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Globo Repórter, de cineastas a jornalistas: uma história das mudanças de formato - Igor Sacramento

Globo Repórter, de cineastas a jornalistas:

uma história das mudanças de formato

Igor Sacramento (UFRJ, doutorando)

A consagração de um formato

Em 4 de abril de 1973, em sua primeira edição, o Globo Repórter apresentou

quatro reportagens. Todas contavam com a narração em off, uma exigência

da direção da emissora para o programa, pois era uma maneira de facilitar

o entendimento do público. Além de apresentar o programa, Sérgio

Chapelin se tornou o narrador oicial, dando lugar, por vezes, a Cid Moreira.1

Inicialmente, a equipe ixa do programa era formada por dez proissionais, entre

redatores e cinegraistas, comandada por Paulo Gil Soares e supervisionada por Moacir

Masson, diretor do departamento de reportagens especiais da emissora. Sobre o

formato do programa, Paulo Gil contou a Paula Muniz as diiculdades

enfrentadas para manter o legado da série Globo-Shell Especial na produção de


documentários brasileiros sobre o Brasil. A direção da emissora preferia que fosse

adotado como modelo o programa jornalístico estadunidense 60 Minutes, da CBS

News, criado pelo produtor Don Hewitt, em 1968, e que foi pioneiro na

realização de reportagens investigativas centradas na experiência do

repórter no vídeo – a sua visão dos acontecimentos e das personagens:

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Em 1973, foi programado um novo jornalístico e numa reunião


[Boni] me pediu para ver um cassete do programa americano
60 Minutes [...]. A partir da experiência do Globo-Shell, insisti se
poderia fazer um programa de jornalismo aprofundado com
formato de documentário. Boni topou a idéia e pediu que se
izesse um piloto. Fizemos, mas ele não se convenceu de que
aquele formato deveria ser usado de imediato e ordenou que,
nas primeiras experiências, num programa de 43 minutos
úteis e quatro intervalos comerciais, desenvolvêssemos 4
temas diversos [e fazendo uso do repórter].

Por sua vez, Washington Novaes (2007) explicou que, a partir dessa

decisão, o programa passou a ter um princípio básico:

Não podia haver repórter diante das câmeras. O Paulo Gil


costumava dizer que a linguagem era da câmera e que não era
uma coisa que dependia da presença do repórter, não era o
que importava. [...] Era um formato mais do documentário, do
cinema mesmo. O nome era Globo Repórter, mas o repórter
não era a estrela; o sentido de reportagem era outro, o que
importava era o fato e mais nada .2

Sendo assim, num primeiro momento, prevaleceu o formato pretendido

por Paulo Gil e não o preferido por Boni. O documentário tomou a dianteira em

relação à reportagem, assim como os cineastas em relação aos jornalistas.

Quando conversei com Walter Lima Júnior, em 3 de janeiro de 2008, ele

comentou que o formato de documentários exigido pelo diretor do programa era

baseado nas diferentes possibilidades da linguagem cinematográica, mesmo

mantendo certas características da reportagem televisiva: “O diretor podia apostar

numa certa relação com o entrevistado, podia tirar o off e deixar o povo falar, mas

tinha que trazer alguma coisa. Tinha que trazer alguma notícia. Tudo tinha que ser

factual e atual”. A proposta era, portanto, sobrepor a informação à opinião.

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De modo complementar à opinião de Walter Lima Júnior, quando

rememorou o formato do Globo Repórter, Maurice Capovilla (2007) opôs o

documentário da reportagem a partir da inscrição temporal:

O que a gente fazia era diferente de jornalismo. No


jornalismo, você tem uma pauta e um conhecimento prévio
do real e se situa nele. O fato é temporal e não atemporal
como no documentário. A reportagem tem que ir para o ar.
Tem que ir pro ar no tempo que derem. O que entrava na
TV em termos de informação era o jornal das oito horas e
nós entramos com um negócio que eles nunca imaginaram
que fosse possível. [...] Era algo que passava a informação,
mas que não tinha um locutor, que não usava o repórter.
Cadê o repórter? O repórter só atrapalha no nosso caso.
Essa idéia de que o repórter é fundamental é uma visão
jornalística do mundo e nós rompíamos com isso.

