m andou d izer que este padre não podia assistir ao
OS B I S P O S E A IN Q U I S I Ç Ã O P O R T U G U E S A ( 1 5 3 6 - 1 6 1 3 ) 55

autos-da-fé a que assistia declarou que anularia p ro cesso s votad os a


final no Santo O fíc io sem que e le ou um seu representante a e le s tivessem

despacho por ter "im pedim ento". O arcebispo quis então saber qual o im pedim ento e o
inquisidor teria respondido que não lho podia dizer, ao que ele retorquiu "que ainda que
era [ele D. T cotónio de B ragança] pobre bispo, que era ordinário e que os inquisidores
eram nossos coadjutores e o que constava naquella m esa aos inquisidores e deputados me
devia a mim constar por todas as vias; nem isto bastou, dizem dom e que tinha escrupullo
de mo dizer tem endo que tivesse eu a meu confessor cm m enos conta. Veja V. A se he rezão
que por cousa em que ao D outor Lopo Soares lhe parece que não he de qualidade para eu
ter ao padre frey Sim ão da Luz em m enos conta, fique elle desonrado c eu m uito m ais em
me haver confessado com elle e se trate de minha pessoa e dignidade com tão pouca c o n ­
fiança quando eu sem a dignidade e sem as caans que agora tenho e expericncia, visitei o
Santo O fficio desta cidade, onde alem dos inquisidores ordinários se devassou de M iguel
de C oadros, bispo da G uarda e de Dom Miguel de Castro, arcebispo de Lisboa. E esta
devassa devia V.A. de ver em pessoa so porque tenho visto m uito pouco effeito delia
avendo alguas cousas de im portância que prover. Beijarei as m ãos a V.A. m andar que não
avendo inconveniente que se aceite a pessoa que eu com o ordinário nom eo e avendo se me
declare, para nom ear outro. E pois eu corro nesta m atéria conform e o direito razão he que
conform e a elle se me responda; e não daa a See A postolica estes cargos aos inquisidores
em m enosprezo dos bispos". A crescenta ainda que. no ano anterior, os inquisidores de
Évora lhe pediram por carta com issão para sentenciar um processo. Ele nom eou um padre
que era o provincial dos dom inicanos e soube que não o foram cham ar. Há cartas da
Inqusição de Évora para o C onselho sobre isto em IAN/TT, Livro 97 do C onselho G eral,
cartas 9-11. Er. Sim ão da Luz. tinha sido ouvido na Inquisição e sentenciado a retratar-se
de posições defendidas entre os seus alunos, no C olégio da Rainha, em Lisboa. De facto,
o próprio confessou que advogara que os santos que estavam em glória não podiam rogar
pelas alm as do Purgatório. A setença foi em itida em 2 de D ezem bro de 1577, ver IAN/TT,
Inquisição de Lisboa, processo n° 12077.
“ Ver IAN/TT. C onselho G eral do Santo O fício, Consultas que o C onselho fez aos
Senhores Inquisidores G erais e suas respostas. Livro 129. fl. 146. Trata-se de consulta
datada 25 de Fevereiro de 1595. pela qual o C onselho notifica o inquisidor-geral que foi
avisado pelos inquisidores de Évora, com o, no últim o auto-da-fé, D. T eotónio de Bragança
assistiu ao auto sentado “em cadeira de esttado" e não em banco com o os inquisidores e
com o era costum e dos prelados, o que m ereceu o seguinte com entário dos deputados: "E
porque isto he cousa nova e de muito periuizo pera a authoridade do santo oficio e dos
inquisidores que naquelle dia representão ali a pessoa de V. A. e sera occasião para os mais
prelados deste Rejno pretenderem tãobem ter cadeira destado nos autos públicos da fec e
se perturbar a boa ordem que sem pre nisto ouve” . Aconselham o inquisidor-geral a que
escreva ao arcebispo, inform ando-o que nos autos se deve sentar num banco, ju n to aos
m em bros do seu cabido, do lado da Epístola "pois os Inquisidores estão tãobem assen ta­
dos em banco e são legados de S. Santidade e superiores neste particular; e que ninguém
naquelle dia lhes deve preceder senão só o inquisidor geral". A finalizar acrescentam : "E
porque o arcebispo he duro de condiçam e pouco affecto as cousas so Santo O ficio" aco n ­
selham ainda o inquisidor geral a dar conta disto ao rei. para que este tam bém lhe escreva.
56 JO S É P E D R O PAIVA

a ssistid o , am eaçou m esm o que recorreria ao Papa eni d efesa dos seus
direitos ” , o que. no entanto, parece nunca ter feito Este clim a de tensão
e até declarado con flito está bem patente em consulta do C on selh o Geral
para o Inquisidor, datada de 1 de Julho de 1594, quando os deputados, com
base nas inform ações que recebiam dos inquisidores de Évora e queixas do
arcebispo advogam : “P elo que não há que deferir as queixas que o arce­
bispo faz a Vossa A lteza nesta carta; som ente lem bram os a Vossa A lteza que
é razão que o arcebispo tenha m ais respeito ao Santo O ficio e m inistros d ele
e que não possa cuidar nem dizer a Vossa A lteza que nele há desordens e
que há-de dar conta delas a Sua Santidade e que se lhe sign ifiq u e com
quanto segredo, autoridade e honra deve tratar as cou sas da Inquisição e

O inquisidor-geral concordou com as sugestões, mas achou que se devia apenas actuar nas
proxim idades do aulo seguinte. Pouco tem po depois, o inquisidor-geral escrevia d irecta­
mente ao arcebispo dizendo-lhe que no passado ele se sentava em cadeira, por vezes do
lado do E vangelho, o que é m uito escandaloso na cidade e dim inuía a autoridade do Santo
O fício que naquele lugar é superior à dos prelados. E que em C astela os bispos se sentam
em banco com o seu cabido do lado da Epístola. Pede-lhe que futuram ente ele proceda
com o sem pre fizeram os seus antecessores e todos os prelados do reino e se sente cm
banco, com o cabido, do lado da Epístola, ver IAN/TT, Inquisição de C oim bra, Caderno
de provisões carias e outros papeis desde o anno de 1536 a the todo o ano de 15W . Livro
271, fl. 381.
” Ver IAN/TT. C onselho Geral do Santo O fício. C orrespondência recebida das
inquisições de Lisboa e Évora, Livro 97. fl. não num erado, carta 97. Trata-se de carta dos
inquisidores de Évora para o C onselho, de 3 de Junho de 1594, na qual dizem : “O je nos
disse M artim A fonso de M elo. deputado deste Santo O fficio, que ouvira d izer ao inquisi­
dor Dom João de Bragança que o arcebispo no dia do A uto avia de m andar protestar que
as sentenças dadas sem elle ou seu com issário eram nullas e que depois de saireni as p es­
soas contra quem se derão lhe avia de dizer que requeressem sua ju stiça acerca de suas
fazendas, porque tudo fora nulo e as não perderão. Bem cuidam os que nenhum a desias
cousas Iara. Mas porque he possivel que as faça e se pode isso arrecear pello m uito que
tem feito neste particular" acharam por bem avisar o C onselho c prosseguem : “Também
he costum e na sem ana do auto m andarem recado ao arcebispo per hum dos notários do
secreto pedindolhe se queira achar nellc. D uvidam os m andarlho agora porque entendem os
que nao deve deferir a isso e que lhe dam os occasião a que pelo m esm o notário nos mande
fazer alguns requerim entos. Pedim os a VA nos faça m erce m andam os avisar d o que tam ­
bém nisto devem os fazer” .
A pesar das am eaças não deve tê-las executado. Na sêrie de cartas dos prelados
dirigidas ao papa existente no A rchivio Segreto Vaticano não se encontram cartas suas
sobre a m atéria e. muito significativam ente, em correspondência abundante que trocou
com o legado Fabio Biondo. há im ensas referências aos recursos que fez para a Santa Sé
por causa das suas pendências com as O rdens M ilitares, mas nada relativo a d esentendi­
m entos com a Inquisição, ver A rchivio Segreto Vaticano (a partir de agora sem pre ASV),
Fondo C onfalonieri, n° 33 . fl. 400 e seguintes.
OS B I S P O S E A I N Q U I S I Ç Ã O P O R T U G U E S A ( 1 5 3 6 1613) 57

m inistros delia. E que quando não quiser assistir em pessoa aos despachos
dos p rocessos dos seus súbditos nom eie um desem bargador canonista da
sua R elação que esteja sem pre na cidade para assistir por ele. de que o
Santo O fficio tirará prim eiro inform ação de sua lim peza e com isto c e ssa ­
rão todas estas q u eixas” w.
E de notar que e ste s litíg io s não sig n ifica m , da parte do prelado, total
o p o siç ã o à a cçã o d o Santo O fíc io . P elo contrário, quando, no ano de
1602. se faziam e sfo r ç o s para evitar o anunciado perdão geral dos cris-
tãos-n o v o s, o C o n selh o Geral do Santo O fício escreveu a D. T eotón io para
que e le fo sse a V alhadolide, conjuntam ente com os arceb isp os de L isboa
e Braga, co m o intuito de tentar con ven cer o rei dos prejuízos que essa
d ecisã o traria para a preservação da integridade religiosa do reino 40. A
e sco lh a pode ter sid o ditada p elo lugar institucional ocupado p elo arce­
bispo, m as apesar d o s c o n flito s passados não deixou de se fazer. A m orte
de D. T eotón io. em 2 9 de Julho d esse ano de 1602. tolheu este d esejo do
C on selh o .
Podiam dar-se outros ex em p lo s de bisp os que mantiveram boas rela­
çõ e s co m a In qu isição ou que com ela tiveram con flitos. N ão houve uma
p osição única e corporativa do ep iscop ad o nesta matéria. C om o em m uitos
outros assuntos 4‘. verificaram -se m últiplas actuações, que dependeram das
p esso a s, das suas relações clien telares e fam iliares, das suas carreiras, das
conjunturas. M as a tese que aqui procurarei sustentar é a de que em
Portugal, d esde o período do estab elecim en to da Inquisição e durante toda
a sua fase de organização o paradigm a dom inante foi o do b ispo de
Coim bra 41. Ou seja, apesar de alguns desentendim entos pontuais, talvez

