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moringa.

v8n2p43-55 | E-ISSN 2177-8841

CORPO, FESTA E PERFORMATIVIDADE:


ENCRUZILHADAS E REFLEXÕES DESDE A ORALIDADE
POPULAR BRASILEIRA

Body, Festivity and Performativity:


crossroads and thinkings since the Brazilian popular orality

Sayonara Pereira
Daniel Santos Costa
Universidade de São Paulo – USP

Resumo: Neste texto, buscamos refletir sobre o corpo no contexto da oralidade


popular brasileira, munidos de um referencial pós-colonial. Diante de nossa
análise, evidenciamos a revisão de uma postura metodológica e epistemológica de
investigações que lançam olhares ao universo performativo periférico e marginal,
lócus em que está inserida a maior parte das manifestações performativas da
oralidade popular brasileira, onde O corpo é uma festa!

Palavras-Chave: Corpo, Dança, Festa, Oralidade, Performatividade.

Abstract: In this paper we reflect on the body in the context of Brazilian popular
orality provided with a post-colonial framework. In front of our review we noted the
review of a methodological and epistemological stance of research focus looks to
peripheral performative universe and marginal, locus in which they operate most
performing expressions of Brazilian popular orality, where The body is a festivity!

Keywords: Body, Dance, Festivity, Orality, Performativity.

Revista Moringa - Artes do Espetáculo, João Pessoa, UFPB, v. 8 n. 2, jul/dez 2017, p. 43 a 55

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Sayonara Pereira
Daniel Santos Costa

A Igreja diz: O corpo é uma culpa. corpo em movimento e na velocidade.


A ciência diz: O corpo é uma máquina. (MARTINS, 2001, p. 84)
A publicidade diz: O corpo é um
Tais definições estão em acordo
negócio.
com a ideia de escrituras, inscrições
O corpo diz: Eu sou uma festa.
e experiências não registradas,
Eduardo Galeano1 como é o caso de grande parte da
cultura tradicional brasileira (ou o que
Parafraseamos o poeta uruguaio comumente é chamado de cultura
Eduardo Galeano na escrita deste popular brasileira) e aproxima-se, de
artigo, no qual “O corpo é um certo modo, aos processos formativos
festa!”. Desse modo, concordamos a nas artes da cena aliados à poética da
perspectiva apontada sobre o corpo e oralidade, daquilo que é voz, movimento,
seguimos um caminho, intersecionando ação, ou seja, experiências orais. Neste
uma possibilidade de pensamento lugar, pleiteamos uma similaridade
desde a oralidade popular brasileira. entre oralidade e corporeidade, pois, no
Mas, se falamos em corpo, por que não contexto em que interseccionamos tal
utilizar corporeidade popular brasileira reflexão, a oralidade envolve também o
em detrimento de oralidade popular corpo, ou seja, a oralidade, assim como
brasileira? define Setenta (2008, p. 143), pode ser
considerada uma “fala construída no
Elucidamos, no contexto de nossas
corpo e pelo corpo”.
pesquisas, a oralidade relacionada
nos efeitos da presença, do ambiente Recorremos, portanto, ao termo
e do corpo em ação numa concepção oralidade popular brasileira para nos
singular de performance, segundo referir a tradições populares ou tradições
preceitos de Paul Zumthor (1997) e de orais onde, por exemplo, a noção de
Leda Maria Martins, que apresenta o tempo, espaço e verdade histórica são
termo oralitura, definindo-o da seguinte problemas centrais para que possamos
maneira. entendê-las. Em tais espaços, o passado
está vivo e uma parte do presente e do
O termo oralitura, da forma como
futuro existe hoje desde sempre. São
o apresento, não nos remete
espaços do acontecimento, conceito
univocamente ao repertório de formas
e procedimentos culturais da tradição
que vem colocando em crise a ideia
linguística, mas especificamente
de história (ZOURABICHVILI, 2016;
ao que em sua performance indica
DOSSE, 2013). Aqui também, a ideia
a presença de um traço cultural de oralidade está imbricada à ideia de
estilístico, mnemônico, significante corpo, onde “a oralidade não se reduz
e constitutivo, inscrito na grafia do a ação da voz, mas expansão do corpo,
1 GALEANO, Eduardo. As Palavras Andantes. Trad. Eric
embora não o esgote. A oralidade implica
Nepomuceno. São Paulo, L&PM, 1994.