As declarações dos cineastas fazem lembrar uma distinção. De modo geral,

os documentários investem na relação entre o diretor e o entrevistado e num certo

engajamento do primeiro em relação ao conteúdo dos relatos e dos documentos

utilizados (NICHOLS, 2007, p. 47-71). Por outro lado, as reportagens nas suas

variadas formas de construção trabalham as notícias (news of the day) como “os

registros da realidade”, destinadas à rápida absorção pelas estruturas de

continuidade que regem a temporalidade cotidiana e a exorcizar o que há de novo

ou de ruptura no acontecimento, porque “a ‘novidade’ já é um singular

estaticamente esperado (o atropelamento, o crime passional, o ato de um

governante, a decisão econômica etc.)” (SODRÉ, 2001, p. 131-151).

“A Associação de Críticos de Arte do Estado de São Paulo acaba de

concluir que não há melhor programa jornalístico na televisão brasileira que Globo

Repórter”. Foi o que se leu, em 21 de julho de 1974, na matéria do Rio Show de O

Globo, “Globo Repórter (e seus orgulhosos repórteres)”. Entrevistado, Paulo Gil

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tratou do projeto desejado pelos primeiros organizadores do Globo Repórter

e do que estava sendo praticado à época:

A gente pensou em fazer um enfoque cinematográico da


realidade brasileira e em trazer o pessoal do cinema para
fazer esse negócio na televisão. Nós considerávamos, então,
a tevê apenas como veículo e nem tínhamos linguajar
especíico de televisão. Aí, fomos alargando para enfocar a
realidade mundial e fomos forçados a criar uma linguagem, ao
mesmo tempo, original e perfeitamente identiicada com o
meio de que nos servíamos (O Globo, 21 jul.1974).

Identiicado como um “orgulhoso repórter”, Paulo Gil Soares assumiu

outra posição. Com vontade de realizar um “enfoque cinematográico” para a

televisão, o então diretor do Globo Repórter notou que havia um “linguajar

especíico” em virtude do qual foi “forçado” a criar “uma linguagem original e

perfeitamente identiicada com o meio”. Mesmo tendo que mudar a proposta

inicial – o programa chegou a contar com a presença de repórteres em frente

às câmeras e não só na função de pesquisadores, com reportagens e não

exclusivamente com documentários (SACRAMENTO, 2008) –, Paulo Gil havia

conseguido, em alguma medida, desenvolver um formato de documentário

para o programa. Sendo assim, o diretor do Globo Repórter e equipe arquitetaram

um “novo esquema” que pudesse atrair o público, obter sucesso de crítica e,

enim, dar lucro para a emissora.

Washington Novaes (2007) contou-me que havia um convívio tranquilo

entre cineastas e jornalistas. Para ele, as funções eram divididas e não havia

distinções. “Dependendo do formato do programa, eu icava com a edição, eles

cuidavam da direção das gravações, mas era uma relação muito tranquila, tanto

com o Coutinho ou com o Walter, como com os de fora”, disse ele. Comentando

essas particularidades da produção, Eduardo Coutinho (2007) contou:

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Fazia tudo que mandavam, fazia versões, roteiros,


adaptações de ilmes estrangeiros, edições. [...]. Em cinco
ou seis dias tinha que estar tudo pronto para ir pro ar. Em
geral, além disso, eram trabalhos feitos num padrão de
orçamento muito mais rígido. [...] No meu caso, em alguns
momentos, era possível fazer alguma coisa que parecia
documentário, mas eram raros os momentos.

Existe, aqui, de certa maneira, uma concepção idealizada do status do

documentário como arte e, portanto, relacionado à liberdade, à autenticidade e

à criatividade. Desse modo, num extremo oposto, estaria a reportagem

televisiva. Assim, a arte (o cinema documentário) é tomada como contraponto

– e como resistência – à indústria cultural, particularizada na reportagem

televisiva Por isso, deveriam ser buscados os “momentos de documentário” e

se livrar dos de reportagem.

No entanto, tanto o documentário como a reportagem são produtos da

indústria cultural. O que os distingue são os diferentes processos de legitimação

social a que estão submetidos, de que fazem parte e por meio dos quais existem.

