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Ismail Xavier O olhar e acena Melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues Cosac & Naify —cinamateca taste Cinema: revelagio e engano A TESTEMUNHA DE MccARTHY Hi quem tome o cinema eomo lugar de revelagiio, de acesso a uma ver- por outros meios inatingivel. H4 quem assuma tal poder revelatsrio ‘como uma simula de acesso a verdade, engano que no resulta de aci- dente mas de estratégia. E preciso discutir essa questo a0 especificar determinadas eondigbes de leitura de imagens para tanto, fago uma recs pitulagao histérica, pois 0 bindmio revelagio-engano projeta-se no tem- po, referido a dois momentos da reflexdo sobre cinema: o da promessa maior, na aurora do século xx, ¢ 0 do desencanto, 0s an0s 70-80. Comento, de inicio, uma situagdo extraida do dacumentério Poin of Order [1963], de Emilio de Antonio, filme que focaliza 0s processos as segs de tribunal no periodo do macarthismo nos Estados Unidos. Trata- sc detuma remontagem da documentacio colhida ao vivo nos interrogaté= rios. Em determinado momento, uma testermunha de acusagio ¢ inguirida pelo advogado de defesa de um militar acusado de atividades antiame: se advogado mostra uma foto a testemunha. Nessa foto se ve, numa tomada relativamente proxima, dus figuras: 0 réu-e, ao seu lado, alguém ja compromerido, jf indexado n: mostrar os dois conversando em tom de certaintimidade, é assumvida pela ccanas. aca is beuxas. A imagem, a0 promotoria como pesa importante da acusagia, O advogado pergunta i testemunha se considera foto verdadeira. A resposta é “sim”. O advogs- ito ampla, rupo de pessoas ~ dentre elas, algumas insuspeitas ~ e que trax nun dos cantos a dupa anteriormente vista na foro menor. Entenclemos sem demora que a primeira imagem 6 um recorte da segunda, ou seja,é parte ontexto maior, com muita gente envolvida, uma situago piblica aS ade entre 0 réu e seu interlocutor. que no denota nenhuma eumpli ev in : © cerioso no fato & que, ao ser reiterada a pergunta — “voce continua achando esta foto [menor] verdadeira2” -, a resposta & * arte Chaegamos aqui ao dado significative. A resposta surpre ilustra muito bem uma certa nogio de verdade, nogo muito mais presen 1 senso comum de uma sociedad como a nossa do que talvez gosta ie a verdade estava em cada mos, A testemunha trazia a conviegao de que pedaciaho da foto, como também da realidade, Aquele cant da insen uc eget extra do Sao ms, fo odo sem que se ale terase cada poato da for, sem maquiagem, em ateraso das rl ae quelhe sio interns. Logo, “conte verdade. ua imagem “eaptada”s as duas figuras estiveram efetivamente juntas diante da cimera (no ingest) © ne, ni alr oem ranha, para quem a verdade & soma, esti em cada parte. a crrnoscaler crore gato rnd pe bres conviegdes desse tipo de observador, asim embalado pela evidéncia ‘empiien trazida pela imagem. Mais até do que a acuidade a (es seta), imager oo (e ienaogecn) eh aed porque conepond um giao aon: hse imp tne na emulsio sensivel por um processo objetivo sustentado na causali- sncontto entre o olhar do sistema dade foroquimiea. Como resultado do eneo met de lentes (a objetiva da chimera) e 0 “acontecimento” ea ee a A imagem dese que funciona como um docunento, Quando se eq revalecendo a fé na evidéncia da imagem isolada, i por mais fungio do recone, hs temos um syjeito totalmente eativo do processo de simul parega. Caso tipico €0 dessa testemuha de MeCarthy, 8 simples que ele ° eonsagrar 0 engodo de uina promotor. oe Diante de tal na imagem, nossa primeira operagio & revert roxesso e charnar @acengo para a molehiea, para a rela entre a foto € erreur, par fae de que o semi seca paras eles nte o visivel eo invisivel de cada siruagla. Vou aqui um pouco adiante, para ressaltaro quanto, além da foto ede sex context, li que se inserir no jogo » turihéi o universo do observador eo tipo de pergunts que cle enderega i Imagem, Ou sea, dentro de que sinuaglo se da leiturne a6 longo de que «hk optonse verdade © mentira, revelagio e engano, Voltando & foro mionor apresentada pelo-advogado, constatamos, num nivel mais elemen- ‘ard inverrogzgio, que ela produ um residuo de documento na imagem dovinterlocutores (sia postura e suas roupas indieam certo estilo ete). No nano, ailegitimidade da foro € Nagrante quando fabrico o ato “conver 1 Inolada” ¢ 0 fago evidencin da culpabilidade, interessado na dimen: Politica da imagem. Quando pergunto pela autenticidade de uma imagem, Ilo estou, porranto, discutindo sua verdade em semtido absoluto,incondl- tionido Nao diseuto a existéncia das figiras dadas a0 olhar. Pergunto Peli significagio do que & dado a ver, numa interrogacio euja resposta Imobiliza dois referenciais: oda foto (enquadre e moldura), que define um apo visive e seus limites, ean abservador, que define tim campo de uestbes e seu estamto, seu lugar na experié No cinema, as relagdes entre visivele in individual e coletiva, vel, a eragio entre 0 Udo imediato sua significagao,tornam-se mais intrncadas. A sucesso Ue imagens criada pela montagem produ relagdes nowasa todo instante ¢ somos sempre levados a estabelecer ligages propriamente ni existentes fnatela, A montagem sugere, nds deduzimos. As signifieagses engendram- menos por forga de isolamentos (como na foto comentada) e mais por forga de contextualizagdes para as quaiso cinema possui uma liberdade in- ‘vel. sabido que a combinasio de imagens cria significados nfo pre- fenies em cada uma isoladamente, & célebre 0 experimento do cineasta {so Kulechoy, primero yrande rerico da montagem. Selecionando uma Une tomada do rosto de um ator ¢inserindo-a em contextos diferentes, ‘Hhogou a conclusses radicas: a cada combinagio orosto parecia expressar algo bem diferent, num espectro que ineluiaternura, fome, alegria. A clasticidade admitida por Kulechioy num prime momento (anos 410) foi depois atemuada por ele priprio ¢ teria hoje inggnuo supor oiler absoluto da montagem nesses casos. Dentro de determinados 10 no periodo do cinema mado era como a tl io da diferenga en- teas circunstineias da filmagem e asda imagem na tela para sugerir um

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