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Corpo, festa e performatividade:
encruzilhadas e reflexões desde a oralidade popular brasileira

em tudo o que, em nós, se endereça ao ou descritivo mas performativo.”


outro: seja um gesto mudo, um olhar” (MARTINS, 2003, p. 65). Igualmente,
(ZUMTHOR, 1997, p. 203). no universo da oralidade, o corpo é um
sistema complexo, lugar de saber, no
Assim, ao lidar com investigações qual os sujeitos que daí são insurgidos
e metodologias nesses campos de são tecidos de memória, onde o corpo
estudo, é preciso despir-se de noções significa e é significado. Tais articulações
de métodos e técnicas da ciência serão possíveis com o pensamento de
moderna. É preciso “abrir mão do mito Paul Zumthor (2007, 1997), acerca da
da fonte escrita para se confrontar com oralidade e performance, pois o autor
problemas metodológicos” (CALVET, também estabelece relação ente corpo,
2011, p. 117). É preciso confrontar-se oralidade e performatividade.
com a oralidade, fugir das simplificações,
apreender fazendo, brincando, Ao falar em corpo nesta paisagem da
dançando, cantando, imaginando. oralidade, é possível logo flexionar,
corporalidade (corpo + oralidade),
Os processos da oralidade acontecem, como uma qualidade movente do
muitas vezes, de modo análogo ao o corpo performativo. Desta articulação
pensamento da cena, aproximando o é possível perceber um abrangente
Teatro e a Dança, da Antropologia e conceito que possa mover o corpo em
Sociologia. Os Estudos da Performance processos de criação, investigação e
já possuem inúmeras produções performance. Para Zumthor (2007),
alicerçadas nas Performances Culturais, na poesia da oralidade, a voz assume
termo que é usado para referir-se condição de escritura, onde corpo e
a esse universo da oralidade, onde memória integram-se na expressão de
memória é conhecimento. Nesse lugar, um pensamento expandido e não linear
é importante ressaltar o amparo e busca num evento (acontecimento) atualizado
de diálogo constante com autores como no presente da ação performativa, onde
Daiana Taylor (2013), Leda Martins corpo é som, é silêncio, é f(r)esta.
(2003, 2001 e 1997), Ligiéro (2011),
Richard Schechner (2012, 2011 e 2006) Dessa f(r)esta, encruzilhamos olhares
e Victor Turner (2013). Especialmente, para um campo vasto: elementos
voltamos à Leda Martins, pesquisadora estruturais – danças, sonoridades,
brasileira que veio tramando, até então, corporeidades, rituais, o pensamento
a ideia de “oralitura”. A autora nos diz mítico (imaginação, símbolos e
que “numa performance da oralidade, metáforas) articulando com a criação
por exemplo, o gesto não é apenas performática. O pensamento sobre o
uma representação mimética e instaura corpo nesta complexidade associa-
a própria performance, ou ainda, o se, em metáfora, à festa. De alguma
gesto não é simplesmente narrativo maneira, a festa é uma forma de

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produção de conhecimento, uma os saberes que resistiram com