" Cf. 1AN/TT, C onselho Geral do Santo O ficio. Cartas que os Senhores Inquisi­
dores G erais escreverão ao conselho e respostas de consultas que o conselho fe z sobre
varias m atérias. L ivro 130, fl. 23v.
4,1 Ver 1AN/TT. C onselho Geral do Santo O ficio, M aço 10. docum ento 16 (é uma
cópia e não o original).
41 Sobre a noção da Igreja enquanto corpo heterogéneo atravessado por m últiplos
conflitos e diversas estratégias de actuação ver José Pedro Paiva, "A Igreja e o poder" in
C arlos M oreira A zevedo (dir.), H istória Religiosa de Portugal. Lisboa. C írculo de L ei­
tores. 2000. vol. II. p. 135-138.
4-' O utros exem plos de bispos cooperantes já identificados são os de Rodrigo
Pinheiro (bispo do Porto entre 1552-72). G aspar do Casal (bispo de Leiria entre 1557-79
e de C oim bra entre 1579-84). Pedro Leitão (bispo da Baía entre 1558-75). Jorge de Ataíde
(bispo de Viseu entre 1568-78), Pedro de C astilho (bispo de Angra entre 1578-1583 e de
Leiria entre 1583-604). A ntónio Teles de M eneses (bispo de M iranda entre 1579-98),
M arcos de Lisboa (bispo do Porto entre 1581-91). João A fonso de M eneses (arcebispo de
58 J O S É P E D R O PAIVA

m ais v ivos nos anos que se seguiram a Trento, posteriores ao aum ento dos
poderes inquisitoriais que o cardeal D. Henrique foi granjeando para o
Tribunal, as relações entre a Inquisição e os prelados d io cesa n o s foram , em
geral, de grande cooperação e até de com plem entaridade. É isso que se
tentará dem onstrar no capítulo seguinte.

2. Formas de cooperação

O apoio do ep iscop ad o português à Inquisição m an ifestou -se desde os


prim órdios da instalação definitiva desta, em 1536. O próprio projecto de
criação d o Tribunal não suscitou reacções adversas con h ecid as da parte
d os b isp o s *\ A sintonia entre o s d ois poderes fica lo g o evid en te nos ritos
de esta b elecim en to do Tribunal. D e facto, apenas d o is dias após a a c eita ­
ção da bula de fundação definitiva da Inquisição, em cerim ón ia realizada
em Évora, o inquisidor-m or e b ispo de C euta, D. D io g o da S ilva, num dos
prim eiros actos que se lhe co n h ece, d irige-se ao arcebispo da cid ad e, o
cardeal D . A fo n so (irm ão do rei), solicitan d o lod o o ap oio para a sua e x e ­
cu çã o , ten d o -se o arcebispo com prom etido a dar toda ajuda pedida. D este

Braga entre 1581-87), Nuno de N oronha (bispo de Viseu entre 1586-94 e da G uarda de
1594-1608), A gostinho de Castro (arcebispo de Braga entre 1587-1609), Francisco C ano
(bispo do A lgarve entre 1589-93), Fem ão M artins M ascarenhas (bispo do A lgarve entre
1594-1616) c C onstantino Barradas (bispo da Baía entre 1602-18).
" A lexandre H erculano referiu dois bispos que foram pouco atreitos à perseguição
de cristãos-novos. mas não dem onstra que tenham sido contra a criação do Tribunal, ver
A lexandre H erculano, H istória da origem e estabelecim ento da Inquisição em Portugal,
Lisboa, Bertrand. 1975, tom o I. p. 208-211 (a edição original desta obra é de 1854-59), O
assunto foi retom ado, com novos dados, por G iuseppe M arcocci que, apesar de revelar
com o houve um a prática relativam ente branda do bispo do A lgarve, D. Fernando
C outinho. e do prelado funchalcnse, D. Diogo Pinheiro, que leriam actuado, pelos anos
trinta de Q uinhentos, contra cristãos-novos nas respectivas dioceses, norm alm ente absol­
vendo-os das acusações de judaism o e sugenndo a necessidade de serem catequizados,
não apresenta nenhum dado dem onstrativo de que qualquer um deles se tenha oposto ã
acção do Tribunal do Santo O fício, ver G iuseppe M arcocci, / trihunali delia fede in
Portogallo nell età dei concilio di Trento, op. cit„ p. 16-17. C onhecein-se tam bém casos
de bispos que perseguiram cristãos-novos com ferocidade com o. por exem plo, o bispo de
C euta D. Henrique de C oim bra que. em 1528, condenou à m orte pelo fogo alguns em
O livença, ver l.-S. Révah, Êtudes portugaises. Paris. Fundação C alouste G ulbenkian,
1975. p. 199. Na diocese de Coim bra, em 1533, teriam sido executados dois cristãos-
-novos por determ inação episcopal de D. Jorge de A lm eida, ver Maria José Pim enta Ferro
Tavares, Judaism o e Inquisição op. cit., p. 150.
OS B I S P O S E A I N Q U I S I Ç Ã O P O R T U G U E S A ( 1 5 3 6 1613) 59

acto, co m um profundo sig n ific a d o sim b ó lico , m as que teve c o n se q u ê n ­


cias práticas, foi in clu siv e lavrado um registo notarial u .
N os anos segu intes, a en volvên cia dos prelados no processo de enrai­
zam ento do Tribunal não parou 45. Há d isso alguns sinais. Por um lado, o
facto de o bispo de Coim bra. D . Jorge de A lm eida, que fora nom eado inqui­
sidor pela bula de 1536. ter exercitado de facto a sua acção de inquisidor **.
Por outro, cm 1541, quando se decidiu estabelecer tribunais distritais no
Porto e L am ego, o rei escreveu aos bispos das d io ceses encarregando-os
dessa m issão 47. Tam bém o primeiro nom eado para inquisidor de Coim bra,
na m esm a altura, foi um bispo, o de S. Tom é. frei Bernardo da Cruz.
Posteriorm ente, em 1552. quando por ordem do inquisidor geral D. H en ­
rique se elaborou o prim eiro regim ento do Tribunal, peça fundamental da
d efinição do seu estatuto, com p etências e organização, este solicitou a par­
ticipação do arcebispo de Braga. Baltasar Lim po e dos bispos de Angra e
A lgarve, respectivam ente R odrigo Pinheiro e João de M elo e C astro “ .
Estes últim os eram m em bros do C onselho Geral do Santo O fício , órgão de
cúpula do Tribunal, no qual. desde ced o. foi regular a presença de bispos **.

“ Sobre os n lu ais de fundarão do Tribunal ver Francisco Bethcncourt. H istória das


Inquisições... op. cit.. p. 22-23.
" Francisco B elhencouri já notara este envolvim ento dos bispos no processo de
im plantação do Tribunal, ver Francisco Belhencouri. "C am po religioso e Inquisição em
Portugal no século X V I”, E studes C ontem porâneos, n° 6, 1984, p. 48.
“ Prova-o um processo actualm ente na Inquisição de Lisboa, onde aparece um
docum ento, dalado de 19 de A gosto de 1541. pelo qual o bispo concede poderes ao seu
vigário geral para 'Tom ar inteiro conhecim ento c proceder" contra acusados de heresias no
território do bispado "por viam vísitationis ou inquisitionis conform e o d ireito", cf.
IAN/TT, Inquisição de Lisboa, processo n° 2068. fl. 3. Este processo vem definitivam ente
provar o que sobre a acção de Jorge de A lmeida enquanto inquisidor escreveu Pedro
M onteiro. ‘‘N oticia geral das Santas Inquisiçõcns deste reino c suas conquistas, m inistros
c officiaes de que cada hum a se com poem ” in Colleçam dos docum entos e M em órias da
A cadem ia Real. Lisboa. Pascoal da Sylva. 1723. p. 471.
,r A carta de D. João III para o bispo do Porto está publicada cm A ntónio B aião. A
Inquisição em Portugal e no B razil.... op. cit.. p. 27. Sobre a acção do bispo do Porto
enquanto inquisidor ver Elvira Mea, “A Inquisição do Porto” , Revista de H istória Centro
de H istória da U niversidade do Porto. vol. II (1979). p. 5-17.
“ O participação dos bispos é. significativam ente, declarada logo no Prólogo do
R egim ento, ver Regim ento da Santa Inquisiçam , publicado por BAIAO. A ntónio — A
Inquisição em Portugal e no B razil ... op. cit.. docum ento XXXI. p. 31.
** Uma relação dos indivíduos que com puseram este órgão pode ver-se em M aria
do C arm o Dias Farinha, “M inistros do C onselho Geral do Santo O ficio” . M em ória. n° I,
1989. p. 102- 163.
60 J O S É P E D R O PAIVA

A lg u n s d o s seu s m em bros, d ep o is de abandonarem o C o n selh o em vir­


tude da sua nom eação para algum bispado, e portanto já na sua con d içã o
de b isp o s, ainda foram cham ados para efectuar visitas aos tribunais d is ­
tritais da Inquisição, m ais uma prova da con fian ça do Inquisidor geral em
alguns e até da interferência que estes tinham no fu n cion am en to con creto
d o Tribunal
A alian ça dos d o is poderes foi tam bém evid en te em alguns m om en ­
tos crítico s da vida do Tribunal. A ssim , nos anos de 1 6 0 4 -1 6 0 5 . quando
tudo se preparava para a co n c e ssã o de um perdão geral aos cristãos-
-n o v o s. facto que se v e io a consum ar, os prelados do reino, desta vez em
corpo, prepararam um parecer que enviaram ao rei, tentando c o n v e n c ê -lo
dos prejuízos que essa m edida traria M.
E se outros dados faltassem , podia ainda ju stificar-se esta tese da c o o ­
peração dos prelados com o Tribunal, através das e x p líc ita s declarações
do z e lo e em penham ento nas cau sas do Tribunal da Fé que. por carta,
m uitos quiseram deixar registadas. V eja-se. c o m o ex em p lo , a que o b ispo
de C oim bra. D. Gaspar do C asal, que participara no C o n c ílio de Trento,
escreveu para o C o n selh o Geral, em 19 de Fevereiro de 1582: “ Em todas
as co u sa s que se oferecerem do Santo O fic io assim no tem poral co m o no
espiritual receberei sem pre m uito grande m erce mandarem VM occu p a-
rem -m e particularm ente nelas co m o aos próprios m inistros desta casa;
porque deste o fíc io se devem o s prelados honrar m uito pois é o próprio
seu. A pregação farei e no despacho d o s feitos assistirei quando tiver
recado e co m m uito g o sto e d esejo de em tudo fazer o que for serv iço de