Pensando nisso, o que também chama a atenção nessa declaração é que, mesmo

com aquela idealização – ou até por causa dela –, houve uma luta pelos momentos

de documentários, ainda que raros. Vendo assim, a oposição entre os formatos

não se torna tão rígida. Documentário e reportagem impregnavam-se.

Todavia, esse processo não invalida a distinção social que é feita entre

arte e mercadoria, entre documentário e reportagem, para usar as impressões

implícitas no relato de Coutinho. Então, por tudo isso, considero que, quando

o cineasta, assim como os outros, foram trabalhar no Globo Repórter, eles

buscaram de modo ousado e difícil conjurar uma estética politicamente

engajada a partir de dentro da própria indústria cultural.

No dia 22 de agosto de 1978, foi exibido Theodorico, o imperador do sertão,

um documentário sobre o major, latifundiário e deputado federal Theodorico

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Bezerra, “um típico representante do coronelismo ainda vivo e atuante”, que foi

narrado pelo próprio entrevistado (O Globo, 22 ago.1978). Na sua coluna, Artur da

Távola (1978a) festejou a veiculação de uma “obra-prima do cinema documental”

pela televisão:

O imperador do sertão, dirigido por Eduardo Coutinho e


fotografado por Dib Lufti, é uma obra-prima do cinema
documental [...], retrato de uma realidade do Nordeste do país
[...]. Narrativa exemplar como técnica de cinema documental, sem
uma palavra sequer do diretor do ilme, toda ela (a narrativa) feita
através da própria voz do “Imperador do Sertão” [...]. Parabéns a
Eduardo Coutinho, a Dib Lufti, ao pessoal do
som e da montagem, e aos responsáveis pelo Globo Repórter.

Coutinho (2007) explicou a diiculdade de fazer um programa sem a narração

em off. Para ele, o programa estava arraigado numa concepção tradicional de

documentário, com propósitos didáticos e em que a narração era oferecida como

guia da leitura e como “a” verdade para o telespectador3. Para fazer algo novo, o

cineasta revelou a estratégia para fazer o que queria e comentou que a semelhança

de Theodorico com Chacrinha, que, na época fazia sucesso na TV Bandeirantes,

também foi usada como argumento para o documentário ser

exibido sem problemas:

Eu previ que ia ter locutor e, no último dia, eu botei ele


[Theodorico] sentado na frente da fazenda e pedi que ele se
apresentasse e se despedisse, porque, assim, o ilme icaria
fechado, não teria espaço para mais nada, para intromissão
nenhuma, entende? [...] Então, eu nem escrevi a cabeça, nem
escrevi o texto para o narrador na cabeça para apresentar nada e
o ilme icou sem locução. [...] Curiosamente, a maior concorrência
era o programa do Chacrinha. E ele é a cara do Chacrinha! Isso é
sensacional! Eles eram parecidíssimos, aquele nariz, aqueles
óculos, aquele jeitão de nordestino. [...] É surpreendente, porque
só isso já tornava o ilme competitivo.

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No dia 28 daquele mês, Artur da Távola (1978a), no artigo “A boa

briga das terças”, comemorou o fato de o Globo Repórter ter vencido a

disputa pela audiência. Mesmo concorrendo com “a linha de shows de

extremo apelo popular” das outras emissoras, venceu “a qualidade e o

bom gosto” da obra-prima, como escreveu o jornalista.

Um formato em crise

Em 30 de abril de 1980, em uma entrevista ao jornal O Globo, preocupado

com a sucessiva perda de audiência do Globo Repórter para a Buzina do Chacrinha,

da TV Bandeirantes, o diretor da Central Globo de Jornalismo contou que estava

implementando uma nova proporção entre a produção de documentários e a de

reportagens, com utilização de novas tecnologias:

Temos a preocupação de aperfeiçoar e balançar esse


equilíbrio. A reportagem na TV tende a crescer, a meu ver,
cada vez mais. Sobretudo quando o telejornalismo tiver a seu
alcance equipamentos ainda muito mais soisticados do que
existem. Ou seja, equipamentos portáteis, que permitam a
reportagem investigativa, uma das mais fascinantes. Por
enquanto, os equipamentos são muito ostensivos, o que não
permitem ainda o trabalho de realizar plenamente a
documentação de denúncia. Por enquanto, o repórter de TV
ainda é um agente secreto com crachá no peito.