forma de apropriação diferenciada do êxito e as reflexões que estes tem
produzido e investigam as condições
mundo, paisagens da multidimensão, de um diálogo horizontal entre
do acontecimento, da contemplação, conhecimentos. A esse diálogo entre
do estado de presença, dos contágios, saberes chamamos ecologia dos
contatos e, certamente, de conflitos. saberes”. (SANTOS e MENESES,
2010, p. 11)
Ao adentrar esse espaço de
pensamento, e diante da tentativa Ao lado de Santos e Meneses, num
de compressão dos fenômenos no entrelaçamento também de teorias
universo da oralidade popular brasileira, contemporâneas para disparar o
tem sido necessário despir os olhares cerne desta discussão, trazemos para
colonizados que imperam nossas esta conversa autores diversos, pois,
reflexões. Assumindo tal postura, nos ao adentrar o terreno da oralidade
engajamos na compreensão sobre os popular brasileira, percebemos
registros e experiências advindas do que este espaço aproxima-se da
projeto de doutorado Da Oralidade noção de interdisciplinaridade ou
Popular Brasileira a uma Dança Teatral trasdisciplinaridade, pois oferece-nos
Performativa: o corpo pós-colonial possibilidade de um mover epistêmico
como um lugar de experiência, onde o que insurge de tais processos, nos
sujeito-pesquisador oriundo do universo quais confrontam e dialogam. É lugar
das Folias de Reis, em Minas Gerais e contato/contágio/conflito, no qual, nem
Goiás, espectador das performances- sempre acontece amigavelmente,
rituais de Umbanda, especialmente na pois encruzilham concepções e
cidade de Campinas – São Paulo, além ideais diferenciados, como reflexo da
do pertencimento ao Movimento dos complexidade da vida. Como exemplo
Sem-Terra, em Minas Gerais, durante de tais processos, apresentamos um
a década de 1990 e meados dos anos trecho que exprime tal dinamismo:
2000, esboçamos estratégias plausíveis Essa percepção cósmica e
para adentrar tais espaços. A crítica pós- filosófica entrelaça, no mesmo
colonial é trazida como contexto para circuito de significância, o tempo, a
tal articulação, principalmente junto ao ancestralidade e a morte. A primazia
do movimento ancestral, fonte de
pensamento de Boaventura de Sousa
inspiração, matiza as curvas de uma
Santos acerca das Epistemologias do temporalidade espiralada, na qual
Sul, que: os eventos, desvestidos de uma
cronologia linear, estão em processo
Trata-se do conjunto de intervenções de uma perene transformação.
epistemológicas que denunciam a Nascimento, maturação e morte
supressão de saberes levada a cabo, tornam-se, pois, eventos naturais,
ao longo do último século, pela norma necessários na dinâmica mutacional e
epistemológica dominante, valorizam regenerativa de todos os ciclos vitais

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Corpo, festa e performatividade:
encruzilhadas e reflexões desde a oralidade popular brasileira

e existenciais. Nas espirais do tempo, num posicionamento tensivo, complexo


tudo vai e tudo volta. (MARTINS, e híbrido.
2001. p. 84)
Sendo a encruzilhada a constituinte
Perceber e olhar esse viés cultura
dos processos de encontros, conflitos,
popular brasileira implica, contudo, um
sincretismos, aproximamos tal espaço
olhar para o sincretismo e a liminaridade
como uma festa, o espaço da ação e do
que se dão em encruzilhadas Os espaços
acontecimento no contexto da oralidade
de encruzilhadas como potencial lócus
popular brasileira. O acontecimento
de encontros e desencontros podem ser
da festa permite perceber a
relacionados a um espalho simbólico,
performatividade dos corpos nesses
no qual se processam caminhos
espaços liminares, pois, nos Estudos da
operadores de linguagens e discursos,
Performance, tal conceito é entendido
ou seja, trata-se de um entrelugar,
como o próprio acontecimento, ou
como nomeou o pensador indiano Homi
seja, o aqui e agora das ações, no
Bhabha (2013). O autor definiu esta
instante e na experiência, com toda sua
ideia como espaço propiciador de uma
expressividade e singularidades, lócus
produção de significados diversos e,
exponencial para desestabilização do
portanto, de sentidos, de elaboração
pensamento.
discursiva, determinadas pelos próprios
discursos que ali coexistem. Nesse A festividade como forma primordial
lugar, noções de um corpo-sincrético acentuada da civilização humana
ou corpo-encruzilhada podem ser é definida por Bakhtin (1999) como
pensadas como indicativos dos efeitos sendo um espaço de expressão,
de processos e cruzamentos discursivos imbricando tradição, símbolos e
diversos, intertextuais e interculturais. práticas. A festa poderá ser pensada
Martins (1997) aborda a encruzilhada como uma maneira de transmitir para
como lugar radial de centramentos, novas gerações práticas tradicionais e
descentramentos, intersecções, históricas a determinados processos
cruzamentos, influências, divergências, de vida e trabalho. Nesses espaços,
cisões, fusões, rupturas, multiplicidade percebemos o universo da oralidade
e convergência, unidade e pluralidade, popular brasileira constituído não só
origem e disseminação. de símbolos e gestualidade, mas de
uma apropriação corporal singular dos
Para Bhabha (2013), tal espaço não
sujeitos que habitam tais espaços,
está dentro nem fora, mas numa relação
recriando através de seus arquivos
tangencial entre essa fronteira ou uma
corporais, contando-nos, no espaço
zona de negociação entre dentro-fora,
do aqui e agora da performance, uma
centro-periferia ou, ainda, global-local
história incorporada numa integração
para a desestabilização de categorias
entre passado-presente-futuro, como
centralizadoras do pensamento utópico,