*" A ssim sucedeu, por exem plo, com o bispo de Lam ego. cm 1581, D. A ntónio
Teles de M eneses, que visitou o tribunal distrital de C oim bra. R eferências a esse facto cm
IAN/TT. C onselho G eral do Santo O ficio. C orrespondência recebida de arcebispos e b is­
pos, Livro 91, fl. não num erado, cartas 58 e 59.
11 Uma versão castelhana pode ver-se cm IAN/TT. C onselho G eral do Santo O fício.
M aço I, docum ento 13, Razões dos prelados e Inquisição p ara o rei não interceder p elo
perdão xeral. Entre as razões apontadas pura que o perdão geral não fosse concedida des-
taquem -sc: porque a experiência dem onstra que os perdões gerais que cm diversos tem pos
c lugares sc concederam no passado a esta gente foram de grande dano e prejuízo; a im pe-
nitència dos judeus que faz com que não valha a pena dar-lhes qualquer perdão, pois este
só leria sentido se esta gente sc m ostrasse arrpendida. mas revela a experiência “dos pre­
lados dei reino que son seus pastores y los inquisidores que son las vigilius...'' que tal não
sucede e que eles não se arrependem ; o perdão causaria ainda notável dano ao tribunal do
Santo O ficio e consequente prejuizo da pureza da fé. ou seja. o perdão traria o descrédito
ao Santo Tribunal e perm itiria o regresso a Portugal de m uitos ju d eu s que prejudicariam
gravem ente a pureza da fé no reino.
O S B I S P O S E A I N Q U I S I Ç Ã O P O R T U G U E S A <15.16 I M O 61

N o sso Senhor e sa lv a çã o dos presos e em tudo o m ais que se o ferecer tra­


balharei por cum prir com esta tão devida obrigação” 5J.
D e que form as, porque m eios e em que áreas se m anifestou em c o n ­
creto essa co o p era çã o entre o s bispos e a Inquisição?
D esd e o in ício , a Inq u isição usou as estruturas e p isc o p a is p ré-exis-
tentes c o m o form a de a p o io à sua acção. Essa u tilização v er ifico u -se em
vários planos:
a) na d efin içã o da geogra fia d os tribunais distritais, que d e p o is de
algum as ex p eriên cia s frustradas se co n solid a d efin itivam en te, em
1565. com a criação do Tribunal Distrital de C oim bra, d ecalcan d o
as fronteiras das d io c e se s, para assim aproveitar as suas estruturas
p ré-ex isten tes e as inform ações que o s prelados poderiam fo rn e­
cer. A partir desta data. e até á extin ção do Santo O fíc io , em 1 8 2 1.
existiram três tribunais distritais no continente: Évora (co m ju r is­
d içã o sobre o s habitantes dos territórios das d io c e se s d o A lgarve.
É vora. E ivas e P ortalegre). L isboa (com ju risd ição sobre o s resi­
d en tes nas d io c e se s de L isboa. Leiria. Guarda e tod os o s territó­
rios d o im pério ultram arino ü ex cep çã o dos d o O riente que
ficavam sob a alçada da Inquisição de G oa. criada em 1560) e
C oim bra (que integrava as áreas correspondentes às d io c e se s de
C oim bra, V iseu. Porto, L am ego, Braga e M iranda)
b) no aproveitam ento das igrejas paroquiais espalhadas por todo o
território, sob a autoridade dos prelados, para a leitura e d iv u lg a ­
çã o d o s éd ito s da fé e de outros a v iso s oriundos da Inquisição M;

Cf. IAN/TT. C onselho Geral do Santo O ficio, C orrespondência recebida de


arcebispos e bispos. Livro 91. fl. nâo num erado, caria 29. O utros exem plos sem elhantes,
nu m esm a fonte, cartas 2 e 6.
” Sobre a estruturação deste rede ver Francisco B ethencourt. H istória das In q u i­
sições... op. cit.. p. 44-46.
M Ver. por exem plo, duas cartas dirigidas à Inquisição de C oim bra. Na prim eira, cm
27 de A gosto de 1585. o C onselho G eral inform a que o rei soube que nos 3 ou 4 anos a n te ­
riores m uitos cristãos-novos se ausentaram do reino, levando consigo os bens e fam ília e
pede que dessem inform ação de quantos eram com rigor "e por nos parecer que o m ilhor
m eio pera se saber distintam ente destas pessoas hc por via dos curas das freguesias, e scre­
vemos aos bispos desse distrito na lorm a que VV MM verão pella copia da carta que com
esta scra VVM M lhe m andem logo as cartas e lhes escrcvao por carta sua o que lhes p are­
cer necessano”. cf. AN/TT. Inquisição de Coim bra. Caderno de provisões c a n a s e outros
papeis desde o anno de 1536 atlie todo o ano de 1599, Livro 271, fl. 224. N uma segunda
m issiva, em 16 de D ezem bro de 1588. o inquisidor-geral com unica a sentença de uma
prioreza do m osteiro da A nunciada de Lisboa, de acordo com a qual se deviam recolher
62 J O S É P E D R O PAIVA

c ) no uso d o s funcionários da adm inistração ep iscop al para ex e rc ita ­


rem d ilig ên cia s em nom e d o Santo O fíc io M;
d) na recepção de inform ações e p rocessos dos tribunais dos b isp os

panos que ela distribuíra com sinais das suas chagas c outros objectos que dava com o relí­
quias. acrescentando: "por minha carta encom endo ao bispo conde c aos mais prelados
desse distrito que tacão publicar um m andadotordem ) que pera isso passei de que lam bem
vos será dada cópia e que nomeiem algum as pessoas para que recolham todas as ditas c o i­
sas e vo-las enviem ”, cf. IAN/TT. Inquisição de C oim bra. C a d em o de provisões carias r
outros papeis desde o anno de 1536 athe todo o ano de 1599, Livro 271. fl. 280.
” Podiam referir-se centenas de casos. Bom exem plo em IAN/TT. Inquisição de
Lisboa, processo n” 94. Trata-se de um processo contra Teresa G om es, por judai/.ante,
desencadeado em 1579. Nele a Inquisição pediu ao provisor e vigário geral do bispado da
G uarda para. em nome da Inquisição, ir notificar testem unhas para com parecerem na Mesa
da Inquisição, incum bindo de outras funções um arcipreste de C astelo Branco. Também
no Brasil, e com o é de supor noutros territórios do im pério antes da instalação de um a rede
autónom a da Inquisição, que não está montada antes d o século X V III. se usaram os " s e r­
viços" de funcionários da adm inistração episcopal. Em 1597, 1600. 1601 e 1605 o Santo
O fício fez vários pedidos de diligências ao vigário geral de Pernam buco e a outros o fi­
ciais da justiça episcopal, entre os quais se contam m andatos de prisão e acções de a u d i­
ção de testem u n h as, dados revelados por B runo F citler, In q u isitio n , ju ifs et
nouveaux-chritiens au Brésil. Le Nordeste X V lle et X V Ilie sièrtes, L cuven. Lcuvcn
University Press, 2003. p. 90-91.
M Há im ensos processos na Inquisição que foram despoletados a partir de in fo rm a­
ções rem etidas pelos tribunais episcopais. Suspeitam os que um inventário sistem ático dos
processos inquisiloriais inquirindo a origem das inform ações que estiveram na sua origem
revelará dados m uito significativos a este respeito. Na ausência desse inventário, dêem -se
alguns exem plos: IAN/TT. Inquisição de Lisboa, processo n° 2246 (trata-se de um p ro ­
cesso por bigam ia contra uin Francisco R odrigues, desencadeado perante o sig án o -g eral
da diocese do Porlo. no tem po em que era bispo D. Fr B altasar Lim po, pela pnm cira
m ulher do réu, no ano de 1547. O réu foi depois rem etido à Inquisição de Lisboa onde deu
entrada cm 1551); Inquisição de Coim bra, processo n° 3159 e 3160 (trata-se de um p ro ­
cesso de sodom ia contra C atarina Luís. iniciado em 1587, pelo vigário geral de Chaves, que
a acusava de "com prejuizo da sua alm a e escandalo do povo" com eter “o pecado de sodo­
mia" com M aria Dias, tam bém ela casada, “com a qual foi vista na cam a hua em cim a da
outra com certo virgalho feito per a dita conversação beijandosse e acraceandosse e come-
teo o ditto pecado de sodom ia sem se querer apartar dellc". O processo foi posteriorm ente
rem etido ao Tribunal do arcebispo em Braga, sede vacante, que determ inou, em acordão de
Maio de 1587: "que vista a qualidade do caso m andao que estes autos se tresladem e se
levem ao Santo O fficio da cidade de Coim bra na forma acostum ada". A ré acabou por fale­
cer nos cárceres da Inquisição de Coim bra, intoxicada pelo fumo provocado pela com bus­
tão de um as brasas, em 18 de Fevereiro de 1589). Na Inquisição de C oim bra chegou mcsino
a haver um livro para registar as culpas que eram rem etidas pelos bispos, cf. IAN/TT.
Inquisição de Coim bra. Caderno de denunciasoens que derão pessoas particulares contra
outras e de al/tumas que se remeterão dos ordinários <1551-1591), Livro 79.
OS BISPOS E A IN Q UISIÇÃ O PORTUGUESA (1*36-1613) 63

e) no serv iço d o s aljubes ep isco p a is para a prisão d os seu s réus 57 e


até pedindo aos b isp o s que prendessem p essoas para as enviarem
para a In q uisição **;
0 no a p o io d o s b isp o s para a realização das visitas inquisitoriais
A coo p era çã o entre as duas esferas não se esg o to u n estes asp ectos
m ais estritam ente lig a d o s ao ex e r c ício da actividade repressiva d o Tribu­
nal, ou se se preferir, que im plicava o ju lgam en to de réus. Outras áreas
houve ond e a In qu isição recorreu ou usou o poder episcopal:
a) Na fundam entação doutrinal e id eo ló g ica da acçã o do Santo O fí­
c io , de que há e c o s através da pregação de serm ões em autos-da-
-fé , da elab oração de pareceres e da con su lta d os prelados na
preparação de um c a tecism o doutrinal para os c ristã o s-n o v o s *°.