Desde o início de 1982, por conta das sucessivas crises de audiência,

o Globo Repórter passou a ser exibido sem regularidade. O programa não foi
transmitido entre janeiro e março daquele ano. Em 11 de março de 1982, o

Globo Repórter voltou à grade da TV Globo junto com o lançamento da nova

programação da emissora. Um de seus destaques foi o retorno de

Chacrinha com o programa Cassino do Chacrinha.

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O Globo Repórter, criado para superar os programas popularescos, estava,

em outro momento, perdendo audiência para eles, e a TV Globo, procurando

reconquistar a identiicação com o gosto popular. A contundência desse retorno

não se encerra, porém, numa estratégia da TV Globo de reconquista da audiência,

incorporando aquilo que fazia sucesso na época, aquilo que ameaçava a sua

liderança até então inabalada. Essa incorporação é também uma derrota; é a prova

de que algo escapava, de que a “fabricação” do gosto do público não é estável,

não é controlável, mas é, de certo modo, imprevisível.

Além disso, deve-se lembrar que essa nova apropriação do popular

constituiu o quadro de esvaziamento do Estado militar e de seu sistema de “moral

e bons costumes”, num momento de redemocratização. Eram tempos propícios

para a reconiguração da ribalta televisiva4. Com aquela (nova) aquisição, a TV

Globo não teria mais ameaças à garantia de sua liderança folgada e poderia

continuar investindo no desenvolvimento de uma “televisão de qualidade”,

embora contendo a “televisão do grotesco”.

Nesse contexto, no Globo Repórter, não haveria mais espaço para o cinema.

O programa deveria se renovar, tomar a aparência de novo e buscar uma

linguagem ágil e investigativa, mais jornalística. A linguagem deveria ser do

repórter e não mais da câmera – a reportagem e não mais o documentário. A

câmera tinha de atuar em função do estilo do repórter, do posicionamento dele

em frente a ela e não a partir dos personagens e dos fatos narrados. A linguagem
do cinema não era mais novidade. Imprimi-la à televisão havia se tornado algo

obsoleto e oneroso. Com a popularização do uso da tecnologia do videotape (VT),

na década de 1980, surge uma alternativa mais barata. Sua principal inovação era

permitir maior rapidez no processo de gravação e de edição das imagens,

eliminando a perda de tempo com a revelação de ilmes e com a moviola. Em 1976,

a TV Globo inaugurou o Eletronic News Gathering (ENG), pequenas unidades

móveis, dotadas de câmeras leves e de fácil manuseio (substitutas das câmeras de

16mm, do cinema), transmissores de micro-ondas, videotapes e sistemas de

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edição, que possibilitavam o envio de imagens e sons diretamente do local

dos fatos em “tempo real” e “em cima do lance”.

O uso de tais inovações tecnológicas permitiu ainda ao jornalismo televisivo a

consolidação de um formato narrativo centrado na performance dos repórteres.

Antes, quando era usada a tecnologia do cinema, o repórter pouco podia aparecer

no vídeo, uma vez que era necessário economizar película, material bastante caro

na época. Com essa nova estrutura de produção, os jornalistas passaram a não se

limitarem basicamente a apurar informações, mas puderam gravar passagens5. Com

isso, também, criava-se uma ideia de onipresença da TV Globo (especialmente

encarnada pelo Jornal Nacional), já que por meio de seus repórteres a emissora se

mostrava apta para estar simultaneamente em diferentes regiões do país e do

mundo. Era uma possibilidade de demonstração de eiciência e de poder

(BARBOSA & RIBEIRO, 2005, p. 216-217).

O signiicado da passagem do repórter para frente das câmeras no

Globo Repórter não se encerrou na transição do formato do documentário

para o da grande reportagem, mas correspondeu a uma ressigniicação da

autoria no programa. Nesse sentido, menos do que uma posse estilística,


um dom natural, na acepção romântica, a autoria estava sendo disputada

como um lugar de visibilidade e de reconhecimento dos proissionais em

relação a seus pares, ao público e ao mercado de bens culturais. Assim,

mais do que o mestre de cerimônia dos acontecimentos, o repórter passou

a ser o protagonista da história, e também seu autor.