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nos é apontado abaixo: como terreno do possível.


A festa popular é o grande e fecundo O espaço da festa é múltiplo e
momento a nos ensinar que a arte de composto, nele, as metáforas provindas
viver e de compreender a vida que nos
envolve está na perfeita integração do imaginário são potências para
entre o velho e o novo. Sem o novo, pensar as suas estruturas e alargar
paramos no tempo. Mas sem o velho uma visão setorizada. Urge romper com
nos apresentamos ao presente e ao uma visão mesquinha e reducionista
futuro de mãos vazias. (PESSOA, desse acontecimento. Nesse terreno
2009, p. 44)
complexo, há a evidente necessidade
A festa como perspectiva do do entendimento da festa para além da
pensamento e estratégia de ação pode festa “fato”, para a festa “acontecimento”,
se relacionar a um espaçotemporal na qual estão implicadas questões
distanciado dos aspectos positivistas da dialética sociocultural, desde as
que estancam conceitos e posturas carências até as disputas de poder.
metodológicas. Ela instala-se, portanto, A festa é formada por experiências
num momento de rupturas em relação históricas; é fruto das movimentações
a um universo obediente e vinculado e interconexões dos corpos-culturais
a uma necessidade já imposta de que constituem uma das formas mais
sobrevivência. Para Ribeiro Junior reveladoras do modo de ser de um
grupo, de uma cidade e de um país,
(1982), a festa é como uma escola do é nesse espaço ‘intervalar’, que ficam
povo e “uma compreensão adequada suspensas algumas normas sociais
pode iluminar procedimentos, em que a e outras são invertidas”. (CASTRO
dimensão lúdica e a pedagógico-política JÚNIOR, 2014, p. 26-27)
da festa popular se interfecundam sem
Perceber o acontecimento da festa como
cair na manipulação do esvaziamento”
este espaço intervalar, ou encruzilhada,
(1982, p. 11).
abre frestas para pensarmos o corpo
A festa opõe-se ao cotidiano, contudo como lugar de experiência que, de
vincula-se a ele, transfigurando esse acordo com Larrosa (2014), trata-se de
espaço numa espetacularização que, ao um modo de habitar o mundo além, onde
romper a lógica cotidiana, abre caminho a experiência não pode ser conceituada.
para a própria arte. A festa ganha status Ela é a própria vida, transbordamento,
de performance e sua festividade a criação, invenção, acontecimento e,
dimensão da performatividade. Em neste contexto, pronunciam-se crenças
conformidade com esse status, a festa, e modos de pensar das comunidades
então, adere-se à dimensão da cultura, marginais, indicando a confluência de
expressando modos de fazer, pensar, diversos sistemas epistêmicos. O corpo,
estar e existir no mundo. Com esse que é festa, festeja, narra saberes,
descrever, a festa pode ser definida torna-se visível na instabilidade entre

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Corpo, festa e performatividade:
encruzilhadas e reflexões desde a oralidade popular brasileira