” A ssim succiicu com a Inquisição do Porto, ver Elvira Mca. "A Inquisição ilo
Porto”, in op. cit., p. 9.
* Ver Paulo D rum ond Braga. A Inquisição nos Açores, op. cil., p. 182.
VJ Tal sucedeu de form a m uito significativa, pelo m enos, nas visilas às ilhas, com o
m ostra Fernanda Olival para o caso da visita à M adeira, nos anos de 1591-92. De facto, os
casos que foram sentenciados no local resultaram de um colectivo form ado pelo visilador
(o inquisidor Jcróm m o Teixeira C abral), pelo vigário geral da diocese em representação
do bispo, m ais dois religiosos franciscanos e o reitor do C olégio dos Jesuítas. A leitura das
sentenças foi sem pre feita em estrado especialm ente construído no interior da Sé catedral,
cf. Fernanda O lival, “A visita da Inquisição à M adeira em 1591-92” in A ctas J o III
C olóquio Internacional ilt H istória da M adeira, Funchal. Secretaria R egional do Turism o
c C ultura. 1993. p. 499-501. Em algum as dioceses italianas os inquisidores chegaram a
acom panhar os visitadores dos bispos durante a visita pastoral para fazer inspecções sobre
com portam entos heréticos, com o sucedeu, por exem plo, em 1559, na visita de Strigno. ver
A ndrea dei C ol. “ La confcssione di fede dl un gruppo eterodosso in V alsugana nel 1559"
in Andrea dei C ol et R osanna Paroni B ertoja (a cura di) - Sotto il Segno di M ennochio,
M ontreale Valccllina. C irculo C ulturale M ennochio, 2002. p. 124-125. Não tenho noticia
de que isso ocorresse cm Portugal.
“ C) elenco e o conteúdo dos sermões conhecidos, pregados por bispos nos autos-da-fé
m ereciam um estudo. Veja-se um exem plo em Manuel A ugusto R odrigues, ” 1). A fonso de
C astelo Branco...", op. cit. Sobre a criação de um catecism o especifico para os cristãos-
novos, ideia desencadeado cin 1589 pelo inquisidor-geral. e que contou com a oposição da
m aioria dos bispos, ver Elvira Cunha de A zevedo Mea. A Inquisição de Coim bra no século
XVI. A instituição, os hom ens e a sociedade. Porto: Fundação Eng. A ntónio de A lm eida,
1997, p. 474. A lguns dos pareceres dos bispos sobre este assunto tinham preocupações
com a protecção do estatuto do Tribunal. Por exem plo, o bispo de Viseu, em Janeiro de
1593, opõe-se à ideia, por achar que a função da Inquisição é ju lg ar e não se pode expôr,
por via da publicação do catecism o, a que depois haja polém ica, cf. IAN/TT. C onselho
Geral do Santo O fício. C orrespondência recebida de arcebispos e bispos. Livro 91. 11 não
num erado, carta 64.
64 JO S É P E D R O PAIVA

b) Na preparação dos índ ices de livros proibidos 61;


c) Na in sp ecção e controlo dos portos m arítim os para im pedir a
entrada de livros su sp eitos

“ Veja-se a minuta da carta que o inquisidor-geral enviou para o bispo do A lgarve.


Fernando M artins M ascarenhas, em 1597. Nela se diz que estando em curso a revisão do
Index "e sendo o negocio de tal qualidade nic parcceo que a ninguém com m ais razão se
podia pedir avisos e conselho sobre elles que a V. S. que com o tão insigne teologo, e tão
curioso de livros, e tão experim entado em governo de letrados e de escolas, tem as partes
hum anam ente requeridas para acertar nelle e com o bispo lera particular assistência de
Deus para isso. E assi peço a V.S. me faça m erce (alem da cousa ser tão própria da o b ri­
gação episcopal e tanto de serviço de Deus. e da Se A postolica, de S. M agestade e bem
destes reinos) que refresque a m em ória do que acerca desta m atéria tiver considerado e
observado e me mande sobre elas as advertências que ju lg ar oportunas", cf. 1AN/TT.
C onselho Geral do Santo O fício, C onsultas do C onselho aos Inquisidores Gerais, Livro n°
369. H. 87.
" N ote-se que esta inspecção era já realizada pelos prelados e que alguns a c o n ti­
nuaram a efectuar, pelo menos até finais do século XVI. Q uando a Inquisição quis co m e­
çar a controlar os portos pediu inform ações aos prelados e sugestões de pessoas que
pudessem desem penhar tais funções, com o se pode com provar por cartas do arcebispo de
B raga e do bispo do Porto, ver IAN/TT, C onselho G eral do Santo O fício, C orrespondência
recebida de arcebispos e bispos. Livro 91, fl. não num erado, cartas I e 66. A carta do arce­
bispo de Braga, está datada de I de Agosto de 1583 e nela o prelado inform a: "O s portos
de m ar que a neste arcebispado, o prim eiro vindo dessa parte é Villa do Conde onde não
a pessoa que me pareça conveniente para V. S. lhe m andar ver os livros que ay vierem por
mar. posto que tem hum m osteiro da observância de S. Francisco onde estão dous padres
que pregam , hum dclles irmão de Dom M artinho de C astelo Branco e cuido que o m anda­
rão para aly por causa de Dom Antonio. O vigário da igreja da villa não é letrado c tam ­
bém em tem po do arcebispo meu antecessor foi preso por differentes casos. Eu sou m enos
suficiente que todos mas mais prom pto ao serviço de VS ao que me m andar do Santo
O ficio; da cidade a Villa do Conde são cinco legoas, parece que seja mais seguro m andar
VS ao ju iz da alfandega que nant deixe entrar nenhum livro e asi ao guardião do m osteiro
ou a frei G onçalo de C astelo Branco que façam o rol dos livros e os fechem e me m an­
dem aviso e querendo VS mandarei la huu desem bargador, que os verá e faça inteiram ente
conform e a ordem que VS der.” Depois dá inform ações relativam ente aos portos de
Esposende, Viana, c C am inha. A can a do bispo do Porto, por sua vez, data de 14 de Julho
de 1583 e nela o prelado sustenta que no bispado do Porto os livros só podem entrar pelo
Porto pois não há mais portos de m ar onde se descarreguem m ercadorias e que "aqui achei
encarregado a visita de todos os livros que vem por m ar ao prior e padres de S. D om ingos
e eu mandei tam bem ver algum as vezes e os oficiais da alfandega nao guardam bein o regi­
m ento que tem da Igreja não se bolir com algum a fazenda do navio sem prim eiro se ver o
rol dos livros, que eu quisera ja proceder contra elles; V.S. lhes ponha sentença dcscom u-
nham se prim eiro que tudo não cham arem o com issário da Santa Inquisiçam e vir os
liv ro s. E se VS q u ise r o rd e n a r c o m issá rio n e sta c id a d e q u e não sejam os p ad res de
S. D om ingos pode ordenar o Doutor Manoel de Faria arcediago do Porto e ao licenciado
OS B I S P O S E A I N Q U I S I Ç Ã O P O R T U G U E S A ( 1 3 3 6 - 1 6 1 3 )

d) N o fin an ciam en to do Tribunal, através da co n c e ssã o de p en sões


im postas sobre as rendas das m esas ep isco p a is, o que n ecessita v a
d o aval d o s seu s titulares w.
E preciso reconhecer que o s inquisidores tiveram uma aguda c o n sc iê n ­
cia da im portância d o suporte dos prelados para o e x er cício da sua a c tiv i­
dade, sobretudo num a fase inicial de im plantação e organ ização do
Tribunal. É que o s b isp o s, através das paróquias e do e x e r c íc io regular das
v isita ç õ e s, tinham um co n h ecim en to m uito m ais próxim o e capilar da rea­
lidade, que a Inq uisição aproveitou, para obter inform ações e passar
ordens. Isto foi particularm ente evid en te até aos in ício s do sé c u lo X V II,
p elo facto de o Santo O fíc io não dispor ainda de uma rede de co m issá rio s
e fam iliares que garantisse uma cobertura efectiva de todo o território w.
Podíam os dar vários exem p lo s do que se acaba de afirmar. E legem os um
bastante elu cid ativo. Em 13 de A go sto de 1588, Luís G onçalves Riba Fria
e Bartolom eu da F onseca, inquisidores no distrito de Coim bra, escrevem
para o C on selh o Geral o seguinte: “vai-se fazendo m uito cabedal com as
inform ações dos prelados das visitas de suas d io ceses com que correm os e
até ajudam os e servem em vigiarem essa gente da nação e os m ais casos
desta m esa onde o s acham e crem os que por esta via se remedearam algum as