Um artigo de Artur da Távola, intitulado “Haverá estilos pessoais na

reportagem de televisão?”, publicado em O Globo, de 5 de abril de 1982,

reconheceu que a mudança no formato do Globo Repórter estava garantindo

um frescor de novo a um antigo produto e exaltou o fato de o programa

permitir uma instância experimental na qual o repórter poderia estilizar as

matérias e colocar-se como pessoa, com temperamento, como criador,

investindo em seus estilos próprios.

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Na televisão, como indústria cultural, não pode existir fórmula consagrada e

repetida sem im. Mesmo assim, a inovação surge destinada a um particular tipo de

padronização que confere ao mesmo tempo uma aparência de “entidade singular” a

produtos amplamente e repetidamente consumidos e conhecidos (os documentários

dirigidos por cineastas e, posteriormente, os repórteres no vídeo). Cria-se

constantemente, entretanto, a sensação de que se está diante de algo único, de um

formato nunca antes realizado. Faz-se necessária, ainda, a produção de estímulos que

provoquem permanentemente a atenção do consumidor, rompendo qualquer tipo de

resistência possível e criando um hábito de consumo (ADORNO, 1987). Se a linguagem

da câmera não estava mais em voga, a linguagem do repórter era o mote para novas

estratégias de reposicionamento do programa no mercado televisivo (depois da queda

de audiência) e para o agenciamento de novos gostos no público com a oferta de

padrões estéticos atualizados para garantir a vitória na briga pelo lugar mais alto – e

mais destacado – do pódio.

A partir de junho de 1982, o Globo Repórter não foi mais apresentado, e

apenas voltou à grade de programação em 22 de setembro de 1983. Com o

cancelamento do programa, Paulo Gil Soares, assim como toda a equipe foi

dispensada, tanto a de São Paulo quanto a do Rio de Janeiro. Com o desgaste do

modelo anterior, a renovação e a reconquista da audiência veio com a adoção do

formato do 60 Minutes, da CBS News, com o repórter no vídeo. O Globo Repórter

retornava, assim, àquilo que Boni havia imaginado originalmente para o programa.

Em 19 de setembro de 1983, a Revista da TV do jornal O Globo divulgou o retorno

do Globo Repórter à programação da TV Globo. Depois de mais de um ano fora do ar, o

programa trouxe novidades: “Além de abrir mais espaço para o jornalismo, vai permitir

um novo tipo de repórter, que passa a vivenciar os assuntos abordados, num trabalho

de campo”. A intenção era consolidar a estrutura – “mais ágil e dinâmica” – de três

reportagens por programa, como se imaginou. Para exaltar a nova fase do programa,

Miriam Lage preparou a reportagem “A notícia como espetáculo” para o Jornal do Brasil

do dia 18 de abril de 1984. Lá, ela notou

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que, desde a volta do Globo Repórter, ele não era mais “um desile insosso

de reportagens compridas” e havia melhorado a sua qualidade.

Depois de 1983, há poucos registros de cineastas na direção de

documentários para o Globo Repórter, mas há vários sobre as atuações dos

repórteres no vídeo. Além de um maior cerceamento à liberdade de criação num

momento em que o Globo Repórter se renova como produto televisivo, houve outra

explicação para a saída dos cineastas do programa. Na segunda metade da década

de 1970, houve uma intensa modernização da sociedade brasileira particularizada

no cinema, por meio de uma articulação fundamental entre a expansão da

produção, do mercado, do público e das propostas culturais estatais (RAMOS,

1983, p. 89-116). Houve, portanto, um recrudescimento e uma ampliação dos

inanciamentos estatais na produção cinematográica. Aliado a isso, também

começou a haver um processo de distensão política, que permitiu um ambiente

mais propício a uma retomada das produções artísticas. Após deixarem de

trabalhar para ou no Globo Repórter, por exemplo, Eduardo Coutinho (com Cabra

marcado para morrer, de 1984), Hermano Penna (com Sargento Getúlio, de 1983),

João Batista de Andrade (com O homem que virou suco, de 1980), Maurice Capovilla

(com O jogo da vida, de 1977) e Walter Lima Júnior (com A Lira do Delírio, lançado

em 1978) tiveram ilmes apoiados pela Embrailme.