sagrado e profano, entre luzes e lógica utópica, pois o mito vivido


trevas, entre certo e errado e tantas como uma experiência não evoca
outras dicotomias. Trata-se de um necessariamente o sentido ou a verdade
corpo que é fé e divertimento, é vida que tanto postula o saber científico, mas
e é arte, embevece-se de tragédias habita a experiência sensível, como uma
e comicidades, ou seja, um corpo em maneira de pensar não linear, acessa os
exuberante produção de vida. recursos mnemônicos e, de acordo com
Taylor (2013, p. 138) ironicamente, se
Na oralidade popular brasileira, no parece com o conceito digital de redes,
cotidiano e nos espaços de festividades, circuitos e interconectividade.
é possível vislumbrar uma dramaturgia
corporal através dos estados do Com tais apontamentos, nos
corpo, mas sempre surpreendidos permitimos afirmar que, no momento
pelo fazer vivo desses acontecimentos do acontecimento da festa, há o
performativos, encontrando lugar no pronunciamento de conhecimento
tempo e espaço através da experiência. incorporado. Desse modo, a festividade
Nestes espaços, corpo não é apenas detona uma rede onde guardamos tudo
uma imagem cultuada, mas é o próprio que vivemos, mas é preciso atentar que:
acontecimento da experiência, buscando
(...) o conhecimento é como o
sempre estratégias adaptativas, pois, coração, escondido, batendo,
segundo Diana Taylor (2013), “os brilhando imperceptivelmente,
saberes corporificados são aqueles que regulando canais que correm para
foram constituídos historicamente na trás e para frente para outros canais,
relação com a experiência social e que torrentes e correntes inesperadas,
controladas pela complexidade
compõem nosso repertório, podendo radial de ventrículos centrais muito
ser imediatamente utilizados na solução poderosos. (TAYLOR, 2013, p. 126)
de novos problemas”.
Nesse momento, os apontamentos
Taylor (2013) nos diz que as crenças e supracitados deflagram a metáfora de
os modos de pensar das comunidades um espaçotemporal da oralidade popular
marginais indicam a confluência brasileira como festa, na qual está
de diversos sistemas epistêmicos, nitidamente ancorada na presença e
aproximando-se ao conceito do multidimensão. Tais fatores corroboram
“pensamento mítico”, do antropólogo com as proposições de performatividade,
mexicano Alfredo López Austin. Este ou seja, onde o discurso é o exercício do
conceito permite aproximação com a corpo em ação, onde o acontecimento
ideia do Pensamento Selvagem, de é experiência ou a experiência como
Lévi-Strauss (1997), que se aproxima acontecimento. Daqui, é possível
a um bricoleur, aquele que reorganiza reelaborar suposições metodológicas
o mundo em combinações, sem uma e mesmo epistemológicas que partam

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de uma postura da encruzilhada, dimensão extensa e complexa desses


metáfora da festa, ativado pelo desejo, terreiros e territórios, especialmente
pela alegria, pela intuição, pelo instinto. a popular, tem-nos a ofertar sem os
Desse mesmo lugar, é necessário fantasmas das essências românticas e
reavivar uma postura metafórica, pois colonizadoras, pois o colonizado, como
como elucida Domenici (2009) tal observa Santos (2010a), sempre sofre
proposição torna-se pista para estudar com um déficit de representação em
o próprio corpo no contexto da oralidade nome próprio. Entendemos, então, este
popular brasileira. momento como terreno propício a pulsão
de uma transgressão metodológica
Apresentamos, diante disso, como (SANTOS, 2010b, p.78), num momento
proposta de investigação, a ideia de intitulado pelo autor de paradigma
um corpo pós-colonial como um lugar emergente, no qual “a distinção
de experiência, um corpo sincrético, hierárquica entre o conhecimento
o qual simboliza um local para se científico e o conhecimento vulgar
colocarem questões epistemológicas tenderá a desaparecer e a prática será
sobre as artes da cena, tendo em vista a o fazer e o dizer da filosofia da prática”
perspectiva do corpo como operador de (2010b, p. 20).
pensamento, buscando uma episteme
plausível, “considerando epistemologias As Folias de Reis são manifestações
locais, que incluem visões de mundo performativas vinculadas ao catolicismo
e formas de conhecimentos bastante popular e que se baseiam na atualização
específicas” (2009, p. 9) e também do mito de nascimento do Menino Jesus.
como Costa e Navarro elucidam abaixo: Os manifestantes buscam não somente
rememorar suas narrativas fundantes,
Como modelo de vida menos
dicotômico, observa-se, por exemplo,
mas atualizam-nas performativamente
que não há momentos específicos de por meio de toda diversidade de
treinamento, pautados na oralidade – símbolos, ritos, gestos, cantos,
não restrita à fala – e na corporeidade, músicas, ritmos, cores e do sentido
os processos de transmissão e de mítico de cada um desses elementos.
transformação vão ocorrendo sem
grandes dores. (2014, p. 149)
Volta-se ao mito, numa encruzilhada
espaçotemporal intangível. Trata-se,
Os olhares que tecemos com as Folias contudo, de uma manifestação que
de Reis e as Umbandas, manifestações acontece no espaço da cidade, de
da cultura brasileira, demonstram forma processional, conhecida como
aptidão destas a um sincretismo giros que se movimentam, geralmente
dinâmico para sua manutenção na entre dezembro e janeiro, cumprindo um
contemporaneidade. Precisamos, roteiro de saída, visitações e chegada,
contudo, estar atentos ao conhecimento considerada uma das manifestações
local e nos adequarmos acerca da mais amplas em rituais, sendo a