Pedro Ferreira da Silva arcediago de O liveira ou ao provisor e vigário geral que são m uito
doutos...” .
“ A partir dos anos 60, graças à acção do cardeal D. Henrique, quase todas as ren ­
das das m itras passaram a ter im postas sobre si pensões para a Inquisição, elem ento
im portante do financiam ento do Tribunal. Essas pensões eram autorizadas pelos bispos
quando eram preconizados para as dioceses, veja-se. por exem plo. ASV, A rchivio C on-
cistoriale. A cta C am erarii, vol. 9. fl. I7v (referente à preconização do bispo de Portalegre,
D. A ndré de N oronha, cm 1560. com a im posição de um a pensão de 175 ducados para a
Inquisição). A lguns bispos foram zelosos cum pridores destes pagam entos. Por carta de I
de Julho de 1566, dirigida a André Lam ego, cónego da Sé de C oim bra e recebedor geral
do bispado, o bispo da cidade, D. João Soares, declara ter instituído que todos os anos o
bispado desse ao Santo O fício uma pensão de 600 mil réis, pagos em duas prestações, um a
pelo S. M iguel e outra no N atal. E por estar por pagar a quantia do Natal an terior m anda
que se pague, cf. 1AN/TT. Inquisição de C oim bra. Caderno de provisões cartas e outros
papeis desde o atino de 1536 athe todo o ano de 1599, Livro 2 7 1. fl. 5.
“ A rede de com issários e fam iliares com eça a ser construída pelos anos de 1570,
mas só adquire um a dim ensão m inim am ente aceitável a partir das prim eiras décadas do
século XVII, ver José Veiga Torres, "D a repressão religiosa para a prom oção social. A
Inquisição com o instância legitim adora da prom oção social da burguesia m ercantil".
Revista C ritica de C iências S o cia is, Vol. 40, (1994), p. 109-135. Em Itália, A driano
Prosperi já reportara a existência de uma situação sem elhante, ainda que com cronologias
distintas, ver A driano Prosperi. Trihunali delia coscienza..., op. cit.. p. 327.
66 JO S É P E D R O PAIVA

alm as” 6\ Elvira Mea defende m esm o que, ate' 157Ü, a Inquisição de C o im ­
bra não procede a visitas porque as denúncias que ia recebendo da cidade e
seu term o e as inform ações que lhe eram enviadas pelos bispos do seu d is­
trito chegavam para alimentar a capacidade instalada que o Tribunal então
tinha Esta confiança na solicitude e colaboração dos bispos era m esm o
afirmada pelos inquisidores gerais em correspondência intem a do Tribunal.
Tal sucedeu com D. Jorge de A lm eida, que linha sido arcebispo de Lisboa,
e que em 4 de Fevereiro de 1584, escreve aos inquisidores da Inquisição de
C oim bra ordenando que quando e le s não pudessem ouvir certas testem u­
nhas o pedissem aos bispos ou a quem m elhor lhes p a r e c e sse .67 Linha que
já havia sido aberta pelo próprio D. Henrique. D e facto, nas prim eiras in s­
truções do Tribunal, de 1541, a solicitação do apoio do ep iscop ad o, reve­
lador de confiança na aliança, é evidente. Lá se refere que o promotor e o
m eirinho da Inquisição podiam ser o do bispo, que o prom otor devia ter
uma arca para guardar os papéis da Inquisição - devendo esta ser posta em
segurança na casa do prelado e que quando fo sse necessário proceder a pri­
sõ es se u tilizasse o aljube episcopal M.
Em função d o que se acaba de expor creio poder afirmar que, gradu­
alm ente, se foi cam inhando para uma actuação cooperante e ou sam os até
dizer com plem entar, sobretudo no que se refere ao trabalho de fisc a liz a ­
ção da ortodoxia e de norm alização social dos com portam entos dos fiéis.
C om o já escrevi noutro local w, ainda que para uma época posterior, parece
evidente ter existid o uma divisão do trabalho norm alizador dos com porta­
m entos por parte das duas esferas. D e forma esquem ática, pode dizer-se que
essa com plem entaridade se m anifestou do seguinte m odo. A o nível dos
esp aços de actuação concreta, verifica-se que a Inquisição agiu m aiorita­
riam ente sobre as populações urbanas, enquanto o s bispos actuaram tam ­
bém no esp aço rural . Por outro lado, am bas as instâncias se preocuparam

65 Cf. IAN/TT. C onselho Geral do Santo O fício, C orrespondência recebida da


Inquisição de C oim bra, Livro 95, fl. não num erado, carta 22.
“ Cf. Elvira Cunha de Azevedo Mea. “O procedim ento inquisitória! garante da
depuração das visitas pastorais de Braga (Século X V I)" in Actas do IX C ongresso da dedi
cação da Sé de B raga,\o \ . 11/2. 1990, p. 73.
” Cf. IAN/TT. Inquisição de C oim bra. Correspondência do C onselho G eral. Livro
n° 681, fl. 27-28v.
“ Ver IAN/TT. Prim eiras instruções do Infante D. H enrique para o funcionam ento
da Inquisição, docum ento sem cota, publicado por Isaías da Rosa Pereira. D ocum entos
para a H istória (...), op. cit.. p. 43.
“ Ver José Pedro Paiva, ‘in q u isiç ã o e Visitas Pastorais: Dois m ecanism os co m p le­
m entares de controle social?”, Hevista de H istória das Ideias. 11, 1989, pp. 85-102.
70 Alguns dados em Francisco Bethencourt, História das Inquisições..., op. cit., p. 282
OS B I S P O S E A I N Q U I S I Ç Ã O P O R T U G U E S A ( 1 5 3 6 - 1 6 1 3 ) 67

com a v erifica çã o da conduta religiosa das p op u lações em planos d istin ­


tos: a In qu isição p ersegu in d o sobretudo as heresias e n esse âm bito os
cristã o s-n o v o s acu sados de práticas jud aizantes que, co m o se sabe, quase
m onopolizaram a actu ação do Santo O fíc io português 7I; o s b isp o s, atra­
vés das v isita s pastorais c dos seu s tribunais, estiveram m ais atentos ao
com portam en to r e lig io so c moral incorrecto da população cristã-velh a.
punindo o s que faltavam à m issa, não recebiam o s sacram entos, trabalha­
vam em dias san tificad os, viviam em concubinato, bebiam v in h o em
dem asia, ou tinham in im izad es públicas, para dar ex em p lo s de alguns dos
d elito s m ais co m u n s que eram denunciados perante os visitad ores n .
Num a fase transitória, em algum as d io c e se s, o s b isp os continuaram a
perseguir heresias co m o o ju d a ísm o e o luteranism o, após a criação da
Inquisição. Isso d ep reen d e-se de uma carta escrita p elo Inquisidor G eral,
cardeal arquiduque A lberto, aos inquisidores de C oim bra, em 12 de Julho
de 1592. na seq u ên cia de um a vista feita por M artim G o n ç a lv e s da
Câmara àq uele Tribunal D istrital. A dado p asso diz o cardeal: “ Porquanto
nas d en u n cia çõ es que se fazem aos prelados, ou a seu s o fic ia e s de cu lp as
tocantes ao Santo O fic io , se tira p ou co fruto p rocedendo nelas ordinaria­
m ente. n os p a receo escrev er-lh es, e en com en d an d o-lh es por n ossa carta,
que vin d o algu as testem unhas denunciar diante d eles d os ditos ca so s,
tom em o s testem un h os por si m esm os e não o s com etam a seu s o fic ia e s,
e os en viem à Inquisição. O s inquisidores nos avisarão, ou ao C o n selh o ,
do que o s b ispos fizerem em sem elhantes c a so s” '. N os in ícios do ano
seguinte, o bispo de V iseu respondia a esta m issiva. Era a lg o cép tico em
relação a ela, p ois cuidava que poderia pôr em causa a autoridade episcopal
e a eficá cia das visitas pastorais, m as não deixava, no final, de se colocar ao

c José Pedro Paiva. "A adm inistração diocesana e a presença da Igreja. O caso da diocese
de C oim bra nos séculos XVII e X V III". L tu ita n ia Sacra. 2° série. 3. 1991. p. 94-95.
" Ver os dados actualm ente disponíveis em Francisco Bcthencourt. H istória das
Inquisições..., op. cit.. p. 279.
: Ver dados para a diocese de Coim bra em José Pedro Paiva. "A adm inistração d io ­
cesana..." op. cit.. p. 87-95 c para o arcebispado de Braga em Franquclim Neiva Soares. A
arquidiocese de Urtiga no século XVII Sociedade e m entalidades pela s visitações p a sto ­
rais (1550-1700). Braga: |s .n .|. 1993. vol. I. p. 184-196. Não é rigorosa a proposta ap re ­
sentada por Maria José Pim enta Ferro Tavares quando escreveu: “C om o instrum ento de
controlo social, de vigilância de lodo o dissidente - c, anotem os, de todo o desvio religioso,
moral e social - , o Tribunal do Santo O fício desenvolveria (...»". cf. Inquisição e Judaísmo,
op. cit., p. 180. O Santo O fício não tinha, nem exercitou com petências tão alargadas.
” Cf. IAN/TT, Inquisição de C oim bra, Livro n° 681. fl. 57, docum ento integral­
m ente publicado por Joaquim Rom cro M agalhães, “ Em buscu dos tem pos da Inqui­
sição...” , op. cit., p. 215-221.
JO S É P E D R O PAIVA

dispor da d ecisã o da Inquisição: “VA m e mandou o s dias passados que


q uando o s v isita d o res a ch assem algu m as c o u sa s to can tes à Santa
Inquisição que e lle s não tom assem delia con h esim en to. antes nos av isa s­
sem para que nos pessoalm ente o fizessem o s. O ffereceose lembrar a VA os
incon ven ien tes que ha: A contese m uitas vezes saberem m olheres nobres e
d o n zelas encerradas algum as destas cou sas as quais não podem vir dizer
ao prelado assi por estarem em longa distancia co m o tam bem porque
fazendo abalo de suas terras dão o casião aos m esm os da nação specularem
que cou sa seja a do seu abalo e dahi poder soced er entederem ao que vem
e porem em perigo o credito de suas p essoas, porque se pode cuidar que
vem diante do prelado para algum as ad m oestações ou perguntas m atrim o­
niais; e para evitarem o que d elias se podera cuidar deixarão de dizer o que
sabem em m atérias tão im portantes. E de os prelados hirem p essoalm ente
so o a isso , m uitas v ezes distancia de d ez. quinze, vinte legoas, nascerão os
m esm os inconvenientes. E co m o a gente de que se trata he m uito m anhosa
e sutil não ficara de efeito esta d eligen cia m ais que a prim eira vez que lo g o
o entenderão e usarão do que cu stom ão e quando vem em devassa geral
não se percatão. O s visitadores irão advertidos co m o VA me m anda posto
que sem pre costum ão ser pessoas de que se d eve inujto confiar. E lem bro
a VA que se lavradores e gente baixa e idiota virem que o visitador lhes
não tom a o que apontão terão em m enos cab o a visitação e ficará perdendo
a authoridade que he necessário sostentarse, vendo que não tem poder os
visitadores para receberem o de que lhe denuncião e parecem e que deve
ser matéria que VA deve de resolver depois de ter o aviso de todos o s pre­
lados; e se aos lugares os virem ir depois de passada a visitação lo g o não
tão som en te o s christãos novos mas os velhos terão por certo que so o a tra­
tar d elles vão. A visitação do B ispado se não faz senão d esp o is da Paschoa.
antes me avisara VA do que ha por seu serviço se faça” 74.
Por co n seg u in te, na prática, p elo m enos em algum as d io c e se s, o s b is­
p os terão continu ado a julgar cristãos-n ovos. A ssim parece ter su ced id o
na arq u id iocese de Braga, até tarde, ainda no tem po de D. Fr. Bartolom eu
d os M ártires ” , e seguram ente na d io ce se de M iranda, durante a prelatura