Posso ter causado a impressão de que somente cineastas tenham

participado do Globo Repórter até 1983 e, depois da saída de Paulo Gil Soares,

tenham sido substituídos por repórteres de vídeo, como usualmente o

programa tem sido lembrado (MILITELLO, 1997). Não é que não seja verdade,

mas essa airmação produz um conjunto de esquecimentos.

Pela análise das duas tabelas abaixo, avanço na discussão que, por vezes,

esteve tacitamente presente. Na primeira, comparo as edições que foram dirigidas

por cineastas e jornalistas brasileiros, e a produção estrangeira, de acordo com as

informações das sinopses presentes na seção de televisão de O Globo, Folha de S.

Paulo e Jornal do Brasil. Na outra, apresento o número de críticas jornalísticas

presentes nesses mesmos periódicos e destinadas a edições dirigidas por

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cineastas, jornalistas, e às produções estrangeiras. Pelas próprias limitações das

fontes utilizadas, considero somente o número de produções e não o de horas

produzidas. Além disso, deixo claro que as tabelas são meramente ilustrativas de

um conjunto de disputas e não correspondem ao universo de todos os programas

exibidos. Assim, quando não havia informação sobre o programa e sua equipe nos

periódicos pesquisados, ele não era considerado para a feitura das tabelas.

Tabela 1: Comparação da Produção de Cineastas, Jornalistas e Produção

Estrangeira (1973-1983)

Produção/Ano 1973 1974 1975 1976 1977 1978 1979 1980 1981 1982 1983

Cineastas 9 8 7 7 7 5 3 2 4 - -

Jornalistas 24 31 33 48 20 22 26 24 11 25 11

Produção
22 28 65 50 25 24 19 13 9 2 1
Estrangeira

Total 55 67 105 105 52 51 48 39 24 27 12

Fonte: O Globo, Folha de S. Paulo e Jornal do Brasil (03/04-18/12/1973; 03/01-09/12/1974; 13/01-30/12/1975;


06/01-28/12/1976; 04/01-27/12/1977; 03/01-26/12/1978; 02/01-25/12/1979; 08/01-30/12/1980; 06/01-
24/12/1981; 07/01-10/06/1982; 29/09-29/12/1983).

Tabela 2: Críticas para Produções de Cineastas, Jornalistas e Produção

Estrangeira (1973-1983)

Críticas/Ano 1973 1974 1975 1976 1977 1978 1979 1980 1981 1982 1983

Cineastas 4 3 6 7 5 14 2 2 2 - -

Jornalistas 3 1 1 1 2 2 2 4 2 2 1
Produção
1 - 3 1 1 2 - - 1 - -
Estrangeira
Total 8 4 10 9 8 18 4 6 5 2 1

Fonte: O Globo, Folha de S. Paulo e Jornal do Brasil (03/04-18/12/1973; 03/01-09/12/1974; 13/01-30/12/1975;


06/01-28/12/1976; 04/01-27/12/1977; 03/01-26/12/1978; 02/01-25/12/1979; 08/01-30/12/1980; 06/01-
24/12/1981; 07/01-10/06/1982; 29/09-29/12/1983).

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Apesar de um pequeno volume de produções dirigidas por cineastas, o número

de críticas aponta para o sentido inverso. Ou seja, apesar de serem em menor número,

os documentários dos cineastas repercutiram muito mais na imprensa do que as

produções dos jornalistas e as estrangeiras. Isso conirma o que venho argumentando:

a participação dos cineastas no programa serviu para conferir prestígio à emissora,

mas também para aumentar o reconhecimento desses proissionais. Nesse sentido, a

imprensa operou como aquilo que Bourdieu (2005, p. 119) chamou “instância de

legitimação”, capaz de consagrar por suas sanções simbólicas e, em especial, pela

cooptação (princípio de todas as manifestações de reconhecimento). Pensando assim,

observamos que foram conferidas posições (dominadas ou dominantes) para dois

grupos de proissionais que trabalhavam no Globo Repórter. Houve um momento em que

os cineastas estavam sendo colocados como em dominância. Os repórteres,

desprovidos do “capital cultural” daqueles, estavam sendo colocados numa posição

de dominados e sofrendo uma “violência simbólica” pela falta de conhecimento que

tinham. Entretanto, a mudança nessa relação, mais do que a vitória dos repórteres

sobre os cineastas na busca pela notoriedade que a televisão poderia conferir às suas

“personalidades estilísticas”, foi a consagração de um novo produto televisivo.