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Corpo, festa e performatividade:
encruzilhadas e reflexões desde a oralidade popular brasileira

festa o acontecimento principal. Tal mascarada, que, conforme Huizinga


acontecimento marca o fim e novamente (2007, p. 16), atinge o máximo da
o começo, pois nas manifestações natureza “extra-ordinária” do jogo.
da oralidade popular brasileira há um
intrínseco movimento espiralar untado à O olhar que tecemos com as Umbandas
conexão passado-presente-futuro. está muito mais na mitopoética da
sua manifestação do que na estrutura
Uma das figuras mais emblemáticas de ritual em si. Tal manifestação “(...) é
tal manifestação é o palhaço ou bastião. um exemplar desse registro sincrético,
Diferentemente dos corpos densos, fundindo em seu tecido cognitivo e ritual,
frágeis, lentos dos foliões mais velhos, elementos de outros sistemas religiosos
os palhaços das Folias apresentam um nagô, banto, católico, tupi-guarani,
corpo leve, ágil, mesmo quando também kardecista, espírita numa reformulação
são pessoas idosas. Há uma dualidade sui generis” (Martins, 1997, p. 14).
muito bem apresentada, onde sagrado
e o profano manifestam-se em seus Como uma religião que vem se
corpos performativos e tais palhaços desenvolvendo, desde a década
dançam, pulam, rolam no chão. São de 1930, num contexto de intensos
criadores excêntricos, no sentido sincretismos entre tradições religiosas,
strictu da palavra, mascarados e com a aglutinação umbandista é uma
vestimenta e adereços bem marcantes. composição sistêmica, e vem ao encontro
São personagens enigmáticas, de uma perspectiva da formação da
provocadores de controvérsias, sendo sociedade brasileira, mestiça, híbrida,
singular figura/personagem que limiar, ou seja, uma encruzilhada onde
apresentam movimentos dançantes, poderemos profanar estratégias para
ágeis e de descolamentos coreográficos olhar, metodologias para amalgamar
e declamações de chulas (versos processos e uma episteme plausível
burlescos e jocosos) que destoam da para o contexto que habitamos.
procissão que os sucedem no espaço Da ideia de um pensamento marginal,
ritual, onde se vincula cada vez mais a provocamos que a partir da experiência
ideia cristã da manifestação, fato menos é possível alcançar caminhos
observado quando tais manifestações singulares para a solidificação de uma
ainda eram de primazia rural. produção artística contemporânea,
Contudo, nos aliamos ao sentido da pois a experiência está relacionada à
performatividade que tais manifestações influência que o indivíduo recebe do
podem provocar, seja numa postura meio. No entrelugar, conforme definiu
metafórica, no sentido mítico ou no fazer Bhabha (2013), ou a encruzilhada,
analógico. A capacidade de tornar-se de Martins (1997), um espaço de
outro e o mistério do jogo manifestam- intersecções disponível ao híbrido será
se de modo marcante no costume da sempre possível a profusão do novo, do