'* Cf. IAN/TT, C onselho Geral do Santo O fício, C orrespondência recebida de


arcebispos e bispos. Livro 91, fl. não num erado, carta 63.
” N ão se conhece qualquer processo desencadeado contra jud aizan tes no tribunal
do arcebispo, mas há indícios de que ele tenha exercido ju risd ição neste âm bito, nom ea­
dam ente o de não existirem na Inquisição de Coim bra processos contra ju daizantes o rig i­
nários da diocese, no tem po em que Bartolomeu dos M áritires foi bispo, ver sobre o
assunto Elvira Cunha de Azevedo Mea, "O procedim ento inquisitoríal op. cil., p. 71.
O S B I S P O S fc A I N Q U I S I Ç Ã O P O R T U G U E S A ( 1 3 3 6 -1 6 1 3 1

de D. A n tón io Pinheiro \ M as desd e o s últim os anos do séc u lo X V I e os


alvores d o segu in te que essa prática deve ter caído em d esu so, passando a
jurisdição sobre ju daizantes a ser privativa, de facto, não de direito, do
Tribunal da Fé. A pesar de tudo. o s bispos, durante as visitas pastorais, c o n ­
tinuavam a indagar sobre estes d elito s, rem etendo-os, posteriorm ente, para
o Santo O fíc io . Para além de p rocessos contra judaizantes. c o n h ecem -se
tam bém actu ações contra réus acusados de luteranism o. Tal ocorreu no
ju íz o e c le siá stic o da ouvidoria de S. M iguel, da d io ce se de Angra, numa
acção ju d icial iniciada em 19 de M aio de 1598. ante Pedro M onteiro, c a p e ­
lão do rei e ou vid or do e c le siá stic o na ilha de S. M iguel p elo cab id o, sede
vacante. O réu era um in glês, Pero N icolau . de 25 anos. que estava preso
na cad eia pública da cidad e, acusado de dizer “que o s sacram entos e
christaos de sua terra sao tam bons e m ilhores que os n o sso s sa n ctissim o s
sacram entos e c a th o lic o s, e que a c o n fissã o que em sua terra se faz e de
que se uza que não era a outro hom em c o m o nos fa zia m o s para que fo sse
d escobrir o s p eca d o s que lhe co n fessa ssem e que assi que hera m elhor que
a aque n o s c a th o lic o s usam os e tinhão e lle s em sua terra igrejas em que
se d izia m issa e sacram entavão e diziam o E vangelho que era c o m o o
n osso sagrado e cath o lico e que o s bispos e sacerdotes de sua terra e no
reino de Inglaterra avia que eram casados...”, pelo que a justiça pretendia
provar "que dizend o estas tam grandes heresias e hereticas sendo reprehen-
dido de quem as o u v io não d eo por a reprehensão m ostrandosse m uito c o n ­
tum az nellas co m o hcretico, lutherano e m uito m ao christào" () réu foi. no
entanto, consid erad o inocente nesta primeira instância. H ouve, de seguida,
um recurso para o vigário geral da d io cese de Angra. Este reavaliou o c a so

’* G iuscppc M arcocci assinalou, recentem ente, a existência de pelo m enos um p ro ­


cesso de judaism o contra um cristào-npvo que transitou no A uditório Episcopal de
M iranda c que term inou com um a sentença de não condenação do réu. Trata-se de uni p ro ­
cesso contra G abriel A lvares, desencadeado cm 1576. que se encontra na Inquisição de
C oim bra com o n ' 19. ver G iuscppe M arcocci. / tribunal i delia fe d e in Portogallo ne!l'età
d ei concilio di Trento, op. cif., p. 149. Na ilha da M adeira, pelo ano de 1566 tam bém a ju s ­
tiça ordinária prom oveu acções contra cristãos-novos judaizantes, ver M aria d o C arm o
Dias Farinha. A M adeira nos A rquivos da Inquisição. Funchal. |s.n |, 1986. p. 3-5.
” Tal sucedeu em 1616 em devassa de visita realizada na diocese do Porto, na qual
foi denunciado um casal de flam engos, da freguesia de S. N icolau do Porto, por luteranos
(lA N /TT. Inquisição de C oim bra. C adernos do Prom otor. Livro n" 296. fl 69-72). No
m esm o ano. na diocese de Lamcgo, em visita efectuada pelo bispo M arlim A fonso de
M exia, um cristâo-novo foi acusado de práticas judaizantes (IAN /TT, Inquisição de
C oim bra. C adernos do Prom otor, Livro n° 294. fl. 741-744).
70 JO S É P E D R O PAIVA

e determ inou rem eter "os autos co m o vieram da ilha de Sam M iguel per
a p ellação a M esa do Santo O fício de L isb oa” 7*.
O quadro que se acaba de esb oçar não pretende esco n d er que tam bém
h ouve d esco n fia n ça s, receios, co n flito s e até que a co m u n icação entre b is­
pos e in qu isid ores nem sem pre fluiu com efic á cia . A 4 de M arço de 1586,
o b ispo de L am ego, D . A ntón io T eles de M en eses, escreveu para o C o n ­
selh o Geral inform ando que na sequência da v isitação mandara para a
Inq uisição de C oim bra certas p essoas cujas cu lp as lhe parecia p erten ce­
rem ao Santo O ficio . Q ueixava-se ainda de que daquela Inquisição nunca
haviam acusado a recepção d estes ca so s, p elo que o C o n selh o determ inou
que o s inquisid ores, a partir de então, e sc rev essem lo g o aos b isp os c o m u ­
n icando que o s culpados que e le s rem etiam eram , de facto, ju lg a d o s na
Inq uisição e, quando assim não fo sse, que lhes en v ia ssem nota d isso para
e le s o s julgarem nos resp ectivos auditórios
D os c a so s já co n h ecid o s parece poder sustentar-se que o g ro sso das
p o lém ica s sucedeu em torno de três aspectos:
a) O pagamento das pensões que as Inquisições tinham impostas sobre os
bispados, principalmente quando os bispos quiseram erigir seminários
e reclamaram que o Santo O fício também contribuísse ou quando
tiveram que pagar pensões referentes a períodos de sede vacante
b) a jurisdição em relação a delitos de foro m isto, com o foi o caso da
bigam ia, blasfém ia, práticas m ágico-supersticiosas ou a solicitação K;

‘ O processo integral, que não chegou a ser retom ado na Inquisição, encontra-se
em IAN/TT, C onselho Geral do Santo Ofício, maço 43. doc. não num erado.
■* Cf. IAN/TT, Inquisição de Coim bra, C aderno de provisões c a n a s e outros papeis
desde o anno de 15.16 athe lodo o ano de 1599, Livro 271, 11. 232.
" Assim fez o bispo da G uarda D. Nuno de N oronha, o que m otivou os protestos
do inquisidor-gcral, a quem o prelado respondeu, dizendo que se o Santo O fício tinha
algum indulto ou privilegio de isenção nesta m atéria, c se assim se pratica noutros bisp a­
dos, que lho com unique para ele riscar o Santo O fício da lista dos que contribuem para o
sem inário, cf. IAN/TT, C onselho Geral do Santo O fício, C orrespondência recebida de
arcebispos e bispos. Livro 91. fl. não num erado, carta 55. O m esm o tipo de problem a com
o bispo de M iranda, carta 1 10.
" Tal aconteceu com o bispo de C oim bra, D. Manuel dc M eneses, o que motivou
queixas da Inquisição para o tribunal apostólico, tendo o bispo protestado alegando, entre
outras coisas, que o ju iz apostólico, bispo de Viseu, era parte interessado e por isso não
isento, ver IAN/TT. Inquisição dc Coim bra, Caderno de provisões cartas e outros papeis
desde o anno de 1536 athe todo o ano de 1599, Livro 271, fl. 73-9X.
13 C ada um destes delitos justificava uma apreciação detalhada. C om o exem plo
refiram -sc algum as contendas entre a Inquisição e o arcebispo de Lisboa. D. Miguel de
OS B I S P O S li A I N Q U I S I Ç Ã O P O R T U G U E S A ( 1 5 3 6 - 1 6 1 3 ) 71

c) a representação do poder em cerim ónias públicas, particularm ente


nos a u to s-d a -fé e nas entradas so len es dos b isp os nas d io c e se s
E p lau sível que após a celeb ração do C o n cílio de Trento, que c o m o é
sabido reforçou sign ifica tiv a m en te o poder dos b isp os, o s problem as se