Não é à toa, portanto, que a crítica televisiva tratou o Globo Repórter dos

anos 1970 como um programa de cineastas, já que, além de se articular aos

desígnios da indústria televisiva, estava legitimando o fato de o Cinema Novo ter

ocupado uma posição de destaque no campo da cultura e do cinema brasileiros.

Lembrando-se da participação dos cineastas e esquecendo-se das outras

produções – dos jornalistas e dos enlatados –, a imprensa estava criando uma

imagem da TV Globo como uma emissora de qualidade. Como engrenagens de

uma mesma máquina, a imprensa e a televisão não são a mesma coisa e muito

menos atuam isoladamente, mas, formando um sistema de produção industrial

de cultura, tornaram-se fundamentalmente interdependentes.

Quando o Globo Repórter começou a mudar o formato, os críticos também

não tardaram em exaltá-lo. Se nos anos 1970, quando eram outras as opções

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estéticas do programa, os jornalistas as legitimavam, mesmo com algumas

ressalvas quando os documentários não atingiam o padrão de qualidade

televisiva, não eram sobre o Brasil ou não contavam com cineastas, na década

seguinte, o repórter passou a ser valorizado como fundamental para a renovação

formal do programa. Certamente, isso comprova que a crítica televisiva exerce um

papel importante na construção do sucesso de determinados produtos e na

conformação do que é aceito pelo mercado. Esse papel é o de consagrar aquilo

que seria mais apropriado à emissora utilizar para vencer a concorrência de outras

organizações midiáticas por maior notoriedade e poder no país, num momento de

consolidação do jornalismo eletrônico.

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Referências bibliográicas

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Cinema, televisão e outras mídias: interlocuções
Globo Repórter, de cineastas a jornalistas: uma história das mudanças de formato - Igor Sacramento

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1. A expressão off, além de usada para a narração feita por uma voz fora do campo visual no documentário, também é
consagrada e de uso corrente no telejornalismo, especialmente pela consolidação do esquema “off + passagem + sonora”
nas reportagens televisivas. Apesar de a expressão mais precisa ser over, ela não é de uso corrente no Brasil.

2. Nesta e nas demais entrevistas, o realce em negrito é do autor.

3. Lins (2007, p.146) comenta que o modelo do documentário dos anos 1960, que se baseava no modelo do
cineasta/ intelectual, e que, em off, interpretava, apontava problemas e buscava soluções para a experiência
popular, é posto de lado. No seu lugar, vigoram ilmes baseados em conversas entre cineastas e personagens,
sem pretensão a sínteses ou generalizações. Eduardo Coutinho, cujo projeto de documentário se estruturou na
airmação da entrevista e na negação da narração em off, buscou, em alguns momentos, modos para subvertê-la,
abolindo-a ou deslegitimando-a em favor do depoimento.

4. Na TV Globo, além de Cassino do Chacrinha (1982-1988), outros programas de entretenimento foram criados. Na
área de jornalismo, a emissora manteve os principais programas (Jornal Nacional, Jornal da Globo, Globo Repórter,
Fantástico). Como maior inovação, foram lançados, em 1983, os telejornais locais RJTV, SPTV e MGTV. Os novos
jornalísticos procuravam conjugar informação e prestação de serviço, acompanhando a fórmula de sucesso
desempenhada por outras emissoras em programas como Aqui Agora (TV Tupi) e O Povo na TV (SBT),
classiicados como sensacionalistas pela crítica.

5. No telejornalismo, o termo “passagem” designa o momento em que o repórter aparece no vídeo durante uma
reportagem. Tal prática tem a função de reforçar a presença do repórter no local dos acontecimentos, além de
ser fundamental para a ancoragem espaciotemporal da narrativa telejornalística e para a construção de
credibilidade e de verossimilhança – de efeito de real – da notícia, legitimando, assim, o repórter e a emissora.

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