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Sayonara Pereira
Daniel Santos Costa

combate as ideias paradigmáticas dos novos sentidos e mais uma vez reivindicar
dualismos, pois vê uma combinação a experiência, o acontecimento da
entre os duplos, como homem e experiência.
ambiente, natureza e sociedade, arte e
(...) o corpo em performance é, não
ciência. apenas, expressão ou representação
de uma ação, que nos remete
Ao olhar para a oralidade popular simbolicamente a um sentido, mas
brasileira, operaremos na lógica do principalmente local de inscrição
mito, uma relação espaçotemporal de conhecimento, conhecimento
ancorada no acontecimento, fato que este que se grafa no gesto, no
“foi escorraçado na medida em que movimento, na coreografia, nos
solfejos da vocalidade, assim como
foi identificado com a singularidade, nos adereços que performaticamente
a contingência, o acidente, a o recobrem. Nesse sentido, o que o
irredutibilidade, o vivido” (MORIN, 2005, corpo se repete não se repete apenas
p. 181). Deslocando o olhar para tais como hábito, mas como técnica e
espaços da oralidade, necessitaremos procedimento de inscrição, recriação,
transmissão e revisão da memória
romper muito mais a lógica que do conhecimento, seja este estético,
predomina em muitos processos filosófico, metafísico, científico ou
artísticos contemporâneos: a imitação tecnológico, etc. (MARTINS, 2003, p.
colonial, conceito postulado por Santos 66)
(2008).
Essa reivindicação chega aqui na forma
Aliado a este estudioso português, de uma obra artística e agarrada no corpo.
nossa investigação está enraizada Ô de Casa? Ô de Fora! ou a história do
numa perspectiva pós-colonial, em homem que pediu uma Folia a Pombagira
prática performativa e os discursos Cigana (https://www.youtube.com/
que constroem as narrativas coloniais, watch?v=8LBh3OG00j8), estreado em
aproximando da escrita do próprio 2014, trama uma possiblidade de ser
colonizado que traz imbuído em sua brasileiro e uma organização singular
ação (discurso performativo) um da (i)materialidade do processo. Fruto
modo de organizar o pensamento da hibridização de linguagens, das
artístico as ausências que o discurso experiências em processo, do corpo
hegemônico ocidental nacionalizante em constante estado de criação,
e normativo postulou, apontando para e atravessado transversalmente
tais prerrogativas: a experiência como por uma marginalidade cênica, nos
acontecimento, a ambiguidade de preocupamos com o diálogo do sujeito
referências, proposições e intervenções com o mundo. Tal percurso culminou no
práticas, multiplicidade de perspectiva, que denominamos uma Dança-Teatro
criação de novos argumentos, novos Brasileira (COSTA, 2016), enredada na
posicionamentos diante do mundo, própria dramaturgia das manifestações
da oralidade experienciadas.

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Corpo, festa e performatividade:
encruzilhadas e reflexões desde a oralidade popular brasileira

Ao assumir o risco propositivo da Vieira. São Paulo: Parábola Editorial,


exclamação O corpo é uma festa! 2011.
apostamos para além do diálogo com
a oralidade popular brasileira, mas uma CASTRO JUNIOR, Luís Victor. Festa
tentativa de aqui se instalar. Fugindo do e corpo: as expressões artísticas nas
olhar generalizador, no espaço intersticial festas populares baianas. Salvador:
da encruzilhada, estabelecemos nosso EDUFBA, 2014.
posicionamento político como prática COSTA, Daniel S. Cena e Conhecimento:
performativa, um espaço do aqui e esboçando corpos emblemas. In:
agora, da não representação e do COSTA, Daniel S. (Org.) Estudos sobre
não mimetismo. Nesta perspectiva, o o corpo. Jundiaí: Paco Editorial, 2017.
processo de criação é produção de
conhecimento pautada em inquietações COSTA, Daniel S. (Org.) Estudos sobre
das negociações binárias tais como o corpo. Jundiaí: Paco Editorial, 2017.
singular/coletivo, eu/outro, teoria/
prática, presença/representação, onde COSTA, Daniel S.; PEREIRA, Sayonara.
o corpo fala, diz, performa seu ponto de Da oralidade popular brasileira a uma
vista sobre o mundo. dança teatral performativa: o corpo
pós-colonial como lugar de experiência.
Revista Conceição|Conception
(Universidade Estadual de Campinas),
Recebido em: 30/11/2016 vol. 05, nº 01, p. 58 – 69, 2016. Disponível
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