C astro (1586-1625). por causa da jurisdição sobre casos de bigam ia e curas supersticiosas,
ver José Pedro Paiva, Bruxaria e superstição num país sem caça às bruxas: 1600-1774,
l.isboa. Editorial N otícias. 1997. p. 31-32. D ados novos em IAN/TT. C onselho Geral do
Santo O fício. Consultas tio Conselho aos Inquisidores Gerais, Livro n° 369, fl. 171 e
C onselho Geral do Santo O fício, C orrespondência recebida de arcebispos e bispos. Livro
91. fl. não num erado, carta 8. N esta últim a carta, datada de 3 de M aio de 1605 e dirigida
ao inquisidor-gcral. o arcebispo D. Miguel de C astro informa ter recebido em Santarém
uma carta do inquisidor-geral na qual se lhe pedia para entregar um preso bígam o.
D. Miguel de C astro sustenta que os "livreiros" di/.em que bigam ia é ju risd ição do eclesi­
ástico e que. por isso, não pode ir contra a jurisdição e posse cm que está o arcebispado
"rem etendo o preso que se costum a condenar e castigar neste ju izo ordinário c depois que
sou arcebispo se castigarão m uytos com penitencia publica e degredo sem aver nisto c o n ­
tradição algum a e as sentenças destes se lem publicam ente no púlpito da Se. na qual resi­
dirão sem pre pessoas da Inquisição que assistirão a publicação das tais sentenças. E o
fundam ento que os inquisidores tem por si que querem saber da intenção dos tais delin­
quentes se elles quiserem ver o cartorio nelle acharao a resposta do seu fundam ento porque
não se achara que os delinquentes neste pecado tenhão error no entendim ento mas som ente
fraqueza e sendo isto assi, o que afirm o por me passar por as maos não vejo razão para
rem eter o preso". D epois diz que o argum ento de que noutros bispados não se procede
assim , não colhe, pois no dele sem pre assim se fez. A crescenta que ele fará tudo para ser­
vir a Inquisçào. mas que não tem o direito de privar o arcebispado de um direito que pos­
sui e que se há duvidas ele se conform ará, mas com pareceres de letrados e não dos
inquisidores de Lisboa. Em carta seguinte, de 19 de Maio, diz que m andará ao vigário geral
que entregue o bígam o de que fala, não por ser jurisdição da Inquisição, mas pelas palavras
com que lho pediu o inquisidor-geral e para dem onstrar “com actos” que quer servir o
Santo Oficio, assum indo esta entrega não com o uma renúncia da sua ju risd ição ordinária,
que continuará a exercer nesta m atéria. Uma carta do C onselho para o arcebispo sobre esta
m atéria prova que o conflito foi a excepção e não a regra, pois nela se diz que os inquisi­
dores gerais haviam com unicado aos bispos que era ao Santo O fício que com petia tratar
destes casos e eles sem pre os rem etiam à Inquisição. Sobre a controversa questão do delito
de solicitação veja-se a excelente abordagem proposta por G iuseppe M arcocci. / tribunali
delia fe d e tn Portogallo nelC età dei concilio di Trento, op. cit., sobretudo p. 283-308.
” O caso mais sugestivo é o que envolveu o arcebispo de Évora, T cotónio de
B ragança, a que já se fez menção. Por vezes tam bém houve problem as com o lugar que
era dado aos prelados nas audiências a que iam assistir no Tribuanl da Fé. A ssim sucedeu
em 1560. O arcebispo de Lisboa. Fernando Coutinho. recusa-se a assistir ou a enviar d e le­
gados seus aos despachos da Inquisição por não lhe darem o lugar devido na m esa, ou seja
im ediatam ente abaixo do presidente que representava o inquisidor-geral. D eclarava ainda
nulos os procesos que se votassem sem ele, cf. IAN/TT, Inquisição de Lisboa. L ivro 330,
docum ento 40. publicado por Isaías da Rosa Pereira. D ocum entos.... op. cit.. p. 45-46.
72 JO S É P E D R O PAIVA

tiv essem in ten sifica d o com alguns prelados e que estes tivessem procu­
rado por vários m eios defender a sua ju risd ição e poder, actuando com
algum a autonom ia em relação ao Santo O fíc io , e até propondo vias alter­
nativas, m en os repressoras e m ais catequizadoras, para converter o s heré­
tico s, c o m o foi sugerido por G iuseppe M arcocci, para o s ca so s de
B artolom eu dos M ártires (arcebispo de Braga, 1 5 5 9 -8 1 ), Jerónim o O sório
(b isp o do A lgarve, 1 5 6 4 -1 5 8 0 ) e A n tón io Pinheiro (b isp o de M iranda,
1 5 6 6 -7 9 ) M. Tanto m ais que, pela m esm a altura, no co n tex to da estratégia
de aum ento da jurisdição do Santo O fíc io , através d o breve C um a u d ia -
m u s, de 14 de Abril de 1561, Pio IV co n ced ia ao inquisidor-geral a facu l­
dade de, sem pre que o achasse ju stificá v el, avocar a si as cau sas de
heresia pendentes nos ordinários, em qualquer estad o em que se e n c o n ­
trassem e de inibir, sob penas e c le siá stica s, o s ju iz e s aos quais estiv e sse m
afectas 8S. É sabido co m o o s prelados protestaram e deixaram d isso um
registo nuns A p o n ta m en to s que fizeram para as cortes de 1562. N esse
d ocu m en to procuraram ainda pressionar para que o seu controlo na vida
do Tribunal se e x ercesse, insistindo na n ecessid a d e de que o s tribunais
distritais da Inquisição fossem v isitad os regularm ente, de preferência por
p relados, e alvitrando co m o fundam ental a participação de prelados no
C o n selh o Geral da Inquisição
M as estes d esentend im en tos não assum iram proporções que ju stifi­
quem falar de qualquer confronto duradouro e sistem ático. Foram d esen ­
tend im en tos pontuais, se calhar m ais m otivados por relações p esso a is e

M Ver G iuseppe M arcocci, I iribunali delia fe d e in Portogallo nell età dei concilio
di Tremo, op. cit., p. 134-158 e 179-99. O autor, em tese distinta da que aqui propugnam os
defende: "Si puo affermare, in conclusionc, che se fra vescovi e inquisitori nel corso dei
C inquecento in Portogallo non si verified uno scontro aperto e duro com e in Italia o in
Spagna, sopravisse tuttavia alungo un conflito latente, chc derivava da una differente v i­
sione d ell’eretico, dei ruoli che le varie com ponenti delia C hiesa dovevano assum ere nell
controllo delia fede c dei metodi da adottare per sconfingere I eresia". p. 158. Pelo que con­
clui que a colaboração entre bispos e inquisidores foi "scarsa” e que uina “nova linha" mais
cooperante, só se iniciou no tem po do arquiduque Alberto, a partir de 1586. de que a bula
que o nom eia inquisidor geral, a Inter alias curas, é um instrum ento precioso, essencial e
definitivo, ao subordinar os bispos à autoridade da Inquisição, p. 310-312.
“ Este breve está publicado em Corpo diplomático Portuguez.... op. cit.. vol. IX. p. 233.
* Ver Biblioteca Geral da Universidade de C oim bra. A pontam entos dos prelados
deste reino nas cortes que se fizeram em Dezembro de 1562, m anuscrito 3187. M arcocci vê
neste docum ento um exemplo dc estratégias alternativas ü acção inquisitorial que um grupo
de prelados teria tentado praticar, opinião que não com ungo, ver G iuseppe M arcocci, / tri-
bunali delia fe d e in Portogallo nell'età de! concilio di Trento, op. cit., p. 127-34.
OS B I S P O S H A I N Q U I S I Ç Ã O P O R T U G U E S A ( 1 5 * 6 - 1 6 1 3 ) 73

clien tela res agastadas entre o s b isp os protagonistas e o cardeal D. H en­


rique, do que determ inadas por qualquer o p o siçã o aos poderes do
Tribunal. D e facto, parece que o s c a so s em que se con h ecem m ais c o n ­
trovérsias entre a In q u isição e o s bispos, durante o tem po em que foi
inquisidor-geral o cardeal D. Henrique, sucederam com prelados que esta ­
riam m en os próxim os da sua área clientelar e que teriam algum a p roxim i­
dade co m o círcu lo de in flu ên cias da rainha e d ep ois regente D. Catarina,
co m o foi su gerido por G iu scp p e M arcocci.

3. Conclusões

A o term inar esta reflex ã o , e apesar da esc a sse z d os estu d os actu al­
m ente ex iste n te s sobre a tem ática em epígrafe, pretendo sublinhar a lg u ­
m as das co n seq u ên cia s que esta coop eração entre o poder inquisitória! e
o poder ep isco p a l teve na vida portuguesa e, sim ultaneam ente, procurar
entender qual fo i a raiz. d e sse bom relacionam ento.
Em relação às c o n seq u ên cia s parece evid en te que a tendência global
para a sin ton ia entre este s d o is poderes foi m ais um e lem e n to que serviu
para reforçar a força e so lid e z da Igreja em Portugal. Por outro lado, foi
um factor que contribuiu de form a d ecisiv a para a preservação da integri­
dade relig io sa d o reino e para m anutenção da ortodoxia das práticas c
cren ças relig io sa s das p o p u la çõ es, bem co m o d os seus com portam entos
m orais. S e a d ifu sã o de correntes d issid en tes da ca tólica rom ana foi rela­
tivam ente m arginal em Portugal, na Época M oderna, isso não derivou, do
meu pon to de vista, de um a qualquer característica g en ética, ou essên c ia
ô n tica e sp e c ífic a s que fiz e sse m d os portugueses fervorosos fiéis do c a to ­
licism o . P elo contrário, tal d eve ligar-se à acção da Igreja portuguesa e
m uito esp ecia lm en te aos m ecan ism os de v ig ilâ n cia que foram criados
para preservar o reino do “co n tá g io ” das correntes heréticas que. d esd e os
in íc io s do sé c u lo X V I. am eaçavam a unidade da Igreja Rom ana. Ou seja.
a m inha tese é de que a unidade e com plem entaridade d estes im portantes
sectores da Igreja foi um d o s pilares da eficá cia da a cção de fisca liza çã o
d os com p ortam en tos e práticas relig io sa s das p op u lações e da lim ita d ís­
sim a d ifu sã o de grupos r e lig io so s d issid en tes em Portugal.
Q ual foi a raiz desta boa cooperação? O rei e o profundo cruzam ento
de relações entre as duas instâncias 4inquisitória! e prelatícia) através da
m obilid ad e de in d ivíd u os entre elas.
A forte intervenção d o rei na con stitu ição e im plantação d o Tribunal
em Portugal e o co n tro lo que exercia sobre o inquisidor-geral e o s bispos
74 JOSÉ PEDRO PAIVA

(era ele quem o s escolh ia, praticamente sem lim itações, desde o reinado de
D. M anuel) podem ajudar a perceber a cooperação, já que ela é do próprio
interesse do monarca r . A liás, o recurso ao monarca em situações de c o n ­
flito para tentar sintonizar as partes desavindas é sinal evidente do seu peso.
O cruzam ento de carreiras e a circu lação de p essoas entre as prelatu-
ras d io cesa n a s e o s lugares de topo da Inquisição foi outro factor deter­
m inante para a aproxim ação e coop eração que se verificou e isso . em bom
rigor, tam bém resultou das políticas de provim ento dos lugares da cú sp id e
das duas hierarquias que o m onarca adoptou. O s inquisid ores gerais, à
e x c e p ç ã o d o cardeal arquiduque A lberto, foram sem pre recrutados entre o
corpo d os bispos portugueses E dos 1 14 b isp os p rovidos entre 1536 e
1613, trinta, ou seja, 26.3% , tinham feito carreira prévia na Inquisição,
c o m o prom otores, deputados, inquisidores ou m em bros do C o n selh o G e ­
ral **. Esta percentagem sobe para 38% , se se com putarem apenas os b is ­
pos do con tin en te, sem dúvida, o s m ais influentes.
Em sum a. a ubiquidade de certos personagens, que fizeram carreira
na Inquisição antes de chegarem a prelados, ou de prelados que acabaram
a liderar o Tribunal da Fé, o que proporcionava a criação de relações
in terpessoais com o s aparelhos burocráticos das duas instâncias e dava um
co n h ecim en to p elo interior do seu fu ncionam ento, constituiu uin aspecto
determ inante para o clim a de boa coop eração entre as duas partes. E as
trocas não se faziam apenas ao m ais alto nível. Sobretudo até finais do
sécu lo X V I, foi frequente ver in divíduos que desem penhavam fu n ções
nos aparelhos da adm inistração ep iscop al (p rovisores, vigários gerais,
d esem bargadores) a exercer, em sim ultâneo, cargos nos tribunais distritais
da Inquisição (prom otores, deputados). S ó p elos fin ais do sécu lo X VI há
e c o s de uma p o lítica do Santo O fício que passa a e x ig ir um estatuto de
ex clu siv id a d e de fu n ções para o s seus agentes

” A forte intervenção do m onarca na vida da Inquisição já foi notada por Francisco


B ethencourt. Para ele a autonom ia do Tribunal em relação à C oroa só se com eça g rad u al­
m ente a m anifestar a partir dos finais dos anos 40 do século XVI. ver Francisco Bethen
court. H istória das Inquisições... op. cit.. p. 23-24 e F rancisco B ethencourt. "A
Inquisição" in C arlos M oreira Azevedo (dir.). H istória R eligiosa de Portugal, Lisboa,
C írculo de Leitores, 2000, vol. II. p. 100.
“ Cf. M aria do C arm o Jasm ins D ias Farinha, Os arquivos da Inquisição, Lisboa.
Arquivo N acional da Torre do Tombo. 1990. p. 301-302.
“ C álculo efectuado com base nos registos de uma base de dados prosopográfica
dos bispos portugueses, que serve de suporte a estudo que actualm ente preparo sobre os
prelados portugueses na época m oderna (1585-1777).
* Tal se depreende, por exemplo, de carta que o inquisidor-geral escreve para a
Inquisição de C oim bra, em M arço de 1578. na qual afirm a que pela visita que se m andou
O S B I S P O S E A I N Q U I S I Ç Ã O P O R T U G U E S A ( 1 5 3 6 161 J l 75

C o m o corolário, diria que o ca so português, tal quanto as poucas


in d agações já feitas deixam antever, parece ser distinto d o que se passou
nas outras In q u isições m odernas. Em Itália, onde existiam 171 d io c e se s e
4 2 tribunais distritais da Inquisição, verificaram -se situ ações m uito d is ­
form es co n so a n te o estatuto da Inquisição, a a cção concreta e a tradição
de actuação d os prelados no terreno. N as reg iões m ais afectadas pela
m onarquia h ispân ica, c o m o foi bem ex p resso por A g o stin o B orrom eo, em
relação à S ic ília , N á p o le s, M ilão e Sardenha, verificaram -se situ a çõ es
m uito variadas de coo p era çã o apesar de se ter a ssistid o geralm ente a uma
am biên cia de harm onia, que aquele autor atribui à proxim idade e m aior
subordinação de in qu isid ores e b isp os ao poder papal, que teria servid o
c o m o elem en to m oderador e dissu asor de co n flito s Por outro lado, nas
/o n a s integradas na R epública de V en e/a , até aos anos 6 0 do sé cu lo X V I,
houve grande articulação d os d o is poderes e até, co m o sugere A. dei C ol.
uma certa suprem acia d o s b isp o s sobre o s inquisidores
Em Espanha, o s m onarcas, talvez d esejo so s de lim itar e x c e ssiv a s c o n ­
centrações de poder nas m esm as m ãos. optaram por não privilegiar carrei­
ras fluidas entre as duas instâncias. M axim iliano Barrio G o za lo refere que
apenas 2 1Vt d o s b isp o s de C astela e L éon (entre 15 5 6 e 16 9 9 ) tiveram car­
reira prévia na Inquisição Para as d io ceses da G a li/a . no tem po de
F elipe II. con stata-se um a presença de b isp os com carreira prévia na
Inquisição ainda m ais d éb il, som ente d ois, num total de 31 nom eados w.

la /c r àquele d istrito soube que o prom otor daquela Inquisição lam bem era p ro v iso r e vigá­
rio geral do bispado, "e porque os cargos do Santo O fficio requerem m inistros m ais d eso ­
cupados". m anda que o despeçam , cf. IAN/TT. Inquisição de C oim bra. C aderno de
provisões cartas e outros papeis desde o anno de 1536 athe todo o ano de I5 W , Livro 271,
fl. 135.
" Cf. Agostino Borromeo. “Contributo alio studio dcH'Inquisi/ione...", op. cit.. p. 244.
' A este propósito A ndrea del C ol escreveu: "la m aggior im portan/a d ell'o rd in a rio
rispetto all'inquisitorc, l’intcrsecarsi dell azione inquisitoriale con il governo pastorale, la
pluralitá di giudici com petenti. la costan/.a dei raporti eon la C ongrcgazionc del
Sunt'U fficio, l'ap p o g io e il controllo esercitato delle au to n tà statali", cf. A ndrea Del Col,
/. 'In quisitione n e lpatriarcal!) e diocesi di Aquiieia, op. cit.. p. LXXV. Ver tam bém A ndrea
del Col. “O rganizzazione. com posi/ione e giurisdizione dei tribunali d c ll'ln q u isi/io n e
rom ana nella republica di Venezia <1500-1550)", Critica Siorica, XXV (1988). p. 244-294.
*' Cl M axim iliano B arrio G ozalo. Los ohispos de C astilla y Léon durante et
A ntiguo Régim en ( I556-IR 34). E stúdio so ciœ co n ô m ico , Zam ora. Junta de C astilla y León
C onscjeria de Lducaciôn y C ultura. 2tXJ0. p. 71.
** Cf. D om ingo L. G onzalez l.opo, " t l alto clero gallcgo en tiem pos de Felipe II"
in A ntonio F.iras Kocl (coord) El reino de G alicia en la m onarquia de Felipe II. Santiago
de C om postela. X unta de G alicia, 1998. p. 330.
76 JO S É P E D R O PAIVA

Este asp ecto , aliado à tendência para o alargam ento da ju risd ição in q u isi­
torial (norm alm ente apoiada p elo rei), ao carácter centralizador que a
Inq uisição geralm ente granjeou e ao forte sen tid o de autonom ia de certas
regiões acabou por criar uni quadro onde o s co n flito s foram m ais fre­
quentes e, por v ezes, extrem am ente v io len to s ” , Tal forçou alguns prela­
d os a recorrerem a R om a em d efesa da sua ju risd ição, co m o su ced eu , em
1595, por ex em p lo , com o arcebispo de Granada, que protestou em Rom a
contra o b stá cu lo s que a Inquisição lhe levantava à p u b licação de éd ito s
em matéria de fé Em ca so s m ais graves, a própria vida dos prelados
estev e am eaçada. D e facto, só em Espanha se c o n h ecem ca so s de b isp os
con den ad os pela Inquisição, co m o sucedeu com o arcebispo de T oledo,
B artolom é Carranza de Miranda, em 1559
Em Portugal predom inou um quadro de cooperantes relações e uma
relativa hom ogen eid ad e territorial de actuação, ju stifica d a s pela lim itada
ex ten sã o do reino, pela sua relativa unidade p olítica, pela capacidade de
interferência régia, pela escala reduzida das suas e lite s e pela p recoce e
forte cen tralização do Santo O fício.

” Tese já sustenluda por Francisco Bethencourt, H istória das Inquisições... op. cit..
p. 284.
* Ver A gostino Borrom eo, “C ontributo alio studio d cll'ln q u isiz io n e ...", op. cit..
p. 247.
91 H á m uita literatura sobre o processo inquisitorial contra o arcebispo de Toledo,
ver José Ignacio Telleehea Idigoras. El arzobispo C arranza v su tiempo, M adrid, Edi-
ciones G uadarram a, 1968 e do m esmo autor “El proceso del arzobispo C arranza" in Jo a ­
quin Perez Villanueva e Bartolom é Eseandell Bonel (dir.). H istoria de la Inquisición en
Espana y A m erica. M adrid, Biblioteca de A utores C ristianos. 1984, p. 556-598.

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